Aspectos funcionais, microbiológicos e morfológicos intestinais em crianças
infectadas pelo vírus da imunodeficiência humana
PEDIATRIC GASTROENTEROLOGY GASTROENTEROLOGIA PEDIÁTRICAINTRODUÇÃO
A infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) pode afetar todo o trato
gastrintestinal e o sistema hepatobiliar(9). Trata-se de síndrome com gênese
multifatorial, envolvendo a interação entre infecções oportunistas, má absorção
de nutrientes, alterações metabólicas e, possivelmente, lesão tecidual
determinada pelo próprio HIV(13, 14). O trato gastrointestinal, por representar
o maior órgão linfóide do ser humano, tem papel destacado na infecção pelo HIV.
Com exceção da transmissão parenteral, o trato gastrointestinal é a principal
via de infecção pelo HIV por transmissão vertical e por contato oral e genital.
Os linfócitos da lâmina própria, por expressarem CCR5 e CXCR4, constituem a
célula alvo inicial do HIV na mucosa intestinal. Desde a mucosa, o vírus se
dissemina sistemicamente, desencadeando depleção das células CD4+, inicialmente
na lâmina própria e, em seguida, no sangue. À medida que ocorre a depleção de
linfócitos CD4+ circulantes e na mucosa, monócitos e macrófagos assumem
importância crescente como célula alvo e reservatórios do HIV(28). A infecção
pelo HIV determina, portanto, falência progressiva das funções fisiológicas e
imunológicas do trato gastrointestinal. Os pacientes podem, então, apresentar
má absorção, perda de peso e desenvolver infecções oportunistas e doenças
malignas do intestino(19).
As principais alterações morfológicas descritas no intestino delgado dos
pacientes infectados pelo HIV são atrofia das vilosidades de grau variável,
hiperplasia das criptas e aumento dos linfócitos intra-epiteliais, associadas
ou não à presença de sintomas ou microorganismos, observadas em qualquer
estágio da doença, sugestivas de uma enteropatia do HIV(16). No intestino
grosso, tem sido observado grau de inflamação da mucosa comparável ao daquele
em pacientes com doença inflamatória intestinal(24). Na investigação
microbiológica do trato gastrointestinal podem ser identificados diversos
microorganismos, oportunistas ou não, cujo encontro nem sempre está associado a
manifestações clínicas. Os testes para avaliação da função intestinal mostram,
freqüentemente, prejuízo na absorção nos diversos estágios da doença(11, 17).
Tendo em vista a importância do impacto das manifestações gastrointestinais da
infecção pelo HIV em crianças e a escassez de informações a respeito em nosso
meio, conduziu-se o presente estudo objetivando ampliar conhecimentos acerca da
função absortiva e das características morfológicas e microbiológicas
intestinais nesse grupo.
MATERIAL E MÉTODOS
Casuística
Foram selecionadas aleatoriamente, de forma prospectiva e consecutiva, entre
agosto de 1994 e maio de 1995, 11 crianças infectadas pelo HIV, menores de 13
anos, pertencentes às categorias clínicas A, B ou C da classificação proposta
pelos Centers for Diseases Control and Prevention (CDC)(6) no Ambulatório de
AIDS da Disciplina de Infectologia do Departamento de Pediatria da Universidade
Federal de São Paulo ' Escola Paulista de Medicina (UNIFESP ' EPM) e na
Enfermaria e Ambulatório do Núcleo de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento
Infantil (NUNADI) do Centro de Referência da Saúde da Mulher da Secretaria da
Saúde de São Paulo, em São Paulo, SP. Foram constituídos dois grupos, a saber:
grupo I - cinco crianças com história de pelo menos um episódio diarréico nos
30 dias que antecederam sua inclusão no estudo; grupo II - seis crianças, sem
relato de ocorrência de diarréia no mesmo período. O estudo foi aprovado pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP-EPM, sendo obtido consentimento escrito
e esclarecido dos pais ou responsáveis legais pelas crianças. Os hemofílicos
soropositivos para o HIV só foram incluídos no estudo quando havia indicação
clínica absoluta para realização de endoscopia digestiva alta.
Na admissão ao estudo foi preenchido um questionário padronizado com
informações clínicas e epidemiológicas, seguido pela aferição do peso e
estatura para classificação do estado nutricional segundo os critérios de Gomez
modificados por BENGOA(4) e Waterlow modificados por BATISTA et al.(2), tendo
como referência de normalidade as tabelas de percentis do National Center for
Health Statistics (NCHS).
Investigação laboratorial
Teste de absorção da D-xilose
Após jejum de 4 horas os pacientes receberam 0,5 g de D-xilose (diluída em
solução aquosa a 10%) por kg de peso, até um máximo de 25 g. Uma hora após sua
administração, foi coletada amostra de sangue para determinação da D-xilose
sérica pelo método colorimétrico, de acordo com técnica descrita por ROE e RICE
(26). Valores menores que 25 mg/dL foram considerados como indicativos de má
absorção.
Cultura e parasitológico de fezes
As amostras de fezes foram cultivadas nos meios SS, BEM e tetrationato para
identificação de Escherichia coli, Salmonella e Shigella e nos meios Lowenstein
Jensen e Stonebrink para identificação de micobactérias. A pesquisa de
micobactérias também foi realizada por baciloscopia, usando-se a coloração de
Ziehl-Nielsen. Rotavírus foi pesquisado pelos métodos imunoenzimático e de
aglutinação no látex. A pesquisa de parasitas e helmintos foi realizada pelos
métodos de Hoffman, centrífugo de sedimentação em formol-éter e de Rugai.
Cryptosporidium foi investigado pelo método de Ziehl-Nielsen.
Biopsia de intestino delgado
A biopsia de intestino delgado foi realizada com utilização de uma sonda
flexível de polietileno acoplada a uma cápsula de Watson na extremidade distal,
segundo a técnica descrita por TOCCALINO e O'DONNEL(29), ou através de pinça
endoscópica, nos casos em que o procedimento por cápsula não foi possível ser
realizado ou com indicação clínica prévia de realização de endoscopia digestiva
alta. Os fragmentos obtidos foram submetidos as colorações de hematoxilina-
eosina, Giemsa, PAS, Prata e Ziehl-Nielsen e, nas amostras de tamanho
satisfatório, foi realizada a pesquisa de micobactérias em tecido, segundo
metodologia anteriormente descrita para as fezes. A interpretação dos
fragmentos por microscopia óptica foi baseada na relação entre a altura das
vilosidades e a profundidade das criptas e na intensidade do infiltrado
inflamatório da lâmina própria, segundo critérios modificados de SHENCK e
KLIPSTEIN(27). Assim, os parâmetros histológicos avaliados foram:
a) altura ou comprimento da vilosidade da abertura da cripta até o
topo da vilosidade;
b) comprimento ou profundidade da cripta da abertura até o fundo da
cripta que repousa sobre a muscular da mucosa. A relação entre a
altura da vilosidade e a profundidade da cripta foi avaliada
subjetivamente do seguinte modo: grau I ' relação entre 3 a 2 para 1:
sem atrofia ou em grau muito leve, praticamente dentro da
normalidade; grau II ' relação 1 para 1: atrofia leve; grau III - já
existe inversão da relação vilosidade/cripta, isto é, cripta pouco
mais longa que a vilosidade: atrofia moderada, também chamada atrofia
parcial; grau IV ' mucosa plana por intensa atrofia das vilosidades,
também chamada atrofia subtotal;
c) infiltrado celular da lâmina própria, constituído por linfócitos,
plasmócitos e eosinófilos, avaliado em graus leve ou normal, moderado
e intenso. Polimorfonucleares neutrófilos, que não existem na mucosa
intestinal normal, quando ocorreram, foram também classificados em
graus leve, moderado e intenso;
d) linfócitos intra-epiteliais, que ocorrem normalmente no intestino
delgado em número de até 30 por 100 enterócitos, foram avaliados em
graus de aumento leve (30 a 40 por 100 enterócitos), moderado (entre
40 e 50 por 100 enterócitos) e intenso (acima de 60 por 100
enterócitos).
Biopsia retal
A biopsia retal foi realizada com utilização da cápsula de Rubin. Os fragmentos
obtidos foram submetidos as colorações de hematoxilina-eosina, Giemsa, PAS,
Prata e Ziehl-Nielsen e, nas amostras de tamanho satisfatório, foi realizada a
pesquisa de micobactérias em tecido, segundo metodologia anteriormente descrita
para as fezes. A avaliação morfológica dos fragmentos de intestino grosso foi
realizada por microscopia óptica, de acordo com os critérios de MORSON(22),
considerando-se a análise da integridade do epitélio superficial (erosões), das
glândulas e o infiltrado de linfócitos, plasmócitos e eosinófilos nos graus de
intensidade leve, moderado e intenso.
RESULTADOS
A idade das crianças variou de 5 a 149 meses (mediana de 24 meses), sendo seis
do sexo feminino e cinco do sexo masculino. Nos 30 dias que antecederam à
inclusão no estudo, cinco crianças haviam apresentado diarréia, das quais três
já assim se mostravam desde o início da investigação. Outros sintomas
digestivos referidos foram vômitos (4/11), disfagia (1/11) e dor abdominal (1/
11). Os medicamentos usados foram: zidovudina (9/11), didanosina (3/11),
sulfametoxazol-trimetoprim (10/11), imunoglobulina intravenosa (2/11),
nistatina (2/11), azitromicina (1/11) e associação de rifampicina, isoniazida e
pirazinamida (1/11). Das 11 crianças, 9 foram infectadas pelo HIV por
transmissão vertical, 1 por transfusão de hemoderivados (hemofílico) e 1
permanecia com modo de transmissão não esclarecido.
Segundo os critérios de Gomez modificados por BENGOA(4), para avaliação do
estado nutricional, todas as 11 crianças apresentavam algum grau de desnutrição
energético-protéica, sendo 6 de III grau, 2 de II grau e 1 de I grau. Já pelos
critérios de Waterlow modificados por BATISTA et al.(2), aplicado para as duas
crianças maiores de 5 anos, houve um caso de desnutrição pregressa e um de
desnutrição crônica.
Coprocultura, realizada em 7 dos 11 pacientes, não identificou bactérias
enteropatogênicas. Pesquisa de rotavírus foi negativa nas seis crianças em que
foi realizada e o exame protoparasitológico também foi negativo nas oito
crianças das quais foram obtidas amostras adequadas de fezes. Cryptosporidium
foi identificado em 1 e o resultado foi duvidoso em outro dos 10 exames
realizados. Dos cinco casos em que foi possível pesquisar, Mycobacterium avium
intracellulare foi identificado em apenas uma amostra de fezes. A pesquisa de
Mycobacterium avium intracellulare nos fragmentos de biopsia resultou negativa
nas seis amostras investigadas, inclusive na do paciente em que foi
identificado este microorganismo nas fezes.
A prova de absorção da D-xilose foi realizada em 9 dos 11 pacientes, com
valores variando de 8,9 a 24,4 mg/dL, média de 15,6 mg/dL, mediana de 14,2 mg/
dL e desvio padrão de 5 mg/dL.
Dos 11 fragmentos de biopsias de intestino delgado obtidos, 1 foi excluído da
análise por ser tecnicamente inadequado para exame (Tabela_1). Quanto à relação
entre altura das vilosidades e profundidade das criptas, os resultados foram os
seguintes: três com atrofia de vilosidades grau I (Figura_1), dois com grau I/
II, um com grau II, um com grau II/III e um com grau III/IV. Em dois casos não
foi possível análise deste parâmetro, pois as amostras eram superficiais.
Linfócitos intra-epiteliais foram observados nos 10 fragmentos analisados
(Figura_1), estando aumentados em 5, sendo 2 em quantidade leve, 2 em
quantidade moderada e 1 em quantidade intensa. O infiltrado linfoplasmocitário
da lâmina própria estava aumentado em 100% das amostras analisadas (10/10) e
foi graduado em moderado (4/10), intenso (5/10), como se pode observar na
Figura_2-A, e leve (1/10). O infiltrado de polimorfonucleares neutrófilos da
lâmina própria estava aumentado em 7 das 10 amostras analisadas. Destas, três
em grau leve, quatro em grau moderado e um em grau intenso. Em apenas um caso
foi observada presença de microorganismos em forma de bastões, similares a
bactérias, em meio ao muco que recobria o epitélio. Nesta amostra, uma crosta
fibrino-leucocitária no topo da vilosidade fez supor lesão ulcerada.
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Foram realizadas oito biopsias retais e, destas, seis se prestaram à análise
histopatológica. Quanto à integridade epitelial, em 100% (6/6) dos casos
mostrava-se íntegra. O infiltrado linfoplasmocitário estava aumentado em todos
os casos, variando de grau leve (3/6), como se observa na Figura_2-B, moderado
(2/6) e intenso (1/6). A presença de infiltrado de polimorfonucleares
neutrófilos foi observada em quatro casos, sendo de grau leve em três e intenso
em um (Tabela_2 e Figura_3).
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DISCUSSÃO
Este estudo foi realizado em período que antecedeu o advento da terapia anti-
retroviral potente (HAART), no qual se dispunha apenas de monoterapia ou uso
combinado de dois anti-retrovirais análogos de nucleosídios e, portanto,
pequeno impacto clínico, imunológico e virológico na evolução da infecção pelo
HIV. Sendo assim, a presente amostra deve representar condição muito próxima à
observada na história natural da infecção pelo HIV nas crianças. Esta
observação é importante, pois, ao se compararem biopsias de intestino de
pacientes HIV positivos entre 1995 e 1998, período em que foi introduzida a
HAART, MÖNKEMÜLLER et al.(20) constataram declínio significativo das infecções
oportunistas gastrointestinais, mesmo nos indivíduos com CD4 baixo. De modo
diverso, estudo conduzido na região sul do Brasil em 1999, envolvendo 104
crianças infectadas pelo HIV e já em uso de HAART, identificou a presença de
Cryptosporidium em 31,73% das amostras de fezes analisadas(25). Este mesmo
estudo, no entanto, atribui ao uso da HAART a escassez de alteração no teste da
D-xilose, observada em apenas 7,7% das crianças. Outro estudo envolvendo coorte
de 671 pacientes infectados pelo HIV, entre 1995 e 1999, mostrou que 47,7%
apresentavam má absorção de D-xilose, 38,9% tinham diarréia e que em 12,2%
foram identificados agentes patogênicos entéricos, sendo encontrado
Cryptosporidium em apenas uma amostra de fezes. A identificação de
microorganismos patogênicos nas fezes não tinha associação com ocorrência de
diarréia. Esse estudo concluiu que a alteração da função gastrointestinal é
também problema comum após o advento da HAART, tendo início precoce na evolução
da infecção pelo HIV, mesmo na ausência de diarréia. A explicação para
resultados tão distintos enfatiza a complexidade da interação de fatores
sociodemográficos, exposição a agentes patogênicos diversos e estágio da
infecção pelo HIV capazes de afetar a função gastrointestinal(15).
Embora com casuística pequena e num contexto de disponibilidade de arsenal
terapêutico diferente, os resultados da presente série se assemelham aos
reportados na literatura. Três dos 11 pacientes apresentavam diarréia. No
entanto, os dois microorganismos oportunistas identificados, Cryptosporidium e
Mycobacterium avium intracellulare, não estavam associados à ocorrência de
diarréia. Ainda nesta casuística, o teste da D-xilose esteve abaixo do nível
normal nos nove pacientes em que foi realizado, independentemente da ocorrência
de diarréia como sintoma de má absorção, fato também relatado por outros
autores(16, 17). O paciente em que se identificou Mycobacterium avium
intracellulare teve a D-xilose de valor mais baixo, ainda que com apenas grau
II de atrofia de vilosidades no fragmento de intestino delgado obtido por
biopsia. O encontro de má absorção da D-xilose, mesmo com alterações
histológicas mínimas da mucosa intestinal, também já foi descrito, podendo os
resultados alterados representar uma predição da ocorrência da enteropatia pelo
HIV(5, 10). KNOX et al.(15) verificaram em sua casuística que a má absorção da
D-xilose ocorreu em indivíduos sem outros sinais de má absorção, tais como
diarréia, baixos níveis de vitamina B12 e de folatos no sangue ou perda de
gordura nas fezes. Tais dados seriam sugestivos de que as alterações precoces
determinadas pela enteropatia pelo HIV sejam freqüentes, porém não detectáveis,
exceto por absorção alterada da D-xilose.
A análise histológica dos fragmentos de intestino delgado no presente estudo,
mostrou graus variados de atrofia das vilosidades, alteração da relação altura
da vilosidade versus profundidade da cripta nos oito casos em que a biopsia
permitiu essa avaliação, infiltrado inflamatório crônico com predomínio de
células linfomononucleares na maioria das amostras e aumento de linfócitos
intra-epiteliais na metade dos casos analisados. Essas alterações não estavam
correlacionadas com ocorrência de diarréia, nem com a presença de
microorganismos ou alteração do teste da D-xilose, conforme descrito
anteriormente. Inclusive, o paciente com grau mais intenso de atrofia
vilositária (grau III/IV) desta casuística, não apresentava diarréia. Este
polimorfismo das alterações estruturais do intestino e a nem sempre possível
associação com ocorrência de sintomas clínicos, encontro de microorganismos e
provas de absorção alteradas levou a hipótese da enteropatia pelo HIV,
pioneiramente sugerida por KOTLER et al.(16) e ULLRICH et al.(30). Embora não
se tenha realizado análise morfométrica, os achados histológicos desta série
parecem coincidir, em alguns aspectos, com os descritos por BATMAN et al.(3) em
estudo comparativo da morfometria da mucosa jejunal de pacientes infectados
pelo HIV residentes em Uganda e Londres. Esses autores, a partir da observação
de uma correlação negativa entre o comprimento das criptas e a área da
superfície das vilosidades em todas as biopsias realizadas, sugerem que a
hiperplasia das células da cripta constitui a lesão primária da mucosa na
enteropatia, conduzindo enterócitos imaturos para as laterais das vilosidades e
reduzindo a área de absorção das vilosidades através do deslocamento da junção
cripta-vilosidade em direção ao lúmen. Sugerem, ainda, que a infecção das
células da lâmina própria do jejuno pelo HIV alteraria a regulação de citocinas
e estimularia a proliferação de células das criptas, resultando na lesão de
mucosa observada na enteropatia do HIV. Segundo MARSH(18), este tipo de atrofia
com hiperplasia de criptas e atrofia de vilosidades, que pode chegar à mucosa
plana, observada também na doença celíaca e em outras enteropatias, seria
causado por mecanismos regulados por linfócitos T. OKTEDALEN et al.(23),
estudando 20 pacientes infectados pelo HIV com diarréia, constataram um padrão
de má absorção da D-xilose comparável ao observado em pacientes com doença
celíaca. No entanto, esse acentuado comprometimento na absorção intestinal não
pôde ser explicado pelas alterações observadas pela microscopia de luz dos
fragmentos de intestino delgado, isto é, pouca inflamação da mucosa e
vilosidades normais. Já a microscopia eletrônica mostrou enterócitos com sinais
de hipofunção e degeneração e, portanto, correlacionando-se bem com o quadro de
má absorção intestinal em pacientes com infecção avançada pelo HIV e diarréia
crônica. Experimentos mais recentes in vitro demonstraram que a glicoproteína
120 (gp 120) do HIV, ao acoplar-se com a proteína receptora GPR15/Bob, que
existe em abundância na membrana basal do intestino delgado, induz à
sinalização de cálcio e perda de microtúbulos nas células de linhagem
intestinal HT-29, resultando em má absorção e aumento na permeabilidade
paracelular, configurando mecanismo plausível para a enteropatia do HIV(7).
Nas seis crianças deste estudo, nas quais foi possível fazer a análise
morfológica das biopsias retais, destaca-se o encontro de infiltrado
linfomononuclear aumentado em todas as amostras e de infiltrado
polimorfonuclear neutrófilo em quatro das amostras, caracterizando quadro de
infiltrado inflamatório não específico, também descrito na literatura. A
presença dos neutrófilos indica atividade da lesão, isto é, fase de
reagudização da lesão, já que essas células não ocorrem normalmente na lâmina
própria do trato gastrointestinal. CLAYTON et al.(8) documentaram progressão
qualitativa e quantitativa nas alterações vistas na mucosa retal de indivíduos
infectados pelo HIV, a qual se correlacionou com a presença e a quantidade do
vírus no tecido colônico, sugerindo, além da enteropatia do HIV anteriormente
comentada, que a mucosa intestinal poderia constituir local de proliferação e
de destruição de linfócitos. Mais recentemente, MONNO et al.(21), comparando
amostras de HIV obtidas concomitantemente do sangue e de tecido retal,
verificaram padrões de resistência aos anti-retrovirais diferentes, dando
suporte à idéia de evolução genotípica variável do HIV nos diferentes
compartimentos corporais e enfatizando a participação da mucosa intestinal na
seleção do genótipo do HIV.
Desnutrição, na presente casuística, esteve presente em todas as crianças, na
maioria em sua forma grave (III grau), quando consideradas as menores de 5
anos, denotando o impacto da infecção pelo HIV nesses pacientes. Já a avaliação
das duas crianças maiores de 5 anos evidencia agravo nutricional de longa
duração, tendo em vista o comprometimento da estatura de ambos. Não se pode
desprezar o efeito que o meio ambiente adverso, ao qual essas crianças são
submetidas, exerce nesse contexto, pois algumas delas identificavam-se
perfeitamente na descrição da síndrome que FAGUNDES-NETO et al.(12) denominaram
de enteropatia ambiental, em que são observados graus variáveis de atrofia das
vilosidades e infiltrado linfoplasmocitário do córion, à semelhança dos
resultados do estudo presente. A desaceleração do crescimento ponderal e de
estatura parece ser a alteração mais comum nas crianças infectadas pelo HIV e é
acompanhada por decréscimo preferencial da gordura livre ou da massa corporal
magra. Podem estar associadas deficiências de vários micronutrientes,
alterações neuroendócrinas, infecções do trato gastrointestinal e má absorção
de carboidratos, gordura e proteína na gênese desse processo. As crianças
infectadas pelo HIV que têm crescimento retardado, apresentam cargas virais
mais elevadas quando comparadas com as que têm crescimento normal e a supressão
do HIV parece exercer papel favorável na retomada do ganho ponderal e da
estatura. Estuda-se, atualmente, o potencial dos agentes anabolizantes no
manuseio clínico dessa condição(1).
Os dados deste estudo são compatíveis com os descritos na literatura, embora se
tenham encontrado apenas lesões histológicas sem especificidade. Considerando-
se a escassez de informações sobre o trato gastrointestinal em crianças
infectadas pelo HIV, os resultados da presente série contribuem para melhor
compreensão da evolução da infecção pelo HIV na faixa etária pediátrica. Um
passo futuro, seria avançar na análise ultra-estrutural para melhor
caracterizar a enteropatia do HIV, bem como avaliar o impacto da má absorção
intestinal na biodisponibilidade dos medicamentos anti-retrovirais e a busca de
estratégias de suporte nutricional específicas para esses pacientes.
AGRADECIMENTO
Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior
(CAPES) pela bolsa de mestrado da Dra. Christiane Araujo Chaves Leite.