Vírus HPV e câncer de colo de útero
INTRODUÇÃO
O combate ao câncer de colo de útero teve significativos avanços após a
confirmação do papel etiológico do vírus HPV sobre a doença. Estudos
consistentes do Papiloma Vírus Humanos (HPV) foram desenvolvidos a partir da
década de 1980, e possibilitaram, posteriormente, no aprofundamento do
conhecimento da resposta imunológica ao vírus, propiciando o desenvolvimento de
vacinas com baixas doses de antígenos e altamente imunogênicas(1). No entanto,
a vacina atuará como um meio de prevenção ao câncer de colo de útero somente
para os indivíduos que previamente tiverem acesso a ela antes do início da vida
sexual. Fora deste contexto, o combate ao câncer cervical deve ser feito,
ainda, por meio de detecção de lesões precursoras e seu devido tratamento e
seguimento clínico.
MÉTODO
Considerando a riqueza das informações disponíveis sobre o tema, este estudo
faz uma revisão bibliográfica sobre o assunto, com o objetivo de conhecer
aspectos da infecção do vírus HPV, e as evidências que estas levaram no
desenvolvimento das lesões precursoras e da neoplasia cervical. O tema é de
suma importância para os profissionais de enfermagem, principalmente aqueles
que atuam diretamente no campo da prevenção e combate do câncer de colo de
útero. Identificam-se também, neste texto, aspectos epidemiológicos tais como a
distribuição da infecção e do carcinoma cervical em algumas partes do mundo,
buscando as bases literárias mais importantes publicadas nas três últimas
décadas. Essas referências contribuíram com o estado atual de conhecimento e
com a tecnologia disponível hoje para o combate à doença e à infecção, em
especial a vacina contra os principais tipos do vírus.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Aspectos históricos acerca da associação do HPV com o câncer de colo de útero.
Historicamente, a associação do vírus HPV com o câncer de colo de útero começou
em 1949, quando o patologista George Papanicolaou introduziu o exame mais
difundido no mundo para detectar a doença(2): o exame Papanicolaou1. Esse exame
permitiu identificar mulheres com alterações celulares pré-maligna,
possibilitando observar uma associação da atividade sexual com o
desenvolvimento do câncer de colo de útero(3). No entanto, somente na década de
70, o conhecimento acerca da etiologia da doença teve considerável avanço.
Estudos constataram que tal associação implicava na presença de um agente
etiológico de transmissão sexual. Harold zur Hausen, um infectologista alemão,
constatou que o Papiloma Vírus Humano (vírus HPV) poderia ser esse agente
estabelecendo inicialmente a relação do vírus com as verrugas e condilomas.
Somente anos mais tarde, o vírus foi relacionado com o desenvolvimento do
carcinoma de colo de útero(4).
Na década de 90, com o advento da clonagem molecular e a utilização desta
tecnologia na replicação do genoma do Papiloma Vírus, outros aspectos da
infecção foram elucidadas(3;5). O avanço da tecnologia molecular possibilitou a
identificação do DNA do vírus HPV em amostras de tecidos de carcinomas
cervicais(6). Estudos multicêntricos confirmaram a presença do DNA do Papiloma
Vírus em quase 100% dos epitélios dos carcinomas invasivos(7-8), levando à tese
mundialmente aceita de que a infecção pelo vírus HPV é "causa necessária para o
desenvolvimento do carcinoma invasivo". Casos de carcinomas sem a presença do
vírus HPV são raros e supõe-se, nestas situações, que o carcinoma não foi
originado pela infecção viral ou possa ter ocorrido falha na detecção do vírus
HPV(6).
Devido à discrepância entre a alta freqüência de infecções HPV em mulheres
jovens sexualmente ativas e a ocorrência relativamente baixa de lesões
cervicais nas mesmas, colocou-se em dúvida a etiologia viral da doença, e
concluiu-se que a infecção era causa necessária, mas "não suficiente para o
desenvolvimento da doença", uma vez que, virtualmente, somente uma fração de
mulheres portadoras do vírus a desenvolveria(6,8,9). Estudos prévios já
sugeriam que um forte fator diferenciava a progressão ou não da doença,
sugerindo que isto estaria relacionada aos diversos tipos do vírus HPV(10).
Estudos posteriores mostraram que a sua progressão depende não somente da
presença do vírus, mas também do tipo de vírus, da persistência da infecção e
da evolução das lesões precursoras para o carcinoma invasivo(11).
Características do vírus
O reconhecimento que o vírus HPV é o principal fator etiológico da neoplasia do
colo de útero iniciou na década de 70, mas, as primeiras observações que
associava as lesões verrugosas cutâneas ou mucosas com um agente infeccioso
tiveram início na década de 20(12). Sabe-se que, em 1933, Shope e Hurst
identificaram os primeiros Papilomas Vírus (PV) nas lesões verrugosas dos
coelhos, confirmando a suspeita da etiologia infecciosa das lesões verrugosas
nas espécies animais.
Papiloma Vírus são membros da família Papovavirida e infectam o epitélio de
alguns animais, dentre eles, répteis, pássaros e mamíferos, incluindo o ser
humano(13). Mais de 200 tipos de Papiloma Vírus tem sido descritos e se
distinguem entre si na seqüência do DNA. Dentre os que acometem o ser humano,
cerca de 100 tipos já foram descritos(13-14) e cerca de 50 tipos que acometem a
mucosa do aparelho genital já foram identificados e sequenciados (esse exame
analisa as células esfoliadas do colo uterino, identificando as células que
estão alteradas, presentes em lesões pré-cancerígenas e na doença propriamente
dita, com base na modificação da estrutura arquitetural).
O vírus é relativamente pequeno, não-envelopado, com 55 nm de diâmetro. O
genoma deste vírus é uma molécula com DNA duplo com cerca de 8000 bases
pareadas, com três regiões: uma região distal (L), contendo dois genes - L1 e
L2 - que codificam as cápsulas das proteínas virais; uma região proximal (E)
que codifica as proteínas envolvidas na replicação viral e controle de
transcrição denominadas de E1 e E2, e dos principais genes que se transformam
em E6, E7 e E5; e, por último, entre as regiões E e L, encontra-se uma longa
região de controle (LCR), vinculada a vários locais que contêm fatores de
transcrição nucleares e virais e divulgador seqüências(15-16).
Genomas do HPV são encontrados no núcleo das células infectadas do colo uterino
normal, onde partículas virais infectantes podem ser isoladas. Em algumas
lesões de baixo grau e, na maioria das lesões de alto grau e do câncer
cervical, genomas do HPV são encontrados integrados aos cromossomos(13,15),
sendo essa integração o ponto central da transformação celular oncogênica(16).
A integração do DNA do HPV desregula a expressão do E6 e E7, que interagem com
genes supressores tumorais p53 e proteínas RB, respectivamente. Este processo
prejudica a função do gene onco-supressor, com reparação do DNA, diminuição
apoptose, e eventual morte celular. As mutações cromossômicas causam
modificações funcionais como perda de heterozigose e pro-oncogene e ativação de
mecanismos que permitem a indução da carcinogênese cervical(17).
O vírus HPV pode infectar as células do epitélio basal da pele ou dos tecidos e
são categorizados como cutâneos ou mucosos(17). Os cutâneos são
epidermotrópicos e infectam principalmente a pele das mãos e dos pés e se
manifestam formando as verrugas. O tipo mucoso infecta o revestimento da boca,
garganta, trato respiratório ou epitélio ano-genital e manifestam-se através de
condilomas planos e acuminados(15). A maior parte das infecções por HPV são
benignas e elas desaparecem espontaneamente dentro de 1 a 5 anos(15).
Tipos do vírus
Aproximadamente 118 tipos de Papiloma Vírus foram completamente descritos e
cerca de 100 tipos que acometem o humano já foram identificados(13).
Em 2003, Munoz et al(18) classificaram o vírus em alto e baixo risco, conforme
risco epidemiológico. Os de baixo risco são geralmente encontrados em
condilomas vulvo-genitais e os de alto risco são associados ao câncer cervical.
Foram classificados 15 tipos de vírus de alto risco, entre eles estão os tipos:
16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56, e 58, sendo que os tipos 26, 53 e 66
poderiam também ser considerados de provável alto risco. Os tipos de baixo
risco são: 6, 11, 40, 42, 43, 44, 54, 61, 70, 72, 81, e CP6108 - e os tipos 34,
57 e 83 - não foram detectados em nenhuma das amostras e foram, portanto,
consideradas de risco indeterminado.
A incidência de infecções por HPV de alto risco é mais elevada do que a de
baixo risco. O HPV tipo 16 é o mais prevalente nas infecções do trato genital
(19-21), chegando até 66%, seguido dos tipos 18(15%), 45(9%) e 31(6%) sendo que
os 4 tipos juntos, podem corresponder até a 80% dos casos. O tipo 16 também é o
tipo mais comum detectado no carcinoma cervical invasor(22) e o tipo mais
prevalente em quase todas as partes do mundo(11). É também o mais persistente,
com duração de 12 meses ou mais, enquanto infecções por outros tipos de HPV
duram 6-8 meses(1). Portanto, mulheres com HPV 16 e 18 têm um risco aumentado
de desenvolver câncer cervical quando comparadas com as que têm outros tipos.
Quando comparadas com mulheres sem infecção, o risco relativo (RR) de
desenvolver lesão precursora chega a 10,2(23). Estudos recentes têm demonstrado
que existem diferenças de risco de desenvolver o câncer cervical de acordo com
as variações do vírus HPV tipo 16(24).
Aspectos epidemiológicos da infecção pelo vírus HPV: incidência, prevalência e
duração.
Incidência
Anualmente, cerca de 5-15% das mulheres previamente sem o vírus HPV são
infectadas com qualquer tipo de HPV de alto risco(11) e aproximadamente 25% da
incidência da infecção se concentra na faixa etária dos 15-19 anos(25,26).
Alguns estudos de seguimento(26-28) foram feitos em grupo de jovens,
acompanhando-as antes e após iniciar a vida sexual, para averiguar o início da
infecção. Em um dos estudos(26), a incidência da infecção foi de 20% nos
primeiros 12 meses, decaindo para 14% e 9%, no segundo e terceiro ano
respectivamente, mostrando que a infecção ocorre com maior freqüência no início
da vida sexual. A duração média da infecção pelo HPV foi de 8 meses e após 12
meses da incidência da infecção, 70% das mulheres já não estavam infectadas;
após 24 meses, apenas 9% continuaram infectadas, revelando que a maioria das
infecções são transitórias. Os HPV do tipo AE7, 61, 18, 16 e 73 estavam
associados à duração média mais longa da infecção.
No Brasil, estudo de seguimento feito com 3.463 jovens que iniciaram a vida
sexual, utilizando testes de DNA de HPV de alto risco pelo método de Captura
Híbrida 2, indicou que 17,3% tiveram positividade após iniciar a vida sexual,
mostrando um perfil epidemiológico semelhante ao de outros países da América,
com uma maior concentração de incidência no início da vida sexual(29).
As taxas de incidência apresentam grande variação, conforme divulgado pelo IARC
(11): na Colômbia, foi registrada incidência de 5.0 por 100 pessoas-ano, nos
EUA, de 15.8 por 100 pessoas-ano, já no Canadá, foi de 16.8 por 100 pessoas-
ano. Outro estudo no Canadá registrou 9.5 por 100 pessoas-ano(25).
No Brasil, a incidência registrada foi de 8.1/100 pessoas-anos(30). Outro
estudo com a população brasileira(31) registrou uma incidência de 14.3% de
infecção genital por HPV de alto risco, sendo que destes, 77,8% eram lesões
escamosas de alto grau e 100% dos casos de carcinoma.
Prevalência da infecção
O vírus HPV é considerado o agente infeccioso de transmissão sexual mais comum.
Estima-se que o número de mulheres portadoras do DNA do vírus HPV em todo o
mundo chega a 291 milhões, e cerca de 105 milhões de mulheres no mundo inteiro
terá infecção pelo HPV 16 ou 18 pelo menos uma vez na vida(32).
Outro estudo mais recente do IARC foi publicado em 2005(33), envolvendo 11
países dos quatro continentes do mundo, com a participação de 15.613 mulheres
sem citologia alterada. Neste estudo, a prevalência da infecção foi de 10.5%.
Houve uma variação de até 20 vezes na taxa de prevalência entre os diferentes
países investigados, sendo que a mais baixa foi encontrada na Espanha (1.4%) e
mais alta na Nigéria (25.6%). Europa foi o continente com menor taxa (5.2%),
Ásia teve uma taxa de prevalência de 8.7%, América do Sul com 14.3%, e 25.6%
África. No entanto, foi encontrado uma maior prevalência do vírus tipo HPV 16
na Europa, e o HPV 18 teve uma distribuição mais homogênea. O HPV 16 foi o tipo
viral mais comum encontrado nas infecções simples quanto nas múltiplas. A
presença de vírus de alto risco representou 66,3%, a de baixo risco foi 27.5%,
e outros tipos corresponderam 5.5%.
No Brasil, estudos nacionais registraram um perfil de prevalência da infecção
por HPV de alto risco semelhante ao dos países subdesenvolvidos: 17,8%(31) a
27%(34), com uma prevalência maior nas mulheres na faixa etária abaixo de 35
anos, e a partir dos 35 até 65 anos, as taxas permanecem de 12 a 15%(31).
Esses dados mostram que o vírus HPV encontra-se com maior prevalência nos
países dos continentes mais pobres do mundo: África e América do Sul, incluindo
o Brasil, e as taxas mais baixas encontram-se nos países da Europa e da Ásia
Central. Esse quadro reflete também nas taxas de morbidade e mortalidade, uma
vez que as medidas de combate à doença dependem também da implantação do
programa de prevenção e controle da doença adotada em cada país, como pode se
observar experiências bem sucedidas de países de terceiro mundo que conseguiram
reduzir os casos da doença com a implantação política do programa de
rastreamento e combate à doença(35).
Prevalência do vírus - fator idade
Os adultos jovens sexualmente ativos, principalmente no início da vida sexual
(21,36) são os mais expostos ao risco de aquisição de HPV. A prevalência de
infecção neste grupo é de 3-4 vezes mais do que em mulheres de 35 a 55 anos, e
uma tendência de declínio da curva, em faixas etárias mais velhas(25,32). O
risco cumulativo de infecção diminui de 43% em mulheres entre 15-19 anos de
idade para 12%, em mulheres de 45 anos de idade(23). Um segundo pico na taxa
foi registrado em mulheres com 45 anos e também com 65 anos de idade(37).
Prevalência do vírus HPV em mulheres com câncer invasivo
Bosch et al(7) publicaram em 1995, o resultado de um estudo multicêntrico,
envolvendo 22 países. Demonstraram a existência da associação do vírus HPV com
a neoplasia cervical, com uma taxa de prevalência de 92,2% de DNA do vírus nos
fragmentos estudados. Observaram ainda que o carcinoma cervical mais comumente
encontrado é o carcinoma escamoso (94,5%), enquanto que são bem escassos os
casos de adenocarcinoma (2,7% - 25 fragmentos), alem de outros(7).
Em um momento posterior, esse grupo de pesquisadores, ao revisarem o material
de estudo com métodos mais apurados(8), retificou a taxa de prevalência para
99,7%, sendo observado que o vírus HPV 16 e 18 são os tipos mais malignos, uma
vez que, 51,5% do total da amostra apresentavam o HPV do tipo 16 e 79,8%
representavam os tipos: 16, 18, 31 e 45. Outro achado importante na pesquisa
foi a relação do tipo viral com o local do carcinoma cervical. O "HPV 16 ou
relacionado" foi encontrado em 68% dos carcinomas escamosos e o "HPV 18 ou
relacionado" foi encontrado em 71% dos adenocarcinomas e em 71% de adeno-
escamo-carcinoma. Não foi observada nenhuma associação entre a extensão da
doença e os tipos virais. Quanto à distribuição geográfica do vírus, houve uma
variação dos tipos dos vírus encontrados, mas o HPV 16 foi o mais predominante
nos países estudados.
Esse estudo(8) é aceito mundialmente como o que melhor permitiu estabelecer a
relação causal do vírus HPV com a neoplasia cervical e reconhecer os vírus HPV
do tipo 16 e 18 como um dos tipos mais malignos, com maior prevalência do vírus
HPV 16 nos carcinomas escamosos. O tipo 18 foi mais prevalente nos
adenocarcinomas e/ou nos adeno-escamocarcinomas. Ainda foi constatado que, o
carcinoma escamoso é, majoritariamente, o tipo de carcinoma cervical mais comum
em todo o mundo, e que existe uma grande variação na distribuição do tipo de
vírus, nos diferentes países estudados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo mostrou que existe uma vasta literatura sobre o vírus HPV e o
carcinoma cervical, mostrando que alguns aspectos ainda são controversos.
Apesar do avanço nos conhecimentos, as taxas de morbi-mortalidade por câncer de
colo de útero continuam altas em países em desenvolvimento, por ser uma
patologia de evolução lenta, sem manifestação clínica no seu início e,
principalmente por se tratar de uma infecção de transmissão sexual. Em países
como o Brasil, em que o seu combate depende quase que exclusivamente do exame
citológico, ainda são necessários esforços para que a ela seja detectada
precocemente, pois são milhares de mulheres que já foram expostas ao vírus HPV,
e necessitam de seguimento e tratamento adequado para uma infecção não progrida
para o carcinoma.