Características clínicas de pacientes pediátricos com constipação crônica de
acordo com o grupo etário
INTRODUÇÃO
Constipação intestinal crônica é um problema freqüente na população pediátrica,
estimando-se que seja a principal queixa em 3% das consultas de pediatria e 25%
das consultas em ambulatórios de gastroenterologia pediátrica(8). Em nosso
meio, a prevalência de constipação intestinal varia entre 17,5% e 36,5%, de
acordo com informações obtidas em estudos realizados em unidades básicas de
saúde, ambulatórios de pediatria, escolas e na comunidade(1, 4, 5, 11, 15, 18).
Apesar da elevada prevalência de constipação, observa-se pouca valorização
desse sintoma por parte dos pais e profissionais de saúde(5), o que ocasiona
retardo no início do tratamento, favorecendo o surgimento de complicações(10).
Por sua vez, existem poucas publicações que descrevem com detalhes as
características clínicas de pacientes com constipação crônica atendidos em
ambulatórios de gastroenterologia pediátrica(9, 10, 17). Em nosso conhecimento,
não existe nenhum estudo em que tenha sido realizada a comparação das suas
características clínicas nas diferentes faixas etárias da população pediátrica.
No presente estudo foi realizada uma análise retrospectiva com o objetivo de
avaliar as características clínicas de pacientes com constipação crônica de
acordo com o grupo etário.
MÉTODOS
Neste estudo retrospectivo foram avaliadas as informações coletadas na primeira
consulta de 561 pacientes com diagnóstico de constipação crônica atendidos
consecutivamente no Ambulatório de Motilidade da Disciplina de
Gastroenterologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo - Escola
Paulista de Medicina, no período de maio de 1995 a dezembro de 2002. Na
primeira consulta deste ambulatório é utilizado um questionário estruturado que
aborda informações clínicas obtidas de maneira categorizada. Para o presente
estudo, as informações constantes dos prontuários sobre as características do
hábito intestinal, idade de início da constipação intestinal, duração da
queixa, sinais e sintomas associados e achados do exame físico foram coletadas
em um formulário específico. Escape fecal foi caracterizado nos pacientes com
idade igual ou maior do que 48 meses. As informações foram transferidas para
uma planilha do programa Microsoft Office Excel® para serem analisadas.
Constipação crônica foi caracterizada pela eliminação de fezes endurecidas com
dificuldade ou dor, associadas ou não à ocorrência de comportamento de
retenção, escape fecal e aumento do intervalo entre as evacuações(6, 13, 14).
Foram excluídos da avaliação os pacientes com diagnóstico de doença de
Hirschsprung, constipação secundária à alergia ao leite de vaca, crianças com
encefalopatia crônica ou pacientes com evidências clínicas de constipação
secundária a anormalidades anatômicas (estenose anal) ou funcionais
(pseudobstrução intestinal) do intestino e outras doenças como doença celíaca e
síndromes genéticas. Assim, a casuística foi constituída por pacientes com
hipótese diagnóstica de constipação crônica funcional.
Para análise dos dados, os pacientes foram distribuídos de acordo com a faixa
etária: lactentes (0 a 23,9 meses), pré-escolares (24,0 a 71,9 meses),
escolares (72 a 120 meses) e adolescentes (121 a 229 meses).
Para análise dos resultados foi utilizado o teste do Qui-quadrado para as
variáveis categóricas e a partição do Qui-quadrado para a identificação de
diferenças entre as faixas etárias. O teste de Kruskal-Wallis, complementado
por teste de comparações múltiplas, quando necessário, foi utilizado para as
variáveis contínuas. Fixou-se em 0,05 ou 5% o nível de rejeição da hipótese de
nulidade. Os cálculos foram realizados com o emprego do programa de estatística
SigmaStat® for Windows.
RESULTADOS
Nesta amostra, constituída por 561 pacientes, ocorreu a seguinte distribuição
por faixa etária: pré-escolares (42,9%), escolares (26,9%), lactentes (19,1%) e
adolescentes (11,0%). Apesar do predomínio de pacientes do sexo masculino
(56,5%, 317/561) e do aumento da proporção masculino:feminino com o aumento da
idade, não se observou diferença estatisticamente significante entre os gêneros
nas quatro faixas etárias (Tabela_1). Nessa tabela observa-se, também, que o
intervalo entre o início da constipação e a primeira consulta no ambulatório
especializado foi maior nos adolescentes e escolares, em comparação com os pré-
escolares e lactentes. Por sua vez, este parâmetro foi maior nos pré-escolares
do que nos lactentes. Assim, pode-se dizer que quanto maior a idade, maior a
duração da queixa de constipação por ocasião da primeira consulta.
Na Tabela_2 pode ser observado que o número de evacuações inferior a três vezes
por semana ocorreu em menor proporção nos lactentes e adolescentes. A
ocorrência de dor durante a evacuação foi maior nos lactentes, lembrando que
essa informação foi obtida com base na percepção dos pais ou responsáveis. A
proporção de pacientes com eliminação de fezes endurecidas e ressecadas não
diferiu entre os grupos etários.
A comparação entre as proporções de ocorrência de escape fecal entre pré-
escolares com mais de 48 meses, escolares e adolescentes não revelou diferença
estatisticamente significante (Tabela_3). Na avaliação da freqüência de escape
fecal de acordo com o gênero, verificou-se nos escolares, predomínio
estatisticamente significante no sexo masculino (P = 0,001). Nos adolescentes a
freqüência de escape fecal foi superior no sexo feminino, mas o estudo
estatístico não revelou diferença significante. Em relação aos escolares e
adolescentes, os pré-escolares apresentaram maior proporção de relatos de dor
abdominal, manobras de retenção, medo de defecar e medo de se sentar no vaso
sanitário (Tabela 3). Não se observou diferença estatisticamente significante
entre essas variáveis entre adolescentes e escolares, apesar das proporções
serem menores nos adolescentes (Tabela_3).
Ao exame físico, não se observaram diferenças estatisticamente significantes na
ocorrência de distensão abdominal, fissura anal e plicoma. Massa fecal palpável
foi detectada em menor proporção nos lactentes e a presença de fezes
endurecidas na ampola retal, nos pacientes submetidos ao toque retal, foi maior
nos pré-escolares, quando comparados aos demais grupos (Tabela_4).
DISCUSSÃO
Constipação é um sintoma freqüente na faixa etária pediátrica. Estudos
realizados no Brasil mostram que sua prevalência é elevada na comunidade(1, 4,
5, 11, 15, 18), no entanto, existem evidências de que as características
clínicas desses casos identificados na comunidade apresentam menor gravidade do
que aqueles atendidos em ambulatórios de gastroenterologia pediátrica(2). A
descrição das características clínicas de pacientes com constipação crônica
atendidos em serviços de referência foi motivo de alguns estudos publicados, no
entanto, segundo os presentes autores, suas particularidades de acordo com
todas as diferentes faixas etárias da pediatria não foram avaliadas em nenhum
deles. Este estudo retrospectivo analisa as características clínicas de
pacientes atendidos com constipação crônica em um ambulatório de
gastroenterologia pediátrica, distribuídas segundo os quatro grupos etários
pediátricos: lactente, pré-escolar, escolar e adolescente.
Vale ressaltar que os dados relativos à duração da constipação por ocasião da
primeira consulta, assim como a idade de seu início e a duração do escape
fecal, devem ser interpretados levando-se em conta o grupo etário, ou seja,
quanto menor a idade, teoricamente, esses valores tendem a ser menores. Quanto
ao escape fecal, considerou-se sua presença apenas após os 48 meses de idade.
Na prática, escape fecal pode ser caracterizado após a obtenção do controle
esfincteriano, mesmo antes dos 48 meses(13), no entanto, as informações
coletadas nos prontuários não permitiram relacioná-lo com controle
esfincteriano. Por outro lado, escape fecal constava de 71 (52,2%) dos 136
prontuários de pré-escolares com idade inferior a 48 meses (dados não
considerados nos Resultados).
Nos 107 lactentes estudados não se observou predomínio no gênero masculino,
como ocorre nas faixas etárias mais elevadas. Nessa faixa etária, as medianas
da idade de início da constipação e da primeira consulta foram,
respectivamente, 3 e 14 meses. A duração mediana da constipação por ocasião da
primeira consulta foi de 8 meses, inferior a outras faixas de idade, sendo a
diferença estatisticamente significante. As proporções de lactentes com massa
abdominal palpável (26,5%) e freqüência de evacuações inferior a três por
semana (52,4%) também foram inferiores às observadas nos grupos com maior
idade. Este último dado contrasta com o observado em 69 lactentes com
constipação identificados em estudo realizado em unidades básicas do município
do Embu, SP, nos quais apenas 5,8% evacuavam menos que três vezes por semana
(1). Por sua vez, LOENING-BAUCKE(7), estudando retrospectivamente 132 lactentes
(52% do sexo masculino) com constipação crônica, atendidos em ambulatório
terciário de Iowa, nos Estados Unidos, observou que a idade média dos pacientes
na primeira consulta era igual a 13,7 meses, a duração média da constipação
igual a 6,7 meses, presença de massa abdominal palpável em 13% e freqüência de
evacuação menor do que 3,5 vezes por semana em cerca de 35% dos lactentes.
Esses dados são muito semelhantes aos obtidos no presente estudo, revelando
gravidade similar da constipação nesses dois serviços especializados.
Nos pré-escolares, escolares e adolescentes nota-se aumento progressivo na
proporção de constipação no gênero masculino, atingindo a proporção de 1,8
masculinos para cada feminino (64,5% dos casos em adolescentes masculinos).
Quanto à percentagem de casos com início da constipação no 1º ano de vida,
observaram-se valores decrescentes que passaram de 52,6% nos pré-escolares,
para 30,1% nos escolares e 15,7% nos adolescentes. Estudo realizado em
Botucatu, SP, por MAFFEI et al.(10), incluiu 163 pacientes com idade entre 2 e
146 meses (51,5% do sexo masculino) atendidos com constipação crônica em
ambulatório especializado, entre 1981 e 1989. Observou-se grande intervalo
entre o início da constipação e a primeira consulta (mediana = 38 meses),
mediana da idade de início da constipação no 3º mês de vida, menos que três
evacuações por semana em 59,5%, escape fecal em 56,0% dos meninos e em 34,2%
das meninas. Nesse mesmo estudo, constatou-se a presença de enurese e infecção
urinária atual ou pregressa em cerca de 10% a 20% dos pacientes com constipação
crônica, manifestações que não foram avaliadas no presente levantamento
retrospectivo. Em ambulatório especializado de Iowa, EUA, em 174 crianças com
idade inferior a 4 anos e 215 com idade superior a 4, observou-se,
respectivamente, início da constipação no 1º ano de vida em 84% e 49%,
comportamento de retenção em 97% e 71%, massa abdominal palpável em 42% e 42%
e, finalmente, escape fecal em 90,5% dos maiores de 4 anos(9). Esses dados
reafirmam que parcela expressiva dos pacientes atendidos em serviços
especializados apresenta constipação desde o 1º ano de vida, antes do
treinamento esfincteriano, muito valorizado no passado como fator desencadeante
da constipação. Revisão da literatura(17) baseada em 13 artigos publicados,
aponta que a constipação na criança provoca redução da freqüência de evacuações
em 80% a 100% dos pacientes, incontinência fecal (escape fecal) em 35% a 96% e
massa fecal abdominal palpável em 30% a 71% dos casos, demonstrando que as
diferentes casuísticas podem apresentar grandes variabilidades nas
características clínicas decorrentes da constipação crônica. No entanto, de
forma geral, é possível afirmar que os pacientes incluídos neste estudo
apresentam características clínicas similares às encontradas nos serviços
especializados do Brasil e de outros países, ou seja, longa duração do sintoma
de constipação, presença de complicações por ocasião da procura pelo serviço
especializado, especialmente escape fecal e dor abdominal e intervalos
prolongados entre as evacuações.
No grupo adolescente, observa-se que o início da constipação no 1º ano de vida
ocorre com menor freqüência, bem como comportamento de retenção, medo de
evacuar e de sentar no vaso sanitário. Persiste, no entanto, elevada
prevalência de escape fecal que apareceu de forma similar em ambos os sexos.
Dos estudos mencionados acima(9, 17), nenhum diferenciou as características
clínicas da constipação na adolescência. ZASLAVSKY et al.(19) estudaram 48
adolescentes com constipação caracterizada por freqüência de evacuação menor do
que 3 vezes por semana por pelo menos 1 ano. Observaram predomínio do sexo
feminino na proporção de 2,7:1,0, presença de escape fecal em 23%, fecaloma em
64% e massa fecal palpável em 39%. Os pacientes da presente série apresentaram
maior freqüência de escape fecal (76,7%) e menor percentual de freqüência de
evacuações inferior a três por semana (43,1%), principal critério de inclusão
do mencionado estudo. Essas diferenças indicam a importância da padronização
das definições dos distúrbios da evacuação na população pediátrica(3, 6, 12,
16).
Características comuns em todas as faixas etárias foram o grande intervalo
entre o início da constipação e a primeira consulta em serviço especializado,
ausência de aumento no intervalo das evacuações em parcela expressiva dos
pacientes e elevada ocorrência de escape fecal e dor abdominal como
complicações da constipação crônica funcional.
CONCLUSÕES
Foram observadas diferenças nas características clínicas de pacientes com
constipação crônica de acordo com o grupo etário, no entanto, em todas as
faixas etárias encontrou-se duração prolongada da queixa de constipação e
elevada freqüência de complicações, especialmente escape fecal e dor abdominal
crônica. A longa duração da queixa antes do atendimento sugere que, em todas as
faixas etárias, deve-se realizar busca ativa de constipação em todas as
consultas, no sentido de se adotar medidas terapêuticas antes do surgimento das
complicações freqüentemente observadas nos pacientes atendidos em ambulatórios
especializados.