Escândalos, marolas e finanças: para uma sociologia da transformação do
ambiente econômico
INTRODUÇÃO
A sociologia das finanças imbrica-se curiosamente com a sociologia dos
escândalos. Alterações no ambiente institucional e cultural que rege a
atividade financeira das sociedades têm muitas vezes origens nas formas como
elas reagem a escândalos. Talvez um dos exemplos mais expressivos dos tempos
recentes tenha sido a reação norte-americana aos escândalos corporativos da
Enron, WorldCom e Xerox, que levaram as autoridades dos Estados Unidos a
rapidamente aperfeiçoar sua legislação societária. Dada a centralidade dos
mercados financeiros norte-americanos na economia internacional do início do
século XXI, suas conseqüências se espraiaram rapidamente pelo mundo todo,
alterando significativamente a atuação de empresas e órgãos fiscalizadores
nacionais (Coffee, 2002; Blair, 2003a; 2003b; Gates, 2003).
De forma geral, os escândalos podem produzir ondas de choque que impulsionam e
obrigam grupos de agentes sociais a revirar seus tool kits de repertórios
culturais para atacar seus adversários ou para se defender deles (Garrigou,
1993; Thompson, 2000; De Blic, 2005). Nesses embates, testam-se e acabam sendo
descobertas sensibilidades sociais e inventados conteúdos inesperados. O Brasil
atravessou, nos anos 2005-2006, uma sucessão de escândalos, que começou com o
caso Waldomiro1, teve seu auge no episódio do mensalão2 e perigeu no dossiê-
gate3, desembocando na reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O
conjunto de chacoalhadas produzido nessa seqüência de eventos teve o efeito
paradoxal de fazer emergir o tema das privatizações, que parecia
definitivamente resolvido na sociedade brasileira. A privatização das empresas
estatais era um ponto essencial da estratégia de ultrapassar a herança do
varguismo, proposta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Para isso, seu
principal aliado foram os braços do sistema financeiro interessados nos
diversos tipos de negócio que a privatização ensejou. Somaram-se assim os
interesses políticos e as sensibilidades ideológicas dos políticos no poder,
naquele momento, que visavam enfraquecer o que enxergavam ser ao mesmo tempo as
fontes de poder de seus adversários petistas e as principais razões da
estagnação econômica do país com os interesses mais propriamente materiais de
toda a galáxia de atores que opera a transição da economia brasileira para uma
contemporaneidade balizada pelos mercados financeiros. A acolhida que essa
empreitada recebeu na mídia e nos opinion makers foi tão positiva que a idéia
de privatização dava a impressão de ser um componente já naturalizado da
sociabilidade brasileira contemporânea. No entanto, o "escândalo político-
financeiro" e o processo eleitoral que o sucedeu revelaram que continuava
aberto o conflito cultural que subsume as atividades econômica e financeira da
sociedade (De Blic, 2003; Grün, 2004a; 2007b).
O questionamento - ainda que titubeante - da idéia de que a privatização das
empresas estatais e dos serviços públicos em geral seja um processo correto e,
por isso, inquestionável atenta contra o bom senso prevalecente nos anos que se
seguiram ao ocaso do milagre econômico do início dos anos 19704. Temos assim
que a recente seqüência de acontecimentos produziu um efeito simbólico
relevante, impactando a vida pública (Gois, Jungblut e Damé, 6/1/2007; Nossa e
Monteiro, 6/1/2007) e, em decorrência, também o espaço das finanças. Mudam-se
os limites do que é discutível nas esferas econômica e política e,
conseqüentemente, o jogo das finanças também se altera, modificando as
estratégias, os riscos e os cálculos habituais. Colocam-se assim, subitamente,
os limites da autonomia de um campo social cujos atores parecem hegemônicos na
sociedade brasileira, revelando uma variante nacional do padrão de
relacionamento geral da esfera financeira com os demais segmentos das
sociedades contemporâneas (De Goede, 2004; 2005).
Em termos analíticos, estamos diante de uma "janela" que nos permite entender
as relações entre as finanças e a sociedade, em especial sobre as fontes,
principalmente sobre os limites do poder aparentemente inaudito que elas
adquiriram e os fundamentos culturais dessa configuração. As formas como as
finanças se desenvolvem dependem do substrato cultural da sociedade e dos
conflitos que a atravessam nessa esfera. Como a chamada "financeirização" está
no centro da doxa econômica que vige no Brasil contemporâneo, é interessante
explorar sua base, ainda pouco esclarecida, tanto analiticamente quanto em seu
potencial transformador ou conservador. Na configuração criada na base pela
financeirização e catalisada pelos escândalos e pela necessidade de os
partidários do governo de Luiz Inácio Lula da Silva se diferenciarem das elites
tradicionais que os rejeitavam, observamos uma tendência à "financeirização de
esquerda". Nela, os petistas e aliados acabam impulsionando a difusão de
novidades na esfera financeira que beneficiam suas clientelas tradicionais ou
novas. Dessa maneira, ao mesmo tempo que aumentam o escopo e a legitimidade da
dominação financeira de maneira geral, também é esculpido um patamar mais
sólido para os posicionamentos dos desafiantes petistas no campo do poder
brasileiro. Na conjuntura do período, se os escândalos ferem gravemente os
petistas, a lembrança da privatização se revela uma arma contra seus
detratores. O prosseguimento dessa pista deflagra toda uma seqüência de
possibilidades cognitivas, políticas e econômicas que assinalam claramente a
dependência da esfera financeira aos condicionantes culturais e políticos da
sociedade. A partir dessa pista, faz-se uma leitura neste artigo assumidamente
viesada pela literatura sobre escândalos políticos, buscando nela indícios para
apresentar algumas das formas como o conflito cultural se relaciona com a
robustez, o enfraquecimento ou a possível transformação da doxa econômica.
Nesses termos, ainda que sua pretensão específica seja a análise das alterações
simbólicas que recolocam a legitimação da esfera financeira, os escândalos
talvez interessem também para o entendimento da "guerra política" que irrompe
no Brasil entre 2005 e 2006. Eles deflagram a áspera contenda que desemboca nas
eleições presidenciais de 2006, nas quais o presidente Lula enfrenta o
peessedebista Geraldo Alckmin. No primeiro turno, ocorrido em 1º de outubro de
2006, Lula é o primeiro colocado, com 48,61% dos votos contra 41,64% de
Alckmin. Contudo, as últimas pesquisas indicavam, nas estatísticas, um viés de
alta para Alckmin e de baixa para Lula, animando os seguidores do
peessedebista. Seguiu-se a campanha do segundo turno, que terminou nas eleições
de 29 de outubro de 2006, na qual Lula prevaleceu atingindo a marca de 60,83%
contra 39,17% de seu adversário.
A SOCIOLOGIA DOS ESCÂNDALOS
Na análise sociológica dos escândalos, estes são tidos como um dos fatores mais
relevantes ou presentes para alterar ou criar novas sensibilidades sociais. Os
escândalos podem começar nas mais diversas esferas da vida social, mas tendem a
desaguar na esfera política. Por isso, se quisermos avaliar suas causas,
processos e resultados, a arena política é um local privilegiado para focar uma
análise mais geral. Parto, assim, da esfera política para depois voltar ao
espaço empírico das finanças.
Escândalos podem ser compreendidos de diversos ângulos. Um deles fala do
escândalo como forma operacional ou recurso estratégico: nesse caso, é
classificado, ao lado de passeatas, atos públicos, abaixo-assinados, greves de
fome etc., como uma das técnicas possíveis de mobilização e manifestação. Não
por acaso, a literatura que expõe essa vertente fala em "escandalização"
(Garrigou, 1993; Offerlé, 1994; Adut, 2004). Outra linha teórica trata o
fenômeno como "revelador": o escândalo revela a estrutura moral da sociedade ou
de parte dela. Se ele prospera, estamos diante de um conteúdo moral
integralmente compartilhado; do contrário, as normas que teriam sido
conspurcadas não são avaliadas da mesma maneira na sociedade em questão. Aqui
estamos no centro da tradição durkheimiana. Uma terceira linha de análise,
derivada da vertente que trata o fenômeno como "revelador", procura conhecer os
efeitos dos escândalos na criação de novas normas sociais. Nesse caso, os
verdadeiros escândalos são aqueles que geram energia social suficiente para
alterar alguma legislação ou regulamentação. Nessa linha, auto-intitulada
"pragmática", as manifestações que não atingem o estágio crítico da mudança
inscrita em um código não seriam verdadeiros escândalos, mas apenas tentativas
fracassadas (De Blic, 2005).
Na primeira vertente, o foco deste artigo é dirigido para os agentes que
produzem os eventos e para as formas de mise-en-scène que empregam a fim de
tornar pública a transgressão. O campo político passa a ser um cenário no qual
indivíduos e técnicas são testados em sua habilidade e capacidade de produzir
escândalos. Uma linha paralela, diretamente inspirada em Bourdieu, leva em
conta a produção de eventos políticos como uma técnica e também avança uma
síntese. Ela mostra como a relação entre as distribuições de capitais culturais
e sociais poderia explicar as capacidades diferenciais de conhecer e manipular
eficientemente as técnicas necessárias para tornar públicos os conteúdos
considerados escandalosos e utilizá-las de acordo com suas posições relativas
no tabuleiro político (Champagne, 1984; 1990). Desafiantes acionariam esse
recurso para quebrar a doxa dominante com respeito às qualidades "reais" ou
desejadas para os líderes políticos. A estrutura retórica mais típica dos
desafios consiste em denunciar propósitos individuais dos políticos que
estariam sendo escondidos sob uma falsa máscara de devoção ao interesse
coletivo (Boltanski, Darré e Schiltz, 1984). Quando se trata de cobrar
promessas não realizadas, as assimetrias de capitais teriam um efeito limitado
na capacidade de denúncia, mas, quando se trata de enunciar e tentar instituir
novas regras, aí elas fariam valer toda a sua força. A possibilidade de
realizar esse trabalho de inscrição de novos conteúdos na sociedade é
fortemente dependente de uma posição privilegiada do "empreendedor" na
distribuição de capitais cultural e social (Duby, 1978; Bourdieu, 1981; 1992).
A abordagem estratégica foi explicitada na análise dos escândalos ocorridos na
França quando da presidência Mitterrand, na qual o então presidente foi
implacavelmente acusado de estar envolvido em diversas malversações financeiras
por meio de um processo de retroalimentação entre seus adversários políticos e
parcela relevante da mídia desse país (Garrigou, 1992). Independentemente dos
"verdadeiros" dotes morais de cada um dos indigitados, salta aos olhos a
analogia entre a estrutura retórica da acusação a Mitterrand no final dos anos
1980 e aquela feita a Lula nos anos 2005-2006. Corroborando a análise de
Boltanski, Darré e Schiltz (1984), em ambos os casos a estratégia retórica dos
escandalizadores fazia menção a um estado de pureza econômica que os imputados
diziam e deveriam ostentar, mas que os fatos revelados denotavam ser falsa.
É interessante notar a bem provável existência de um padrão internacional
desenvolvido nos últimos vinte anos: presidentes eleitos pela esquerda do
espectro político são sistematicamente acusados de exibir uma moral pública
elevada que é falsa, a qual, por sua vez, esconderia a verdadeira moral
privada, nada recomendável. Nos países latinos, a baixa estatura moral é mais
associada à escroqueria econômica; nos anglo-saxões, a condutas sexuais
reprováveis (Thompson, 2000; Chantal, 2001; Garrigou, 1992). Em ambos os casos,
há uma estrutura retórica bem definida para as acusações, que apela para o
incômodo causado pela transgressão da doxa cognitiva, social e política.
Popularmente falando, a idéia que se tenta passar no combate político de
reconquista conservadora norte-americana e francesa5 é o tradicional "quem
nunca comeu melado quando come se lambuza". Cria-se assim o fenômeno que
Thompson descreve como "as lutas simbólicas em torno da reputação e da
confiança que devemos, ou não, depositar nos personagens em questão" (2000:
103)6. Talvez, mais interessante do que nos atermos ao fascínio ou ao repúdio
que esse processo deflagra, seja relevante notar sua lógica social e cultural.
Os indivíduos oriundos das classes dominantes tradicionais ou assimilados
tendem a fornecer a maior parte dos políticos da situação, enquanto que os
desafiantes costumam vir de classes médias em ascensão. Assim, esses últimos
portam, mais provavelmente, elencos de propriedades individuais e coletivas
ainda não totalmente legitimadas e habitus menos preparados para jogos de
sociedade. Não é por acaso que eles correm um risco maior de deslegitimação do
que seus adversários (Bourdieu, 1979; 1981).
Na análise da energia social necessária para "produzir o efeito escândalo",
podemos catalogar os eventos que entram nessa rubrica em dois tipos: os que
pretendem construir novas institucionalidades e aqueles que têm no horizonte o
simples respeito a uma norma já existente, mas conspurcada ou esquecida (Adut,
2004). Os indivíduos que deflagram o primeiro tipo são recobertos pela rubrica
de "empreendedores morais" (Becker, 1963; Gusfield, 1986). Nesse caso, os
"produtores de escândalos" agiriam movidos por algum tipo de indignação, a
exemplo dos formadores das ligas pela temperança do mundo anglo-saxão
(Gusfield, 1986). O álcool foi um companheiro da humanidade durante milênios.
Proibir seu consumo importa em alterar habitualidades muito arraigadas, e essa
nova norma só poderia ser acatada à custa de um imenso trabalho de "re-
apresentação" de suas qualidades e problemas (Hacking, 1983; 1995; 1998; Goody,
1997). Os exemplos de dissolução moral, observados e propagandeados pelos
empreendedores da temperança, forneceriam combustível ao mesmo tempo para suas
convicções e para o trabalho de apresentação de argumentos para sua proibição.
Contudo, a mais intensa campanha moralizadora não foi capaz de inscrever
duravelmente a norma da proibição, ainda que ela tenha permanecido em alguns
grupos.
Feministas e ecologistas seriam os representantes modernos mais típicos do
gênero de empreendedorismo radical que consiste em inscrever novos conteúdos
morais na sociedade. Os atos paradoxais, promovidos para a causa que abraçaram,
produziriam o capital simbólico necessário para conferir verossimilhança à sua
devoção e legitimidade à sua pregação. Esses empreendedores são indivíduos
capazes de realizar performances inusitadas e de chamar a atenção da sociedade
para elas. Assim, a lógica social da produção desse capital simbólico aponta
para a transubstanciação de seus capitais cultural e social originais.
Evidentemente, trata-se de empreendimentos à Schumpeter. Afinal, esses agentes
correm vários riscos em suas empreitadas, desde sua ridicularização pelos
establishments até riscos concretos de vida, passando pela "simples" falta de
reconhecimento social do trabalho realizado. Além disso, a reputação produzida
nesse esforço está sempre ameaçada por denúncias que expõem a "falsa devoção"
ou mesmo a "devoção apenas relativa" desses empreendedores (Bourdieu, 1980).
Daí a rigidez que esse gênero de ator social costuma apresentar na arena
pública: a gestão do capital simbólico recém-conquistado é fundamental e
complexa, pois está sujeita não só à difamação da não-observância dos
princípios apregoados como também ao processo de ridicularização tanto da nova
norma quanto da postura intransigente (Douglas, 1996).
O outro tipo de escândalo é aquele que faz menção ao não-cumprimento de normas,
regras ou legislações já estabelecidas. No Brasil, os empreendedores mais
típicos dessa modalidade são os novos agentes do campo jurídico, como o
Ministério Público, além dos setores da imprensa que os divulgam7. O ato de
tornar pública uma transgressão praticada por agente dotado de alta
legitimidade ou de proteção institucional - e, portanto, romper a inércia que o
protege - é a matéria-prima típica de que se nutre essa modalidade de
escandalização. Como no exemplo francês, uma das conseqüências mais claras
dessa mobilização "escandalizante" das novas agências jurídicas é o aumento do
status do grupo quando comparado a outros setores do Executivo ou do
Judiciário; e, correlativamente, o aumento de visibilidade do agente
especificamente responsável pelo escândalo em questão. Em uma sociedade em que
os espaços político e judiciário são tidos como lenientes para os acusados
dotados de bom relacionamento social, a conspurcação da quebra dos limites do
corporativismo profissional seria justificada pelo ganho de eficiência na
tramitação dos processos (Adut, 2004).
As duas formas de produção de eventos políticos, normalmente analisadas nelas
mesmas, têm sua eficiência dependente da ressonância que ganham na mídia. Faz-
se necessário considerar as formas por meio das quais a ligação é realizada ou
deixa de sê-lo. Champagne (1984; 1990; 1996) e Champagne e Marchetti (1994)
analisam diversas estratégias usadas por grupos de manifestantes para produzir
a sintonia com os meios de comunicação e, dessa forma, fazer avançar suas
causas. De um lado a produção de eventos com formato adequado para serem bem
notados pela mídia; de outro, um relevo social no espaço da mídia no qual algum
grupo de jornalistas tenha interesse específico em noticiar e, assim, conferir
vida social ao acontecimento produzido pelos empreendedores. Essa dinâmica pode
ser decalcada para englobar nossos produtores de escândalos. A mídia confere
vida social aos escândalos noticiando-os. Quando ela o faz? Escândalos são um
gênero de matéria-prima jornalística muito apreciado; afinal, são eles que
excitam a demanda pelos produtos jornalísticos. Contudo, há de se questionar:
quando um acontecimento recebe essa catalogação? Quando ele se destaca da
normalidade? Quando um "possível escândalo" se torna pauta obrigatória na
imprensa, deflagrando uma concorrência pela "melhor cobertura" ou pela -
sociologicamente esperada - "descoberta de fatos inéditos e comprometedores"?
Afinal, defrontamo-nos cotidianamente com situações que contrariam nossas
convicções, ou nas quais enxergamos graves problemas para o futuro da
sociedade, sem que passemos ao ato de denunciá-las. Mais ainda: quando a
denúncia pessoal se transforma em clamor coletivo?
Na análise da lógica social que move o espaço jornalístico, Schudson (1989;
1992) lembra-nos o papel simbólico seminal dos eventos políticos e midiáticos
ocorridos em torno do caso Watergate. Desde aquele momento a mídia norte-
americana passou a considerar o "jornalismo investigativo" a atividade mais
nobre de sua profissão, e não mais o jornalismo no qual a cobertura política
era uma variante das amenidades da coluna social. A partir daquele escândalo, o
protótipo de jornalista passou a ser um descobridor de verdades escondidas
pelas conveniências dos poderosos. Ao revelar à sociedade as entranhas e
artimanhas do poder, o jornalista se torna um elemento essencial do equilíbrio
democrático (ibidem); e o escândalo passa a ser assim o validador maior da ação
dessa atividade profissional: a consagração do bom jornalista é o papel central
que seus colegas lhe conferem na produção de um "bom escândalo".
A fase de inflexão do jornalismo norte-americano convergiu com a
redemocratização brasileira dos anos 1970 e 1980. Em seu âmbito nacional, o
processo adquiriu uma dinâmica de afirmação profissional desencadeada, em
parte, pela consolidação dos cursos universitários de jornalismo. O resultado
foi uma entrealimentação que gerou o processo local de reconfiguração da
profissão e de sua importância relativa aos "outros poderes". Um bom exemplo da
forma como esse processo adquiriu, na realidade brasileira, tanto a substância
das denúncias quanto a atividade autocelebratória da imprensa pode ser
encontrado em 10 Reportagens que Abalaram a Ditadura, de Molica (2005).
Dificilmente o "script norte-americano" por si só poderia explicar o processo.
É flagrante que a configuração brasileira se nutre também do processo paralelo
que ocorre no campo jurídico, no qual as procuradorias ganharam o poder que
hoje ostentam. A homologia de posições (Bourdieu, 1984) acabou gerando uma
sintonia na qual os métodos e propósitos de um grupo profissional alimentam e
também dependem da ação, aparentemente concatenada, do outro. Estamos assim
diante de uma realidade nuançada que guarda analogias com Estados Unidos e
França, dois países dos quais buscamos bibliografia e que têm peculiaridades
marcantes. No mais, ainda que os analistas explícitos dos "escândalos como
forma política" não explorem a questão, as transformações no campo jornalístico
francês também são explicativas, como mostram Champagne e Marchetti (1994), bem
como a ação de braços do campo jurídico norte-americano, sobretudo a ação mais
recente do promotor especial Kenneth Starr no caso Clinton e Lewinsky8. Muito
provavelmente, uma exploração da literatura sociológica de outros países
apontará outros paralelos. Estamos, portanto, diante de uma seqüência de
transformações análogas dos diversos campos do poder nacionais. Em uma primeira
dimensão, temos as concorrências internas pela primazia em cada um dos campos
(midiático, jurídico, político); em uma segunda, a cooperação objetiva dos
agentes situados em cada um dos campos parcialmente autônomos a fim de realçar
a importância de sua profissão ou ocupação diante das outras. As refregas
internas de cada campo têm um claro limitante no enjeu das lutas: os jogos
internos de cada campo tendem a estabelecer como objetivo a melhor maneira de
realçar a importância do métier em face dos demais instrumentos de regulação;
assim, qualquer disputa que ponha em risco essa expectativa é rapidamente
enquadrada e debelada. Finalmente, temos o impacto do resultado das lutas e
cooperações de cada campo nos outros dois produzindo respostas obrigatórias e
abrindo novas concorrências internas pela "melhor resposta" que retroalimentam
e dão novo sentido às dinâmicas internas. Como quer Bourdieu (1989), essas
evidências indicam novas relações entre mídia, campo jurídico e espaço
político, sugerindo o aprofundamento analítico da idéia de "alongamento dos
circuitos de legitimação" e o refinamento de instrumentos empíricos para
realizar essa tarefa intelectual complexa. Esses instrumentos devem ser capazes
de dar conta dessas transformações, que são multidimensionais e dotadas de
interatividade forte e pouco conhecida não só em cada um dos espaços mas também
entre os espaços (Dobry, 1986).
RELAÇÃO ENTRE ESCÂNDALOS E CONSPIRAÇÕES
Um ponto de contato tenso entre a abordagem estratégica e as normas aparece no
tema das conspirações. Os indivíduos e grupos que são objeto de escândalo
freqüentemente acusam a existência de conspirações de detratores que estariam
por trás das denúncias de que estão sendo vítimas. Uma vez que existe toda uma
galáxia de artefatos culturais que utilizam o tema das conspirações em seus
enredos, é fácil criar alguma verossimilhança para esse gênero de explicação. O
sucesso comercial de obras como O Código Da Vinci9, de Dan Brown (2004),
inscrito em uma linhagem contínua de artefatos culturais, que vem de O
Despertar dos Mágicos (Pauwels e Bergier, 1975, 11ª edição), tanto revela
quanto ajuda a intensificar essa predisposição (Taguieff, 2005). Na esfera
pública, a conspiração, entendida como uma forma retórica estabelecida, faz
parte dos repertórios políticos ocidentais desde pelo menos a difusão européia
dos "Protocolos dos Sábios do Sion", famoso apócrifo anti-semita, produzido
pela polícia secreta czarista, que relata uma "evidente" conspiração judaica
para dominar o mundo (Cohn, 1967; Girardet, 1986). Esse artefato pode ser
considerado o protótipo do gênero e, não por acaso, circula ainda hoje em
diversos locais, sobretudo em países de maioria muçulmana cujos governos estão
em oposição direta ao Estado de Israel, além de ter ganho uma sobrevida robusta
no Ocidente a partir da nova galáxia virtual da internet10 (Lewis, 1986; Erner,
2005).
A estrutura retórica mais recente da denúncia de conspirações faz menção à
existência de conluios secretos entre os diversos setores das elites do país ou
de países concernidos. Todos esses grupos - portanto, um conjunto de atores
muito mais amplo do que os "sábios do Sion" - estariam unidos na empresa de
esconder alguma verdade que os desfavorecesse e/ou de passar alguma versão da
realidade que lhes fosse vantajosa. Evidentemente, os prejudicados por essas
ações seriam os estratos populares da sociedade - o "Zé Povinho" do imaginário
luso-brasileiro (Medina, 1992).
Podemos dizer que, na construção social do escândalo, a conspiração é o oposto
da indignação. Do lado atacante, o esforço, consciente ou não, é para produzir
um efeito de união geral em torno da defesa da norma supostamente infringida.
Essas descargas de energia social podem ser analiticamente assimiladas aos
rituais produtores de coesão social que fornecem a base da sociologia da
religião de Durkheim. Nessa interpretação, os escândalos podem ser considerados
uma das muitas "missas modernas" que produzem e celebram a coesão social das
sociedades, supostamente leigas, da modernidade (Schudson, 1998; Collins,
2004). Os celebrantes desses artefatos sociais de efeitos análogos ao da missa
nas sociedades tradicionais se qualificam para simbolizar a coesão social
(aparentemente?) orgânica como novos sacerdotes da virtude pública. Imprecando
e encarnando as normas sagradas que foram desafiadas, nossos empreendedores
morais promovem assim o que poderíamos chamar de "efeito de missa" - a descarga
e a concentração de energia social necessárias para deflagrar e manter um
escândalo na esfera pública (Collins, 2004).
A idéia da conspiração, que vê no processo mencionado apenas os interesses dos
"simbolizadores", acaba desdenhando da missa e de seus efeitos sociais, pondo
todo o peso do processo apenas em seus sacerdotes. Mutatis mutandis, estamos
diante de uma variante da velha crítica que vê na religiosidade pentecostal
apenas a ganância do pastor. Ela pode ou não existir, mas insistir na
centralidade desse eixo explicativo implica não perceber os efeitos do culto
sobre aqueles que o acompanham, além de atribuir-lhes uma capacidade infinita
de agir no sentido contrário a seus interesses. Como, vista de fora do círculo
dos crentes, a magia parece simplesmente um engodo, não é de admirar que seus
efeitos não sejam notados por aqueles que não participam da reprovação da norma
conspurcada. Se a isso acrescentarmos que a explicação estratégica se adapta
mais a disposições intelectuais na órbita da hipótese subsocializada para o
comportamento humano, a falta de sensibilidade teórica para perceber fenômenos
análogos à missa é um traço esperado, ainda que não obrigatório, dos analistas
que esposam essa vertente (Rieder, 1990).
O desenvolvimento da idéia de conspiração também denota um ponto de vista sobre
a realidade social que oblitera as nuances dos campos profissionais e do campo
do poder. Analiticamente, essa idéia se forma e se mantém pela retenção da
noção althusseriana de "aparelho", de algumas versões da idéia de "sistema" ou
variantes, que enxergam a mídia, o patronato, o espaço político e o judiciário
como blocos coesos e exclusivamente a partir dos resultados externos de suas
ações (Bourdieu, 1981; Bohn, 2006). Sociologicamente, esse costuma ser o ponto
de vista de indivíduos e grupos postos à margem dos processos de decisão
social, em geral pertencentes a seitas religiosas ou políticas (Douglas, 1996).
Como nos explica Mary Douglas, as visões conspiratórias são produzidas em
ambientes sociais apartados - em geral de maneira consciente - da cultura da
sociedade inclusiva. Apoiada em Fleck (1979) [1935], Douglas (1986) avança na
hipótese durkheimiana e mostra como as crenças pessoais são engendradas e
mantidas coletivamente a partir de uma decisão prévia de pertencimento a
determinada comunidade. Uma vez tomada essa decisão primeva, a crença na
"família de pensamento", ou "paradigma", vira uma decorrência automática11.
Essa predisposição social acaba agindo principalmente sobre membros de grupos
estigmatizados que adentram no campo do poder, no qual são recebidos apenas
parcialmente. Uma conclusão parcial é que a maior ou menor adesão ao "delírio
conspiratório" dá boa medida da ligação ao grupo de origem ou da adesão à elite
dominante.
Podemos tentar compor os pontos levantados por Douglas com aqueles que Bourdieu
põe na discussão. É lícito deduzir que os habitus produzidos em enclaves
sociais são incapazes de fazer inferências probabilísticas razoáveis sobre as
formas de convivência usuais em outros ambientes cujas premissas são diferentes
ou mesmo abominadas por aqueles que habitam o espaço apartado (Bourdieu, 1958;
1974). É assim que esses grupos dificilmente desenvolveriam a percepção da
possibilidade muito reduzida de haver uma orquestração consciente de
indivíduos, grupos e setores com interesses e percepções tão diferenciados como
a mídia, o campo jurídico e o político, cada qual com seus integrantes ao mesmo
tempo em concorrência interna no espaço específico e em concorrência externa no
campo do poder. Por isso, as interpretações hegemônicas dos eventos, resultado
da concorrência permanente em cada espaço e no espaço dos espaços que é o campo
do poder, quando adversas à sensibilidade dos indivíduos locados nos enclaves,
são vistas como uma atividade orquestrada12.
Duas Missas
A crença na conspiração produz, ela mesma, um "efeito de missa" inverso
naqueles que participam do círculo, já previamente posicionados no enclave.
Acreditando na conspiração, eles reagem ao que enxergam como perigo produzindo
mobilizações que podem gerar efeitos sociais. Como esse mecanismo é também uma
intervenção efetiva na cena política, mas que depende da legitimidade de quem o
emprega, jamais saberemos se os integrantes do campo do poder que o utilizam
acreditam "sinceramente" nas conspirações que alardeiam. No entanto, sabemos
que: 1) muitas vezes, atores políticos relevantes têm interesse na criação de
verossimilhança para as conspirações; 2) como nos ensina Mary Douglas, o
convívio com suas bases de apoio, e no ambiente político, os induzem a se
postar no círculo da crença. Assim, juntando as pontas, poderíamos falar de
"conspiração como empreendimento e também como convicção", bem como da enorme
dificuldade analítica de destrinchar essas motivações e crenças.
Em outro plano, há a mídia do pós-Watergate, que consagrou o padrão de
excelência do jornalista produtor de escândalos. Da mesma forma, as comissões
parlamentares de inquérito e as investigações do Judiciário operam um efeito
análogo no seio dos respectivos poderes, premiando aqueles que se destacam
nesses eventos através das vantagens que o direcionamento dos holofotes da
mídia lhes acarreta. Como as estruturas narrativas usuais para relatar os
eventos costumam personificar sua eclosão e desenvolvimento nos heróis e vilões
disponíveis (Manoff e Schudson, 1986), as teses conspiratórias têm outro
combustível para ganharem verossimilhança. Considerando que privilegiar a ação
em detrimento da estrutura é uma característica esperada dos agentes inseridos
no espaço político, eles tendem a esposar a vertente estratégica mesmo quando
estão do lado da acusação, ainda que, por vezes, o oportunismo retórico os faça
justificar suas ações diferentemente para o público externo (Bourdieu, 1981).
Diante da eclosão de algum escândalo, os dois gêneros de explicação acabam
vindo à luz por representarem boas retóricas: o primeiro para quem se defende e
o segundo para quem acusa. Misturando-se aos protagonistas dos fenômenos a
serem explicados, não é espantoso que os dois veios explicativos encontrem
rapidamente seus limites. Sendo os "empresários" os responsáveis pelos
escândalos, por que estes não são permanentes? Sendo a infringência das normas
sociais o que produz os escândalos, por que a infinidade de situações
potencialmente escandalosas que presenciamos cotidianamente não se tornam
"verdadeiros" escândalos?
Outra armadilha empírica que confere veracidade à explicação da conspiração
reside na constatação da existência permanente e estrutural de conspiradores
mais ou menos profissionalizados e dispostos a qualquer empreitada. Essa
constatação não é surpreendente se considerarmos que estamos em um espaço
social altamente profissionalizado, no qual diversas especialidades podem
produzir e encontrar demanda para seus serviços, tornando cada vez mais
complexa a divisão interna do trabalho, na qual a concorrência induz à busca de
novas especializações e à sua justificação. Por fim, sua hipóstase leva ao que
Aldrin (2005:138) chama, apropriadamente, de "armadilha do estrategismo".
FACE BRASILEIRA DO FENÔMENO INTERNACIONAL
É interessante observar no Brasil recente a emergência da hipótese da
conspiração no debate político a partir, aparentemente, do centro do governo
federal. Após o escândalo do mensalão, falou-se na estratégia das elites de
"desconstruir Lula e o Partido dos Trabalhadores - PT". Em estrita
continuidade, a convergência de pontos de vista da mídia e da oposição política
sobre o dossiê-gate, tido como negativo para o PT e para Lula, foi lida por
porta-vozes governamentais como uma conspiração orquestrada para prejudicar os
prospectos eleitorais do candidato Lula. Em um primeiro momento, a
"desconstrução" foi atribuída ao banqueiro Daniel Dantas, caracterizado como
uma versão tropical e contemporânea do plutocrata do início do século XX (Grün,
2007b). Ele, por intermédio de seu preposto Roberto Jefferson, teria deflagrado
o escândalo do mensalão porque o governo Lula estaria preterindo seus
interesses econômicos para privilegiar os dirigentes dos fundos de pensão. Essa
versão, rapidamente esquecida, teve seu momento de glória no final do primeiro
semestre de 2005. Ela apareceu em uma publicação considerada pró-petista (Folha
Online, 30/5/2006; Lirio, 3/8/2005), mas percorreu o ciclo de legitimação,
passando também pelo centro do establishment da mídia, até se desvanecer (Souza
e Alencar, 23/8/2005; Chagas, 31/7/2005).
Paralela e incrementalmente, a idéia de conspiração geral começou a ganhar
força, pois estaríamos diante de uma vasta conspiração, abarcando diversos
segmentos da imprensa, do sistema político e das elites econômicas. Como quer
um texto muito citado por aqueles que partilham da idéia:
A imprensa trabalha para desconstruir Lula, para deixá-lo só, sem uma
base partidária e sem condições de consolidar uma aliança que lhe
desse a possibilidade de lutar pela reeleição. Quer lhe ensinar uma
lição de História: lugar de operário é ao pé da máquina. Quer fazê-lo
ver que a eleição de 2006, mesmo que ele chegue lá com a popularidade
preservada, será um massacre, porque a massa vai votar naquele que
ficar bem na TV (Costa, 25/7/2005).
Posteriormente, quando é deflagrado o escândalo da compra do dossiê anti-Serra,
a idéia de conspiração das elites volta à tona. Nas palavras do coordenador de
campanha de Lula, diante das fotos que seriam do dinheiro apreendido no dossiê-
gate:
Não creiam que nós não percebemos, por mais sutis que possam parecer,
o encadeamento de fatos com fotos e imagens de uma maneira
deliberada. Editar não é esconder, cortar informações de extrema
relevância num momento vital, como fizeram no caso do delegado. Há
jornalistas que criticaram o governo quando este tentou impedir a
divulgação das fotos, por entender ser esta uma maneira de interferir
na eleição, na reta final, mas foram jornalistas que exerceram a
censura em relação a vários fatos, inclusive no caso do delegado -
disse Marco Aurélio [Garcia] (O Globo Online, 2/10/2006).
Trabalhado em uma versão erudita, mas que não perde o conteúdo causídico, o
ponto de vista dos petistas busca legitimidade intelectual em um livro de Lima
(2006), em que a formulação é então exposta da seguinte forma:
Nosso argumento é que antes mesmo da revelação pública das cenas de
corrupção nos Correios, em maio de 2005, o "enquadramento" da
cobertura que a grande mídia fez, tanto do governo Lula como do
Partido dos Trabalhadores (PT) e de seus membros, expressava uma
"presunção de culpa" que, ao longo dos meses seguintes, foi se
consolidando por meio de uma narrativa própria e pela omissão e/ou
pela saliência de fatos importantes (ibidem:14).
A idéia de conspiração que prosperou no Brasil da segunda metade do primeiro
mandato presidencial de Lula apresentou assim tanto a versão "restrita", na
qual Daniel Dantas, um indivíduo poderosíssimo, teria a capacidade de produzir
a derrocada do governo federal, quanto a versão "ampla", na qual esse papel é
atribuído a um conluio geral das elites operacionalizado pela mídia. Observa-se
assim tanto uma versão brasileira do enredo conspirativo mais típico do período
entre a segunda metade do século XIX e os anos 1930 quanto do mais recente,
posterior ao abrandamento do anti-semitismo.
A "BLOGOSFERA"
Como no exemplo francês de Mitterrand (Garrigou, 1992), a sucessão de
escândalos que deveria conduzir à "desconstrução de Lula" não prevaleceu,
demonstrando que não tivemos a multidimensionalidade das "verdadeiras" crises
políticas conceituadas por Dobry (1986). Mais do que isso: a acusação de que a
mídia e a oposição estariam conspirando contra a candidatura de Lula (Pereira,
18/10/2006) deflagrou a mobilização geral de seus partidários, até então
constrangidos pela imposição das acusações13. No plano mais imediato, a
seqüência de eventos mostra uma sucessão de golpes contra a postulação de Lula,
seguida de uma resposta de seus partidários diferida, mas de magnitude
inesperada, deflagrada a partir de um apoio praticamente marginal da mídia e da
intensa ação no espaço da internet que essa contra-ação propiciou. Há mesmo
quem diga que essa eleição assistiu ao nascimento de um novo contrapoder - a
força da internet e da "blogosfera", contraposta a um, agora antigo, poder de
monopólio da grande imprensa14.
Nosso caso empírico conforma-se assim a um padrão já conhecido, mas enriquecido
pelo novo ingrediente. Voltando à História, na análise "pragmática" do
escândalo, distingue-se esse evento do "caso". Essa diferenciação tem suas
raízes na análise do affaire Dreyfus (Marrus, 1972; Blum, 1993; De Blic, 2005).
Esse fenômeno social teve início como um escândalo: a acusação ao Capitão,
seguida da condenação e do repúdio praticamente geral à sua conduta. No
entanto, quando Zola lança seu "J'accuse", forma-se o campo dreyfusard e cria-
se um "caso" no qual centenas de "pequenos intelectuais" espalhados por toda a
França avocam a defesa pública para a inocência do condenado, que se realiza
por meio de discursos e comícios, abaixo-assinados e toda a panóplia de
técnicas de manifestação que então foram criadas. Segundo Charle (1990), esse
momento marca o nascimento dos intelectuais enquanto categoria social
moderna15. Na análise do período que se inicia com a Revolução de 1848 e
termina com a Primeira Guerra Mundial, Charle (2001) assinala a importância das
transformações tecnológicas e organizacionais da vida intelectual daquele
período para a conformação do novo personagem. É assim que, mutatis mutandis,
as manifestações a que assistimos recentemente, que uns chamam de nova esfera
pública da "blogosfera" e outros de "central de boatos petistas", parecem
anunciar um fenômeno análogo (Sá, 2/11/2006; Veja, 18/10/2006; Nassif, 30/9/
2006; Dimaggio et alii, 2001; Lawson-Borders e Kirk, 2005; Sunstein, 2007).
Tradicionalmente, os boatos são manifestações anônimas, não registradas, que,
quando podem ser referenciadas, servem de pista para o estudo das inquietações
sociais e políticas da sociedade e do tempo (Lefebvre, 1988; Farge, 1992;
Aldrin, 2005). O surgimento dos blogs, nos últimos anos, forneceu uma nova
moldura para o espraiamento dos boatos. Dispondo dos blogs como novo suporte
para sua difusão, agora os boatos podem ser mais facilmente referenciados e
estudados em seu conteúdo e influência. De um lado a audiência dos blogs parece
obedecer à hierarquia prévia da importância dos órgãos de comunicação, pois as
páginas dos jornalistas identificados como seus porta-vozes recebem o maior
número de visitas (Aldé, Escobar e Chagas, 2006). De outro, os posts -
comentários e respostas dos responsáveis e dos leitores sobre o conteúdo dos
blogs - que tais páginas recebem obrigam seus responsáveis a responder questões
que não levariam em conta nos estados anteriores do debate público. É assim
que, fenomenologicamente, o novo ambiente tecnológico produz novos
constrangimentos institucionais e um evento que tinha a arquitetura de um
"escândalo" acaba virando um "caso". Analiticamente, pode-se dizer que o novo
contexto torna ainda mais mítica (no sentido antropológico) a idéia de
conspiração. De um lado fica claro que, entre outros aspectos, estamos também
diante de um novo contrapeso à propalada conspiração das elites (Sunstein,
2007); de outro, que a nova esfera de comunicação ajuda a propagar os rumores e
as reações a eles, robustecendo a crença na conspiração e o "efeito de missa"
que ela engendra.
Nesse exemplo recente, a capacidade organizacional do campo petista surpreendeu
a muitos, e mais ainda o principal tema que esse grupo usou como mote da
mobilização geral: o temor da sociedade contra um novo ciclo de privatizações.
Em uma primeira análise, depois da "desconstrução de Lula", era inesperada a
capacidade de reação dos grupos identificados com sua sigla, sobretudo porque
ela se deu na esfera nova da internet, tida como um espaço de vanguarda, no
qual os estratos intelectualmente dominantes deveriam reinar absolutos.
Pensando paralelamente nas situações européias da segunda metade do século XIX
que Charle (2001) descreve, é muito provável que estejamos vivendo algum tipo
de subversão das hierarquias intelectuais. Se pensarmos a partir da noção de
campo, veremos que a configuração que transparece nas eleições de 2006 não é
surpreendente; é sociologicamente esperado que os grupos intelectualmente
dominados estejam sempre procurando subverter as "regras do jogo" (Bourdieu,
1992). Quando surge uma nova tecnologia social de difusão de argumentos e,
simultaneamente, como nos momentos eleitorais, aparece também a predisposição
social para escutá-los, podemos esperar que as tentativas de inverter o jogo
social apareçam com toda a intensidade. O próprio eixo da controvérsia pública,
centrado na oposição "central de boatos petista" versus "emergência da
blogosfera", revela a tensão entre grupos colocados em posições estruturalmente
diferentes nos espaços intelectual e político: aqueles que incorporaram a
primeira versão, no lado "conservador" e até então dominante; os outros, que
aceitaram a versão da "blogosfera", no lado desafiante.
Em si mesma, a oposição sugere uma agenda e uma entrada interessantes para a
sociologia da vida intelectual brasileira do início do século XXI e de suas
relações com o espaço político. Dessa forma, configura-se uma hipótese contra-
intuitiva baseada no argumento bourdieusiano: a energia social que explica o
fenômeno deve ser buscada sobretudo na configuração do campo intelectual, e não
no político (Bourdieu e Delsaut, 1975; Bourdieu, 1992). O Brasil das últimas
décadas, especialmente depois do advento do presidente-intelectual Fernando
Henrique Cardoso, vive uma configuração simbólica particularmente violenta, na
qual os poderes dominantes naquela esfera coincidiram com os dominantes nas
esferas política e econômica, não deixando nenhum espaço para a manobra dos
dominados, que foram condenados ao ostracismo do "parque jurássico" (Grün,
2005b). Não é de espantar que, de repente, todos os descontentes com a ordem
simbólica tradicional descarreguem sua insatisfação nos poderes
intelectualmente estabelecidos. Nesse quadro, talvez o "petismo" e a grita
contra a privatização devam ser entendidos mais como um suporte para a
insatisfação difusa do que como uma pauta política coerente. Muito menos é
inesperada a reação dos "intelectuais tradicionais", deplorando a "boataria sem
fundamento" e a "baixa densidade moral do povo brasileiro", que estaria se
deixando levar pelo "prato de lentilhas" das esmolas governamentais,
abandonando a direção moral e intelectualmente superior que até então
controlava as formas de expressão legítimas da sociedade.
A PRIVATIZAÇÃO COMO TEMA DE DEBATE E COMO CONSPURCAÇÃO
O tema específico da privatização entra na agenda a partir da análise das
reações dos eleitores à declaração de Alckmin de que venderia o novo avião da
Presidência da República (O Globo Online, 8/10/2006; 9/10/2006). Ainda que o
conhecido "latino-barômetro" assinalasse anualmente a impopularidade das
privatizações, o tema parecia morto na doxa das elites (Shirley, 2005).
Contudo, uma vez percebida a sensibilidade insuspeita, o jogo seguia
implacável: para gáudio de uns e desalento de outros, descobriu-se que a
população brasileira via nas privatizações medidas impopulares e as associava
ao partido de Fernando Henrique Cardoso (Folha Online, 10/10/2006). Na
linguagem indígena dos especialistas em marketing eleitoral, "o jacaré abre a
boca". Após uma nítida ascensão de Alckmin, que culmina em sua votação
surpreendentemente alta no primeiro turno, o vetor se inverte, pois as
intenções de voto em Lula começam a crescer em um ritmo inesperado até então (O
Estado de S. Paulo, 26/10/2006). Ao fim e ao cabo, ainda que os escândalos
diretamente políticos tivessem mexido com a sensibilidade popular, o desfecho
das eleições denota que a grande conspurcação foi o processo de privatização.
Podemos assim enquadrar, por esse caminho indireto e tortuoso do (fracassado)
scandalmaking, a pista heurística revelada nas eleições de 2006 na teoria
durkheimiana do escândalo como revelador de normas sociais em vigor na
sociedade; em nosso caso, pouco evidentes em virtude da barragem simbólica.
Nesse quadro, fica assim fortemente sugerido que a validade da abordagem
estratégica é mais situada do que imaginam os atores políticos e
"conspiracionistas" de diversos matizes. A tecnologia social das pesquisas
qualitativas, que sistematizam as pistas dadas pelos eleitores aos responsáveis
políticos e publicitários das campanhas políticas, "deu o mote" para os grupos
identificados com a campanha de Lula agir como os "pequenos intelectuais" do
caso Dreyfus, mas agora dotados de novas ferramentas de comunicação e
mobilização. Proverbialmente, eles não estavam mobilizados e preparados para o
conjunto de eventos como conviria a um "exército político profissional", mas
foram coletivamente despertados pela ação de seus opositores "moralizantes".
Afinal, como no desenho animado da Disney, o aprendiz de feiticeiro sabe
invocar a mágica, mas não sabe dosá-la nem conjurá-la16.
Contrariando a doxa erudita, a maior parte da população brasileira faz um
balanço negativo das privatizações das empresas de serviços públicos (Shirley,
2005). A doxa havia obliterado o tema do rol dos possíveis pontos de
controvérsia na primeira fase do processo eleitoral. Afinal, todos "sabiam" que
a privatização trouxera a universalização da telefonia celular e a melhoria das
estradas estaduais paulistas e de algumas federais, ainda que o apagão de 2000
tivesse dificultado ligeiramente a crença (Grün, 2005a). No espaço do "debate
público", as eventuais críticas que faziam menção ao aumento do peso das
tarifas de serviços públicos nos orçamentos domésticos e comerciais eram vistas
como jeremiadas dos derrotados17. Elas eram desqualificadas, expunham seus
porta-vozes ao ridículo, e assim a expressão de qualquer ponto de vista
discordante era desencorajada. No entanto, a evidência dificilmente descartável
de uma eleição presidencial pôs a doxa em "suspeição". Quando a agudeza do
embate diminuiu o espaço para o fairplay, nosso tool kit foi revirado mais
profundamente e rompeu-se o consenso tácito sobre a adequação do processo de
privatização. Dessa forma, a guerra cultural que estava represada encontrou na
campanha eleitoral um caminho para voltar a se manifestar18.
O RESULTADO INESPERADO DA GUERRA CULTURAL
À primeira vista é surpreendente que o mote das privatizações tivesse um efeito
tão importante na disputa eleitoral. Isso acontece porque os resultados da
guerra cultural que atravessa a sociedade brasileira dos últimos anos foram
naturalizados; e porque seus vencedores provisórios foram alçados a porta-vozes
do bom senso, e os derrotados lançados no oblívio social (Grün, 1999). Estamos
diante de um caso típico de violência simbólica (Mauger, 2006). A sociedade
aceita tanto o padrão de sociabilidade imposto pela dominação financeira quanto
a valoração social produzida na contenda que esquecemos as lateralidades e
disputas que engendraram a situação atual. Como na descoberta de uma inscrição
arqueológica, a chacoalhada imprevista, causada pelas interações produzidas nas
disputas simbólicas políticas e eleitorais, acabou fazendo "voar a areia" que
recobria a apreciação social controversa de um fenômeno que críamos estar
arquivado na história econômica e social do país. De um lado, evoé para as
eleições por permitirem auscultar a sensibilidade popular; de outro, algumas
perguntas: como é possível que se tenha estabelecido um consenso culto tão
forte que bloqueou as evidências sobre o caráter controverso das privatizações?
Como esse consenso evoluirá depois de abalado? Findo o período de agitação
"plebéia" que corresponde às eleições, ele ainda pode ser restabelecido? Será
que, uma vez tendo entrado na "caixa de ferramentas" culturais da sociedade,
ele será utilizado novamente nas próximas contendas político-eleitorais (e com
igual possibilidade de sucesso)?
O consenso culto deve ser considerado da perspectiva da guerra cultural, e não
como um traço já "natural" da sociedade. Diversos episódios anteriores
mostraram essa característica de noção que precisa ser constantemente refeita.
Entre eles podemos lembrar o episódio da fracassada tentativa de mudar o nome
da Petrobras para Petrobrax e a reação a essa medida que aparentemente
prenunciava sua privatização19. Outro episódio é a construção do personagem
público Daniel Dantas como o plutocrata tropical. A ereção desse totem moderno
foi causada pelo mal-estar da sociedade em relação à ordem financeira em geral
e ao processo de privatização em particular (Grün, 2007b). Nos dois casos,
vemos transparecer que o problema das privatizações ainda não está resolvido;
os esforços para criticá-las são ripostados com maior ou menor sucesso pelos
partidários da doxa econômica. Nessa contenda ao mesmo tempo econômica e
cultural, podemos observar diversos pontos de equilíbrio: a crítica
"estatizante" à possível privatização da Petrobras foi capaz de interromper um
processo de modernização da empresa que muitos consideravam ser o primeiro
passo para privatizá-la20. Por outro lado, a crítica ao "apagão" do setor
elétrico não foi capaz de reverter o processo nesse setor. Mesmo assim, podemos
inferir que os diversos episódios mostravam a ausência de consenso social sobre
o assunto, ainda que o senso comum culto apontasse o contrário. Também devemos
notar que os casos isolados que indicavam o contencioso jamais chegaram a se
alçar a uma crítica geral ao processo de privatizações, muito menos a uma
crítica à condução geral da economia a partir dos parâmetros fixados pela
ortodoxia "neoliberal".
A diferença entre os episódios citados e a agenda de temas eleitorais de 2006 é
que, nesse último momento, a positividade das privatizações foi diretamente
desafiada no espaço mais geral possível, e imediatamente a sirene tocou,
indicando o perigo a que a ortodoxia estava sujeita. Não foi por acaso que os
analistas identificados com a doxa econômica dominante passaram a fazer
previsões sombrias a respeito do futuro da economia brasileira (Sardenberg, 2/
11/2006; Lamucci, 24/10/2006). Reparemos que, na prática retórica dos
economistas mainstreamers, há uma possibilidade de derivação "perversa" dessa
constatação. Se o povo (e o governo) brasileiro continua acalentando esses
sonhos "regressistas", emprestar dinheiro ao Brasil ou no Brasil continua sendo
uma atividade de alto risco e, portanto, deve ser remunerada como tal. O ânimo
antiprivatista demonstraria que os marcos legais que regem a sociedade
brasileira não estão assegurados, e assim a chamada "tese jurisdicional" - que
diz que os juros altos cobrados pelos bancos brasileiros são devidos à
insegurança dos aplicadores - ganha mais verossimilhança. Logo, a forma como o
assunto evoluiu no final de 2006 acaba se tornando mais um argumento para a
manutenção dos juros altos que remuneram o mercado financeiro e penalizam os
demais setores da sociedade.
No quadro anterior, um governo interessado em conseguir a boa vontade dos
financistas para diminuir o custo do dinheiro tem pouco interesse econômico
para estimular um novo debate sobre privatizações. No entanto, uma vez
demonstrado que o tema desperta muita sensibilidade, há sempre o risco de ele
ser acaparado por outros atores. Essa possibilidade torna o jogo simbólico
menos previsível e menos diretamente dependente de disputas econômicas e
políticas. Abre-se assim uma discussão sobre o alcance da temática. Ainda que
seus resultados não sejam previsíveis, fica evidente seu papel indiciário como
revelador de fissuras na doxa econômica e cultural.
Nesse ponto da análise, o jogo parece imprevisível, embora os atores que nele
atuam mantenham a crença tanto em sua previsibilidade quanto na possibilidade
de controlá-lo segundo seus propósitos e interesses e/ou, pelo contrário, na
ameaça de que seus adversários o façam. Podemos então falar em uma concepção
"judô" de vida social e política, vista como uma seqüência de golpes e
contragolpes, na qual a melhor conduta é antecipar-se aos golpes imputados aos
adversários. Essa tendência se inscreve em um vetor mais geral: um dos traços
da modernidade é justamente a tentativa de "controle do acaso" (Hacking, 1990;
Desrosières, 1993), e um conjunto grande de técnicas político-eleitorais e
financeiras foram desenvolvidas para essa finalidade (Porter, 1995). Podemos
assim imaginar que os mecanismos de ataque e de defesa diante desse fenômeno
fazem parte dessa mesma tendência de tentar "normalizar" as interações sociais.
É assim que, como em uma atividade de estado maior militar, uma campanha
eleitoral bem planejada deve preparar com antecedência seu arsenal de táticas
de ataque e de defesa diante dos adversários, explorando as fraquezas imputadas
aos últimos e preparando justificativas e contra-ataques para fazer frente à
exploração das fraquezas de suas posições (Jamieson, 2000). Como no exemplo do
dossiê-gate, dado que esse conjunto de atividades tem se tornado previsível e
burocratizado, é bem provável que com o tempo as táticas percam sua eficácia
simbólica direta21, cumprindo cada vez mais o papel involuntário de "levantar a
poeira" que recobre conteúdos simbólicos ignorados do que efetivamente
produzindo os efeitos esperados por seus operadores (Garrigou, 1992).
Analiticamente, esse resultado pode ser assimilado ao conjunto de técnicas
financeiras, originalmente concebidas para controlar o risco de prejuízo de
investidores, cuja disseminação cria, ela mesma, novos riscos para os
indivíduos e instituições que as aplicam (Mackenzie, 2001; Mackenzie e Millo,
2003; Shiller, 2003). Como no caso das finanças, sua implementação, ainda que
não seja eficiente para as finalidades propostas, produz dois efeitos
relevantes: neutralizar ou passar por cima de conteúdos morais que
anteriormente impediam a propagação de condutas duvidosas ou arriscadas para
seus praticantes e a sociedade; e, a exemplo do mercado financeiro de futuros,
produzir novas zonas de incerteza. Dessa maneira, a descoberta e a produção de
conteúdos morais que alteram a estrutura simbólica da sociedade são curiosos
efeitos colaterais da disputa política.
DO "JORNALÍSTICO" AO "SOCIOLÓGICO"
Nossos escândalos, que em um primeiro momento pareciam tsunamis, não teriam
então passado de simples marolas? A essa altura da análise, fica claro que essa
analogia, ainda que tentadora, é pobre. Ela deixa de lado tanto seus efeitos
colaterais, que são muito importantes, quanto sua quase inevitabilidade, que é
engendrada pela concorrência social interna e multidimensional nos diversos
segmentos do campo do poder. Na medida em que os escândalos alteram a estrutura
simbólica da sociedade, produzem efeitos interessantes e provocam a sociologia
a dar conta de sua gênese, estrutura e efeitos. Contudo, muito além das
intenções de seus deflagradores, eles se desenvolvem em uma dinâmica
incontrolável.
Há uma lógica na dinâmica simbólica que pode ser identificada nas oscilações
(provisoriamente chamadas de) pendulares que regem o debate econômico
brasileiro e que, muito provavelmente, podem explicar configurações mais gerais
da sociedade. Privatização de empresas e serviços públicos são eventos
considerados positivos em um enquadramento cognitivo cuja suprema idéia
positiva é a de "livre organização" e seus corolários econômicos, como o de
mercado, livre concorrência e "Estado mínimo" (Guex, 2003). A promessa
essencial dessa forma de argumentar é a abundância tanto de produtos quanto de
oportunidades econômicas. Para que essa seqüência mnemônica funcione bem, é
necessário um aumento na oferta de produtos novos e daqueles que antes eram
difíceis, que também devem ser considerados baratos22. Só assim essa idéia
mantém na latência a noção rival de hierarquia, que tem como característica
central o conceito de "Estado regulador", que planeja a economia prometendo
garantir os mínimos sociais e preservar a coesão social, mas sem
necessariamente dar conta da evolução tecnológica e econômica (Lakoff, 1996;
2004; Douglas e Ney, 1998).
Podemos ver manifestações da tensão simbólica (e social) em diversas arenas
específicas, como na noção mais geral de empresa e de organização (Grün, 1999;
2004b); na disputa sobre a forma "correta" de organizar a previdência social
(idem, 2003; 2005b); ou na forma de discutir as razões e soluções para a crise
de energia que se abateu sobre o Brasil no início do século XXI (idem, 2005a).
Nesse quadro de referências, os escândalos e a reação a eles, culminando com as
eleições de 2006, teriam produzido um conjunto de descargas de energia social
suficiente para mover o pêndulo cultural? O evento é inédito? É inédita a
apreciação que está recebendo? O que essa configuração denota a respeito do
conflito simbólico mais geral?
Um olhar apressado diria: sim, o pêndulo está mexendo celeremente no sentido
contrário ao da doxa econômica; porém, já tivemos momentos anteriores nos quais
esse movimento parecia estar se produzindo. Entretanto, ou ele não ocorreu, ou
foi abortado. Além dos exemplos pontuais do segundo mandato de Fernando
Henrique Cardoso já lembrados, um dos mais expressivos foi o momento
imediatamente posterior à posse de Lula em 2002. Durante o processo eleitoral
que culminou com aquela primeira vitória do candidato do PT, o ambiente ficou
saturado com as ameaças de "argentinização" do Brasil: a ameaça, parcialmente
concretizada, de uma corrida contra o Real que tornaria impossível a
administração do país por Lula, a exemplo do que acabava de acontecer com a
presidência de De la Rúa no país vizinho. No entanto, mesmo nesse contexto, em
que a espada de Dâmocles dos mercados financeiros internacionais pairava sobre
a cabeça do candidato, ele acabou sendo eleito por expressiva maioria.
Recém-eleito e empossado, o primeiro governo Lula lançou a iniciativa
legislativa da emenda que regulamentaria o art. 192 da Constituição de 1998.
Seus pontos, que conduziriam à mudança de algumas regras do sistema financeiro,
foram fulminados por uma saraivada de críticas ortodoxas, sem uma defesa
correspondente daqueles que poderiam opor-se a elas. Essa configuração, que se
mostrou muito pouco favorável ao questionamento da ortodoxia, retraiu qualquer
possibilidade de avanço na criação de alguma descontinuidade marcada no que
tange à condução da economia empreendida pelo governo anterior (Barbosa e
Villalba, 30/3/2003; Leonel e Leonel, 26/3/2003; Grün, 2007a). Ainda que aquele
governo tenha implementado diversas mudanças em relação à condução anterior da
economia, como a difusão do microcrédito e do crédito consignado, e resistido à
pressão para tornar o Banco Central legalmente autônomo, dificilmente alguém
sustentaria que o pêndulo tivesse efetivamente mudado de direção (Grün, 2004a).
Bem ao contrário, no espírito de Shiller (2003), poderíamos falar que se tratou
de uma maior extensão do "paradigma financeiro" para incluir em seu halo
diversos setores sociais e econômicos antes excluídos das facilidades
concedidas pelos mercados.
Por outro lado, também é relevante assinalar que o "paradigma financeiro"
comporta variações relevantes. A financeirização que a sociedade brasileira
está experimentando na última quadra tem peculiaridades importantes, que vão
mesmo além da inclusão de setores populares em sua lógica. Elas também afetam o
espaço dos mercados de maneira mais geral. Talvez o exemplo mais interessante
que concorre para a afirmação dessa diferença específica seja o desenvolvimento
recente dos fundos de private equities. Internacionalmente, o uso intensivo
dessa ferramenta financeira, a partir do início do século XXI, tem sido
apontado como uma verdadeira nova fase do capitalismo (Welch e Welch, 9/7/2007;
The Economist, 25/11/2004; Dougherty e Werdigier, 29/6/2007). Depois dos
"excessos" regulatórios associados à Lei Sarbanes-Oxley, as private equities
surgem como uma forma de restaurar o dinamismo do universo empresarial. Nesse
quadro, a idéia de governança corporativa, antes considerada uma das principais
características positivas do mercado financeiro norte-americano, torna-se uma
propriedade negativa que impede o desenvolvimento dos negócios. Não sem
surpresas, o novo desenvolvimento atrai rapidamente críticas dos setores que se
sentem incomodados pela expansão das finanças e se concretiza nas tentativas de
aumentar a taxação da "indústria" nos vaticínios de que o instrumento
aumentaria a instabilidade das economias nacional e internacional, além de ser
um instrumento de concentração de riquezas implicitamente injusto (Conway, 6/7/
2007; Sorkin e Dash, 8/1/2007; The Economist, 8/2/2007; Boucher, 17/6/2007;
Anderson e Sorkin, 23/6/2007; Smith, 26/1/2007). Nas primeiras apreciações da
sociologia econômica, as private equities passam a ser apontadas como o exemplo
mais acabado da predominância financeira e dos constrangimentos que ela produz
sobre as sociedades contemporâneas (Froud e Williams, 2007).
No Brasil, essa ferramenta aportou durante o período de privatização das
estatais e, analogamente ao que se passou nos mercados centrais, esteve
associada às articulações de Daniel Dantas, nas quais os fundos de pensão foram
obrigados a desempenhar um papel passivo (Santos, 18/6/2007; Senado, 21/9/2005;
Grün, 2007b). Logo, dificilmente seria bem aceita pelo grupo que chegou ao
poder com Lula. A mágica das interações sociais, porém, acaba produzindo um
híbrido muito interessante. Depois de um período inicial de repulsa, os fundos
de pensão passam a aceitar o instrumento, o qual, na mão de financistas como
Armínio Fraga e Antonio Kandir, menos estigmatizados do que Dantas, também
ganha outro sentido, incorporando, pelo menos retoricamente, a idéia de
governança corporativa cara aos sindicalistas e administradores dos fundos de
pensão. Vemos assim desfilar diante de nossos olhos uma interessante
cronologia, na qual o ambiente peculiar do Brasil governado por Lula vai
alterando o sentido internacional das private equities, infundindo-lhes
características que as tornam palatáveis àqueles que desejam uma situação de
compromisso entre o mundo das finanças e os demais setores da sociedade, em um
sentido contrário ao que a ferramenta financeira tem adquirido na cena
internacional (Santos, 1º/6/2007; Camba, 3/9/2003; Gazeta Mercantil, 3/5/2004;
Camba e Fortunato, 8/8/2003; Cançado e Grinbaum, 15/1/2007; Santos, 18/6/2007;
Martins, 27/4/2006). A tendência já se descortinava no final do primeiro
período de Lula, mas ela ganha muita intensidade no início de 2007, quando
passa a ser um instrumento para captação e concentração de recursos para
aplicação no frenético mercado de combustíveis vegetais renováveis (Gaspar, 3/
5/2007; Palhano, 16/4/2007; Carvalho, 24/8/2006).
O dossiê reaberto da privatização revelou publicamente o espaço que há para
investidas retóricas na direção do questionamento da doxa econômica. Como
vimos, é da lógica da dinâmica social, em geral, e da competição política, em
particular, que esse tema seja apropriado e utilizado por alguns dos agentes
engajados nesse espaço. Isso basta para fazer mover nosso pêndulo para o lado
do planejamento? Vimos diversas manifestações culturais que denotam
contrariedade ao predomínio da "razão financeira" no Brasil recente. Nenhuma
delas, entretanto, alcança um grau suficiente de generalidade para transcender
o estágio de crítica pontual, que aponta simplesmente para a necessidade de
aperfeiçoamento das ordens econômica e social baseadas nas finanças. Os
exemplos do microcrédito e do crédito consignado são mostras do que Boltanski e
Chiapello (1999) chamam de críticas "recuperáveis" e, por isso, funcionais à
ordem financeira, uma vez que contribuem para torná-la mais legítima. Os
autores também lembram que a inclusão da crítica transforma o próprio
capitalismo. O desenvolvimento da governança corporativa no Brasil, que se
tornou um verdadeiro cavalo de batalha para os sindicalistas transformados em
gestionários dos fundos de pensão, já demonstrava essa tendência (Jardim,
2007). A "tropicalização" subseqüente dos fundos de private equities é mais uma
evidência que chama a atenção para essa forma peculiar de capitalismo
contemporâneo que vemos se desenvolver no Brasil atual.
Os escândalos parecem mostrar a resistência às novidades; compreensível, pois
elas desarrumam o campo do poder, questionando a hierarquia estabelecida entre
as elites econômicas e também entre as políticas e intelectuais. Afinal, o que
é melhor para o capitalismo em geral ou para a ordem financeira em especial não
o é, necessariamente, para os capitalistas e financistas já existentes em
particular. Nem os movimentos culturais que dão maior estabilidade à ordem
simbólica são necessariamente reconhecidos positivamente por aqueles que
manipulam a simbologia tradicional; daí ser razoável prever que viveremos no
futuro diversos sobressaltos escandalizantes. Neles serão testadas tanto a
força da doxa econômica quanto a das idéias e atores cuja sobrevivência no
tabuleiro depende de mudanças na arquitetura tradicional. De definido, apenas o
movimento, mas ele nos lembra não só que o futuro está aberto e que depende das
lutas do presente como também do caráter eminentemente cultural das disputas.
NOTAS
1. O caso Waldomiro iniciou-se em 12/2/2004, com a revelação de um vídeo,
gravado em 2002, no qual Waldomiro Diniz, então subchefe de Assuntos
Parlamentares da Presidência da República, é filmado pedindo contribuições para
as campanhas de Benedita da Silva e Rosinha Mateus para o governo estadual do
Rio de Janeiro, além de pedir propinas para si mesmo (Meireles e Krieger, 16/2/
2004). Seguiram-se sua exoneração e o início de um conjunto de acusações contra
o governo federal daquele momento.
2. O mensalão foi um episódio que começou com a apresentação, em rede nacional,
de um tape mostrando um alto funcionário da Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos, Maurício Marinho, recebendo uma soma de dinheiro líquido que teria
sido a contrapartida a uma ajuda irregular que ele teria fornecido a "Carlinhos
Cachoeira", um empresário que tinha um contrato relacionado à operação de
loterias federais. Nesse "flagrante", o nome do deputado Roberto Jefferson,
então presidente do Partido Trabalhista Brasileiro - PTB, foi citado como
protetor de Marinho, e o ato foi considerado uma traição do governo federal ao
grupo liderado por Jefferson. Este retaliou denunciando a existência de um
"mensalão": pagamento de mensalidades a deputados pertencentes a partidos da
base de sustentação do governo de Luiz Inácio Lula da Silva em troca de apoio
ao governo em votações e demais atividades parlamentares (Prete, 6/6/2005;
Dines, 10/4/2006; Recondo e Silveira, 15/6/2005; Sternhell, 1997). As ondas de
choque produzidas pela seqüência fizeram surgir a Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito dos Correios em 2005-2006, cujas atas e tapes estão disponíveis no
site do Senado Federal brasileiro (Dines, 10/4/2006; Senado, 21/9/2005).
3. O dossiê-gate foi a acusação de que integrantes da campanha do presidente
Lula à reeleição teriam tentado comprar um dossiê que incriminaria José Serra,
então principal candidato ao governo do Estado de São Paulo pela oposição ao
governo federal. Esse dossiê conteria dados comprometedores, que revelariam a
participação de Serra em esquemas de corrupção na compra de ambulâncias por
parte do Ministério da Saúde durante sua gestão dessa pasta no governo Fernando
Henrique Cardoso. Houve uma apreensão, em um flagrante policial controvertido,
de um montante de dinheiro líquido que seria utilizado para o pagamento dessa
peça de acusação, amplamente divulgado pela imprensa (Menezes et alii, 18/9/
2006; Guerreiro, 19/9/2006). Por sua vez, a "grande imprensa" foi acusada de
ter preferido essa pauta à de um grave acidente aéreo ocorrido na mesma data,
porque pretendia prejudicar a candidatura de Lula à reeleição (Pereira, 18/10/
2006).
4. Creio que a série de reportagens sobre as mordomias do setor estatal,
iniciada em 1976 (Kotcho, 1º/8/1976; 2005), deflagra um conjunto de mudanças
simbólicas favoráveis ao predomínio recente das finanças na sociedade
brasileira. Uma cronologia para essas mudanças é proposta em Grün (1999).
5. Na Grã-Bretanha, a temática sexual está presente desde o período vitoriano,
como mostra Thompson (2000).
6. Codificada e operacionalizada, a "sabedoria" do ataque à conduta pessoal dos
políticos e demais homens públicos pode ser buscada e entendida em Luntz (1988;
2007). Também pode ser compreendida como técnica retórica mais geral em
Jamieson (1992); e as lógicas mnemônicas que ela deflagra podem ser entendidas
a partir de Lakoff (2004).
7. Isso revela uma dinâmica social muito parecida com aquela descrita para seu
equivalente francês, que começa a se impor algum tempo antes (Adut, 2004).
8. Ver http://en.wikipedia.org/wiki/lewinsky_scandal. Acessado em 6/10/2006.
9. Segundo consta do jornal O Estado de S. Paulo (11/4/2005), o livro vendeu
750 mil cópias no Brasil entre meados de 2004 e 2005, seu primeiro ano de
circulação.
10. Ver, entre outros, o site http://senhoresdomundo.blogspot.com. Acessado em
30/6/2006.
11. No posfácio a Fleck (1979) [1935], Thomas Kuhn assinala que a famosa noção
de "paradigma científico" pode ser inscrita na linhagem da sociologia da
ciência durkheimiana como evolução do conceito de "família de pensamento"
cunhado por Fleck.
12. Inversamente, quando a concorrência multidimensional no campo do poder leva
a uma agenda ou interpretação que lhes é favorável, o resultado é atribuído à
razão, à natureza, a alguma força sobrenatural e ao fracasso dos conspiradores.
13. Fenômeno que a comunicação política chama de "efeito backlash".
Curiosamente, ele não foi previsto, ao menos publicamente, pelos especialistas
locais do marketing político, ainda que sua descrição estivesse disponível nos
manuais didáticos, como o de Jamieson (2000).
14. Ver o blog do jornalista Luis Nassif no site http://z001.ig.com.br/ig/04/
39/946471/_blig/luisnassif, acessado em 1º/11/2006. Ver ainda comentários no
mainstream jornalístico reconhecendo o interesse pelo assunto levantado em
http://todamidia._folha.blog.uol.com.br. Acessado em 1º/11/2006.
15. O novo grupo constituiu-se a partir de uma lógica de funcionamento interno
e de uma economia política estruturalmente diferente dos "Philosophes" - grupos
de aristocratas e burgueses que, como nos mostra (Chartier, 2000), prepararam
culturalmente a Revolução Francesa. Seus ancestrais mais diretos podem ser
encontrados na bohème litteraire descrita por Darnton (1982).
16. Ainda que o principal publicitário da campanha de Lula tenha assinalado que
o material sobre o tema privatização já estivesse preparado anteriormente,
segundo Rodrigues (5/11/2006), "esse é um tema riquíssimo que foi muito bem
pensado. Nós tínhamos alinhado alguns dos temas de intensa fragilidade e de
imensa comoção política. Estava em primeiro lugar a privatização. Não usamos no
primeiro turno porque não houve necessidade de embate direto". Não é
surpreendente que Schudson (1984), nesse espaço que se quer altamente
profissionalizado, mas no qual a personalização dos feitos é a regra, avoque a
si um feito "estratégico", ainda que as evidências apontem ter sido o resultado
de interações sociais bem mais amplas do que desígnios pessoais.
Proverbialmente, o entrevistador o cobra diversas vezes, e ele dá seguidas
mostras de concordar com a doxa culta sobre a privatização como um benefício à
sociedade. De qualquer forma, vale reproduzir Schudson (1995:22): "Os
consultores políticos, sempre se dizendo experts, dão conselhos conflitantes e
alteram seus conselhos de uma eleição para outra. [Como quer Bob Goodman,] Nós
ainda somos artistas tentando descobrir um jeito de chamar a atenção [do
eleitorado] e encontrar soluções... Mas nós não sabemos grande coisa. E se
soubéssemos, seríamos realmente perigosos".
17. Ainda que as evidências nesse sentido fossem fortes e persistentes, como
nos mostram os índices de preços, inclusive os mais recentes (Banco Central do
Brasil, 2006).
18. Utilizo aqui o termo "guerra cultural" em um sentido ligeiramente diferente
daquele empregado pelos norte-americanos (Hunter, 1991; Williams, 1997; Rieder
e Steinlight, 2003). Na versão original norte-americana, trata-se de um recurso
analítico para dar conta da possível oposição crescente entre pontos de vista
conservadores e liberais sobre os mais diversos assuntos econômicos e sociais
ali discutidos. Aqui, tento adaptar o conceito a partir de uma leitura
inspirada em Bourdieu (1997). Trata-se então de lembrar que a discussão sobre
as possibilidades econômicas abertas à sociedade brasileira depende dos
enquadramentos culturais que balizam as possibilidades cognitivas e retóricas
dos atores. Conseqüentemente, o essencial da disputa política se dá em torno
das flexões culturais (Grün, 1999).
19. Ainda que, em 6 de novembro de 2006, Fernando Henrique Cardoso afirmasse
peremptoriamente que não era esse o objetivo, a conjuntura da época sugere
fortemente essa hipótese (Teodoro, 6/11/2006; Oliveira, 2000; Grün, 2005a).
20. O cerne organizacional da proposta era a divisão da empresa em "unidades de
negócio" independentes. Essa medida foi também o primeiro passo para a
privatização do setor elétrico paulista e foi repetida muitas vezes nas
"receitas de privatização" oferecidas pelos órgãos financeiros multilaterais e
pelas empresas de consultoria (Carter e Mueller, 2006). Logo, era alta a
verossimilhança da crítica que dizia ser a adoção das "unidades de negócio" um
importante passo preliminar da privatização.
21. Possivelmente porque faltaria aos "estados-maiores" das campanhas políticas
o capital simbólico que é próprio dos verdadeiros empreendedores morais.
22. Essa vertente também dá ênfase à noção mais geral de liberdade individual
(Douglas, 1996). O mesmo desdobramento mnemônico deveria então levar a uma
maior abertura em termos de direitos reprodutivos e questões de gênero, como as
uniões entre homossexuais, mas pouca sensibilidade para questões de
multiculturalismo, como a das cotas para estudantes afrodescendentes nas
universidades públicas. Notavelmente, o "neoliberalismo" brasileiro mostrou as
amarras que o prendem ao tradicionalismo quando não deu ênfase às questões de
gênero, mesmo tendo membros importantes da intelligentsia nacional em postos-
chave do governo federal.