Registro em prontuário de crianças e a prática da integralidade
PESQUISA
1. INTRODUÇÃO
O processo de consolidação dos princípios do SUS, desencadeado há mais de uma
década, ainda apresenta diversas dificuldades, sobretudo aquelas relacionadas
aos aspectos da universalização do direito à saúde, descentralização dos
serviços, integralidade das práticas e participação popular. Essas dificuldades
fazem parte de um conjunto de fatores interrelacionados, dentre os quais
destaca-se, o modelo assistencial.
Como alternativa ao modelo hegemônico de prestação de serviços de saúde no
campo da Saúde Coletiva, experiências como o modelo baiano (Sistemas Locais de
Saúde SILOS), o modelo curitibano (Cidades Saudáveis Saudicidade), o modelo do
Lapa/UNICAMP (Em Defesa da Vida) e o Programa de Saúde da Família (PSF) têm
contribuído na busca da mudança de paradigma(1).
O PSF, que surgiu em 1994 como uma estratégia para reorientação da assistência,
vem sendo utilizado pelo poder público como uma estratégia condutora da busca
do novo modelo assistencial, capaz de compreender e operacionalizar a abordagem
integral do processo saúde-doença e responder de forma mais efetiva aos
problemas de saúde da população(2). O programa propõe um dimensionamento
diferenciado da enfermeira na equipe de saúde, uma para cada 4 mil habitantes,
enquanto no modelo hegemônico, a proporção preconizada é de uma para cada 20
mil habitantes. A valorização da área de conhecimento específica desse
profissional pressupõe que a prática da enfermagem, que é mais centrada no
cuidado, permite a aplicabilidade da concepção e dos eixos fundamentais do
programa, tais como a integralidade e o desenvolvimento de ações de educação em
saúde, em níveis mais próximos da população, credenciando-a a assumir papel de
destaque nessa nova estratégia assistencial(3).
No município de São Paulo, por questões políticas, a municipalização sofreu
solução de continuidade, retardando o processo de descentralização estabelecido
como uma das estratégias de implantação do SUS. Em 2001, houve uma retomada da
gestão da saúde, com o município tomando para si a responsabilidade pela rede
de serviços, priorizando a mudança no modelo de atenção básica à saúde e
estabelecendo o PSF como estratégia de implantação do SUS em direção à mudança
do modelo assistencial(4).
A partir da retomada da gestão da saúde pelo município, deflagra-se o processo
de reorganização da atenção à saúde. Para operar as transformações necessárias
foram definidas algumas diretrizes, destacando-se entre elas, além da indicação
do PSF como estratégia de reorganização da atenção básica, o fortalecimento da
descentralização através da criação dos distritos de saúde, a implantação da
gestão eficaz da saúde através de instrumentos de qualidade da assistência, do
planejamento e da regulação do sistema, além de diversos projetos de formação,
capacitação e desenvolvimento destinado aos trabalhadores da saúde. Apesar do
PSF representar a possibilidade de inverter a lógica da atenção à saúde
oferecida pelo poder público, as diretrizes e investimentos do sistema
municipal não foram restritas a essa estratégia, sendo extensivas a toda rede
de serviços municipais. Nesse sentido, a perspectiva e o desafio de construir
novas formas de prestar assistência e de contribuir nas transformações
necessárias para a construção do SUS foi colocada para todo o sistema municipal
de saúde(5).
É nesse novo contexto de diferentes formas de organização da assistência no
município, que surgem indagações com relação à qualidade da atenção à saúde
prestada na rede pública.
Para Conill(6), a integralidade constitui um atributo essencial na qualidade do
cuidado, dos serviços e dos sistemas de saúde, sobretudo para aqueles
direcionados à atenção básica.
Tendo o princípio da integralidade na atenção prestada à saúde da criança como
objeto de estudo, avaliou-se o registro em prontuário de duas unidades de saúde
com modelos assistenciais distintos, considerando-se que um dos aspectos
fundamentais na atenção à saúde da criança é o registro em prontuário para o
seguimento da criança.
2. METODOLOGIA
Este estudo de natureza transversal, com abordagem quantitativa, integra um
projeto mais amplo denominado "Saúde da Família: avaliação da nova estratégia
assistencial no cenário das políticas públicas"(7), aprovado por Comitê de
Ética em Pesquisa. Este sub-projeto foi desenvolvido com crianças de 0 a 5 anos
de idade, matriculadas em duas unidades de saúde da rede pública do município
de São Paulo.
Cada uma das unidades de saúde selecionadas atuam com modelos assistenciais
distintos: uma, localizada na região Sul do município, organiza a assistência à
saúde conforme o modelo tradicional de atenção à saúde (sem-PSF) e a outra,
localizada na zona leste da cidade de São Paulo, tem como eixo estruturante da
assistência à saúde o Programa de Saúde da Família (com-PSF).
Para o projeto maior, foi estatisticamente prevista a seleção aleatória de 100
prontuários de crianças de 0 a 5 anos de idade atendidas em cada uma das
unidade de saúde. Efetivamente foram estudados 96 prontuários da unidade sem-
PSF e 99 da unidade com-PSF. Tanto o desenho amostral, quanto a elaboração do
banco de dados e as análises estatísticas foram realizadas com assessoria do
Laboratório de Epidemiologia e Estatística (LEE), do Instituto Dante Pazzaneze.
Para a coleta dos dados no prontuário foi utilizado instrumento específico, o
qual foi testado previamente. Os dados foram colhidos por estudantes de
enfermagem, bolsistas de iniciação científica do projeto maior, treinadas para
o preenchimento dos formulários.
A análise dos dados foi feita utilizando-se freqüências relativas (percentuais)
e absolutas (n) das classes de cada variável qualitativa, especialmente com o
intuito de caracterizar a amostra estudada.
As variáveis quantitativas foram analisadas utilizando-se médias e medianas
para resumir as informações, além de desvios-padrão e valores mínimo e máximo
para indicar a variabilidade dos dados.
Para comparar as distribuições de freqüência das variáveis qualitativas, foi
utilizado o teste Qui-Quadrado de Pearson(8). Esse teste baseia-se nas
diferenças entre valores observados e esperados, avaliando se as proporções em
cada grupo podem ser consideradas semelhantes ou não. O teste exato de Fisher
foi utilizado nas situações onde os valores esperados foram inferiores a cinco.
Em cada tabela de cruzamento dessas variáveis são apresentados os resultados da
significância do teste através do valor de p, sendo que, para valores menores
do que 0,05 (p<0,05), considerou-se associação estatisticamente significativa
entre as variáveis.
O Teste t-Student para amostras independentes foi usado para variáveis
quantitativa na comparação de duas médias sempre que as hipóteses de
normalidade e independência não foram violadas. Nos casos onde a hipótese de
normalidade foi violada adotou-se o teste não paramétrico de Mann-Whitney para
amostras independentes.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
O registro sistematizado permite maior conhecimento e melhor compreensão do
processo saúde-doença, facilita a socialização dos dados entre os diferentes
profissionais e ainda possibilita um acompanhamento ampliado e diferenciado,
que segundo Conill(6,9), expressa o caráter de continuidade, que representa uma
das dimensões da integralidade.
Para Freire(10), a escrita materializa e dá concretude ao pensamento, dando
assim condições de voltar ao passado, enquanto se está construindo a marca do
presente.
Tendo em vista essas considerações, assumiu-se neste estudo, o registro em
prontuário como uma boa prática dos profissionais de saúde, que confere ou
agrega valor ao princípio da integralidade. É com base nesses pressupostos que
se apresentam e discutem os dados coletados nos prontuários de crianças das
duas unidades envolvidas no estudo.
A presença ou não de anotação dos dados de identificação e de antropometria das
crianças no prontuário não diferiu estatisticamente entre as unidades de saúde
sem-PSF e com-PSF (Tabela_1). Cabe ressaltar que a unidade com modelo
tradicional apresentou proporções ligeiramente menores de anotações de peso e
altura, uma vez que nessa unidade, esses procedimentos são realizados antes da
consulta médica, por profissionais de nível médio, enquanto naquelas com PSF,
as medidas antropométricas são verificadas durante a consulta médica ou de
enfermagem e, portanto mensuradas e anotadas por tais profissionais.
Apesar da presença dos dados de peso e estatura em 90% ou mais dos prontuários,
a Tabela_2, que mostra a presença ou não de dados pertinentes à avaliação
nutricional no prontuário, revela que há diferença estatisticamente
significativa entre as unidades de saúde estudadas,no que se refere ao
preenchimento da curva de crescimento e diagnóstico nutricional, com maior
índice de avaliação do crescimento na unidade com-PSF. Entretanto, o percentual
de crianças com diagnóstico nutricional no PSF (29,6%) está distante da meta
estabelecida pelo Ministério da Saúde, que recomenda avaliação do estado
nutricional de 100% das crianças atendidas(11). É importante destacar que a
avaliação nutricional constitui uma das principais ferramentas para o controle
e acompanhamento de saúde das crianças, e que mesmo assim, a verificação de
medidas de peso e altura não garante que o diagnóstico nutricional seja
efetuado.
Souza et al(12), ao avaliarem o atendimento médico de equipes do PSF através de
auditoria de prontuários, detectaram que havia alguma referência sobre o
diagnóstico nutricional, como curva de crescimento, conduta em relação à
desnutrição ou obesidade ou somente aferição do peso da criança durante a
consulta médica na maioria dos prontuários (86,2%). A inclusão da verificação
do peso na consulta médica como indicador pode ter sido responsável pelo
elevado índice encontrado, porém como constatado no presente estudo, o fato de
pesar e anotar no prontuário não garante que a avaliação nutricional das
crianças esteja sendo feita.
Com relação à avaliação do desenvolvimento neuropsicomotor, observa-se na
Tabela_2, ausência total de registro sobre o desenvolvimento da criança na
unidade com modelo tradicional, sem-PSF, e um índice ainda baixo desse registro
na unidade com-PSF. Há que se salientar a importância dessa avaliação na
detecção precoce de vários problemas que se tratados precocemente podem
inclusive minimizar agravos sociais e emocionais(13).
Estudo sobre avaliação de conhecimentos e práticas relacionados à vigilância do
desenvolvimento da criança, desenvolvido com médicos e enfermeiros que atuam na
atenção primária à saúde, apontou que 60,2% dos médicos e 58,2% dos enfermeiros
apresentavam conhecimento satisfatório sobre o assunto, porém quanto à
aplicação prática, apenas 21,8% das mães haviam sido indagadas sobre o
desenvolvimento de seus filhos e 14,4% haviam recebido orientação sobre como
estimulá-los. Os autores reforçam a necessidade do diagnóstico precoce e a
importância da prevenção, uma vez que distúrbios como atraso na linguagem,
hiperatividade e transtornos emocionais não são diagnosticados antes dos 3 ou 4
anos de idade e os distúrbios de aprendizagem somente são diagnosticados no
ingresso da criança na escola(13) .
A presença ou não de dados relacionados à alimentação da criança no prontuário
pode ser observada na Tabela_3. Constata-se que também há diferença
estatisticamente significativa entre as duas unidades estudadas, de forma que
na unidade com modelo tradicional de atenção à saúde, sem-PSF, esses dados
efetivamente não são valorizados no prontuário, dificultando o acompanhamento e
evolução das crianças. Mesmo na unidade com-PSF, cerca de um terço dos
prontuários não continham informações sobre aleitamento materno ou alimentação
da criança.
A Tabela_4 refere-se à anotação do estado mórbido anterior, diagnóstico médico
e de enfermagem. Os dados apontam ausência de qualquer uma dessas anotações na
unidade sem-PSF, implicando numa total falta de dados para o acompanhamento da
evolução das crianças, bem como dificuldade na integração entre os diferentes
profissionais que atuam na área.
Anotações sobre condutas médicas e de enfermagem e prescrição de medicamentos e
cuidados realizados segundo unidade de saúde são apresentadas na Tabela_5.
Da mesma forma, constata-se total ausência de dados sobre as condutas médicas e
de enfermagem nos prontuários das crianças atendidas no modelo tradicional,
enquanto na unidade com-PSF, o percentual de anotações variou de 75 a 81%,
permitindo maior conhecimento e acompanhamento das crianças atendidas. Observa-
se que na unidade com-PSF, além da anotação das condutas, há também o registro
dos cuidados de enfermagem, demonstrando que quando há um dimensionamento mais
adequado do enfermeiro na equipe de saúde, a prática do enfermeiro é
diferenciada.
Em relação à idade média das crianças na primeira e última consulta e número
médio de consultas médicas e de enfermagem, verifica-se na Tabela_6 que a
unidade com-PSF apresentou uma mediana de 28 dias para a primeira consulta, que
na unidade sem-PSF foi de 2 meses, diferença estatisticamente significativa.
Sabe-se que assegurar a primeira consulta precocemente é recomendada pelo
Ministério da Saúde(14) e favorece o desenvolvimento de ações de promoção e
prevenção à saúde, criando condições mais favoráveis ao desenvolvimento e
crescimento das crianças.
Quanto ao número de consultas, o Ministério da Saúde recomenda 7 consultas no
primeiro ano de vida, seguida de consultas semestrais no segundo ano e anual a
partir do terceiro ano de vida(15). Os dados apresentados na Tabela_6 mostram
que não houve diferença estatisticamente significativa entre as unidades,
prevalecendo uma mediana de 4 consultas médicas por criança. Por outro lado,
com relação à consulta de enfermagem, no modelo tradicional, sem-PSF, a
consulta de enfermagem é quase inexistente, reforçando a prática de uma
assistência centrada no médico, enquanto na unidade com-PSF, a consulta de
enfermagem é ofertada na mesma proporção que a consulta médica, ou seja uma
mediana de 4 consultas de enfermagem por criança, que possibilita uma prática
que privilegia também os aspectos voltados ao cuidado. Levando-se em conta que
a mediana de idade das crianças na última consulta era de 11 meses e 12 meses
para unidade sem-PSF e com-PSF, respectivamente, pode-se inferir pela mediana
de consultas, que as crianças da unidade com modelo tradicional receberam 4
consultas médicas nesse período, enquanto as crianças do PSF receberam um total
de 8 consultas, sendo 4 médicas e 4 de enfermagem.
Os resultados obtidos reiteram aqueles encontrados por Souza et al(12), que ao
avaliarem o atendimento médico realizado em unidade de saúde da família,
através da análise de anotações em prontuários, constataram que 66,7% das
crianças passavam pelo menos por 4 consultas médicas no primeiro ano de vida.
Estudo realizado em Maringá, sobre a qualidade dos registros em 65 prontuários
de um Núcleo Integrado de Saúde que oferta serviços básicos, mostrou em
levantamento preliminar, ausência de informações elementares e legíveis sobre o
cliente atendido, tais como data de nascimento e endereço. Além da ausência de
informações básicas, houve uma alta freqüência de anotações ilegíveis, tais
como o motivo da procura pelo atendimento, hipóteses diagnósticas e
procedimentos realizados. Em relação à equipe de enfermagem, apesar da
relevância desse profissional nas práticas de saúde voltadas para a atenção
básica, observou-se um número reduzido de registros por parte dos enfermeiros
(16).
Segundo Peduzzi(17), a inserção do enfermeiro na equipe de saúde da família, na
perspectiva da promoção da saúde, ressalta a necessidade de questionar e
desconstruir o modo independente e isolado de produzir saúde. Sinaliza o
trabalho em equipe como a articulação das inúmeras ações executadas pelos
distintos profissionais e a comunicação e interrelação desses profissionais,
como um meio de avançar na ruptura da fragmentação da assistência em direção a
uma atenção mais integral.
Nesse sentido, o registro em prontuário deve ser considerado pelo enfermeiro
como um dos elementos facilitadores da comunicação e inter-relação entre os
profissionais envolvidos na atenção prestada à saúde da criança e um
instrumento que favorece a prática do princípio da integralidade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De uma maneira geral, a análise dos dados constantes nos prontuários aponta que
na unidade com-PSF há registros mais sistemáticos, que favorece a melhor
compreensão do processo saúde-doença das crianças, facilita a integração entre
os distintos profissionais envolvidos nas ações desenvolvidas junto às crianças
atendidas e possibilita o acompanhamento sistemático da criança, ou seja,
promove a continuidade da assistência, e portanto, a integralidade da atenção.
Considerando-se os diversos sentidos do termo integralidade propostos por
Mattos(18), percebe-se que a definição política do modelo técnico-assistencial
norteia a prática do profissional e conseqüentemente o resultado dos cuidados
prestados. Assim, os resultados obtidos sugerem que no PSF, os recursos humanos
disponíveis e a dinâmica do trabalho em equipe, favorecem a prática de ações
com caráter mais completo do cuidado, imprescindível para a concretização do
princípio da integralidade, da mesma forma como constatado por Conill(9).
Um dos fatores que pode explicar essa desvantagem da unidade sem-PSF, em
relação à unidade com-PSF, é a organização da assistência no PSF, que delimita
a área de abrangência em consonância com os recursos humanos disponíveis, ou
seja, existe uma melhor adequação do binômio demanda/oferta, pré-estipulada.
Parece que a questão crucial está mais relacionada à possibilidade de melhor
planejar a assistência quando existe uma adequação da oferta à demanda. Há, no
entanto, que transpor essa discussão para a questão da universalidade de
acesso, uma vez que no modelo com-PSF, ocorre uma seletividade da clientela
atendida, o que de um lado garante uma atenção mais integral para alguns, porém
por outro lado, não responde a uma questão fundamental colocada na atual
sociedade brasileira que é a exclusão social, reflexo da política neoliberal no
país. Sabe-se que a natureza dos serviços de saúde, pública ou privada, já é
por si só promotora de grandes desigualdades no acesso e utilização de
serviços. Assim, é papel do Estado gerar políticas públicas mais inclusivas e
não reforçar no seio do Estado, políticas que promovam a seletividade do
acesso. De fato, parece que um dos desafios colocados na arena da construção do
SUS é contemplar a mudança do modelo assistencial e o acesso aos serviços de
saúde.
Outro aspecto importante a ser destacado refere-se à organização e forma de
trabalho da equipe do PSF, centrada na estrutura e não nos microprocessos do
trabalho em saúde, que dificultam a ruptura com o modelo hegemônico centrado no
atendimento médico.