Espaço e pensamento brasileiro: a Rússia americana nos escritos de Euclides da
Cunha e Vicente Licínio Cardoso
Tempo e espaço são dimensões fundamentais na imaginação humana, e guardam
especial significado no Ocidente. Na obra de Giovani Arrighi, pode-se localizar
uma visão dos homens da modernidade central a respeito desses temas. Em seu O
Longo Século XX (Arrighi, 1996), o capitalismo é investigado a partir de sua
longa duração histórica e identificado a movimentos sistêmicos de acumulação
que implicam a formação de extensos ciclos temporais que marcam o mundo. Nesse
registro tributário da tradição marxista, a dinâmica do capital é associada à
compressão do tempo e à possibilidade de instituir uma ordem social assentada
na equação D-D' (fórmula econômica usada por Marx para representar a
transformação de dinheiro em capital). Para Arrighi, o capitalismo operaria com
uma lógica distinta do territorialismo, já que este localizaria na
multiplicação de espaços controlados a fonte primordial de poder estatal. O
caso ibérico seria exemplar dessa última tradição, refratária ao movimento
temporal constante e ciosa da distribuição de territórios como mecanismo
principal de manutenção de uma ordem social hierarquicamente constituída.
A identificação do espaço com a permanência é traçada a partir da delimitação
da relação de desajuste entre o ritmo temporal da modernidade européia '
marcada pela dinâmica do capital ' e a persistência, nas sociedades
periféricas, de formas de vida e de poder espacializadas. Isto é, a dimensão
fundamental associada ao projeto central dos modernos seria o tempo, traduzido
na sociologia clássica por uma constelação de conceitos hoje consagrados:
revolução, carisma, mudança etc. Esse desajuste encontrou inúmeras formulações
na imaginação brasileira, assombrada pelo desafio de ajustar um vasto
continente de lugares e personagens ao relógio do Ocidente e aos códigos do
liberalismo. Uma versão radical dessa malaise que acometia parte de nossa
inteligência está nos escritos de Paulo Prado, refinado aristocrata paulista.
Em Retrato do Brasil, Prado (1981) elenca inúmeros relatos de viajantes para
compor um painel desencantado diante da inexistência de um código moral
harmônico que organizasse nossa aventura civilizatória. Interpretações recentes
(Lima, 1999) destacam o dualismo que marcaria a imaginação brasileira, cindida
entre a celebração da autenticidade de nossos sertões e a percepção da ausência
de integração social desses mesmos espaços. De um modo geral, a alteridade é
percebida sempre como um atributo problemático dos nossos espaços, pensados
como lugares estranhos aos ritmos e tempos da modernidade.
Este artigo pretende rediscutir essa questão a partir de um lugar intelectual
no qual o espaço pode conhecer outras versões, implicando variantes
modernizadoras que se valem da mobilização de imagens espaciais que não são
identificadas com a permanência e com a resistência, mas com a inovação.Esse
lugar é a periferia, entendida aqui como a geografia de formações sociais
estranhas aos códigos hegemônicos da modernidade central1. Para tanto, optei
por reabrir o chamado pensamento social brasileiro, fonte rica de indagações e
sugestões a respeito das características singulares do processo civilizador
nacional. É nessa forma de imaginação teórica que acredito ser possível
recolher as pistas para a delimitação de uma visão da relação entre espaço e
modernização que aponte para um ajuste entre esses termos. Assim, tomo por
objeto o problema da terra nos escritos de dois personagens dessa forma de
reflexão ' Euclides da Cunha (1866-1909) e Vicente Licínio Cardoso (1889-1931).
A escolha do escritor de Os Sertõesjustifica-se pela sua centralidade no
imaginário republicano e pela consistente recepção de suas imagens espaciais,
atestada pelo trabalho de Regina Abreu (1998). Já os textos de Vicente Licínio
constituem uma evidência da rotinização dessas imagens e da circulação das
mesmas entre diversos agentes intelectuais nos anos 1920. A opção pela análise
mais detida de dois autores refere-se ao pouco rendimento analítico, no espaço
de um artigo, de uma apresentação extensa de intelectuais cuja produção fosse
orientada para temas semelhantes. Não se trata de verificar a persistência
dessas categorias na imaginação brasileira ' trabalho, aliás, já feito por Lima
(1999) e Souza (1997) ', mas de interpretar, mais detidamente, os escritos de
personagens que, além de significativos, partilham uma inscrição sociológica
similar, o que permite uma fixação mais precisa de suas produções simbólicas.
Afinal, trata-se de dois engenheiros2, formados em uma cultura técnica difusa e
marcados pelo positivismo como uma espécie de código moral de uma nova
intelligentsia, mas vislumbrando na terra, e não na cidade ou nos temas
urbanos, uma imagem associada às potencialidades do processo civilizatório
brasileiro.
Sugiro, como hipótese, que essa imagem, longe de se restringir a uma alegoria
essencialista da nossa origem étnico-cultural ou de apelar para um programa
ruralista, traduz uma interpretação do Brasil que destaca o pragmatismo e a
modernidade inconclusade nossa formação social. Ou seja, em vez de reiterar a
dicotomia entre Ocidente e formas espaciais nativas, apresentada no parágrafo
anterior, as reflexões desses dois intérpretes auxiliam na confecção de uma
sociologia política da periferia que redesenha a geografia do moderno e situa o
Brasil em um eixo civilizatório marcado não pelo atraso, mas pela novidade.
Esse eixo, além do Brasil, incorpora a Rússia e os Estados Unidos, sociedades
percebidas por Euclides e Licínio como portadoras de certas características que
as credenciariam de forma positiva diante do Velho Mundo3. Explorarei essa
matriz comparativa ao longo do artigo, pois creio que o esclarecimento da
hipótese que me guia implica a decifração dessa cartografia intelectual que
animava alguns membros da inteligência republicana. Antes de seguir com o
argumento, um esclarecimento deve ser feito.
Como lido com a interpretação de imagens mais comumente associadas ao
repertório conceitual da geografia, é comum a tentativa de circunscrever a
análise aos parâmetros explicativos dessa disciplina. No caso desta
investigação, interessa-me o potencial simbólico dessas imagens, e não apenas a
descrição dos referentes físicos associados a elas. Isto é, assim como a
cartografia elaborada por Montesquieu no seu O Espírito das Leis não se prende
a espaços realmente existentes, constituindo-se em formas expressivas que podem
ser transportadas para diversas localidades do planeta (como o deserto,
categoria que traduz isolamento e ausência de vertebração social), as imagens
espaciais aqui trabalhadas são tomadas como formas de pensar que extrapolam
seus lugares. Essa é a chave analítica que me guia neste estudo. Assim, o
desvendamento da categoria terra não está a serviço de uma discussão sobre o
mundo rural brasileiro, pois acredito que essa imagem escapa ao seu referente
específico, constituindo-se em símbolo que nos permite pensar o processo global
de modernização brasileira. Isto é, a terra associa-se não apenas ao agrário,
operando também como símbolo de uma narrativa metafísica sobre o Brasil e suas
qualidades civilizatórias.
O artigo está estruturado em três seções. Na primeira, retomo os argumentos
mais conhecidos sobre o tema do espaço na imaginação brasileira. Mostro como a
associação entre espacialidade e permanência é recorrente, mas aponto a
existência de uma perspectiva variante, organizada em torno de reflexões mais
recentes sobre o barroco brasileiro. Nessa última, o tema da invenção destaca-
se. Em seguida, mobilizo os casos históricos da Rússia e dos Estados Unidos,
sociedades em que o tema espacial teve forte relação com o processo de
modernização. O objetivo dessa segunda seção é delimitar um quadro comparativo
que permita o desvendamento da incipiente sociologia política delineada por
Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso e apresentada na última parte do
texto. Ao final, retomo o argumento inicial e exploro o seu possível rendimento
como uma ferramenta de interpretação do Brasil.
A TERRA
Analista dedicado ao tema, Moraes (2002) aponta para a relação intrínseca entre
sociedades produzidas pela dinâmica de expansão colonial e construções
simbólicas nas quais o espaço é o eixo estruturador da identidade nacional.
Tais sociedades nasceriam sob o signo do territorialismo, como subprodutos de
uma lógica de expansão que privilegiaria a aquisição constante de novos
espaços. Nesse registro, a espacialização da reflexão e da atividade simbólica
estaria vinculada a um projeto estatal ordenador, como se a reificação operada
pelo argumento geográfico permitisse a identificação imediata entre Estado e
terra, obscurecendo os personagens concretos enredados na aventura civilizadora
' indígenas, negros e outros subalternos. Assim, inevitável é a conclusão de
tal raciocínio: a dinâmica espacializante guardaria significativo sabor
autoritário, pois encobriria a historicidade das formações sociais e a
problemática das identidades nascidas nesses espaços.
Seguindo por essa vertente interpretativa, chega-se a um julgamento
eminentemente crítico a respeito do tema geográfico no processo de construção
nacional, em uma forte condenação de argumentos naturalistas. O mesmo Moraes,
ao analisar a difusão desses argumentos no Brasil a partir do processo de
Independência, observa que:
"Neste quadro de formação social tem-se um território a ocupar e um
Estado em construção, mas a população disponível não se ajusta à
identificação de uma nação conforme os modelos identitários vigentes
nos centros hegemônicos. No contexto, ao abandonar-se o caminho de
construção da nacionalidade proposto por José Bonifácio (cujo eixo
repousava na gradativa abolição das relações escravistas), começa a
tomar corpo uma concepção que vai identificar o país não com sua
sociedade, mas com seu território. Isto é. O Brasil não será
concebido como um povo e sim como uma porção do espaço terrestre, não
como uma comunidade de indivíduos, mas como um âmbito espacial"
(idem:115-116, ênfase no original).
Nessa chave, o Brasil teria sido produzido por uma lógica territorialista, e
nossas auto-interpretações subsumiriam a história à geografia, como se o espaço
suprisse a ausência de uma tradição cultural consensual. Afinal, o escravismo e
o complexo de relações raciais e sociais excessivamente hierarquizadas tornaria
tarefa inglória a formatação de uma totalidade que pudesse representar a
necessária ficção democrática do povo soberano. Além disso, o territorialismo
implicaria a persistência de relações sociais e formas de vida que resistiriam
à transformação histórica, constituindo espaços avessos ao tempo histórico da
modernidade. Tal seria a sina das sociedades periféricas, desde que concebidas
como espaços.
Em formulação mais sofisticada, Arrighi (1996) explora a lógica territorialista
e a diferencia da lógica capitalista de poder, enfatizando que, enquanto esta
privilegia a expansão geográfica como meio para a finalidade de acumulação do
capital, aquela vê o espaço como fim em si, objetivo final de sua estrutura de
poder e gestão4. Nas suas palavras,
"A diferença entre essas duas lógicas também pode ser expressa pela
metáfora que define os Estados como continentes de poder' (Giddens
1987). Os governantes territorialistas tendem a aumentar seu poder
expandindo as dimensões de seu continente'. Os governantes
capitalistas, em contraste, tendem a aumentar seu poder acumulando
riqueza dentro de um pequeno continente', e a só aumentar as
dimensões deste último se isso for justificável pelos requisitos de
acumulação de capital" (idem:33, ênfases no original).
Assim, a lógica territorial dos reinos barrocos implicaria a distribuição dos
sujeitos sociais por lugares fixos e hierarquicamente ordenados, o que tenderia
a emperrar a dinâmica temporal do capital. Percebe-se, nos registros de Arrighi
e Moraes, a associação da territorialidade que teria marcado a aventura
colonizadora a uma lógica da permanência, avessa ao ritmo da modernidade
central. Essa associação é tema recorrente na imaginação brasileira, e pode ser
analisada na fabulação do romantismo brasileiro. Ao contrário dos seus pares
europeus, animados por um agressivo anticapitalismo, os românticos nativos
estabeleceram outra relação entre natureza e Nação. Nesse registro, o mundo
natural seria território da melancolia e do sentimentalismo, mas não de um
refúgio com colorações utópicas. Além disso, a obsessão romântica pelo tema da
identidade nacional traduzia-se em uma prática literária voltada para a
delimitação identitária dos tipos e costumes nacionais, geralmente pensados a
partir do registro de uma natureza americana singular. Nesse sentido, as
imagens espaciais produzidas pelos românticos organizavam-se a partir da idéia
de uma civilização original, presentificada e estável. Essa vinculação entre
espaço e origem é trabalhada por Flora Sussekind (1990). Em sua obra, a autora
sustenta que a prosa de ficção dos anos 30 e 40 do século XIX poderia ser
entendida como uma expressão de uma viagem do narrador a uma fundação distante,
que se pretende natural. Nesses termos, a mobilização das crônicas dos
viajantes e de outros relatos sobre o território nacional por parte desses
primeiros ficcionalistas não obedeceria a uma pulsão revolucionária que partia
em busca de uma experiência social mais autêntica e livre, mas sim a uma
tentativa de fixar a identidade nacional como se esta fosse algo sempre
presente na nossa trajetória. Ou seja, se a viagem, tal como concebida no
romantismo europeu, pressupunha a transformação radical do sujeito-narrador
depois de um percurso marcado pela auto-reflexão e pelo questionamento, as
jornadas dos primeiros prosadores brasileiros assemelhar-se-ia a uma espécie de
regresso que propiciasse uma origem estável e atemporal. Mesmo a incorporação
de um estilo historiográfico, característico da prosa romântica brasileira na
segunda metade do século XIX (da qual Sussekind acredita ser José de Alencar
nosso maior representante), não implicaria uma desestabilização desse
procedimento, dado que a confecção de mapas e cronologias que configurariam um
cenário fixo e avesso à corrosão temporal garantiria o domínio do narrador
sobre o tema da identidade nacional. No registro da autora, "De modo quase
programático afirmava-se então uma linha direta com a Natureza, um primado
inconsciente da observação das peculiaridades locais ' com a finalidade de se
produzirem obras brasileiras' e originais' ', mas ao mesmo tempo era preciso
não ver' a paisagem. Porque sua razão e seu desenho já estavam pré-dados"
(idem:33, ênfases no original).
Incorporando a interpretação de Sussekind à perspectiva deste texto, percebe-se
a predominância da associação entre natureza e origem na tradição romântica
brasileira, configurando uma poderosa matriz interpretativa da nossa imaginação
espacial, assentada em uma idéia essencialista. Em trabalho sobre assunto
correlato, Manoel Guimarães (1988) argumenta que o principal órgão encarregado
dessa tarefa de civilizar o país, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
' IHGB, mostrar-se-ia extremamente preocupado com a definição de uma identidade
física para o Brasil, o que explicaria a obsessão dos historiadores imperiais
com as populações ameríndias. Nesse sentido, a historiografia imperial estaria
desde sempre marcada pelo entrelaçamento entre história e geografia.
Percebe-se, portanto, a persistência da associação entre espaço e permanência
no imaginário social brasileiro. No conjunto de interpretações apresentadas,
destacam-se os temas da fundação e da origem essencial, reforçando a dicotomia
entre tempo e espaço introduzida no início deste texto. Sustento, contudo, que
o tema espacial pode ganhar outra formulação, mais próxima do registro da
invenção e distante da leitura tradicional do nosso territorialismo,
configurando uma importante chave analítica para o encaminhamento de questões
que serão discutidas posteriormente. Vejamos.
Na obra de Rubem Barboza Filho (2000), o barroco é analisado como o grande
código que teria permitido que a aventura colonial ibérica fosse operada por
uma matriz civilizatória alternativa àquela que teria orientado a civilização
da Europa Ocidental. Enquanto esta teria encontrado, no individualismo e na
racionalização do mundo, as grandes âncoras para o processo de subjetivação que
teria surgido na aurora do moderno, a Ibéria teria se agarrado a formas
centralizadoras e comunitaristas, que teriam permitido a sobrevivência de sua
sociedade como expressão ordenada de uma vontade soberana. Assim, a economia
racionalista do indivíduo protestante teria um contraponto na celebração
extática do barroco ibérico, com seu cortejo de rituais e ordenações que
preservariam os diversos lugares sociais sob a guarda de um Estado com vontade
própria, não mera expressão contratual animada pela lógica dos interesses
privados. Neste complexo cultural, a América seria o território onde o barroco
teria se encontrado com outras tradições e se transformado no choque com a
aventura liberal e com as identidades nativas.
Para Barboza Filho (idem), o tema espacial na imaginação brasileira deve muito
a esse código civilizatório ibérico, graças ao gosto dos peninsulares ' homens
formados na soledad' pelo maravilhoso e pelo incognoscível, que os fazia ver a
natureza como personagem grandioso que os engolfaria. Como uma civilização que
resistia a abandonar suas formas de vida tradicionais e extinguir seus espaços
sociais diante da voracidade temporal do capitalismo racional ocidental, a
Ibéria teria legado aos americanos o apreço pelos lugares, rejeitando a visão
da natureza como mero vazio a ser plasmado pela ação humana. Segundo o autor,
"Sarmiento não deixará de registrar sociologicamente e lamentar esta
eficácia da natureza, desenhando os habitantes dos pampas argentinos
como produtos de uma natureza que convidava ao ócio e ao asiatismo,
ou seja, à improdutividade e à ausência de história. Num outro
registro, Euclides da Cunha revelará aos atônitos brasileiros de um
litoral aparentemente civilizado as profundas e barrocas vinculações
do homem do sertão com seu habitat. Temática semelhante à [sic]de
Gallegos com seu Canaima, onde a natureza americana surge como espaço
indomável pelas utopias européias, devendo buscar a sua transformação
em tempo, em história, mandamento redentor que Carpentier cuida de
realçar ao afirmar a necessidade do americano de vencer o espaço '
monstro da pura imensidade ' e criar o seu tempo, sua história [...].
O Barroco fez da natureza, madrasta ou mãe generosa, um elemento
ativo na formação americana" (idem:405, ênfases no original).
Na interpretação de Barboza Filho, a fundação espacial americana é associada a
uma transplantação da matriz barroca, que reafirma a lógica ibérica de
manutenção hierárquica de espaços distintos, mas radicaliza o potencial
inventivo associado ao exercício do poder soberano. Ou seja, a persistência de
narrativas maravilhosas sobre a vastidão e os mistérios da natureza americana
seria evidência de um barroco particular, que ultrapassa a função meramente
reprodutora da tradição ' inexistente, no caso colonial ' para se configurar
como um código moderno propício à produção inventiva de novas identidades
sociais.
A versão de Barboza Filho sobre a relação entre Barroco e espacialidade na
América encontra correspondência na interpretação de Werneck Vianna (1997)
sobre a dinâmica do territorialismo brasileiro. Ao destacar as características
da revolução passiva, este último aponta para a importância da razão
territorialista na formação do Brasil, que teria realizado sua fórmula política
na precedência do Estado sobre a sociedade. Diz ele que
"Para as elites políticas do novo Estado-Nação a primazia da razão
política sobre outras racionalidades se traduz em outros objetivos:
preservação e expansão do território e controle sobre população. A
Ibéria, em sua singularidade, ressurgiria melhor na América
portuguesa do que na hispânica, onde o liberalismo teve força mais
dissolvente por ter sido a ideologia que informou as revoluções
nacional-libertadoras contra o domínio colonial. E a Ibéria é
territorialista, como o será o Estado brasileiro ' nisto,
inteiramente distante dos demais países da sua região continental ',
predominantemente voltado para a expansão dos seus domínios e da sua
população sobre eles ' a economia seria concebida como uma dimensão
instrumental aos seus propósitos políticos" (Werneck Vianna, 1997:14-
15).
A interpretação de Werneck Vianna (idem) parece seguir o caminho delineado por
Moraes (2002), mas se diferencia por argumentar que a lógica ibérica americana
não se restringe à reiteração sistemática da tradição. A mobilização do
conceito gramsciano de "revolução passiva" não indica o travamento autoritário
da mudança, mas o caminho lento seguido pela modernização, processo dirigido
por elites ciosas da unidade nacional e do predomínio da razão estatal. Assim,
se a leitura do territorialismo em Moraes (idem) destaca o tema da fixação de
lugares sociais a partir da ação autoritária do Estado, identificando espaço e
permanência, as sugestões de Werneck Vianna (1997) e Barboza Filho (2000)
compõem interpretação mais matizada, apresentando uma versão do iberismo
americano que associa território e invenção.
Para melhor compreender o quadro brasileiro, creio que o recurso a uma breve
sociologia intelectual comparada se faz necessário, pois o exame do significado
da imaginação espacial em outras sociedades pode favorecer a caracterização de
uma matriz civilizatória alternativa. Para tanto, apresento a seguir dois casos
modelares que ilustraram de forma significativa os caminhos possíveis para o
tema espacial na periferia: Estados Unidos e Rússia. Sugiro que as alegorias
espaciais produzidas possuiriam a qualidade de localizar nessas formações
personagens e formas de vida dinâmicas que, diferentemente do cânone
eurocêntrico, também puderam operar pontos de passagem para a modernidade.
AMÉRICA E RÚSSIA
Max Weber (1958), em texto sobre a penetração do capitalismo no mundo rural
alemão, oferece uma interpretação para o problema da terra em sociedades de
modernização recente. Para o sociólogo alemão, a dinâmica temporal própria do
capitalismo teria efeitos diferentes em sociedades novas, abertas à expansão de
fronteiras e sem pesadas camadas de tradição recobrindo o mundo agrário, e
sociedades antigas, nas quais o espaço hierarquizado e regulado representaria
uma tendência cultural oposta. No mundo alemão, as formas de sociabilidade dos
Junkers implicavam um controle político baseado no domínio estável do
território e avesso à lógica transformadora do mercado. Isto é, em uma
sociedade em que classes tradicionais ainda ocupavam posições de prestígio, o
mundo agrário não seria pensado sob a lógica da produtividade e das relações
mercantis livres, mas como reserva de poder e mecanismo de ordenamento
hierárquico, o que implicaria um fechamento do território ' interessante notar
como esse diagnóstico weberiano encontra ressonância no estudo de Norbert Elias
(1997), pois este afirma que o compromisso entre rei e nobreza prussiana teria
servido para que a máquina burocrática operasse como garantidora de
privilégios, abrindo-se pouco para os interesses burgueses. O caso norte-
americano, por sua vez, representaria outra forma de relação entre poder,
classes sociais e capital. Assim, se o espaço alemão era regulado a partir de
mecanismos de prestígio pré-modernos, a terra no Novo Mundo estava subordinada
à dinâmica pura do mercado e ao ativismo livre dos produtores. Enfatizando a
diferença entre essas duas lógicas, o sociólogo alemão diz:
"A velha ordem econômica perguntava: Como posso extrair, desse pedaço
de terra, trabalho e sustento para o maior número possível de homens?
O capitalismo pergunta: A partir desse pedaço de terra, como posso
produzir o maior número possível de colheitas para o mercado usando o
menor número de homens?" (Weber, 1958:367, tradução do autor).
Se seguirmos ainda o texto weberiano, veremos que na sua perspectiva os Estados
Unidos representariam melhor que qualquer outro lugar a imagem de uma sociedade
nova, em que a questão da terra não se encontra encapsulada pela tradição ou
pela fixidez do espaço. Nas suas palavras, "Os Estados Unidos não conhecem
ainda tais problemas. Essa nação provavelmente nunca vivenciará alguns deles.
Ela não tem uma aristocracia velha; por isso, as tensões causadas pelo
contraste entre a tradição autoritária e o caráter puramente comercial das
modernas condições econômicas não existe" (idem:385, tradução do autor).
Note-se que a temática espacial ocupa posição de relevo na própria mitologia
fundacional dos Estados Unidos. No registro de Robert Bellah (1992), as
categorias de wilderness e paradise eram dialeticamente intercambiadas pelos
fervorosos protestantes que viam na então colônia a possibilidade de
purificação moral e espiritual. Assim, o espaço vazio que se abria para o
empreendimento civilizatório não seria necessariamente uma vastidão assustadora
e tenebrosa, mas antes um jardim de promissão. Nas suas palavras, "Sob as
circunstâncias, o espaço selvagem definitivamente não era um conceito negativo.
Era um lugar de perigo e tentação, mas o jardim cercado' que os santos eram
demandados a construir no centro do espaço selvagem era ele próprio uma amostra
do paraíso" (idem:12, tradução do autor).
Essa visão religiosa da natureza americana também é destacada por Schama
(1996), que toma como objeto as chamadas grandes árvores americanas (sequóias e
carvalhos) e as interpreta como documentos simbólicos que evidenciam analogia
entre ciclo vegetal e teologia de sacrifício. A floresta surgiria como uma
espécie de doação divina, encarnação de uma propriedade civilizatória inventiva
e nova. Assim, natureza, divindade e liberdade associar-se-iam em uma fabulação
que encontraria sua garantia de excepcionalidade nessas típicas árvores do
país. Conforme o próprio afirma, "As florestas, portanto, proclamavam a
constituição natural da América livre, diante da qual um documento elaborado
pelo homem não passava de uma arvorezinha produzida pela invenção filosófica"
(idem:208).
Se a natureza e as florestas foram desde sempre referências fortes do mito
fundacional dos Estados Unidos, foi a fronteira ' como símbolo da terra livre '
que ocupou posição de destaque na imaginação estadunidense desde o final do
século XIX até boa parte do século XX. Desde a publicação, em 1893, do clássico
de Frederick Jackson Turner, The Significance of the Frontier in American
History, essa geografia tornou-se tema obrigatório para a decifração da cultura
daquela sociedade. Nesses debates, invariavelmente se destaca a associação
entre espaço aberto, ativismo empreendedor, capitalismo e democracia, como se a
experiência da fronteira sintetizasse o caráter horizontal, democrático e
inventivo que marcaria a sociabilidade dos pioneiros. Nesse registro, os
Estados Unidos representariam a sociedade geográfica por excelência. No dizer
de Oliveira, que recupera a trajetória dessa discussão,
"Daí que, para Turner, a democracia nasceu sem sonhos teóricos. O
espaço americano era como terra virgem, uma manifestação direta do
estado da natureza, em oposição à história [...]. Não teria sido a
Constituição, mas a terra livre a base necessária à construção do
tipo democrático de sociedade na América" (Oliveira, 2000:133).
Robert Wegner (2000) afirma que o núcleo da tese de Turner diz respeito ao
papel das terras livres na formação cultural americana, e não a um ideário
anglo-saxão já pré-formado. Nessa perspectiva, o encontro com o wilderness
(que, segundo o autor, pode significar tanto deserto quanto selvagem)
representaria o processo de constituição de uma nova nação.
"Portanto, os valores norte-americanos são gerados, conjuntamente ' e
aqui se percebe como a tese é permeada por aquele duplo sentido que a
palavra fronteira adquire nos Estados Unidos (e, também, o próprio
termo wilderness) ', pelas novas oportunidades oferecidas pelas
terras livres e pelo constante reencontro com a natureza e o mundo
primitivo" (idem:98).
Obviamente, essa poderosa imaginação espacial teria que lidar com o problema do
esgotamento das fronteiras. O fim do pioneirismo significaria o próprio
esgotamento das energias democráticas estadunidenses? Como conciliar a imagem
de uma democracia agrária jacksoniana com a emergência de uma complexa vida
industrial? Na visão de Oliveira (2000), a fronteira no século XX teria sido
requalificada pelo discurso imperialista de Theodor Roosevelt, que localizou na
expansão sobre as Américas a possibilidade de ampliação contínua de um processo
fechado internamente. Em uma perspectiva teórica mais larga, como a
desenvolvida por Negri (2002), esse problema seria estruturante do
republicanismo americano, e não encontraria solução que escapasse à
institucionalização do poder. Ou seja, a contínua atividade colonizadora que
teria desbravado o espaço americano e identificado propriedade e liberdade
encontraria sua antítese na regulação constitucional dessa energia radical.
Nesses termos, o poder constituído seria a fronteira final da energia
aparentemente infinita do poder constituinte geográfico do período de Thomas
Jefferson. Impossível, portanto, alimentar uma dinâmica temporal que se
nutrisse do mito de uma democracia de pequenos proprietários. No dizer de
Negri,
"A democracia jeffersoniana experimenta um destino não menos
perverso. Em seu conceito expansivo da liberdade que se projeta sobre
a fronteira, ressoam inicialmente os grandes ecos de um continente a
ser conquistado. A história dos primeiros tempos do jeffersonianismo
é a história da liberação de uma imensa multidão de homens e
mulheres, uma saga inédita de apropriação heróica dos espaços. Também
aqui, porém, a contradição se manifesta: ela está na descoberta da
finitude daquele espaço que se acreditava infinito" (idem:273).
Como se pode perceber, a metafísica da terra americana guarda sentido oposto ao
caso alemão. Se este localiza no espaço uma projeção do que Weber chama de
backwardness[atraso] aquela vê a terra como originalmente espaço livre,
propriedade eternamente juvenil destinada a ser conquistada pelos pioneiros.
Mesmo Negri, crítico do edifício constitucional que moderou o ímpeto
revolucionário estadunidense, vislumbra na narrativa que associa espaço e
liberdade um dos pilares do americanismo.
O caso russo talvez seja, até hoje, um dos exemplos mais impactantes de
construção de uma sociedade moderna a partir de uma matriz cultural que se
debatia incessantemente sobre sua própria filiação ao Ocidente. No século XIX,
as possibilidades revolucionárias abertas nas décadas de 30 e 40 na Europa
seduziam boa parte da intelectualidade russa. Para os ocidentalistas, o caminho
para a afirmação do moderno na Rússia passaria por um choque civilizatório sob
o influxo de um programa ocidentalizante. Tratar-se-ia, portanto, da
consolidação de reformas que constitucionalizassem o país e abolissem a
servidão, desviando a Rússia do caminho feudal que insistia em amarrá-la. A
derrota das grandes jornadas européias de 1848 desestabilizou e isolou esse
grupo, que se voltou para as questões internas russas e, sob intensa repressão,
buscou construir uma poderosa vontade moral e política. Segundo Isaiah Berlin
(1988), o nascimento do populismo russo pode ser datado na grande efervescência
que se seguiu à morte do czar Nicolau I e à derrota na Guerra da Criméia. Ao
contrário dos eslavófilos, corrente política que se aferrava à tradição russa
como refúgio para uma posição quietista e até reacionária, os populistas viam
nessa mesma tradição elementos que poderiam alimentar uma estratégia para a
construção de um caminho alternativo ao moderno. Na raiz desse problema está a
questão camponesa russa e o tema da terra.
O problema da servidão na Rússia era tido por todos (até por membros da
burocracia czarista) como crucial para o desenvolvimento econômico do país
(Venturi, 1981). As dúvidas sobre a forma como esse problema deveria ser
equacionado eram muitas, já que a terra na cultura camponesa russa era
indissociável de quem a cultivava. Dever-se-ia libertar os camponeses e
transformá-los em assalariados ou preservar a posse da terra na forma de
pequenas propriedades rurais? Como deveria ser feita a emancipação? Este
problema de ordem prática indicava uma questão política de alcance maior e que
alimentava boa parte da reflexão que ficou conhecida como populista. Aferrados
cada vez mais ao socialismo, os populistas mostraram-se avessos ao caminho
clássico vivenciado pelo proletariado europeu, e rejeitavam as conseqüências da
organização industrial capitalista. A Rússia lhes parecia oferecer
possibilidades de construir uma alternativa socialista mais humana, que
possibilitasse uma entrada menos traumática no reino da liberdade e da
igualdade. A obshina, instituição do mundo rural que organizava as relações
sociais e de trabalho entre os lavradores, assumia uma posição ambígua. Embora
estivesse vinculada ao mundo feudal que organizava as relações entre patrões-
servos, parecia também guardar a semente de uma solidariedade campesina que
muito se assemelhava às pregações socialistas originárias. O populismo nasce
desse certo desencanto com a estratégia revolucionária ocidental, cuja
vitalidade parecia esmagada entre as instituições representativas liberais e o
complexo mundo das relações de classe em uma ordem industrial.
Percebe-se que o legado desse grupo intelectual foi uma resoluta vontade de
chegar ao Ocidente por um caminho dinamizado pela tradição, localizada no meio
agrário. A terra não seria espaço vazio, mas antes expressão de uma profunda
relação dos camponeses com suas formas de vida tradicionais, relação esta que
não deveria ser mantida em contradição com o novo, mas potencializada pela
idéia e pela vontade política. Percebe-se, portanto, que a imaginação espacial
russa não contrapôs espaço e modernização, vislumbrando no primeiro uma idéia
radical e inventiva, capaz de configurar uma matriz civilizatória alternativa
aos caminhos clássicos de desenvolvimento europeu. A despeito do resultado de
1917 não ter seguido exatamente esse caminho, foi esse o ambiente cultural e
intelectual no qual o tema russo floresceu e capturou a imaginação do Ocidente,
em especial através da produção literária.
Gostaria de destacar dois pontos que me parecem centrais nesse quadro
comparativo apresentando nos parágrafos anteriores: a relação entre imagens
espaciais e modernização e a possibilidade de delinear uma matriz que associe
terra, inventividade e periferia. No primeiro caso, as duas sociedades
adentraram o moderno, mobilizando o universo da terra sob as mais diversas
formas. Longe de constituir uma mera resistência, o espaço nessas sociedades
alimentou narrativas e práticas modernizantes. Os exemplos russo e americano
guardam significativas diferenças, mas apontam para um campo que guarda certos
elementos convergentes. Afinal, nessas duas formações sociais, a terra foi a
imagem principal de fabulações que buscavam um caminho inventivo e aberto para
o processo civilizador, que não repetisse os códigos tradicionais do Velho
Mundo e fornecesse aos seus povos a possibilidade de se recriarem de maneira
flexível. No caso americano, tratava-se de construir uma sociedade a partir do
movimento dos seus homens livres, enquanto na Rússia a questão era articular as
formas de vida tradicionais a uma utopia que produzisse um socialismo não
europeu.
Assim, a delimitação de uma geografia política periférica em que Rússia e
América coabitem não me parece absurda, além de encontrar eco em certas
sugestões presentes no pensamento brasileiro. O trabalho de Ricardo Benzaquen
de Araújo (1994) já evidenciou como a expressão "Rússia Americana" ' presente
nas primeiras seções de Casa Grande & Senzala ' era chave fundamental para
a decifração dos "antagonismos em equilíbrio" que caracterizavam a
interpretação de Gilberto Freyre sobre nossa aventura civilizatória. Na
imaginação da nossa intelligentsia republicana, já havia a percepção de uma
nova cartografia nas margens do Ocidente clássico que inspirava a produção de
novos mapas político-afetivos. O tema da americanidade da nossa formação, por
exemplo, é constantemente reforçado pelos intérpretes contemporâneos como uma
preocupação central dos homens que, nas primeiras décadas do século XX, viam-se
às voltas com o problema da afirmação moderna do Brasil. Se atentarmos para a
já citada comparação feita por Oliveira sobre a construção de identidades
nacionais no Brasil e nos Estados Unidos, perceberemos que a centralidade do
tema espacial não necessariamente conduz nem à espacialidade autoritária, nem
ao territorialismo ibérico. Seguindo esta hipótese, a autora mostra a
importância do tema da fronteira na experiência norte-americana e a tradução
deste tema com sabor sertanista na imaginação intelectual brasileira, apontando
as diversas configurações do nosso americanismo. O ponto é exatamente a forte
presença de narrativas geográficas na conformação das identidades nacionais dos
respectivos países. Nesta aproximação, o tema espacial parece ser próprio de
sociedades coloniais novas ' tema do Novo Mundo.
Em registro semelhante, Lima (1999) procura decifrar o conteúdo da oposição
geográfica que seria a marca determinante do pensamento social no Brasil,
centrada nos pólos sertão e litoral. Ao fazê-lo, argumenta que o sertão seria
associado a um tipo de experiência americana que caracterizaria a sociedade
brasileira autêntica, enquanto o litoral expressaria nossa fronteira européia.
O sertão seria uma expressão ambígua, oscilando entre lugar de desespero e
abandono a ser incorporado e expressão máxima de nossa autenticidade.
A Rússia, por outro lado, parecia também exercer fascínio sobre nossos
intelectuais, como atesta a pesquisa de Bruno Gomide (2004; 2005). Ao
inventariar e analisar a recepção do romance russo no Brasil, o crítico
paulista mostra como Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev e outros forneciam a
visão de uma nova forma civilizatória, traduzida ficcionalmente, que operava um
interessante processo hermenêutico de formação nacional. Intelectuais como
Otávio Faria, Everardo Backheuser e outros mostravam-se entusiasmados com a
pujança estética desse processo, embora se mostrassem receosos diante da
possibilidade de um mesmo desfecho político. A percepção de que Brasil e Rússia
padeceriam de uma mesma espacialidade ameaçadora, marcada pelo peso da
geografia rural e pelo caráter ignoto do hinterland, fazia com que as estepes e
os sertões partilhassem uma mesma matriz periférica.
Meu objetivo é investigar mais detalhadamente essa estranha cartografia que
aproxima Rússia e América a partir do tema da espacialidade. Se essas idéias
encontravam-se de forma difusa nas formulações de nossos intelectuais, trata-se
agora de sistematizar esse compósito, mobilizando o quadro comparativo
delineado anteriormente e utilizando como bússola a hipótese aventada nas
páginas iniciais do texto: a associação entre espaço, periferia e invenção. Os
objetos que tomo para essa empreitada são alguns escritos de Euclides da Cunha
e Vicente Licínio Cardoso.
Euclides é considerado um dos principais autores desse cânone espacial. Sua
obra magna, Os Sertões, ampliou consideravelmente o escopo do regionalismo
nacional, ao mesmo tempo em que consolidava uma moldura intelectual que atraiu
inúmeros intelectuais. Na interpretação de Abreu (1998), operou como uma
espécie de romance de fundação, logrando uma notável recepção e configurando
uma visão crítica a respeito da célebre dicotomia entre civilização e barbárie.
Nessa perspectiva, a criteriosa descrição euclidiana do mestiço sertanejo, a
despeito de suas ambivalências e ambigüidades, teria contribuído para firmar a
noção do sertanejo como o tipo essencial da nossa real formação histórica. Ao
mesmo tempo, a imensa seção sobre "A Terra" contribuiu para consolidar o uso da
argumentação geográfica como forma de cognição do mundo social brasileiro.
Segundo Santana (2001), as imprecisões e os erros presentes nas interpretações
geológicas seriam explicáveis pelo esforço metafórico do autor, voltado para a
decifração de sentidos insuspeitos da vida sertaneja. As discussões a respeito
do caráter ficcional da obra são, como se sabe, questões fundadoras do próprio
euclidianismo como campo interpretativo, e suscitaram uma vasta literatura, que
não cabe aqui remontar por completo. Poucos discordariam, contudo, da
associação entre sertão, mestiço e nacionalidade, que configuraria uma espécie
de interpretação essencialista, inicialmente subversiva, mas que, em pouco
tempo, se tornaria parte integrante do próprio auto-entendimento nacional.
Um dos maiores críticos dessa fabulação essencialista é Costa Lima. Em seu
estudo sobre Os Sertões, sustenta que haveria uma evidente tensão entre a
postulação do mestiço como rocha viva da nacionalidade e a adoção de um
instrumental científico marcado pelo evolucionismo. Essa tensão dilaceraria a
obra, cindida entre a celebração de uma essência étnica que daria sentido ao
Brasil e a fria constatação científica da inevitabilidade da evolução
civilizatória, processo que fatalmente aniquilaria esse substrato autêntico5.
Como resolver, então, a tensão entre espaço, autenticidade essencializada e
teorização? Costa Lima finaliza seu ensaio sugerindo que os escritos amazônicos
de Euclides poderiam oferecer pistas interessantes. Sigo essa indicação para
encaminhar o argumento apresentado no início do texto, a respeito da existência
de uma versão do espaço como símbolo de um processo civilizador marcado pela
inventividade e pelo pragmatismo, e não pela reiteração de uma essência
primordial. Minha idéia não é eliminar a ambigüidade que é marca constante da
reflexão euclidiana, mas explorar positivamente a dialética entre Brasil e
civilização e apontar uma possível interpretação mais flexível para esse
dilema.
Nos seus escritos reunidos sob o título "Terra sem história" (1995b), Euclides
dedica-se à investigação do cenário amazônico e dos personagens que ali
transitariam, com destaque para os sertanejos nortistas e demais migrantes
brasileiros que se aventuravam pela região e buscavam amansar o deserto verde6.
Se em Os Sertões o palco histórico era esquadrinhado e dominado pelo discurso
científico então em voga, em "Terra sem História" a imaginação euclidiana abre-
se para o inesperado e para aquilo que não era passível de ser fixado, embora
Euclides ainda mobilizasse fortemente estudos e pesquisas científicas. Segundo
Santana (2000), o olhar do engenheiro sobre a região foi constituído pela
leitura de viajantes e naturalistas, que operaram como mediadores para a visão
do autor sobre a região. O registro euclidiano, marcado por um forte componente
literário, foi analisado por inúmeros intérpretes que, invariavelmente,
destacaram a transfiguração estilística dos referentes físicos analisados pelo
escritor, procedimento este comum a toda obra euclidiana (Bernucci, 1995;
Ventura, 2003). Entretanto, os inacabados escritos amazônicos radicalizam essa
perspectiva, como indica Costa Lima (1997). Nesse registro, a primeira parte do
texto descreve o surpreendente movimento dos rios, e a constante mutação pela
qual passava a própria terra amazônica. Longe de se constituir em cenário
estável, quadro homogêneo e fixo, a Amazônia seria região em movimento. Nas
palavras de Euclides da Cunha,
"[...] A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E
o Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zonas tão
remotas do outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de
um território em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar
um segundo, e tornando cada vez menores, num desgastamento
ininterrupto, as largas superfícies que atravessa" (1995b:254).
Na seção "Um Clima Caluniado" a desmedida e ainda pouco controlada geografia
amazônica é associada a uma "terra nova", ainda em ser, ou como o autor diz: "A
terra é, naturalmente, desgraciosa e triste, porque é nova. Está em ser.
Faltam-lhe à vestimenta de matas os recortes artísticos do trabalho" (idem:
272). Euclides traça, então, quadro quase literário desse espaço, destacando
suas qualidades misteriosas e pouco afeitas às formas clássicas de observação e
cultivo. Assim, a relação dos homens com essa terra flutuante e resistente à
fixação seria marcada pela idéia de uma adaptação rude, caracterizada pela
idéia de "amansar o deserto". Aos procedimentos clássicos da civilização em
trânsito por espaços desconhecidos ' a simples transplantação de formas de vida
e códigos de conduta ', o escritor-engenheiro opõe as práticas que
caracterizariam a colonização no Acre, reunidas sob a fórmula da "barbárie
transfigurada". Inicialmente, os seres que transitam por esse espaço são vistos
em uma chave negativa, pois são submetidos a um regime de trabalho torturante e
insano, além de se caracterizarem por um fatalismo dostoievskiano. Entretanto,
lentamente o registro do autor se altera, vislumbrando as qualidades dessa
aventura humana e a lenta e consistente luta dos colonizadores. O argumento
evolucionista, típico em Euclides, casa-se com a análise sociológica. Assim, o
clima opressor selecionaria os indivíduos mais fortes, mas ao mesmo tempo estes
desenvolveriam formas pragmáticas de lidar com o espaço infernal da Amazônia.
Note-se que os personagens dessa aventura civilizatória são seres em constante
trânsito, não homens isolados e estacionados em um cenário imutável. Se em Os
Sertões os mestiços seriam produtos do isolamento geográfico e de um cenário
esquecido, portanto representativo de nossa origem mais autêntica, os
seringueiros do Acre seriam representados por indivíduos das mais diferentes
origens étnicas, que partilhariam uma capacidade para o trabalho persistente.
Nesse registro, seriam praticamente homens americanos, selecionados por uma
geografia rude em movimento, e não estacionária. Homens adaptados a uma terra
sem história ' portanto, inabilitada para operar como região autêntica de nossa
nacionalidade ', mas em constante mutação, como a simbolizar o próprio processo
civilizador nacional, marcado não pela repetição de uma origem mítica, mas
antes pela invenção de uma sociedade sem história.
Ao longo do texto, os nortistas (das mais variadas extrações étnicas) são
contrapostos aos caucheiros peruanos. Estes seriam nômades aventureiros, tipos
marcados pela cobiça e pela instabilidade, sempre dispostos à errância e ao
movimento impetuoso motivado pela fortuna. Seriam praticamente exemplares
decaídos do galante e aventuroso ibérico, personagem pouco afeito à
racionalização de sua vida social e animado por desejos e instintos
assistemáticos. Os seus contrários seriam os brasileiros nômades que
colonizaram a região. Ao descrever esses seringueiros, Euclides mostra-se
ambíguo diante de seus feitos. Se ora são descritos como fatalistas,
silenciosos, rudes e insolidários, por outra surgem como homens fortes que
teriam vencido o deserto. Ao se adaptarem ao instável quadro físico da região,
teriam logrado constituir uma vida civil mínima, justamente por sua capacidade
adaptativa e persistência.
Percebe-se, portanto, que a terra em movimento exige uma sociabilidade nova, ao
mesmo tempo bárbara ' Euclides compara os seringueiros a personagens
dostoievskianos ' e inventiva. Ao fim, o processo civilizador descrito no texto
encontra outro caminho que aquele de Os Sertões. Enquanto neste a terra é
símbolo de uma sociabilidade rude e valente, mas inadequada ao relógio do
Ocidente, portanto essência "condenada à civilização", naquele o fluido
território em movimento abriga gentes diversas, cuja característica não seria a
preservação de alguma comunidade de valores primitiva, mas uma forma de agir
adaptativa e aberta para a vida civil. Afinal, os sobreviventes da aventura
amazônica seriam as pontas de lança da própria civilização naquela terra sem
história.
Voltando ao ponto inicial trabalhado neste artigo, note-se que a mobilização do
espaço na teorização euclidiana é mais relevante do que o argumento do
determinismo geográfico faz supor. Afinal, a caracterização de uma paisagem
escapa a uma simples caracterização do cenário, ocupando antes função
simbólica, extrapolando sua própria referência física imediata. Uma terra sem
história seria uma geografia própria da periferia, alheia ao cultivo refinado
da natureza que marcaria a vida civil tal como fabulada pela imaginação
ocidental central. Nessa geografia, na qual todas as tentativas de implantar
uma civilização artificial, própria de regulamentos coloniais, falharam, apenas
uma experiência nova, aberta para o movimento e para a inventividade, poderia
prosperar.
Essa idéia remete à imaginação espacial americana, em especial ao problema da
fronteira nessa imaginação. Decerto há elementos para uma aproximação: os
seringueiros como pioneiros; a vastidão de uma terra inexplorada a exigir
adaptação e movimento; o trabalho como atividade definidora dos homens.
Contudo, a experiência da terra nos Estados Unidos foi acompanhada por um
código moral religioso e coeso e por uma forte animação produzida pelo
interesse mercantil e pela matriz liberal que organizou aquela sociedade. Na
terra americana periférica da Amazônia, o capital e o interesse não seriam
grandes artifícios motivadores, assim como o fatalismo e o quietismo que
marcariam esses personagens nos aproximariam mais da terra russa. Estaria então
a terra fabulada por Euclides destinada a operar como um espaço de resistência
ao moderno? Em um pequeno texto do escritor fluminense, escrito sob o impacto
da guerra russo-japonesa de 1905 e intitulado "A Missão da Rússia", está a
resposta. Neste, Euclides (Cunha, 1995a) sugere que a sociedade russa é moderna
justamente por ter encontrado uma forma moderna de regular sua sociabilidade
bárbara e eslava, característica de um espaço que se estende de forma desmedida
pela Europa e pela Ásia. A condição retardatária da Rússia ' surgida no cenário
histórico no apogeu do Renascimento europeu ' não implicaria a fixação de
formas de vida atrasadas, mas a possibilidade de um desenvolvimento singular e
contemporâneo, que encontrava sua direção na expansão pelo Pacífico. Estaria,
acrescento eu, na mesma geografia que a Amazônia, terra onde nortistas
dostoievskianos lograram organizar formas de vida civil mobilizando uma energia
bárbara, mas produtiva.
Note-se, entretanto, que essa matriz russa guarda alguns componentes negativos,
quando transplantada para o caso brasileiro. Afinal, o mundo amazônico não é
simplesmente o lugar da adaptação criativa, mas também a geografia do atraso,
da precariedade do trabalho e de formas de vida que não logram se inscrever de
forma definitiva em relações sociais estáveis. Francisco Foot Hardman (1988),
por exemplo, sustenta que o texto euclidiano sobre a Amazônia se constitui como
visão crítica das conseqüências produzidas pela incorporação progressiva de
territórios à dinâmica da circulação de mercadorias e de capital. Em texto
posterior (Hardman, 1996), o mesmo autor sugere que o tema das ruínas, motivo
romântico presente em toda obra de Euclides, conduz a uma visão desencantada do
nosso processo civilizador, como se a errância e o tumulto das terras
amazônicas fossem evidências de uma História de fracassos e impossibilidades.
De fato, não faltam nos escritos analisados passagens que atestam essa visão
negativa, mas creio que essa ambigüidade é intrínseca a uma forma de imaginação
periférica que busca não apenas pensar o Brasil criticamente, mas também
constituí-lo como nação moderna e superar seus entraves.
A idéia de uma matriz civilizatória calcada na terra e que aproximaria Brasil,
Rússia e América é retomada por Vicente Licínio Cardoso, que se notabilizou nos
anos 1920 pela organização da célebre obra coletiva À Margem da História da
República. Nela, um conjunto de escritores, poetas e pensadores buscava
estabelecer um inventário crítico da República de 1891 e alguns parâmetros para
a reorganização realista do Brasil republicano. Eram inúmeras as reflexões que
procuraram pensar o país a partir de um marco comparativo que resolvesse nossos
dilemas entre a latinidade e a americanidade, e Licínio marcou seu pensamento
por um definitivo acento americano.
Em 1922, Vicente Licínio pronunciou uma conferência dedicada ao rio São
Francisco e seu papel na integração da Nação brasileira. Posteriormente
publicado, em 1933, o texto ' "O Rio São Francisco: Base Física da Unidade do
Império" ' incorpora um estilo de análise sociológica que se vale de argumentos
geográficos, comuns a uma parte significativa dos intérpretes da época. Assim,
em vez de destacar o protagonismo e as virtudes das grandes lideranças
políticas do Segundo Reinado, o engenheiro carioca elege a terra como
personagem central da aventura civilizadora brasileira, em um movimento teórico
que parece indicar que a geografia prefigurava a história. Essa profissão de fé
metodológica pode ser entendida através da seguinte passagem, que abre o
referido ensaio: "A terra é o esqueleto dos organismos sociais, eis a maior e
mais harmoniosa descoberta sociológica do século passado, só atingida, com
sacrifício, depois de afirmações isoladas ou exageros prejudiciais sobre as
raças, os climas e os alimentos humanos" (Cardoso, 1979a:37).
Todo o ensaio explora esse ponto, destacando o modo com a construção nacional
do país esteve ancorada em uma lógica territorial que favoreceu a
centralização. Esse argumento, que poderia se restringir à economia explicativa
típica do determinismo geográfico, é enriquecido em outros ensaios, no qual
Vicente Licínio associa o tema da terra a uma espécie de potencialidade
americana. Em escritos do mesmo livro, dedicados à análise da experiência
partidária do Império, o engenheiro carioca interpreta a evolução dos Estados
Unidos a partir da categoria terra nova. Vejamos a longa passagem:
"A influência sociológica do meio físico é deveras interessante
[...]. Não me refiro, é bem de ver, aos estudos tornados clássicos de
geografia social. Reporto-me às observações de modificabilidade
social de um mesmo povo ao contato com as terras novas. Malthus,
espantado com as proporções exageradas por ele mesmo criadas,
atemorizou-se com o efeito das terras velhas que se superpopulizaram.
O século XIX haveria de descobrir o fenômeno inverso': a melhoria
das raças velhas em terras novas, o rejuvenescimento da estirpe, o
revigoramento da vitalidade dos povos sob o estimulante de condições
cósmicas propícias. Os Estados Unidos oferecem um exemplo
notavelmente claro" (idem:98, ênfase no original).
O Brasil, como uma nação americana e tropical, também partilharia, em certo
grau, dessa potencialidade. Em outro ensaio, intitulado "À Margem do 7 de
Setembro", Vicente Licínio (Cardoso, 1924d) analisa o movimento de migração
produzido pela vinda da corte de D. João VI a partir da idéia de força da
terra. Nesse registro, a terra nova brasileira teria produzido novos homens, em
um processo semelhante ao acontecido na expansão para o Oeste americano.
Interessante notar como o engenheiro carioca associa essa imagem espacial a
elementos-chaves da imaginação modernista, como o maquinismo. Em agosto de
1925, Licínio pronunciou um discurso junto ao túmulo do autor de Os Sertões, a
convite do Grêmio Euclides da Cunha. Publicado com o título de "In Memoriam", o
texto traça um paralelo entre Euclides e a própria formação do povo brasileiro.
Entretanto, em vez de destacar a mestiçagem, tema tão comum e esperado, Licínio
concentra-se em um argumento que associa a terra virgem a uma inteligência
prática característica de povos como o brasileiro. Como afirma o autor,
"E, se são várias as nossas deficiências nesse tumultuar inconsciente
dos cruzamentos, se são graves os nossos defeitos e perigosos os
nossos hiatos, possuímos em verdade uma qualidade maravilhosa, de que
não nos temos servido ainda como fora de desejar: possuímos, de fato,
a virgindade da inteligência, placas cerebrais' que não sofreram
hereditariamente impressões espirituais trabalhadas por gerações
anteriores; assimilamos, muitas vezes, quero aqui dizer, a
inteligência fecunda e inconsciente da própria terra" (Cardoso,
1979b:140, ênfase no original).
O texto prossegue com um elogio de Licínio aos homens técnicos brasileiros,
capazes de lidar com temas e peças da vida moderna de forma pragmática, sem
disporem de uma longa tradição que os informasse. Como se percebe, essa imagem
espacial associa-se a uma qualidade civilizatória americana, caracterizando o
Brasil como uma sociedade marcada pela inventividade e pela ausência de códigos
morais fortemente enraizados. Nesse registro, a força da terra termina por
traduzir uma experiência não regulada pelas formas políticas clássicas do mundo
europeu.
A América, entretanto, não é a única geografia a qual a terra se associa no
registro liciniano. No seu ensaio "O Ambiente do Romance Russo" (1924a),
Licínio aproxima Brasil e Rússia como sociedades em que a relação entre
indivíduo e espaço seria marcada pela solidão e pela ausência de uma vida
social orgânica. Os russos viveriam em uma civilização caracterizada pela
apartação entre mundos sociais, ausência de classes médias, crescimento
desordenado e artificial das cidades e implantação de formas institucionais
próprias do universo europeu. Assemelhar-se-ia, portanto, à invertebrada
sociedade brasileira. Nesse registro, a terra surge como imagem clássica do
deserto inculto, território incontrolado e povoado por uma sociabilidade mais
rude. Nas palavras de Licínio,
"E, bem pensado, não há como negar que as condições diversas ou até
mesmo antagônicas daqueles ambientes cósmicos aqui invocados
determinaram todos um mesmo resultado comum: a resignação do homem
sentindo-se impotente em face da agressividade da natureza, seja o
sertanejo curtido em vida no sertão adusto do nosso Nordeste, seja o
mujique desfibrado pelo inverno rigorosíssimo do setentrião, seja,
finalmente o emigrado acobardado e vencido diante da natureza
luxuriante do Amazonas" (idem:37).
Contudo, a terra russa não é pensada apenas como um registro negativo. Afinal,
a força da terra, expressão mobilizada como manifestação de uma civilização
pujante e aberta, é reclamada por Licínio como parte integrante do universo
literário desse país. Em um ensaio dedicado a Dostoiévski (Cardoso, 1924b), o
educador carioca vê a Rússia como uma sociedade nova, traduzida simbolicamente
pela prosa enérgica e vibrante de homens sinceros e apaixonados. Assim como
Euclides, que viu no caso russo um belo exemplo de regulação moderna de
energias e forças sociais singulares, Licínio vê na Rússia possibilidades
expressivas capazes de rejuvenescer a civilização. Completa-se, dessa forma, um
movimento que articula Brasil, Rússia e América através da metafísica da terra.
É como se a notação sociológica da relação entre homem e meio, argumento
científico próprio do determinismo geográfico do século XIX, ganhasse outra
tonalidade nessas sociedades, em especial o Brasil. Segundo Vicente Licínio, no
já citado ensaio sobre o rio São Francisco, "As relações de condicionamento
recíproco entre o homem e o meio adquirem no Brasil intensidade ou
desfalecimento desconhecíveis na Europa Ocidental, terra em que primeiro os
autores falaram dessas mesmas relações interessantíssimas compendiadas pela
sociologia" (Cardoso, 1979a:158).
Essa categoria, longe de se restringir ao universo agrário e rural dessas
sociedades, permite a visualização de processos modernizadores que não seguiram
os mesmos moldes daqueles ocorridos nas regiões da modernidade central. Se,
como Licínio afirma, a terra é o grande esqueleto de todos os organismos
sociais, em regiões nos contornos do Ocidente central ' Brasil, Rússia e
América ', ela ganha em força e em intensidade, simbolizando uma matriz
civilizatória na qual a modernidade não se restringe nem ao código moral
europeu nem às formas políticas clássicas desse continente. Afinal, a força da
terra permite a visualização de geografias que combinam pragmatismo, formas
não-clássicas de sociabilidade e processos de construção nacional ainda
incompletos. No dizer de Licínio, em outro ensaio sobre Euclides da Cunha,
"Criaram os russos durante a sua evolução social e histórica do
século passado uma expressão admirável ' força da terra-que nenhum
povo poderá compreender com mais justeza do que o nosso,
nacionalidade em ser que somos ainda na trajetória imponente da vida
das nações habitantes do planeta. Força da terra... energia criadora
sem consciência definida, força esboçada sem direção orientada,
energia inconsciente da raça em formação caótica, força emergente da
própria terra em procura da consciência sábia de seus guias mentais,
de seus diretores sociais, dos obreiros robustos da nacionalidade
incipiente" (Cardoso, 1924c:111).
CONCLUSÃO
O que há de produtivo na idéia de pensar o Brasil a partir de um universo
periférico delimitado pela imagem da terra e que articula Rússia e América? Em
um estudo sobre as características da fronteira brasileira, Otávio Velho (1976)
mobiliza o debate populista russo e a historiografia dedicada ao tema da
fronteira nos Estados Unidos para sustentar a hipótese de que o universo
agrário nacional estaria encapsulado pela lógica do capitalismo autoritário.
Nesse registro, a idéia de que a experiência brasileira poderia emular o livre
ativismo dos proprietários estadunidenses se revelaria um equívoco, dado o
controle político que marcaria a expansão do capital pelo nosso mundo rural.
Nesses termos, uma eventual aproximação entre o Brasil e essas duas
experiências só poderia conduzir ao tema da ruptura e à negação do sentido
conservador do processo civilizador nacional. Em um registro tributário da
sociologia política de Gramsci e Lênin, Carlos Nelson Coutinho (1984) aponta
para a semelhança entre o capitalismo brasileiro e a via prussiana, dado o
controle autocrático da modernização burguesa e a preservação das fontes de
poder tradicional das elites agrárias. Nas duas versões, o tema da terra não
conduz a uma interpretação positiva da experiência brasileira, mas a fabulações
que destacam ora a relação íntima entre autoritarismo e modernidade periférica,
ora a semelhança com o caso da backwardnessalemão descrito por Weber em seção
anterior deste artigo. A "Rússia Americana", portanto, não encontraria guarida
nos registros mais característicos de nossa sociologia política. Entretanto,
outra interpretação pode ser vislumbrada para o tema, desde que se mantenha em
cena a qualidade metafísica da narrativa analisada neste texto, que não se
encerra em uma discussão sobre nosso mundo agrário, mas desvenda uma certa
relação entre espaços e experiência social que escapa às fronteiras do rural.
Vejamos.
Em texto sobre a relação entre teoria democrática e experiência brasileira,
Barboza Filho (2003), apoiado em Charles Taylor, tece uma crítica à política
deliberativa desenhada por Jürgen Habermas e sugere que essa alternativa não se
casaria bem com o potencial expressivista contido nas linguagens políticas que
marcaram o Brasil. Segundo Barboza Filho, o barroco, o romantismo e o
modernismo configurariam repertório de práticas e crenças que afirmariam não
uma tradição essencial a ser reiterada, mas um constante movimento de
autocriação e invenção. Essa idéia, condizente com a perspectiva do autor a
respeito do barroco americano, não associa o tema democrático nem a um código
moral específico nem a um conjunto formal de procedimentos de discurso e
negociação pública, abrindo espaço para uma visão positiva da relação entre
periferia e modernidade. Essa sugestão casa-se bem com o argumento encaminhado
neste texto. Afinal, a produção de imagens espaciais é procedimento recorrente
na imaginação brasileira, além de constituir mecanismo reflexivo de produção de
identidades e narrativas sobre o país. Sugeri que essas imagens traduzem uma
interpretação sobre o Brasil marcada pela percepção de um constante movimento
inventivo que escapa à fixação identitária.
A discussão de Werneck Vianna a respeito do caráter da modernização brasileira
também oferece um ponto de partida assemelhado. Afinal, para esse autor, a
constatação da dimensão passiva da nossa revolução burguesa não implica um
diagnóstico que aponta para um amálgama indissolúvel entre autoritarismo e
modernidade, mas destaca a dinâmica processual e incorporadora da civilização
nacional. Isto é, a percepção de que o mundo da terra encontrou-se sempre sob
controle permanente de elites oligárquicas não significa que o binômio
conservação-mudança da nossa sociedade não possa ter um andamento positivo e
progressista, mesmo que molecular. Nos termos deste artigo, a produção de uma
imagem espacial associada à terra permite a delimitação de uma experiência que
não aponta para a ruptura ou para um desajuste entre modernidade e formas de
vida nativas, mas indica uma forma de modernidade periférica ajustada a uma boa
experiência civilizatória (inventividade, trabalho e adequação ao mundo das
máquinas) e que dispensa a existência de um código moral originário coeso e
aparentado das sociedades centrais.
Nota-se, tanto em Euclides quanto em Licínio, uma certa interpretação do
problema da terra: ambos localizam nessa imagem não o signo de uma origem
essencialista, traduzida em tipos étnicos e destinada a ser protegida contra os
ventos da modernidade, mas o registro de uma sociedade móvel, capaz de se auto-
inventar sem pagar um desgastante tributo a narrativas fundacionais. Esse
registro, por sua vez, associa-se a uma geografia civilizatória que articula
Brasil, Rússia e América, configurando uma matriz que partilharia certas
características: uma construção moderna recente, uma economia moral distante do
modelo citadino-liberal que plasmou as experiências européias e capacidade de
articular energia social de seus personagens aos temas da modernidade (máquina
etc.). Nesses termos, pode-se depreender da idéia de "Rússia Americana" uma
interpretação do Brasil que articula dois pontos que me parecem fundamentais na
nossa aventura civilizatória: o pragmatismo e a nossa condição moderna
incompleta.
Na tradição filosófica estadunidense, o pragmatismo expressa uma visão
democrática que não se escora em idéias apriorísticas sobre instituições ou
códigos de valores inflexíveis, mas privilegia a construção de estratégias a
partir da resolução concreta de problemas publicamente situados. A concepção de
John Dewey sobre a experiência, pensada não como verificação de uma verdade que
residiria em um lugar externo e afastado do conjunto de crenças humanas, abre
as portas para uma postura filosófica aberta à ação criativa. Nos termos do
pragmatismo, a reflexividade seria propriedade de sujeitos em ação, operação
marcada pela lógica da prática de investigação. Nesses termos, conhecer seria
um ato indissociável da experiência ativa de um sujeito orientado para uma
questão e para a resolução prática desta. Tanto os operadores de máquinas
descritos por Licínio quanto os seringueiros apresentados por Euclides
compartilhariam essa forma de inteligência específica. Todos esses personagens,
descolados de tradições e códigos de referência prévios, organizariam suas
atividades no mundo a partir do confronto prático com os imperativos da vida
moderna: máquina, colonização, trabalho regular etc.
Finalmente, tanto a caracterização da móvel terra amazônica de Euclides quanto
a constatação liciniana de que o Brasil era uma nacionalidade em ser reforçam a
percepção de que há uma dimensão processual na nossa formação. Isto é, em vez
de interpretamos nossa construção nacional como uma constante busca de valores
autênticos e originários, pode-se ver nesse largo movimento moderno do qual os
autores aqui estudados tomaram parte uma tentativa constante de organizar as
formas de sociabilidade nativas em um conjunto moderno e aberto à
experimentação. Não à toa, a interpretação de Euclides para o século XIX
brasileiro ' "Da Independência à República" ' assemelha-se a uma análise de
nossa longa revolução, às voltas com a construção da ordem nacional em uma
geografia fragmentada. A dialética entre vontade política liberal e um ambiente
de desertos e lugares alheios a esta lógica é o problema estrutural a ser
enfrentado pelas grandes lideranças do Império. Se o Brasil era o caso único de
uma "nacionalidade feita por uma teoria política" (Cunha, 1995c:374), pode-se
dizer que nossa "revolução passiva" só alcançaria bom termo se equacionasse o
ímpeto revolucionário com um andamento adequado à nossa contínua construção.
Assim, creio que o dilema entre Estado e localismos, central na reflexão
euclidiana, ganha uma chave de entendimento quando cotejado com a leitura da
terra aqui sugerida.
É por isso que a construção de uma chave interpretativa assentada na idéia de
uma "Rússia Americana" não se esgota em uma sociologia do mundo rural
brasileiro, mas se estende para a percepção de uma vivência mobilizada pelo
tema espacial (que pode ser localizada em diversos lugares típicos da
experiência brasileira: favelas, ajuntamentos urbanos e sertões energizados
pela cultura global contemporânea). A caracterização do país como uma sociedade
móvel e descolada de uma narrativa fundacional originária nos remete ao ponto
central de boa parte dessas clássicas interpretações do Brasil: o Brasil se
constrói a partir do movimento constante de conhecê-lo e inventariá-lo. Por
isso a centralidade das imagens espaciais nesse processo. Por isso a
contemporaneidade tanto de nossa tradição de pensamento, quanto da necessidade
de investigá-la. Tarefa, como se sabe, ainda não inteiramente realizada na
agenda das nossas ciências sociais. A ela, então.
NOTAS
1. Este percurso periférico tem diversos referentes na história do pensamento
ocidental, como a obra de Frantz Fanon, intelectual da descolonização africana.
No Brasil, o pensamento isebiano (Guerreiro Ramos e Vieira Pinto, em especial)
consagrou essa forma de imaginação. De uma forma geral, o que chamo aqui de
imaginação periférica compreende matrizes teóricas que postulam um lugar de
fala alternativo, resistente a certos valores clássicos da modernidade européia
(como o individualismo liberal e a organização da sociedade como um mercado
contratual), mas não orientado para uma afirmação autárquica da diferença.
Trata-se de pensar o projeto moderno a partir de outros caminhos, e não de
rejeitá-lo simplesmente. Em última instância, a imaginação periférica não fala
apenas da periferia, mas fala na periferia sobre o mundo.
2. Euclides da Cunha matriculou-se na Escola Militar em 1866, sendo expulso em
1888, depois de incidente em que teria jogado seu sabre no chão diante do
Ministro da Guerra, conselheiro Tomás Coelho. Após a proclamação, logra
reingressar na carreira militar e matricula-se em 1890 na Escola Superior de
Guerra. A despeito do curto período, foi muito identificado com a chamada
mocidade militar da Praia Vermelha, descrita por Celso Castro (1995). Já
Vicente Licínio Cardoso, filho do matemático positivista Licínio Athanásio
Cardoso, formou-se na Escola Politécnica em 1912.
3. A associação dos Estados Unidos a uma imaginação periférica justifica-se
porque não se está trabalhando a periferia neste texto em termos econômicos,
como nas teorias da dependência ou do imperialismo. Trata-se, antes, de
geografias que surgiam como novidades no início do século XX, como a indicar
caminhos alternativos para a afirmação da modernidade. O tema americano, aliás,
atraiu mesmo intelectuais marxistas no período anterior à Segunda Guerra, como
no caso de Antonio Gramsci, para quem o americanismo configurava uma inovadora
possibilidade de organização do mundo capitalista. Isto é, o ponto a se
destacar é a forma como os mapas cognitivos de certos setores da
intelectualidade percebiam essa região como parte integrante de um novo mundo.
4. Arrighi também evita identificar o territorialismo como uma lógica
intrinsecamente autoritária, como parece argumentar Moraes. Segundo aquele, a
antinomia entre territorialismo e capitalismo nada diz sobre a intensidade da
coerção estatal. Como exemplo, escolhe a república veneziana, que, segundo ele,
"[...] no auge de seu poder era, ao mesmo tempo, a mais clara encarnação de uma
lógica capitalista do poder e de uma formação estatal intensamente coercitiva"
(Arrighi, 1996:34).
5. Note-se que a crítica de Costa Lima espraia-se para a própria escrita
euclidiana, constantemente guiada por um olhar adestrado no cientificismo
europeu que se revelaria incapaz de apreender de forma criativa a terra ignota
que se revelava no sertão baiano. Nesse sentido, a potencialidade criativa do
espaço observado ' os sertões ' era constantemente jogada para trás da cena
literária, dado o controle exercido pelo discurso científico sobre o material
expressivo indomável.
6. Euclides há muito desejava explorar essa região, e a oportunidade surgiu com
o convite feito pelo barão de Rio Branco, em 1904, que o queria como chefe da
comissão brasileira de reconhecimento do Alto Purus, destinada a desbravar os
caminhos do rio e estabelecer definitivamente os limites fluviais entre Brasil
e Peru. A viagem foi feita em 1905, a partir de uma escala em Belém. O escritor
planejava produzir um vasto estudo sobre o sertão amazônico, que seria
intitulado "O Paraíso Perdido". O projeto, porém, permaneceu incompleto.