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BrBRCVHe0034-71672005000600014

BrBRCVHe0034-71672005000600014

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0034-7167
ano2005
Issue0006
Article number00014

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A expressão de necessidades no campo de atenção básica à saúde sexual PESQUISA

A expressão de necessidades no campo de atenção básica à saúde sexual

The expression of needs in the field of the basic attention to the sexual health

La expresión de necesidades en el campo de la atención primaria a la salud sexual

Edir Nei Teixeira Mandú Doutora em Enfermagem pela USP/EERP, Professora da Faculdade de Enfermagem e Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso. enmandu@terrra.com.br

1. INTRODUÇÃO A efetivação de projetos de atenção integral, no contexto do Sistema Único de Saúde e de sua qualificação permanente, é essencial à concretização da saúde como um direito. Esse é um desafio que requer mudanças na organização do trabalho e nas práticas cotidianas de atenção, orientadas, entre outros aspectos, por uma interpretação abrangente de saúde e pela consideração à complexidade dos sujeitos e suas necessidades, segundo as especificidades de vida, saúde e doença.

A saúde humana depende largamente da satisfação de necessidades criadas/ recriadas na vida social, abrangendo tanto a manutenção e qualidade da vida física, psíquica e social, como a expressão dos potenciais humanos, em meio a condições sociais materiais e não materiais. Assim, o setor saúde tem como uma de suas finalidades contribuir para a satisfação individual e coletiva de necessidades, o que faz lidando com complexas questões de subsistência, condições e manifestações da vida, com processos e problemas decorrentes dos padrões de sociabilidade de igualdade/desigualdade coletivamente estabelecidos, e com o desenvolvimento dos potenciais humanos(1).

A construção de bases mais flexíveis e abrangentes de interpretação de necessidades e a adoção de medidas de incorporação e atenção a estas, segundo a sua heterogeneidade, encontram-se intimamente relacionadas à possibilidade de materializar a integralidade no cuidado à saúde(2).

Contudo, essa é uma questão complexa. Nela se encontram envoltos aspectos diversos, referentes à constitucionalidade das necessidades, à sua diversidade, vivência e expressão nos serviços de saúde e fora deles, e às formas políticas, técnicas e práticas adotadas à sua apreensão e cuidado pela própria população, pelos serviços de saúde e/ou outras instituições.

Assim, a perspectiva de integralidade, tão cara à transformação do sistema de saúde e de suas várias práticas de cuidado, passa necessariamente pela análise e enfrentamento abrangente de questões, entre outras, como: que necessidades em saúde requerem atenção dos serviços de saúde? Como elas se apresentam a estes? Como os serviços as reconhecem, apreendem ou recusam? Sob que abordagem político-ética e técnica estas devem ser captadas e acolhidas para convergirem para projetos de atenção integral? Neste artigo, pretende-se contribuir com parte desse importante debate, tratando do tema das necessidades no específico campo da saúde sexual, enfocando a sua contraditória expressão no espaço social da atenção básica à saúde. A integralidade dos cuidados à saúde sexual, que se constitui parte do projeto mais abrangente de atenção no campo da saúde, encontra-se intimamente relacionada à consideração complexidade e especificidade dos exercícios da sexualidade (sexualidade é entendida como processo complexo e integrante da totalidade de homens e mulheres, pertinente à experiência erótica, ao prazer, sexo, à autopercepção, afetividade, independentemente da reprodução, ainda que seja com esta intercambiável. Esses elementos configuram-se de modo relacional, em meio à vida, sendo mediados através de corpos individuais e coletivos, como produtos de dinâmicas e integradas expressões biológicas, psico-emocionais e socioculturais(3)) e, também, à sua expressão peculiar através de necessidades diversas.

Assim, toma-se, aqui, como objeto de debate a relação necessidades demandas nesse específico campo, buscando, primeiro, evidenciá-la como uma questão importante do ponto de vista da organização tecnológica do trabalho nas unidades básicas e, segundo, objetivando mobilizar algumas análises e indicações em torno da sua relação com os cuidados assistenciais.

2. METODOLOGIA O tema em discussão constitui a pesquisa de doutoramento da autora(3). A perspectiva analítica adotada estabelece conexões entre as peculiaridades da atenção básica à saúde sexual e reprodutiva, as características históricas das políticas e práticas em saúde, as dimensões culturais que orientam um dado olhar e agir sobre os corpos, e a dinâmica micropolítica processada no cotidiano da instituição analisada.

As fontes de dados utilizadas incluíram a organização e o funcionamento da instituição básica de saúde eleita para o estudo (um dado Centro de Saúde), a localidade em que esta se situa, documentos e registros do setor saúde municipal, além de relatos profissionais e da clientela. Para a sua coleta foram utilizadas diversas técnicas, como observação direta assistemática e sistemática, entrevistas abertas e semi-estruturadas (individuais e grupais), consulta a documentos e registros de informações em saúde.

Aqui, apresentam-se em especial dados de observação direta da unidade básica selecionada e, também, de entrevistas semi-estruturadas realizadas com a sua clientela. As entrevistas foram organizadas a partir de questões gerais sobre necessidades e vivências em saúde sexual e reprodutiva e experiências como a unidade de saúde, incluindo relatos, explicações e pontos de vista.

Participaram das entrevistas quatorze mulheres e treze homens de diferentes idades (excluindo-se crianças), com experiências em situações de maternidade, paternidade, e/ou com problemas e necessidades no campo da reprodução e sexualidade. Na apresentação das falas dos entrevistados, tal como na pesquisa original, utilizam-se denominações que resguardam as suas identidades. A pesquisa foi submetida à avaliação e parecer de Comitê de Ética em Pesquisa, e obteve consentimento livre e esclarecido dos participantes conforme regulamentado nacionalmente.

3. RESULTADOS A contraditória expressão de necessidades e demandas na atenção básica à saúde sexual Na atenção básica à saúde e saúde sexual, é possível reconhecer a expressão, por parte da clientela, de uma série de necessidades relativas às condições de vida, ao acesso a tecnologias médicas, e às várias experiências peculiares de vida, conexas à complexidade vital e à dinâmica da sexualidade e reprodução. O espaço da consulta médica, o da visitação domiciliar, o do atendimento formal e informal no interior da unidade básica, assim como o espaço das práticas educativas grupais, dentre outros, são ricos em manifestações pertinentes à vivência de diversas necessidades. Contudo, nem todas as necessidades vividas por homens e mulheres, em diferentes fases de suas vidas, exprimem-se nos serviços de saúde, ou nem sempre necessidades são manifestas, nestes, de forma explícita, como demandas de cuidado.

Observou-se, na atenção analisada, que certas necessidades ao serem apresentadas como problema ou solicitação de cuidados o mote geralmente é o das manifestações orgânicas, acompanhadas da demanda de consulta (médica), informação, recursos diagnósticos e/ou terapêuticos, e/ou outros apoios assistenciais externos ao serviço. Apresentam-se tais necessidades, por exemplo, como busca de resolução de um dado problema traduzido como físico, demanda de informações sobre ele, solicitação de exames e/ou de sua interpretação, acesso a medicamentos, a recursos contraceptivos, a um cuidado preventivo (imunização, exame de próstata, exame colpocitológico, avaliação ginecológica), ou, ainda, como busca de acesso à assistência em outros serviços (para laqueadura, vasectomia, internação, etc.).

Em síntese, necessidades explicitamente manifestas (traduzidas em demanda), de modo formal/informal, na consulta médica e em outros espaços do serviço, espelham, primeiramente, a busca de resolução e/ou prevenção de um possível problema, apresentando-se como demanda geral, obstétrica ou ginecológica, segundo o modo de organização tecnológica do trabalho local.

Por detrás desses acionamentos, no entanto, enunciam-se processos mais abrangentes vividos no âmbito da sexualidade (assim como em outras dimensões da vida), como conflitos familiares, sofrimentos psico-afetivos e sexuais, medos, discriminações, estereótipos, auto-estima comprometida, etc., não traduzidos, por quem os vive, como necessidades, problemas e/ou demandas explicitas de tecnologias específicas dirigidas ao serviço.

Como se pode ver no registro a seguir, relativo a um fragmento da atenção acompanhada, por detrás do problema orgânico manifesto, localiza-se o desejo de confirmar a fertilidade e superar medos, cobranças e culpas: Eu queria fazer um exame para ver se está tudo bem porque eu tenho vontade de ter outros filhos. Parece que meu útero está fraco. (...) Eu não sei como eu posso, porque fico com uma pessoa e sinto bastante prazer, mas depois eu sinto frio, me cólica e desce um sangramento. (...) Não sei o que eu tenho, eu quero saber. Você não tem como se posicionar, que você não tem nada. A Igreja cobra de você. Você se cobra. Eles querem saber se você tem alguma coisa. Eu queria fazer de novo USG, exame de cabeça, das minhas vistas. Eu tenho medo de câncer e derrame. Agora eu fiz ultra-som e diz que não deu nada. Mas eu queria ver o que era essa dor (anal) que eu estou sentindo (Cléo, 30 anos, depois de mencionar que autoprovocou um aborto).

Um outro exemplar do que se declara na retaguarda de uma demanda é quando esta incide, à primeira vista, em informações em torno de uma condição vital ou problema vivido, e sobre os recursos que o serviço dispõe para enfrentá-lo: Eu não sou burra, mas era meio tapada com as coisas da menopausa. Eu não sabia que dava problemas nos ossos, de hormônio, que tinha que fazer exames. Nada disso eu nunca soube. Eu achava que o jeito de se relacionar (referindo-se a atividade sexual) era para sempre. Mas com o passar dos anos, como está acontecendo comigo, vai acontecendo com várias mulheres, muda tudo. Não tem uma orientação e isso seria ótimo. (...) Eu vim falar com o médico, eu expliquei para ele. Eu perguntei se tinha um remédio (Juce, 50 anos).

Mas, mais que isso, a busca é por um apoio amplo a um sofrimento relacional/ familiar, psico-afetivo e sexual enfrentado: Meu marido cobra de mim sexo, porque ele não tem em casa. Diz que eu vou me arrepender na hora que ele arrumar outra; se satisfizer ele, sai de casa. Ele tem 54 anos. Eu sou mais velha do que ele, mas a vida dele, sobre isso, é normal. Toda vida nós transamos normal.

(...) Agora me machuca e eu fico nervosa. Eu quero explicar para ele e ele não entende. Ele falou para eu comprar algum lubrificante, mas eu não sei o que comprar. (...) Eu conversei com o clínico, eu expliquei para ele e ele não me disse nada. Ele me mandou fazer esses exames. (...) Ele disse que é porque eu não tenho mais hormônio.

(...) Depois que fizer os exames ele vai ver se tem algum remédio para que eu possa melhorar. Ele vai explicar depois dos exames (Juce, 50 anos).

Através do modo de uma cliente relacionar-se com o próprio corpo, manifestam- se, em certos momentos do atendimento, necessidades relativas à percepção e aceitação corporal, que não são, contudo, apresentadas e traduzidas claramente como demanda de cuidado: Em uma consulta médica, no momento do exame, a profissional diz: vamos fazer o preventivo? A cliente responde: Não estou uma belezura.

Ah, eu tenho vergonha. Diz a profissional: Não se preocupe. É tudo igual, muda a cor. A cliente tira toda a roupa e deita envergonhada. Não lençol para cobri-la.Conversam rapidamente sobre o uso de hormônios após a menopausa. A profissional examina. Diz que corrimento, mas não ferida no colo, que está tudo bem e pode descer. Orienta o uso de um medicamento para o corrimento, chegando ao fim do atendimento (Nota de observação de uma consulta médica).

De outro modo, dadas necessidades vividas no âmbito da sexualidade, que não são compatíveis com os esquemas historicamente organizados de atendimento, são canalizadas, de algum modo, como solicitação de cuidado. Assim, se localizam expressas necessidades psico-afetivas e sexuais que, como nas situações abaixo registradas, são recusadas ou medicalizadas pelo serviço.

Cliente (C): apresenta o resultado de uma USG pélvica solicitada em consulta prévia; diz que ainda não fez a mamografia e que o exame preventivo não deu certo Médica (M): olha o resultado da USG.

C: fala que sente dor no abdômen e que não tem mais vontade de ter relação.

M: pergunta se perde urina aos esforços.

C: diz que quando ri muito.

M: faz um diagnóstico olhando a USG.

C: volta a falar que o marido não a procura, que não tem vontade de ter relação e que às vezes fica até dois meses sem ter relação.

M: ignora a demanda e pergunta sobre a dor na mama; diz que aguarda os resultados dos exames solicitados. Faz um encaminhamento para o HST e diz à paciente que ela precisa de cirurgia para resolver seu problema (Nota de observação).

Qual sua idade? 52.

É casada? descasando.

Continuam as interrogações até o exame. (...) Após o exame, a profissional diz: desce e pode pôr a roupa. A cliente veste-se.

Vou pedir USG e mamografia, mas os resultados demoram.

Por que esses resultados demoram tanto? (Conversam rapidamente em torno disso).

A cliente pergunta: mas por que eu não tenho vontade de fazer sexo? Porque está na menopausa. Às vezes problema com o marido ou em casa atrapalha. Vou pedir os exames.

Uma psicóloga me ajudaria? Ajuda, mas é difícil (não continuidade). Repassa os pedidos de exames e se despede (Nota de observação).

Pois bem, necessidades abrangentes vividas na esfera da sexualidade são então, de alguma maneira, mobilizadas no espaço do atendimento, articuladas ou em meio a tecnologias comumente ofertadas e/ou demandadas.

A doença e sofrimentos são experiências que comumente transtornam a vida das pessoas. Isso implica em que a procura e uso do serviço de saúde, ainda que orientados primeiramente para a resolução de um problema traduzido como orgânico, também abrigue, como visto, manifestações e necessidades da vida como um todo.

Um outro modo através do qual se exprimem necessidades mais amplas ao serviço é mediante processos de avaliação e projeções da clientela em torno do que a unidade de saúde deveria ofertar. Necessidades manifestas dessa forma, ainda que não se concretizem primeiramente em demandas explícitas no dia-a-dia do atendimento, também são indicativas, em alguma medida, da tentativa de recomposição da amplitude da vida, além de evidenciar restrições ou incorporações dos serviços no acolhimento de carências e sofrimentos vividos.

Um exemplo disso encontra-se na concepção explicitada, a seguir, de que a atenção básica deve disponibilizar um suporte mais abrangente e favorável à constituição de novas relações familiares, sendo considerada a singular experiência de uma gravidez adolescente e de um casamento não planejado: Eu acho que se pudesse surgir um curso para ajudar, na nossa vida, como nos prevenir, como mudar a rotina do casal para não atrapalhar.

Se tivesse um psicólogo ajudando casais, com isso teria menos casais se separando por pouca coisa, não agüentando a pressão do relacionamento. Nós somos praticamente adolescentes, têm muitas coisas... Vamos passar barreiras. (Val, 18 anos, grávida).

De um outro modo, através da avaliação positiva do que se encontra disponível no atendimento, manifesta-se a expectativa de que os profissionais de saúde considerem a globalidade de suas vidas, integrando o apoio psico-emocional à atenção: Esse médico é bom porque além de tudo ele o lado psicológico da pessoa, ele ajuda você também pessoalmente. Ele não é aquele tipo de médico que faz as coisas, te o remédio, acabou e vai embora. Ele fica sabendo coisas da sua vida, do seu trabalho, que você mesmo fala para ele. Se precisar, ele vai na sua casa e te ajuda, como fez comigo quando meu pai morreu (Dida, 33 anos, falando de um profissional de outra unidade de saúde).

A despeito da lógica que prevalece no âmbito da atenção à saúde, que recorta uma dada complexidade por referência à restrição e fragmentação da totalidade da vida humana, certamente não nela linearidade. A complexidade que comumente se desloca nesse contato não se encontra, como se viu, dele ausente, colocando em questão e confronto a qualidade da assistência prestada. Essa tensão entre complexidades distintas, a recortada no serviço de atenção básica e a concretamente vivida pela clientela, manifesta-se nos seus espaços, em suas brechas, com toda força seja como demanda, expressão implícita de necessidades, ou como modos de pensar, criticar e valorar a atenção.

várias razões que explicam a procura ou não dos serviços de saúde, a apresentação individual e/ou coletiva de dadas necessidades, e sua tradução em demandas tecnológicas específicas.

Do ponto de vista da expressão individual, o que se identificou no estudo é que tal procura, a tradução e apresentação de necessidades e demandas guardam relação com vários processos: com a vivência de situações interpretadas como problema; a rede de apoio social extra-serviço de saúde encontrada; interferências do problema no cotidiano e, deste, na procura do serviço. De igual modo, essa expressão correlaciona-se: a dadas condições subjetivas (afetivas e culturais); à interpretação de processos vividos como problemas e demandas a serem canalizados aos serviços de saúde; e ao reconhecimento, ou não, de responsabilidades, espaços e condições de acolhimento nos serviços ao que se vive, busca apoio e resolução.

Pois bem, necessidades abrangentes vividas, relativas à sexualidade, não se transformam em demandas explícitas em função de razões diversas: porque são "naturalizadas", reprimidas ou negadas (em função de medos, estereótipos e valores culturais incorporados); não são percebidas como tal ou não são priorizadas em dado momento; porque não são concretamente absorvidas pelos serviços ou, estes, não são vistos como espaço e com qualidade para tal.

Certas condições subjetivas, como medos (de dor, julgamento, exposição), vergonhas, preconceitos, modos de ver e de sentir o uso de certas tecnologias, que podem, inclusive, ser consideradas campo de necessidades e alvo de atenção, podem redundar em um distanciamento do serviço: Ah! Eu fui uma vez , nunca precisei de médico. Eu tenho vergonha, mas eu tenho problema. Eu não falo porque tenho muita vergonha. Eu tenho vergonha até de falar com minha mãe (Adolescente, manifestando- se em uma visita domiciliar).

Quando eu era moça eu tinha uma ferida; falou que se eu não tratasse, ela poderia ficar uma ferida grande, podia virar um câncer. Muitas amigas minhas depois de casada tiveram que fazer cauterização. (...) Eu fui uma das únicas que não fiz. O que é pior é que todo mundo fala que dói. (...) Você vai e não se sente bem com um homem, mesmo que tenha uma assistente. Agora com a mulher é mais fácil porque o corpo é o mesmo. (...). Minha mãe vivia dizendo: filha fecha essas pernas, porque o homem não pode ver essas coisas. Você cresce assim, ai de repente você vai e você tem que ficar , daquele jeito (Tati, 18 anos, grávida, falando do exame ginecológico).

A gente fez esse exame (avaliação da próstata), fizemos radiografia e várias coisas. É muita dificuldade para fazer. A primeira coisa é machismo. (...) passamos por várias palestras, com psicólogos, médicos, com tudo. Então a gente foi indo, como no dizer do povo, foi se soltando (Ri). Mas dentro do preconceito do homem, de modo geral, ele não vai. No exame de próstata a gente se sente coagido (Dito, 54 anos).

A sexualidade, socialmente, é tida como referente ao universo privado. Assim, quem a traduza como "um caso seu": Eu não procuraria ninguém, porque eu acho que este seria um caso meu (Ana, 52 anos, justificando a não procura da unidade para resolver problemas vividos na esfera sexual).

, ainda, quem negue a abordagem de problemas vividos nessa esfera até mesmo com a companheira: Eu tive problema de uns quinze anos para , questão de 47, 48 anos para . Hoje mesmo eu estou quase morto. (...) Eu não sei por quê; se é muita doença, porque eu nunca mais me senti bem. Negócio de sexo, eu nunca procurei o médico para resolver não, porque às vezes eu até me acanho de falar ao médico. (...) Não converso com ninguém sobre isso, nem com minha mulher. Ah! Mas ela sabe, ela é minha companheira (Gera, 67 anos, falando de uma provável impotência).

Nem sempre se reconhece o espaço dos serviços como uma referência indispensável em questões de saúde sexual. Este aspecto evidenciou-se particularmente entre clientes homens, ao valorizarem outras unidades sociais (religiosa, familiar, grupo social de referência) como alternativas mais apropriadas de apoio.

Assim, se julga que o Centro de Saúde pode atuar dentro de determinado âmbito (na prevenção e cura de doenças), não sendo uma referência primeira para questões relacionais e sexuais: Como eu te disse, nosso espelho vai ser a família. O que é conturbado e sabemos que não é certo vamos tentar deixar de lado. Se nós tivemos uma boa criação temos onde nos espelhar. O Centro de Saúde ajudaria se oferecesse cursos, palestras a respeito do relacionamento sexual entre um casal, na vida do dia-a-dia também. Apesar de que ajudaria pouco, mas poderíamos tirar algum proveito. A família é que é o espelho. Mas sobre sexualidade poderia ajudar em prevenção, tratamento (Alex, 19 anos).

Essa forma de traduzir necessidades, problemas, e apoios pode ser interpretada através de ângulos distintos: como decorrente de um modo cultural de lidar com as questões da sexualidade, tida como relativa ao âmbito do universo privado; ou como parte da recusa da população aos processos de medicalização da vida adotados pelo setor saúde.

Nas sociedades modernas, os processos dirigidos pela razão encontram-se fortalecidos, cultuando-se idéias e informações. Nela, o corpo exprime-se simbólica e ideologicamente por referência a esses componentes. Em contraponto, a sua dimensão sensível e sexual mostra-se subalternizada, em meio a um certo desprezo por essas dimensões do corpo, ligado à difusão de idéias cristãs. A nudez e a atividade sexual, na modernidade, tornaram-se "confinadas" a um espaço privado, sobretudo no âmbito da estrutura familiar. Desenvolveu-se o pudor associado ao sexo e às funções corporais, sobretudo às de eliminação.

Surge uma nova moral em torno do corpo e da sexualidade, que os lança ao domínio privado, ao tempo em que estes passam a ser controlados e escondidos, sobretudo em sua dimensão sexual(4).

A sexualidade ocupa um lugar privilegiado no centro dos valores associados à intimidade da pessoa moderna e ainda que sancionada por um discurso público, como um dos universos de normatização e legitimação do social, ela tem sido limitada a espaços íntimos e fechados, com uma certa predominância que ainda se mantém(5-6).

Essa perspectiva cultural, absorvida pelas pessoas, resulta em dificuldades de expressão de questões relativas à afetividade, ao erotismo e sexo. Estes são traduzidos e vividos como referentes ao universo reservado da vida, resultando também em limitada absorção e abordagem nos serviços, onde profissionais também apresentam, em alguma medida, dificuldades no lidar com a sexualidade para além de seus domínios privados.

No capitalismo, os corpos ganham marca de propriedades privadas, uma vez considerados "bens de produção", tornando-se alvos de controles. Nessa inserção, são vistos como corpos que produzem e consomem(4), impondo-se um dado modelo corporal. A esse modelo atrelam-se desejos, imagens e aprendizados, sendo os corpos ensinados a se esquecerem de suas outras dimensões(7), o que os inscreve em certa homogeneização e em modos "assexuados" de apresentar-se publicamente.

À historicidade da propriedade de bens de produção, correlata ao crescimento da privatização dos espaços físico-sociais, segue-se uma história de apropriação privada dos próprios corpos. Diferentemente, os corpos medievais tinham um caráter público, trocavam fluidamente entre si, eram expansivos, misturados com outros corpos e matérias, sem o sentido de privacidade, disciplina e vergonha presentes na vida moderna. Contemporaneamente, os corpos não se separam entre si como os homens distanciam-se de seus próprios corpos. Exige-se, frente às tensões sociais, um "bom comportamento", construído com base numa objetividade em relação à própria subjetividade, no autocontrole emocional, na domesticação do corpo, o que, contraditoriamente, opõe sua privatização a uma certa insensibilidade e abstração de si(4).

Nesse transcurso, configuram-se autocontroles corporais, medos, preconceitos, repressões, sentimentos de vergonha e culpa, dentre outros, expressões dos controles sociais sobre o corpo e dos correspondentes distanciamentos nele produzidos.

O que se exclui da vida coletiva e se atribui à ordem do privado também é, de certo modo, excluído da convivência e da esfera política. Assim, imersos nessa cultura, os que recorrem, ou não, aos serviços de saúde têm dificuldades em exprimir processos vividos no âmbito da sexualidade e em demandar direitos como o de acesso a cuidados nesse específico campo.

Contudo, essa micropolítica do corpo não se expressa unicamente pelos distanciamentos, ocultações e fragmentações, mas também por resistências. Não completa absorção dessa cultura na vida das pessoas sem qualquer oposição, como não isolamento do orgânico de outras dimensões do corpo, sem que este mobilize e realce a sua totalidade(4).

Coexistem, assim, modos mais amplos e mais restritos de representar e apresentar o próprio corpo. É por essa razão que, como se demonstrou, necessidades amplas no campo da sexualidade apresentam-se de algum modo nos serviços básicos de saúde, a despeito do recorte cultural predominante em que se inscrevem e de dificuldades decorrentes.

Também é importante considerar que o projeto cultural construído na modernidade se associou à lógica da produção incessante de mercadorias e consumo, em que necessidades são continuamente criadas e respostas, a elas, demandadas. O consumo faz parte dos objetivos sociais sendo, assim, continuamente estimulado, absorvido e traduzido como demanda social(8). Essa lógica estende-se também ao setor saúde, que amplia a sua esfera de atuação sobre a vida e seus processos medicalizando-os, gerando continuamente novas tecnologias, necessidades, demandas, consumo e, também, formas diversas de recusa.

Desse modo, de um ângulo, a restrita apresentação de necessidades explícitas no campo da sexualidade articula-se ao seu domínio privado, historicamente construído, e, de outro, revela-se como decorrente de uma possível rejeição ao controle médico exercido sobre a vida; particularmente considerando que os clientes a que se fez menção reconhecem outros espaços ou instituições da vida social (religião, família, grupo de referência) como alternativas de apoio.

Esses dois aspectos, em particular, problematizam o modo de os serviços lidarem com a questão: afinal, o que estes devem ofertar à clientela? Como se aproximar daquele universo? Como atuar de um modo a não reforçar a sua medicalização? Essas questões podem ser adequadamente respondidas, entre outros aspectos, com a participação dos sujeitos nelas implicados. A complexidade da vida, se em perspectiva, envolve e considera interesses, relações de poder, contextos, processos culturais, subjetividades e os sujeitos envolvidos. Esses aspectos, portanto, devem ser considerados como ponto de partida de possíveis definições/ redefinições em torno de aonde chegar, com que intenção, alcançando que sujeitos, com que conteúdos e formas. Nesse processo, é fundamental a crítica tanto ao modo histórico de a sociedade e os serviços de saúde lidarem com o corpo como às suas marcas e intromissões na vida e subjetividade das pessoas.

Outro aspecto que se desprende em torno da relação necessidades em saúde sexual - demanda - serviços básicos é a canalização de necessidades explícitas, atreladas ao que se encontra disponível nos serviços de saúde (do que neste se reconhece como significativo frente a necessidades percebidas).

Entre homens e mulheres, quem julgue que a apresentação de demandas específicas, afeitas à esfera sexual e afetiva, depende de certas condições: como acesso a um profissional que entenda do campo, e que seja visto como de confiança (uma das condições de acolhimento especificada): Eu acho que deveria ter psicólogo para esse tipo de pessoa (que tem problema com os filhos), para criança com problema, ou mesmo para nós, os pais, que temos algum problema em casa e não temos com quem falar. Se o postinho tivesse um psicólogo seria muito bom, porque têm filhos que têm pais que precisam de psicólogo, têm filhos que apanham do pai, da mãe (Ira, 37 anos).

Eu tive aqui, na semana passada, e conversei com o Dr. R. o meu caso.

Eu estou sentindo muito fria. (...) Eu o conheço bastante tempo, por isso falei (Ana, 52 anos).

A apresentação de necessidades referentes à dimensão sexual encontra-se sujeita à possibilidade concreta de a demanda ser remetida ao serviço ou, de outro modo, ao reconhecimento de uma abertura, neste, à sua expressão e acolhimento: Eu não procuraria o serviço para um problema sexual. (...) Eu acho que não ia ter a informação (no serviço). Na consulta não tempo. Se ela (a profissional) estivesse ali para isso eu falaria com ela, sem dúvida. Mas as consultas são muito rápidas. Eu acho que nas consultas as pessoas deveriam ter mais liberdade para falar o que querem, o que sentem (Mari, grávida).

Assim, a demanda pode não ser canalizada em função da não identificação, no serviço, de referências possíveis, como sugere a fala a seguir: Eu não sabia que aqui tinham profissionais que podiam ajudar a gente na área da sexualidade, por isso eu não vim (Juce, 50 anos) Depreende-se das observações feitas e conteúdo das entrevistas que, ao tempo em que necessidades são vividas e tendem a se manifestar nos serviços, barreiras de ordem interna (sociocultural, subjetiva) e externa (referentes ao contexto de vida e à organização e qualidade do atendimento) influem em sua expressão como demanda e em sua incorporação como objeto de cuidado.

A busca de respostas, na atenção básica, a necessidades vividas encontra-se limitada ao modo como nesta se produz o cuidado à saúde e, especificamente à saúde sexual. Em dadas situações, se algum espaço é aberto a sua expressão, necessidades tendem a se manifestar de modo explícito; se este é restrito, estas não se transformam necessariamente em demandas formais, embora não deixem de se apresentar, de algum modo, como processos integrantes da vida e experiências humanas.

É complexa a inter-relação necessidades - demandas - serviços de saúde. Isto porque a saúde em qualquer esfera depende, entre outros fatores, das condições e qualidade de vida, dos contornos de proteção social do setor saúde e de outros setores, e dos cuidados sociais direcionados à satisfação de necessidades humanas.

Nesse sentido, cabe demarcar que esse encontro, no que se refere aos serviços de saúde, articula apenas uma parte das necessidades e demandas de vida e saúde, sendo considerada a complexidade da questão saúde e a lógica histórica de organização dos cuidados nesse âmbito. Concretamente, como se viu, necessidades em saúde que não são absorvidas ou compatíveis com os atuais serviços de atenção básica e as que nem mesmo chegam a se expressar neles como demandas ou pura expressão de sofrimentos vividos.

Necessidades em saúde incorporadas pelos serviços públicos de assistência básica, entre outros aspectos, guardam relação com a transição das doenças, com construções epidemiológicas (tradução e reconhecimento do que tem socialmente importância), e com o marco de proteção social da saúde. Esses aspectos, em última instância, resultam em maior ou menor aproximação dos serviços locais da complexidade de vida e saúde-doença dos sujeitos e grupos a que se voltam.

Historicamente, os serviços de saúde organizam sua atenção tomando por referência, em alguma medida, definições políticas (nacionais, estaduais e locais), informações epidemiológicas (mais ou menos específicas), direitos legais (de forma mais ou menos abrangente), propostas e demandas (expressas mais amplamente, ou não, via controle social e no dia-a-dia dos serviços).

Ocorre que o marco de proteção social, no Brasil, sobretudo a partir do século XX, segundo interesses do Estado/Sociedade, vem sendo encaminhado lado a lado com a classificação de doenças, demarcado pela paulatina transferência de responsabilidades para os indivíduos, ampliada nos tempos atuais no contexto de defesa e aprofundamento da privatização dos serviços sociais em geral.

Assim, no campo da saúde sexual, na atualidade, recortam-se como alvos prioritários de controle certos problemas identificados como de significativa expressão epidemiológica, em torno dos quais exigências sociais, como as DSTs, a aids, o câncer de colo uterino e mama em mulheres e o de próstata em homens, dentre outros.

A questão relevante é que face à simplificação da vida e sexualidade que sustenta essa organização de cuidados, a partir de uma proteção social limitada a um quadro restrito de morbidades, deslocam-se necessidades mais amplas.

Nos modelos históricos de atenção construídos, ao lado da restrição do cuidado a certas necessidades, ocorre também a sua fragmentação, via fragmentação do próprio atendimento, assim como a sua apreensão através de uma racionalidade orientada especialmente para o diagnóstico e tratamento clínico.

O olhar e agir dos profissionais sobre os sujeitos e suas necessidades estruturam-se em consonância com saberes e práticas médico-científicas predominantes, parte da racionalidade científica moderna, que é caracterizada por nichos de especificidade profissional e pela fragmentação do conhecimento e da prática assistencial(9).

Nessa racionalidade, a prática profissional em saúde, com predomínio, compõe-se de fundamentos das ciências biomédicas e da epidemiologia clínica; conhecimentos que restringem o olhar e a atuação sobre a complexidade de vida dos sujeitos e suas necessidades em saúde. A complexidade pensada e concretizada é a médica, em que o sujeito é considerado apenas parcialmente - em seu processo orgânico-funcional - pelo recorte do tipo de ajuda que se entende socialmente que deva corresponder aos diferentes níveis de acessamento da atenção à saúde(10). Nessa lógica, o núcleo de atuação de cada profissional sobrepõe questões de vida e sofrimentos humanos que, como se viu, acabam por se apresentar de algum modo no serviço de saúde.

No paradigma científico dominante, as oposições binárias construídas em torno do corpo permitem o privilegiamento da dimensão física sobre as demais. A idéia é a de abstração das vivências concretas das pessoas dos valores e subjetividade que a acompanham. Nessa forma fragmentada de fazer ciência, os sujeitos são vistos e tratados de forma isolada e impessoal, afastados de suas emoções, sentimentos, valores e, portanto, de seus próprios corpos(11).

Desse modo, a dialética mente/corpo, razão/emoção, vivência/subjetividade não se constitui comumente em fonte de conhecimento, em aprendizado profissional e em prática, resultando daí a contínua reafirmação da fragmentação e simplificação das experiências vitais e, particularmente, da sexualidade.

Dados esses processos históricos, na atenção básica incorpora-se uma responsabilidade pública em torno de questões de saúde-doença consideradas "menos" complexas, ao que se agregam proposições tecnológicas "coerentes" ou tidas também como menos complexas. Sob essa direção, privilegiam-se, então, problemas considerados "simples", apoiados em tecnologias também entendidas como simples, em torno dos quais se constituem espaços e processos correspondentes à expressão e acolhimento de certas necessidades e à exclusão de outras. Isso implica em prévia classificação dos problemas, de tecnologias aplicáveis à prevenção e cura e, ainda, no recorte acerca do que requer ou não suporte no denominado primeiro nível de atenção, acompanhando outras tantas definições - aplicação de recursos financeiros, composição de equipes, investimento em equipamentos e materiais, capacitação, dentre outras.

Assim, também os restritos investimentos na organização da atenção, no que diz respeito à composição das equipes, ao tempo profissional disponível à clientela, aos investimentos na integração do trabalho profissional, contribuem para a restrição do cuidado. É impossível acolher de forma abrangente a expressão de necessidades administrando um tempo exíguo de atendimento (conforme o preconizado para consultas pelo Ministério da Saúde do Brasil) e, de igual modo, na ausência de um trabalho integrado de equipe.

As relações de trabalho em saúde, historicamente, compõem-se de dadas dicotomias e hierarquias básicas: entre formuladores de projetos - prestadores - clientelas; entre serviços de saúde - grupos populacionais; trabalhadores clientelas; e saberes científicos - saberes populares. Essas dicotomias implicam, diretamente, em quem são os envolvidos nas definições, em como estas se processam, para quê, atingindo a quem ou o quê e como.

Desse modo, na perspectiva de organização que ora predomina, a apreensão de necessidades e a atenção à saúde e, especificamente, à saúde sexual não se encaminham mediante interações efetivas entre os sujeitos envolvidos (sociedade, gestores, trabalhadores, clientela). Isso, considerando as situações de convergências e/ou divergências (atreladas às diferenças e à vocalização de interesses), e os processos socioculturais e as subjetividades que se exprimem de forma conflituosa no espaço social da atenção.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para uma aproximação e abordagem integral das necessidades em saúde e saúde sexual dos sujeitos alvos da atenção, nos limites do setor saúde, é relevante a adoção e criação de tecnologias mais abertas à complexidade humana e da sexualidade, e às especificidades do adoecimento.

Nesse sentido, é importante tanto o apoio em um leque mais amplo e crítico de referências científicas, como o suporte em alternativas tidas como não científicas (que valorizam trocas intersubjetivas e saberes práticos), para que os trabalhadores, ao lidarem com necessidades, configurem uma face ética e humanizada ao atendimento individualizado.

Também é fundamental a crítica ao modo cultural de a sociedade e os serviços de saúde aproximarem-se e lidarem com os corpos e as necessidades criadas/ recriadas nas relações, somada ao compromisso ético e técnico com a criação de tecnologias que promovam maior absorção de necessidades, a despeito dos históricos limites dos serviços de saúde.

A organização dos processos de trabalho (assistencial e gerencial) deve permitir tanto o reconhecimento quanto o acesso mais amplo e flexível a respostas às diversas e específicas necessidades que extrapolam os tradicionais recortes assistenciais, apoiados em integradas ações multiprofissionais locais e em outros níveis do sistema(2).

Novas alternativas nos vários campos profissionais devem abrir espaço, nos vários âmbitos de atuação, ao acolhimento de sofrimentos vividos, como processos relevantes que são, e também ao sentido de interação e construção corporal que se processa, queira-se ou não, nos vários momentos de atuação. É preciso considerar que a atenção à saúde em geral (e não somente a dirigida à sexualidade) realiza-se por meio e em torno dos corpos humanos, participando dos processos mais gerais de sua construção social(12) e, portanto, da construção social da própria sexualidade e emancipação humana. Assim, mesmo quando necessidades amplas em sexualidade não são apresentadas como demandas peculiares, pela característica do objeto do trabalho em saúde, aquela e toda sua complexidade inscrevem-se no setor. Negá-las significa obscurecer ideologicamente as relações de poder que se processam em sua volta, e o restrito modo como os serviços participam de sua construção/reconstrução.

O uso de referências e práticas provenientes de uma orientação social mecanicista, em face de suas limitações e insuficiências, deve dar lugar ao diálogo, à ação humanizadora, à convivência autêntica, que considerem e respeitem o ser humano em suas singularidades, aspirações, e em suas necessidades fundamentais(13).

A crítica às presentes formas de inter-relação entre profissionais e clientela deve consubstanciar novas formas de interação que permitam a expressão e o acolhimento de necessidades. A abertura à troca, a confiança, a aproximação, o respeito, a sensibilidade, o vínculo e comprometimento permitem, na expressão da própria clientela: superar vergonhas e medos; ter segurança, tranqüilidade e conforto; sentir-se respeitada(o); expressar o que se sente, os problemas tal como vividos, e mudar atitudes.

No trato com a sexualidade, dado o fato de esta ser socialmente tida como relativa à esfera do privado, todos esses elementos ganham uma significação ímpar, como balizadores das intermediações necessárias a expressões nessa esfera e a ações mais eficazes sobre os sofrimentos vividos ou que se deseja evitar.

As metodologias de atendimento, quebrando esquemas rígidos de investigação e de diagnóstico apoiados unicamente em uma abordagem clínica e investigatória dos problemas, devem dar lugar e espaço ao sujeito, às suas expressões e manifestações de interesses e vivências, conteúdos a partir dos quais as relações e ações devem se processar.

Para lidar com a sexualidade em sua abrangência faz-se necessário resgatá-la como objeto de preparação profissional, extrapolando a perspectiva biomédica privilegiada. Ou seja, que se confrontar o despreparo dos profissionais para esse trabalho, na medida em que este é predominantemente tratado como um campo de formação técnica e não de construção de vivências, valores e inter-relações que permitam superar restrições e preconceitos construídos.

O modo político-ético de o profissional colocar-se diante dessas questões pode, ou não, significar um diferencial para o projeto de integralidade. Do mesmo modo, pode, ou não, incrementar a "naturalização" histórica dos recortes assistenciais, sua priorização em detrimento do que o extrapola, reafirmando, ou não, a histórica banalização do que foge à esfera do orgânico.

É fato que a racionalidade científica, da eficácia e efetividade, entre outros processos de organização e regulação da assistência, sobretudo no atual contexto restritivo de gastos, exerce cada vez mais controle sobre o trabalho do profissional, restringindo sua autonomia no modo de fazê-lo(14). Entretanto, é preciso considerar que essa inscrição social na ação profissional, entre outras, não é mecânica, face à possibilidade histórica de recriá-la no próprio decurso do trabalho, considerando as potencialidades, tensões, reflexões que a envolvem(15). São essas condições que inserem a possibilidade de participação mais ativa e criativa dos trabalhadores e podem abrir espaço à superação das restrições presentes nos serviços, particularmente no que se refere à apresentação e apreensão de necessidades no campo da sexualidade, favorecendo a construção de projetos de atenção integral em saúde.


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