Percepções dos profissionais de enfermagem intensiva frente a morte do recém-
nascido
INTRODUÇÃO
Sentimento pode ser definido como "ato ou efeito de sentir (se). Aptidão para
sentir; disposição para se comover ou se impressionar; sensibilidade"(1). Ao
abordar o tema dos sentimentos, é possível referir-se ao phatos como a
capacidade de sentir, de ser afetado e de afetar. A experiência base da vida
humana é o sentimento, o afeto, o cuidado; não é o logos (pensar), mas o phatos
(sentir). O sentimento também é uma forma de conhecimento, mas de natureza
diversa. O conhecimento pelo phatos se dá num processo de sim-phatia, quer
dizer, de identificação com o real, sofrendo e se alegrando com ele e
participando de seu destino(2).
A internação em uma unidade de terapia intensiva (UTI) costuma provocar muito
medo na família, não apenas pelo ambiente físico desconhecido e pela gravidade
dos casos que recebem assistência neste ambiente, mas também porque a família
perde o contato com o filho, que passa a pertencer aos profissionais de saúde.
Assim, o sofrimento vivenciado pelas mães/famílias ao perderem os seus bebês é
visível em uma unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN).
O ambiente da UTIN caracteriza-se, sobremaneira, pelo arsenal tecnológico de
que dispõe para cuidar dos neonatos em estado crítico. Soma-se a este ambiente
um modelo de cuidado que, por muitos anos, foi alicerçado no modelo médico
curativista, contemplando o ser humano de forma fragmentada(3). Acerca disto,
encontramos muitas pesquisas sobre o sofrimento da mãe e como minimizá-lo,
dando-se ênfase a essa necessidade.
De certa maneira, a atenção à família do recém-nascido que enfrenta esta
situação tem melhorado nos últimos anos. Entretanto, notamos uma lacuna no que
se refere a estudos, atividades, ouvidoria, terapia, enfim atenção aos
profissionais diante da morte de seus pacientes em UTIN. Nesse espaço, os altos
índices de mortalidade neonatal tornam os profissionais freqüentemente expostos
ao evento morte e aos conflitos que dela advêm, reforçando a necessidade de nos
ocuparmos com os sentimentos dos profissionais diante da morte de um recém-
nascido (RN).
Apesar dos inúmeros estudos feitos com o intuito de melhorar a sobrevida dos
recém-nascidos, faz-se necessário criar, igualmente, dispositivos para a
realização de outras pesquisas que contribuam com essa área do conhecimento, no
que diz respeito às condições dos profissionais destas áreas especializadas.
Desvela-se também que no mundo do cuidado de uma UTI Neonatal o cuidador
necessita de atenção e capacitação para atuar com segurança, logo, também
necessita de cuidados. Portanto, este espaço não se destina somente ao
desempenho de atividades técnicas e científicas, mas também pode ser um lugar
onde as pessoas têm a possibilidade de ser e de viver num contexto mais humano
(3). Portanto, mediante essas questões polêmicas, que permeiam o nosso
cotidiano hospitalar, e compreendendo a necessidade de melhorar a condição de
quem cuida, bem como a assistência prestada a recém-nascidos e familiares
frente à morte, indagamos acerca da vivência e dos sentimentos dos
profissionais de enfermagem em unidades de terapia intensiva neonatal, diante
da experiência com a morte de crianças.
Portanto, são objetivos deste estudo: compreender as percepções de
profissionais de enfermagem de uma UTIN, diante da morte de recém-nascido.
METODOLOGIA
Tratou-se de um estudo de abordagem qualitativa e cunho fenomenológico,
objetivando compreender a experiência vivenciada pelos profissionais de
enfermagem de uma UTIN, no que se refere aos sentimentos diante da morte do
recém-nascido.
A compreensão do fenômeno, em evidência, levou-nos a escolher um caminho
metodológico que possibilitasse a aproximação das vivências da equipe de
enfermagem de UTIN, abarcando o pensar, o sentir e o agir. Desta forma, optamos
pela pesquisa qualitativa, de cunho fenomenológico que valoriza os significados
que as pessoas atribuem aos seus sentimentos experienciados, e que se revelam a
partir das suas descrições ou discursos. Entendemos que esta vertente
metodológica possibilitará uma melhor compreensão acerca da vivência dos
profissionais de enfermagem em UTIN, e dos sentimentos que os envolvem diante
da morte das crianças.
A investigação teve como cenário a UTIN de dois hospitais públicos do Estado do
Rio Grande do Norte, na cidade de Natal, sendo um deles militar. Ambos são
unidades de referência para gestantes e recém-nascidos em situação de risco,
bem como possuem o título de "Hospital Amigo da Criança", conferidos pelo Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Essas unidades hospitalares foram
escolhidas, como espaço de pesquisa, por serem locais onde desenvolvemos nossas
atividades profissionais e por serem, sobretudo, serviços de referência na
assistência ao recém-nascido com risco de vida. Nesses ambientes, os
profissionais experimentam cotidianamente a morte de recém-nascidos e nesta
vivência buscamos os sentimentos destes profissionais diante da morte destas
crianças.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (CEP / UFRN), conforme protocolo nº 202/06, em 24 de
janeiro de 2007.
Os participantes do estudo, sobre a temática em apreço, foram os profissionais
que fazem parte da equipe de enfermagem (enfermeiros e técnicos de enfermagem),
que desempenham suas atividades em UTIN. Para preservarmos o anonimato destes,
optamos por identificá-los com nomes de estrelas, naturalmente uma
representação simbólica e ilustrativa correlacionada ao estudo em pauta.
Participaram do estudo doze profissionais de enfermagem que desempenham suas
atividades profissionais nas UTINs selecionadas para a investigação. Dentre os
participantes, seis são enfermeiros e seis técnicos de enfermagem. Foram
estabelecidos alguns critérios de inclusão para participação deste estudo: ser
enfermeiro ou técnico de enfermagem; trabalhar, no mínimo por seis meses em
UTIN; ter vivenciado a situação de morte de recém-nascido; ter interesse e
disponibilidade para participar do estudo.
A coleta de dados foi feita através da técnica da entrevista de natureza
fenomenológica. Todos os participantes foram convidados a participar da
pesquisa, bem como foram informados com relação aos objetivos do estudo, a
importância de sua colaboração para o desenvolvimento da pesquisa, o caráter
confidencial de suas respostas, a fidedignidade com que os dados seriam
trabalhados e o direito de desistir de participar do estudo, a qualquer tempo.
As entrevistas foram realizadas no mês de fevereiro de 2007, de acordo com a
disponibilidade dos profissionais, quanto à data e hora, previamente agendadas.
As mesmas foram gravadas, após autorização dos informantes. Na seqüência, foram
transcritas e lidas cuidadosamente, a fim de que nenhuma informação relevante
fosse desconsiderada pela pesquisadora. As informações foram analisadas de
acordo com a trajetória fenomenológica(4), que consiste em três momentos:
descrição, redução e a compreensão fenomenológica. Essa forma de registro
possibilitou a captação, com fidelidade, do discurso do entrevistado, a partir
da seguinte questão: Como você se sente diante da morte do recém-nascido na UTI
que você trabalha?
A partir da análise dos dados, vislumbramos os principais sentimentos que
envolvem os profissionais diante da morte em UTIN, categorizados da seguinte
maneira: perda, compaixão e tristeza. Todos apresentavam uma relação com o
fazer, isto é, com a implementação de ações para lidar com a morte. As
categorias apreendidas representam perspectivas do fenômeno estudado e refletem
como os profissionais da investigação expressam esses sentimentos diante da
morte em UTIN, enquanto mergulhados neste contexto.
RESULTADOS
Assim, dos participantes do estudo oito são do sexo feminino e quatro do sexo
masculino, os quais têm idade que variam entre 26 e 50 anos; a maioria é
casada, com apenas três solteiros e um divorciado. Dentre todos, nove têm
filhos e três não. A religião que prevaleceu foi a católica; o tempo de formado
variou entre três e 25 anos e o tempo de serviço em UTIN de sete meses a 15
anos. Com relação a vínculos empregatícios, constatamos que cinco têm apenas um
emprego, sete possuem dois e apenas um participante possui três empregos. A
maioria é funcionário público, e apenas dois trabalham em empresa privada.
Da essência de suas falas, foram identificadas as unidades de significados, as
quais expressaram uma diversidade de sentimentos comumente acompanhados de dor
e sofrimento. O esforço de compreensão desta realidade empírica foi alicerçado
por autores que direta ou indiretamente abordam o tema, ou se preocupam com a
condição humana, em suas várias dimensões.
Tais sentimentos foram alinhados em três categorias temáticas, a seguir: Perda,
Tristeza e Compaixão.
Perda
A vida é um continuum de perdas. Naturalmente, as pequenas perdas cotidianas
provocam, na maioria das vezes, algum sofrimento por parte de quem as
vivenciam. Qualquer perda representa um desafio ao processo de adaptação,
requerendo uma reorganização que nos modifica e muda o curso de nossas vidas. E
também pode nos preparar para uma perda de maior magnitude, como a morte.
Embora tenhamos a compreensão de que o fenômeno morte está ligado à vida
fazendo parte integrante dela, temos a dificuldade de enfrentá-la,
principalmente quando se trata da morte de um recém-nascido.
Se, ao invés de uma menina, fosse um velho, a morte seria uma outra. A morte
dos velhos, por mais doloroso que seja, é parte da ordem natural das coisas:
depois do crepúsculo segue-se a noite. A morte dos velhos é triste, mas não é
trágica, é como um acorde final de uma sonata, o fim é o que deveria ser(5).
Mas a morte de um filho é uma mutilação.
As falas que se seguem são indicadoras dessa inversão da ordem natural da vida.
Assim vejamos:
A gente tem a esperança de que sempre um RN vai ser tudo isso,
aquilo, etc. e quando não consegue fica o sentimento de perda e
tristeza muito grande junto com os pais - a perda de um filho
(ANKAA).
A gente fica totalmente angustiada, angústia com a perda; não só pela
mãe, mas pra gente também, que é como uma mãe para ele... (POLARIS).
É um sentimento de perda; a gente sente a perda da mãe, maior do que
a do recém-nascido (ADHARA).
Como podemos depreender da vivência dos respondentes diante do fenômeno
estudado, a morte na UTIN é antes de tudo uma grande perda, provocando
sentimentos de angústia, tristeza e empatia entre aqueles que lidam com a
criança neste ambiente.
Outros respondentes enfatizaram a perda como sentimento forte e que pouco sabem
lidar com ele, de conformidade com o que constatamos em seus relatos:
[Sinto como] a perda de um ente querido (ALIOTH).
Não me sinto preparada para momento de perdas... (ALPHECA).
É um sentimento de perda para todos os efeitos (ANKAA).
A perda e sua elaboração são elementos contínuos no processo do desenvolvimento
humano(6), sendo a morte parte da vida. Entretanto, nas expressões dos
participantes, percebemos o cuidador que sofre no encontro com a morte da
criança, sendo difícil aceitá-la.
Espaços onde a vida e morte se avizinham, a emoção é uma experiência vivencial,
tratada de forma singular por cada sujeito; é a própria pessoa quem expressa,
verdadeiramente, o tipo de sentimento experimentado, conforme foi possível
identificar, por ocasião das entrevistas com estes profissionais. Muitos
revelaram que, ao vivenciar a morte no cotidiano das UTINs, são tomados por
sentimentos diversos, como decepção, ineficiência, incapacidade, dúvida, culpa,
entre outros.
Compaixão
A compaixão é mais que um ato ou um conjunto de atos de profunda humanidade em
direção ao outro, trata-se de uma atitude fundamental e geradora de atos
compassivos(2). Portanto, o sentimento da compaixão pode ser traduzido como o
despojar-se de si para se colocar no lugar do outro, identificar-se com ele,
percebê-lo, envolvendo-se nas demais circunstâncias da vida do nosso
semelhante.
Vejamos como os respondentes se pronunciam a este respeito:
Coloco-me na posição dela, do sofrimento, de tudo... (ALPHECA).
A gente vê aquilo como se fosse um ente da gente [...] Você termina
absorvendo a dor da mãe; você sente o sofrimento daquela mulher
(SHAULA).
Ter compaixão é participar do sentimento do outro; todo sofrimento merece
compaixão. Compartilhar o sofrimento do outro não é aprová-lo, nem compartilhar
suas razões, boas ou más, para sofrer; é recusar-se a considerar um sofrimento
qualquer que seja, como um fato indiferente, e um ser vivo, qualquer que seja,
como uma coisa(7).
Temos o sentimento de mãe com o bebê. Sempre cuidamos primeiro desse
bebê (SHAULA).
Você chora com a mãe, a abraça, dá palavra mais segura, fortalecendo
(ALDEBARAN).
Ao cuidar daqueles que vivem uma experiência dessa natureza, os profissionais
de enfermagem necessitam de amor. Na compreensão de acolher a dor do outro,
estarão re-significando a sua própria vida, abandonando as dificuldades do
enfrentamento da morte, pelo fato de olhar para a vida, inclusive a vida
presente na morte. Se não levarmos em consideração a família do paciente, não
poderemos ajudá-la com eficiência(8).
O cuidado do paciente no processo de morrer representa uma das mais difíceis
situações em nossa prática e nos fragiliza e assusta. No entanto, precisamos
enxergar esse encontro de sentimentos diversos no cotidiano laboral,
discernindo que cuidar nem sempre é curar, algumas vezes é deixar partir.
O sentimento de tristeza está muito enfático, explicitado pelos profissionais
de enfermagem diante da morte do recém-nascido. A dor e o pesar no momento de
perdas, algumas vezes intercalados pelos fracassos, intermediados pela culpa,
notoriamente obscurecidos pela negação e esculpidos pela compaixão tornam a
morte triste.
Tristeza
A tristeza pode ser definida como estado afetivo caracterizado pela falta de
ânimo/alegria, pela melancolia, pelo desalento, pelo esmorecimento(1). Para
muitos profissionais a morte e o morrer têm significado "negativo", surgindo
sentimento de tristeza, impotência, estresse, angústia, medo, desconforto,
depressão, frustração, sensação de derrota, fracasso ou até ausência de
sentimento(9).
O conhecimento e a percepção da realidade dariam aos profissionais de
enfermagem, no enfrentamento diante da morte do recém-nascido em UTIN, outra
vivência, com certeza menos dolorosa. O "eu" do profissional, sua
subjetividade, suas emoções precisam ser pesados nesta atmosfera de sentimentos
tão fortes e marcantes da sua vida laboral.
O semblante abatido, a voz trêmula, o silêncio e choro observados se somam às
palavras, que seguem:
No momento do óbito: tristeza (BELATRIX).
Quando um bebê que estava estável e morre, realmente o sentimento [de
tristeza] é maior. Você sente aquela dor, aquela falta, uma coisa
como um vácuo, deixou de existir (ENIF).
Por dentro meu coração vai chorar (ALDEBARAN).
O profissional de enfermagem é gente que cuida de gente e, como todo ser
humano, tem suas tristezas, dentre outros sentimentos. A tristeza e o vazio são
indicativos de sofrimento.
Era muito triste; como a perda de um parente nosso (ANKAA).
[A morte] é um momento péssimo; é o pior momento (POLARIS).
[A morte] seria uma tristeza muito grande (ADHARA).
O sofrimento é uma resposta importante e normal pela perda de um objeto ou de
um ente significativo. É uma experiência de privação e ansiedade que pode
evidenciar-se física, emocional, cognitiva, social e espiritualmente. A
vivência da tristeza é algo normal e sadio, podendo ser também patológica e
doentia(10).
Como podemos observar as revelações dos entrevistados expressam uma tristeza
totalmente compreensiva na visão dos autores que estudam o tema da morte.
CONCLUSÃO
Os sentimentos emanados diante da morte de um recém-nascido são complexos por
estimularem a reflexão sobre algo que é intrínseco no homem: sua finitude. Em
uma UTIN esses sentimentos parecem ser mais caóticos, tendo em vista a
preparação e o esforço dos profissionais de saúde para a manutenção da vida do
neonato, bem como sua interação com familiares da criança e o pesar perante o
fim de uma existência que mal começou.
Considerando a morte como parte da vida, percebemos ser fundamental conhecer um
pouco dos sentimentos gerados pela subjetividade dos profissionais de saúde
diante dessa realidade, em especial dos membros da equipe de enfermagem, pela
sua maior proximidade para com a criança, sua família, seu cuidado. Dessa
forma, os sentimentos diante da morte do recém-nascido foram pouco a pouco
emergindo, ora expressando fragilidades com conotação de fracasso, impotência,
ora de força e coragem diante do sofrimento dos pais e demais familiares.
Nas falas e nos semblantes dos respondentes, alguns sentimentos afloraram mais
facilmente diante do evento morte: a perda se desnuda como uma grande ruptura,
longe da aceitação e da compreensão no contexto pessoal e profissional de
nossos participantes. O sentimento de compaixão reflete o ser-com-os-outros, na
realidade em pauta, com o recém-nascido e seus familiares, evidencia uma re-
significação do papel do cuidador, como também o remete ao encontro com sua
própria humanidade, agora expressa em amor pelo outro. Percebemos, portanto,
que a morte do recém-nascido aproxima os profissionais do sentimento de
compaixão. A tristeza emerge como um sentimento indicativo de profundo
sofrimento diante da perda do recém-nascido; é considerada natural nesse
processo de luto no dia-a-dia que se vivencia nas UTINs.
Assim, percebemos ser fundamental a compreensão de cada morte como sendo única,
não devendo o profissional de enfermagem assumir uma postura de não-aceitação
ou inconformismo com a sua ocorrência a cada vez que ela acontecer, mas de
perceber esse fenômeno como integrante íntimo e intrínseco do ciclo de vida do
recém-nascido.