Transplante hepático: repercussões na capacidade pulmonar, condição funcional e
qualidade de vida
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Transplante hepático: repercussões na capacidade pulmonar, condição funcional e
qualidade de vida
Liver transplantation: effects in pulmonary capacity, functional condition and
quality of life
Sílvia BarcelosI; Alexandre Simões DiasII; Luiz Alberto Forgiarini Jr.III;
Mariane Borba MonteiroII,III
ICentro Universitário Metodista - IPA
IIPrograma de Pós-Graduação em Reabilitação e Inclusão (Mestrado Profissional),
Centro Universitário Metodista - IPA
IIIPrograma de Pós-Graduação em Pneumologia (Doutorado) da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS
Correspondência
INTRODUÇÃO
As doenças hepáticas avançadas são responsáveis pelas alterações metabólicas,
desnutrição, perda da massa e da função musculares, alterações respiratórias e
demais sintomas relacionados com a hepatopatia(1). A associação desses fatores
induzem à deficiência motora global e à inatividade física, interferindo
negativamente nas atividades de vida diária (AVD) e na qualidade de vida (QV)
dos indivíduos que possuem doença hepática em fase avançada e são considerados
candidatos ao transplante hepático (TxH)(6, 7, 12, 15, 18).
Os TxH com doadores cadáveres e vivos realizados anualmente no Estado do Rio
Grande do Sul, no período de 2002 a 2005, atingiram a média de 117
procedimentos(20). Atualmente as indicações mais comuns para a realização deste
procedimento são a hepatite C crônica e a doença hepática alcoólica, o que
corresponde a 40% do total de candidatos adultos que aguardam pelo TxH(3).
Estudos sugerem que o TxH proporciona maior sobrevida e significativa melhora
da QV para pacientes que possuem doença hepática em estágio terminal(1, 5, 18,
26). No entanto, outros pesquisadores demonstram que a permanência de sintomas
físicos pós-transplante, como a baixa funcionalidade física e a redução da
tolerância ao exercício(16, 19), além de complicações respiratórias decorrentes
da cirurgia abdominal, podem estar presentes(24).
O objetivo do presente estudo foi avaliar e comparar a função pulmonar, a
capacidade funcional e a qualidade de vida de pacientes candidatos e submetidos
ao Tx no período de 1, 3, 6, 9, e 12 meses de pós-operatório (PO).
METODOLOGIA
Este estudo caracteriza-se por ser transversal, observacional com amostra de
conveniência, em que foram incluídos 33 pacientes adultos que estavam sob
acompanhamento pelo Serviço de Transplante Hepático do Complexo Hospitalar
Santa Casa, Porto Alegre, RS, no período de agosto de 2005 a abril de 2006.
Foram incluídos no estudo todos os indivíduos que apresentavam condições
clínicas para realizar os procedimentos propostos e que se encontravam no
período pré-operatório e 1, 3, 6, 9 meses após a realização do TxH. Todos os
pacientes tiveram acompanhamento médico periódico e possuíam condições de
realizar os testes e não apresentavam fatores limitantes ao procedimento da
coleta de dados (não colaboração, instabilidade hemodinâmica, dificuldade de
locomoção e doença neuromuscular). Foram excluídos três pacientes pelos
seguintes motivos: dois apresentaram instabilidade hemodinâmica antes da
realização dos testes e um dificuldade para locomover-se.
Dos 30 pacientes restantes, 5 encontravam-se em lista de espera para o TxH e os
demais foram alocados em cinco grupos de 5 indivíduos (PO de 1, 3, 6, 9 e 12
meses).
O termo de consentimento livre e esclarecido foi obtido de cada paciente e o
trabalho foi aprovado pelo Comitês de Ética e Pesquisa do Centro Universitário
Metodista - IPA e do Complexo Hospitalar Santa Casa, Porto Alegre, RS.
Os pacientes selecionados foram submetidos, em um único momento, a seguinte
avaliação: espirometria, manovacuometria, teste da caminhada dos seis minutos
(Tc6) e aplicação do questionário de QV auto-explicativo "Short Form-36" (SF-
36). Previamente à realização dos testes, os dados referentes às
características da amostra foram registradas em uma ficha de avaliação
específica. As mensurações foram realizadas sempre pelo mesmo avaliador.
A função pulmonar (capacidade vital forçada - CVF; volume expiratório forçado
no primeiro segundo - VEF1) foi mensurada através da espirometria (utilizou-se
um microespirômetro Micromedical/ Microplus), seguindo as Diretrizes para
Testes de Função Pulmonar, descrita pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e
Tisiologia(25).O teste de espirometria foi realizado de maneira a obter-se três
manobras aceitáveis, sendo duas delas reprodutíveis. Os critérios de
reprodutibilidade envolveram a diferença entre os dois maiores valores de VEF1
e CVF abaixo de 0,2 litros, o que significa que o valor máximo foi
provavelmente obtido.
Em relação às pressões respiratórias máximas (pressão inspiratória máxima -
PIMax e pressão expiratória máxima - PEMax), os sujeitos realizaram a
manovacuometria (utilizou-se o manovauômetro digital MVD 500/ GlobalMed),
igualmente seguindo as recomendações das Diretrizes dos Testes de Função
Pulmonar(25).
O resultado da manovacuometria foi obtido após a realização de cinco manobras
para cada valor desejado, obtendo-se três deles aceitáveis. Durante as manobras
não houve escape aéreo no bocal do aparelho e a duração foi de pelo menos 2
segundos. Os valores não diferiram entre si por mais de 10% do maior valor,
onde se registrou a pressão mais elevada em centímetros de água (cmH2O).
A capacidade funcional, ou seja, o nível funcional para as atividades físicas
diárias dos pacientes, foi observada através do Tc6. Este teste exige que o
paciente percorra uma distância máxima em 6 minutos, com ritmo próprio,
procurando caminhar o mais rápido possível. O teste foi realizado em um
corredor sem obstáculos, reto, plano, com 30 m de comprimento. O paciente foi
instruído previamente pelo avaliador, que utilizou estímulo verbal padronizado
a cada minuto de caminhada, incentivando-o a percorrer maior distância
possível, e no final anotou-se o tempo gasto durante o teste.
O paciente notificava a sensação de dispnéia e a fadiga de membros inferiores,
sendo utilizada para a classificação a Escala de Borg modificada (escala 0-10),
antes, durante e após a execução do teste. Nesses mesmos momentos foram
registradas a freqüência cardíaca e respiratória e a saturação periférica de
oxigênio (SpO2).
A QV dos pacientes no período pré e PO foram avaliados pelo questionário de
qualidade de vida SF-36, que descreve e avalia o estado de saúde dos indivíduos
através de vários domínios (capacidade funcional (CF) - SF-361; limitação por
aspectos físicos - SF-362; dor - SF-363; estado geral da saúde - SF-364;
vitalidade - SF-365; aspectos sociais - SF-366; limitação por aspectos
emocionais - SF-367; saúde mental - SF-368). Os escores em cada domínio são
obtidos através da soma das respostas daquele item, transformando-se estes
escores brutos em uma escala, em que 0 representa saúde deficitária e 100 bom
estado de saúde(18).
As análises estatísticas foram realizadas no programa SPSS (Statistical Package
for the Social Sciences) versão 10.0, onde as variáveis quantitativas foram
descritas através de média e desvio-padrão, ao passo que as categóricas foram
expressas através de freqüências absolutas e relativas.
Para comparar os grupos em relação à função pulmonar, manovacuometria, teste da
caminhada de 6 minutos e questionário de qualidade de vida SF-36, foi aplicada
a análise de variância (ANOVA) "one-way". Como teste complementar foi utilizado
o Least Significance Difference (LSD). Para avaliar a associação entre as
variáveis qualitativas, foi aplicado o teste de correlação de Pearson.
O nível de significância adotado foi de 5%, sendo considerados significativos
valores de P <0,05.
RESULTADOS
As características antropométricas e clínicas da população estudada encontram-
se dispostas na Tabela_1. Observaram-se resultados semelhantes nos diferentes
grupos avaliados, exceto nos valores referentes à altura, onde houve diferença
estatisticamente significante ao comparar os grupos pré-transplante (pré-TxH) e
12 meses pós-transplante (pós-TxH) com os indivíduos de 1, 3 e 9 meses pós-TxH
(P = 0,037).
O principal diagnóstico clínico apresentado pelos pacientes nos seis grupos foi
de cirrose hepática causada pelo vírus C (VHC), seguido de cirrose hepática por
vírus B (VHB), carcinoma hepatocelular e cirrose alcoólica. No entanto, também
nestes grupos encontravam-se ainda outros diagnósticos como a cirrose auto-
imune, doença hepática policística, colangite esclerosante primária,
insuficiência hepática fulminante, cirrose criptogênica e cirrose biliar
primária (Tabela_1).
Os resultados referentes as variáveis da CVF, VEF1, PIMáx, PEMáx, distância
percorrida (DP) e domínios do questionário de qualidade de vida SF-36
encontram-se na Tabela_2. Em relação aos dados espirométricos, não houve
diferença significante entre os grupos avaliados.
O maior valor da PIMáx. foi encontrado no grupo com 9 meses pós-TxH, o qual
apresentou diferença significativa com os grupos pré-TxH (P = 0,004), 3 meses
(P = 0,005) e 12 meses pós-TxH (P = 0,005) (Figura_1). Em relação à PEMáx, não
foi verificada diferença significante entre os grupos avaliados (P = 0,95).
![](/img/revistas/ag/v45n3/a03fig01.jpg)
Na análise da capacidade funcional (CF), obteve-se maior valor na distância
percorrida no Tc6 no grupo com 9 meses de PO, o qual apresentou diferença
estatisticamente significante ao ser comparado aos grupos pré-TxH (P = 0,002),
1 mês (P = 0,036), 3 meses (P = 0,019) e 12 meses pós-TxH (P = 0,017) (Figura
2).
[/img/revistas/ag/v45n3/a03fig02.jpg]
Em relação aos domínios do questionário de QV SF-36, o mais relevante para o
estudo foi a capacidade funcional, que apresentou diferença estatisticamente
significante entre o grupo pré-TxH e os indivíduos com 6 (P = 0,009), 9 (P =
0,001) e 12 meses pós-TxH (P = 0,007). O grupo pré-TxH também apresentou
diferença significante ao ser comparado com os indivíduos com 3 e 9 meses de PO
(P = 0,022). Os escores referentes à saúde mental apresentaram diferença
estatisticamente significante entre o grupo pré-TxH e os indivíduos com 1 mês
(P = 0,022), 3 (P= 0,006), 6 (P = 0,002), 9 (P = 0,003) e 12 meses (P = 0,003)
de PO. Na análise dos demais domínios do questionário, não se constatou
diferença estatisticamente significante entre os diferentes grupos.
DISCUSSÃO
Muitos pacientes com doença hepática avançada apresentam redução na
complacência pulmonar devido à presença de diversas situações como a
hepatomegalia, ascite, atelectasia basal ou derrame pleural(1, 6, 8);
entretanto, essas anormalidades não interferem no curso pré-operatório da
doença hepática(1).
As alterações fisiopatológicas registradas no PO (volumes e capacidades
pulmonares reduzidos, alterações do padrão ventilatório e trocas gasosas)(12,
13, 17, 19) são decorrentes das cicatrizes operatórias(22) e da disfunção
diafragmática(17). O ápice da disfunção ocorre no período entre 2 e 8 horas
após a cirurgia, retornando aos valores pré-cirúrgicos em 7 a 10 dias,
aproximadamente(12, 13, 17, 24), fato esse apresentado no presente estudo pelos
pacientes no 1º mês após a realização da cirurgia.
As alterações pulmonares determinam um padrão ventilatório restritivo,
acompanhadas de significante redução da capacidade vital(7, 12), no volume de
ar corrente, VEF1 e capacidade residual funcional(18).Os grupos analisados na
presente série não apresentaram essa característica, diferindo dos relatos
encontrados na literatura(18, 21).
GARCIA et al.(8) e STEPHENSONet al.(26) identificaram, a partir dos testes de
função pulmonar, valores médios normais na CVF e no VEF1, nos pacientes
submetidos ao TxH. Em concordância com a literatura, os achados desta
casuística foram semelhantes nos grupos de 1, 3, 6, 9 e 12 meses pós-TxH, mas
apresentou melhora da capacidade pulmonar quando comparada ao grupo pré-TxH,
apesar de não ser estatisticamente significante. Os valores de CVF e VEF1
apresentados por esses grupos não sofreram variações significativas, o que
demonstra tendência à melhora progressiva da capacidade pulmonar no período
pós-TxH.
Diversos são os fatores que contribuem para as complicações no PO, como a
própria abordagem abdominal. Estudos demonstraram que tal abordagem cirúrgica
leva ao desenvolvimento de complicações pós-operatórias, mais freqüentes que as
das cirurgias torácica e cardíaca(27). Esse procedimento também é responsável
por período de internação hospitalar prolongado(4, 10, 11).
Da mesma forma, McALISTER et al.(14)demonstraram redução no VEF1 e na CVF após
a realização de cirurgia não-torácica e que a associação desses fatores aumenta
a incidência de complicação pós-operatória(16). Segundo McALISTER et al.(14),
essa redução no VEF1 seria responsável pelo aumento do risco de complicações
pulmonares pós-operatórias em 6,5 vezes, quando comparado ao de pacientes
submetidos a cirurgia abdominal sem alteração na função pulmonar.
No presente estudo verificou-se melhora da PIMáx em todos os períodos de PO
quando comparada ao grupo pré-TxH. A queda da PIMáx apresentada no 12º mês pode
estar relacionada com o surgimento da hipertensão pulmonar refratária, pois o
estudo de SHIROUZU et al.(23) demonstrou que existe relação da doença hepática
com a força muscular respiratória e CF, pois os indivíduos com hipertensão
pulmonar apresentaram diminuição da PIMáx e da distância percorrida no teste da
caminhada dos 6 minutos.
Ao se realizar a avaliação funcional no período pré-TxH, o grupo apresentou uma
DP de 462,8 ± 70,0 m, o que não demonstra comprometimento funcional. No estudo
realizado por LEITÃO et al.(12), os indivíduos apresentaram uma DP de 383,8 ±
115,4 m, o que demonstra deterioração da CF em candidatos ao TxH(2).
Indivíduos que realizam o TxH apresentam limitações e alguns sintomas diversos
(astenia, fadiga física, entre outros) após alguns anos do procedimento(1, 9,
16, 21, 26). Tal constatação, contudo, não foi verificada nos grupos pré e pós-
TxH da presente pesquisa, pois houve melhora da tolerância ao exercício nos
pacientes transplantados, ainda que não de forma progressiva.
De acordo com van den BERG-EMONS et al.(28), a fadiga muscular pode permanecer
pelo período de 1 ano após o TxH, podendo ser este o fator responsável pela
baixa na capacidade funcional apresentadas pelos indivíduos no 12º mês pós-
transplante. AADAHL et al.(1) relatam que transplantados hepáticos após a
experiência da fadiga física, reduzem seus níveis de atividade física em
conjunto com a fadiga mental, reduzindo a motivação, tornando-os sedentários.
Embora os testes de função pulmonar não tenham apresentado diferença
estatisticamente significante entre os períodos pré e pós-TxH, provavelmente o
aumento da tolerância ao exercício no período pós-TxH, possa ser causado pela
melhora clínica desses pacientes.
É provável que outros aspectos (nutricionais e metabólicos), não avaliados no
presente estudo, contribuam para a evolução do TxH. Isto foi evidenciado
através do estudo de KRASNOFF et al.(10), em que o grupo que realizou programa
de exercício e acompanhamento da dieta pelo período de 1 ano, teve aumento no
consumo de oxigênio VO2 e na QV em geral, quando comparado ao grupo com
tratamento usual.
Muitos estudos demonstram que o TxH prolonga a sobrevida e melhora a QV de
doentes com moléstia hepática avançada(1, 10, 15, 17). Em concordância com os
estudos publicados, na presente pesquisa verificou-se melhora da QV relacionada
à saúde, quando comparado o período PO com o pré-TxH. Houve diferença
estatisticamente significante no domínio "capacidade funcional" do SF-36 nos
indivíduos com 6, 9 e 12 meses de TxH, quando comparados ao grupo pré-TxH.
Esses achados, entretanto, não se apresentaram de forma linear, sofrendo
oscilações nos períodos subseqüentes ao transplante.
Uma limitação da presente pesquisa encontra-se no fato de a população estudada
ser heterogênea em relação à doença de base apresentada, além de cada grupo
possuir número amostral reduzido (cinco pacientes em cada grupo), o que gera
fator limitante para validação externa dos dados.
O TxH proporciona benefícios aos pacientes com doença hepática avançada e
interfere nas condições pulmonares, funcionais e QV, causando melhora dessas
variáveis após a realização da cirurgia.