África do Sul e Brasil: diplomacia e comércio (1918-2000)
Introdução
O Brasil começou a se aproximar da União Sul-Africana em 1918, com a criação de
um Consulado de Carreira na Cidade do Cabo. Embora o primeiro cônsul de
carreira só tenha assumido o seu posto em 1926, o gesto do governo brasileiro
demonstrou o seu interesse em estreitar as relações comerciais com a União Sul-
Africana, ampliando o horizonte do intercâmbio comercial do Brasil com uma
região economicamente próspera e estrategicamente significante.
Do ponto de vista estritamente político, as relações entre Brasil e África do
Sul foram estabelecidas apenas em 1947-1948, com a abertura, respectivamente,
de uma representação diplomática sul-africana no Rio de Janeiro e da Legação
brasileira em Pretória. Todavia, essas relações foram marcadas, ao longo dos
últimos 45 anos, pela existência de um projeto social que definitivamente
excluía as possibilidades de maior aproximação entre os dois povos.
O apartheid, política oficial de segregação racial, ou de desenvolvimento em
separado, conforme pregavam seus formuladores, era exatamente o contraponto à
sociedade brasileira, que sustentava discurso oficial de democracia racial,
convívio harmônico entre as raças e que considerava o fato de o país ser uma
nação predominantemente composta por mestiços. Desta forma, seria realmente um
paradoxo se as relações entre dois países tão diferentes, sem vínculos
históricos e culturais e com um intercâmbio comercial relativamente reduzido,
prosperassem com vigor.
Outros fatores certamente influenciaram no cálculo dos formuladores e
executores de política externa de ambos os países para moldarem seu
relacionamento. No lado brasileiro, houve, ainda durante os anos 1950, a gênese
de uma política específica voltada para a então União Sul-Africana, mas que
acima de tudo estava consubstanciado no pragmatismo comercial, ou seja, nas
possibilidades de auferir vantagens através do comércio com um país aberto a
esta perspectiva. Noutro sentido, vale recordar que, na década de 1950, a maior
parte do continente africano encontrava-se ainda sob o colonialismo europeu.
Para a União Sul-Africana, a aproximação com o Brasil centrava-se em um cálculo
eminentemente político-estratégico, voltado para a inserção internacional
daquele país, e não em uma perspectiva comercial. A conjuntura internacional do
pós-Segunda Guerra Mundial efetivamente indicava a ameaça de isolamento
internacional da União Sul-Africana, o que impeliu Pretória a se aproximar de
áreas geográficas até então não exploradas ' ou pouco exploradas ' e de países
que exercessem alguma influência no plano regional e internacional e que
eventualmente pudessem prestar-lhe suporte, principalmente na ONU. Tal eram os
casos, na América Latina, do Brasil e da Argentina e, em menor grau, do Chile.
A evolução da política externa brasileira vis-à-vis a África do Sul1 dependeu
de múltiplos fatores para a sua aproximação ou distanciamento. Quando se
analisa essa evolução, alguns elementos destacam-se e passam a estruturar e
determinar o nível de aprofundamento ou superficialidade entre os dois países,
sobretudo quando contemplados seus interesses comerciais e aqueles relativos à
política internacional, exercidos nos foros multilaterais mas que inegavelmente
refletiam-se no campo das relações bilaterais.
Associada ao fenômeno do apartheid, a questão da ocupação ilegal do Sudoeste
Africano (atual Namíbia), por parte da África do Sul, foi o outro elemento que
provocou maior atrito nas relações entre os dois países. O Brasil não aceitou a
simples anexação do território pretendida pelo governo de Pretória, batendo-se
nas Nações Unidas em posição contrária na tentativa de forçar aquele governo a
abandonar o território, restaurando o mandato da antiga Liga das Nações sob os
domínios da Organização das Nações Unidas. Em última instância, o objetivo da
ONU era promover a completa independência da ex-colônia alemã.
Na verdade, com o avanço do processo de descolonização no continente africano,
a política brasileira para a África do Sul seguiu a tendência de contemplar um
cenário mais complexo, envolvendo o continente como um todo, o que resultou, em
última instância, em maior grau de politização dessas relações.
A inflexão da política africana do Brasil implicava também a mudança de atitude
com relação a Pretória. Se até 1974-1975 o governo brasileiro ainda se
preocupava em manter discretos laços com Pretória, tendo em mente a manutenção
das boas relações comerciais, a partir desse período a tendência foi a de
abandonar a atitude comercial e a de assumir uma atitude política mais vigorosa
e inflexível2 . Implícito, na transformação da visão do Brasil sobre o seu
relacionamento com a África do Sul, estava o cálculo estratégico de relações
comerciais e econômicas mais intensas com outros países africanos, o que forçou
uma demonstração concreta de que haviam-se operado na política externa
brasileira mudanças reais, e não somente vagas declarações oficiais de apoio
aos povos africanos em sua aspiração de independência, superação do
subdesenvolvimento e luta contra a discriminação racial.
A decisão tomada com relação à África do Sul em meados da década de 1970
conduziu a política externa do Brasil sem substantivas alterações até o final
da era africânder. Houve, entretanto, com o fim do regime militar brasileiro,
manifestações mais contundentes do país perante a África do Sul. Em 1985,
consoante a redemocratização do Brasil, a intensificação da pressão
internacional sobre a África do Sul e o recrudescimento interno nesse país
contra a maioria negra (por exemplo, estado de emergência, decretado em 1985
pelo governo de P. W. Botha), o governo brasileiro patrocinou decreto-lei
proibindo todas as atividades de intercâmbio cultural e esportivo com a África
do Sul, além de reafirmar a proibição de venda ou trânsito de armas em
território nacional que se destinassem àquele país. Tal atitude nada mais
significou do que o coroamento da decisão anterior de esfriar ao máximo o
relacionamento entre os dois países e de respeitar o embargo voluntário de
venda de armamentos para a África do Sul, decidido ainda na década de 1960
pelas Nações Unidas e referendado pela decisão do Conselho de Segurança, em
1977, de impor o embargo compulsório de venda e fornecimento de armamentos e
similares para a África do Sul. De qualquer maneira, é preciso registrar tal
decisão como uma manifestação política demarcatória da fase de isolamento
oficial que Brasília estava reafirmando e reforçando contra Pretória.
Após 1985, as relações entre Brasil e África do Sul só serão retomadas em um
patamar político de mais alto nível com o fim do regime do apartheid. Ao ser
eliminado o regime segregacionista, principal empecilho para a concretização de
relações diplomáticas, econômicas e culturais normais entre os dois países,
estarão dadas as condições minimamente necessárias para o entendimento e as
possibilidades de relacionamento entre Brasil e África do Sul.
No início dos anos 1990, o Brasil, finalmente, designou um embaixador para
ocupar a chefia na representação brasileira em Pretória além de, ainda no campo
diplomático, ter reaberto o consulado brasileiro na Cidade do Cabo, gestos que
simbolicamente representaram o reconhecimento por parte do Brasil da nova
realidade sul-africana. Da mesma forma, na mesma década, foi realizada a
primeira visita de um chefe de Estado brasileiro à África do Sul (1996), bem
como o Brasil recebeu a visita de Nelson Mandela (1991 e 1998) e Thabo Mbeki
(1997 e 2000), os dois primeiros presidentes negros na história da África do
Sul.
O interesse na aproximação entre as duas regiões foi reafirmado em fevereiro de
2000 com a visita do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Luiz Felipe
Lampreia, à Cidade do Cabo, onde as conversações acerca da integração econômica
foram retomadas. Assim, observa-se que o interesse na aproximação com a África
do Sul mantém-se, sendo este um país que passou a ser considerado uma das
prioridades para a política externa brasileira no continente africano na década
de 1990.
Brasil e União Sul-Africana: o descompasso na aproximação e o comércio como
vetor do relacionamento (1918-1947)
Com efeito, o principal vetor de dinamização das relações entre o Brasil e a
União Sul-Africana em todo o período compreendido entre os anos de 1918 e 1947
foi o comércio. Feito de forma irregular e sempre favorável ao Brasil,
praticamente não recebeu apoio governamental, em nenhum dos dois lados. Poucas
foram as iniciativas emanadas de dentro do Estado ' nos dois casos ' de se
buscar fórmulas para incrementar o intercâmbio. Assim, é sintomático que
somente em 1939 tenha sido assinado o primeiro acordo de comércio, envolvendo
diretamente as duas partes.
Após a criação do Consulado de Carreira do Brasil na Cidade do Cabo, seguiram-
se episódicas tentativas de aproximação, como a iniciativa da Companhia de
Navegação Lloyd Brasileiro de estabelecer uma linha mercante direta entre os
dois países, em 1922, o que possibilitaria a expansão das relações comerciais;
a decisão sul-africana de enviar Alwyn Zoutendyk em missão especial à América
do Sul, em 1936, para analisar as perspectivas de comércio e o estabelecimento
de uma representação sul-africana no continente; as iniciativas brasileiras de
1938 e 1940 para o estabelecimento de relações diplomáticas, com a criação de
uma Legação em Pretória; a assinatura do Acordo Comercial de 1939; o
desenvolvimento do comércio e seu vertiginoso crescimento durante a Segunda
Guerra Mundial e, finalmente, como coroamento de todas essas iniciativas e as
novas mudanças introduzidas nas relações internacionais como conseqüência
direta do final da última Guerra Mundial, sobretudo para a União Sul-Africana,
a troca de missões diplomáticas no nível de Legação entre os dois países.
Entre as iniciativas brasileiras mais importantes no período compreendido entre
os anos de 1918 e 1947, destacaram-se: a) a ida, de forma pioneira e
visionária, de uma missão da companhia de navegação Lloyd Brasileiro à União
Sul-Africana para estabelecer uma linha mercante ligando diretamente os dois
continentes e, ao mesmo tempo, tentar criar condições para que o comércio entre
os dois países pudesse ser dinamizado; b) a estruturação da rede consular
brasileira na África do Sul ' e, indiretamente, em toda a região da África
Austral ' uma vez que os consulados e vice-consulados honorários existentes não
estavam capacitados para desenvolver a contento as suas funções, como bem
observou e apontou, detalhadamente, Álvaro de Magalhães, o primeiro cônsul de
carreira do Brasil na União Sul-Africana; c) as gestões brasileiras efetuadas
no final dos anos 1930 para estabelecer relações diplomáticas diretas com a
União Sul-Africana, decididas pelo Ministro das Relações Exteriores, Osvaldo
Aranha; d) o desenvolvimento do comércio e o incremento das exportações
brasileiras, as quais atingiram seu ponto máximo, na primeira metade do século
XX, durante a Segunda Guerra Mundial, quando Brasil e União Sul-Africana
fizeram parte da aliança que derrotou o nazi-fascismo.
A perspectiva da União Sul-Africana mostrou-se bem mais tímida que a
brasileira. Vinculados, no plano externo, à Grã-Bretanha, e sobremodo
atribulados com suas questões internas, que envolviam desde atritos entre
brancos e negros a profundas divergências entre africânderes e britânicos, e
entre africânderes e africânderes, geralmente com relação a que tipo de país
deveria ser a África do Sul, não é de se estranhar que os dirigentes tivessem
dificuldades em controlar as relações externas da União, como se fossem um
objetivo de primeiro plano. A América Latina, sobretudo, permanecia à margem de
relações que oscilavam entre a Europa e os Estados Unidos durante a maior parte
da primeira metade do século XX.
Contudo, mesmo que timidamente, a União Sul-Africana esboçou uma aproximação
com a América Latina e, em especial, com o Brasil. À parte algumas iniciativas
particulares que se verificaram na década de 1920, em 1936 foi enviada a
primeira missão oficial sul-africana à América do Sul com o intuito de estudar
in loco as possibilidades comerciais. A missão, confiada ao diplomata Alwyn
Zoutendyk, visitou o Brasil, a Argentina e o Uruguai, resultando na
recomendação de que a União estabelecesse um Consulado para promover os seus
negócios no continente sul-americano, o que proporcionou, pelo lado sul-
africano, além do incremento comercial, maior conhecimento da realidade dos
países da América do Sul3 .
As relações entre o Brasil e a União Sul-Africana somente começaram a tomar
corpo durante a época da Segunda Guerra Mundial, conforme demonstra o Relatório
do Ministério das Relações Exteriores de 1944, que registrou a nova situação4 .
Nesse contexto, o ponto de ligação estava relacionado ao extraordinário
incremento das trocas comerciais entre os dois países5 , fato motivado
principalmente pela conjuntura da Segunda Guerra Mundial, que desestabilizou
temporariamente os fluxos tradicionais de comércio, abrindo novas rotas e
permitindo certa diversificação de parceiros, o que resultou também na abertura
de um Consulado da União Sul-Africana na cidade do Rio de Janeiro, em 1943.
Contudo, o fato de o Brasil haver aderido à aliança ocidental na Segunda Guerra
teve resultados objetivos na aproximação com a África do Sul, sobretudo porque
esta vinha desempenhando uma política de desconfiança generalizada para com os
Estados indecisos, como era o caso da maioria dos latino-americanos.
Da perspectiva militar e estratégica, a interação entre os setores militares
dos dois países foi bastante reduzida, haja vista que, apesar de ambos terem
participado diretamente do conflito, enviando tropas, o campo de atuação se deu
em teatros de guerra diferenciados. Apesar da falta de contatos mais estreitos
no campo militar, registre-se, no entanto, que, quando da chegada da Força
Expedicionária Brasileira ao continente europeu, o Comando do Exército sul-
africano foi um dos que colaborou para suprir o Exército brasileiro com
fardamento apropriado para o severo inverno europeu, para o qual as tropas
brasileiras não dispunham de equipamento adequado6 .
As atividades consulares brasileiras na União Sul-Africana: um balanço
O consulado brasileiro na Cidade do Cabo desempenhou basicamente duas funções
até a criação da Legação em 1947. A justificativa para a existência do
consulado baseava-se na representação geral dos interesses brasileiros no sul
da África ' que na verdade não eram tantos ' e, mais especificamente, na
promoção do comércio bilateral, que alavancou as relações entre os dois países
e abriu caminho para o estabelecimento de relações diplomáticas. Mas, a função
mais importante desde 1926, ano em que o primeiro cônsul de carreira brasileiro
chegou à Cidade do Cabo até o final da Segunda Guerra Mundial, sem dúvida
alguma, foi a de promover o comércio. No entanto, é relevante observar que,
embora o fator econômico, na sua vertente comercial, tenha sido essencial para
a aproximação do Brasil com a União Sul-Africana, houve um forte e evidente
conteúdo político que estimulou a aproximação entre ambos. Tanto é assim que
não foi mera coincidência o fato de o Consulado de Carreira e a Legação terem
sido criados, na União Sul-Africana, justamente em período imediatamente
posterior aos dois conflitos mundiais do século XX, dos quais ambos os países
participaram ao lado dos vencedores.
O primeiro acordo comercial assinado entre Brasil e União Sul-Africana foi
concluído no Rio de Janeiro, por troca de notas, em 18 de abril de 1939.7
Antes da assinatura desse acordo, a União Sul-Africana beneficiava-se dos
acordos comerciais firmados entre o Brasil e a Grã-Bretanha, uma vez que, por
ser parte dos Domínios britânicos, a União era incluída como beneficiária
direta. Além disso, os representantes diplomáticos e comerciais britânicos, em
tese, deveriam zelar pelo comércio entre a União e o Brasil, por serem seus
representantes legais. Esse quadro só veio sofrer alterações com a designação
de Alwyn Zoutendyk como cônsul da União Sul-Africana para os países do cone sul
(Argentina, Brasil e Uruguai).
O final dos anos 1930 foi significativo para o intercâmbio comercial entre os
dois países. O comércio, que vinha crescendo desde a metade daquela década,
sofreu um grande impulso com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Contudo, após
atingir o auge, em 1943, houve a tendência ao declínio, embora tenha
permanecido em um patamar mais elevado do que no período anterior ao conflito
mundial.
Em 1947, o Brasil instalou oficialmente uma Legação diplomática em Pretória,
sinal de que havia se consolidado no país um interesse político maior pela
aproximação com os sul-africanos8 . Mas mesmo com a instalação da Legação em
Pretória, o consulado na Cidade do Cabo permaneceu em atividade.
A Missão Sul-Africana à América do Sul: o Relatório Zoutendyk (1936)
Alwyn Zoutendyk foi enviado pelo governo sul-africano, em 1936, para uma visita
a três países da América do Sul: Argentina, Uruguai e Brasil. O principal
objetivo de sua missão foi elaborar um estudo das possibilidades concretas de
se estabelecer uma representação permanente da União Sul-Africana no continente
sul-americano, com especial atenção para o desenvolvimento e aprofundamento do
intercâmbio comercial entre as duas regiões, onde os interesses sul-africanos
poderiam não estar sendo bem sustentados.
A análise dos resultados da viagem de Zoutendyk é esclarecedora em muitos
aspectos relativos aos contatos comerciais, às possibilidades econômicas, e a
visão de um sul-africano sobre aqueles países da América do Sul na primeira
metade do século XX. Lança um feixe de luz em questões intrigantes e até certo
ponto tão atuais, como o relativo desconhecimento ' que persiste até a
atualidade ' verificado entre os países e algumas das causas do igualmente
relativo baixo grau de intercâmbio comercial, bem como dos caminhos que
poderiam ser tomados para alavancar o comércio e a aproximação entre Brasil e
União Sul-Africana.
Muito embora a Argentina tenha sido o país que mais chamou a atenção da União
Sul-Africana na América do Sul nos primórdios do relacionamento entre aquele
país e este continente, sobretudo pela presença bôer na Argentina e por
iniciativas pessoais de autoridades sul-africanas, foi o Brasil que mais
impressionou a Zoutendyk. A própria elaboração do seu relatório possibilita uma
idéia geral e comparativa das primeiras impressões e das possibilidades
comerciais observadas por seu autor: das onze páginas do detalhado relatório,
quase sete páginas são dedicadas ao estudo dos principais aspectos econômicos
do Brasil que diretamente interessariam à União Sul-Africana, restando apenas
quatro páginas para as análises relativas à Argentina e ao Uruguai9 .
Foi somente na viagem de 1918, portanto a sua segunda à América do Sul, que
Zoutendyk visitou o Brasil. O tempo de permanência foi curto ' um mês ' mas o
suficiente para que pudesse ter uma idéia geral do perfil da economia
brasileira e dar início às primeiras prospecções sobre as relações entre os
dois países. A sua breve estada no Brasil se deve, por um lado, ao entusiasmo
inicial pela Argentina, que o levou a permanecer mais tempo naquela nação, mas
por outro lado também contou a vontade de aprofundar os seus conhecimentos
sobre a América do Sul, em um contexto em que seria muito natural a visita a
outros países. Quando Zoutendyk voltou ao Brasil, em 1936, já possuía,
portanto, uma idéia do país.
Apesar de sua atração pessoal pela Argentina, na viagem de 1936 Zoutendyk ficou
animado com os progressos que, em sua opinião, o Brasil havia feito em termos
de desenvolvimento econômico desde sua visita 18 anos antes. Em seu relatório
para o Departamento de Negócios Estrangeiros da União Sul-Africana, fez uma
análise extremamente positiva e promissora para o relacionamento comercial
entre os dois países. Segundo suas perspectivas, a União Sul-Africana poderia
ter sucesso no comércio com o Brasil exportando pelo menos 10 produtos, a
saber: carvão, frutas frescas não tropicais (como maçã, uva, pera, ameixa e
nectarina), frutas secas, geléias, brandy, gim, vinhos, tabaco (tipo turkish),
lagostas e peixe seco. Em contrapartida, poderia a União importar pelo menos os
seguintes produtos: café, arroz, madeiras (dormentes para ferrovias, madeiras
para emprego no importante setor minerador sul-africano, para a construção
civil, confecção de caixas para exportação de frutas e móveis), peças de
vestuário, seda, papel, vidro (cristal e comum) e garrafas para todo tipo de
emprego10 .
Além da relativa variedade de produtos possíveis de intercambiar, o enviado
sul-africano destacou as vantagens propiciadas pela proximidade entre os dois
países ("metade da distância entre a União Sul-Africana e a Europa ou os
Estados Unidos") o que, em tese, permitiria a prática de menor valor no frete
das mercadorias. Outro aspecto destacado por ele era o fato de que o Brasil
"manufatura praticamente tudo em grande escala", o que o tornava apto a
competir em qualquer mercado do mundo. Por sua vez, a União Sul-Africana tinha
muito a oferecer ao Brasil, com disponibilidade de vários produtos e com preço
e qualidades competitivos. Na visão de Zoutendyk, que demonstrou possuir ampla
percepção mercadológica, associada a um grande otimismo que não se verificou de
forma concreta, ambos os países estavam perdendo tempo e dinheiro ao deixarem-
se levar pela ignorância mútua11 .
De acordo com Zoutendyk, os dois produtos sul-africanos que tinham mais chance
de alcançar o mercado brasileiro eram o carvão e as frutas. Para o carvão, os
dados levantados pelo agente sul-africano indicavam que o Brasil, pela sua
escassa produção, necessitava de 3 a 4 milhões de toneladas por ano para
abastecer suas ferrovias, navios, fábricas e companhias de gás e que, em suas
entrevistas com engenheiros e gerentes de algumas dessas empresas, todos
mostraram-se interessados no carvão de seu país, sendo que ele ainda observou a
completa ignorância por parte daquelas pessoas acerca do fato de a União
possuir grandes reservas do mineral.
Embora tenha pensado em uma representação única para os países latino-
americanos, Zoutendyk, até onde a documentação encontrada informa, foi pioneiro
ao propor o estabelecimento de uma Legação diplomática sul-africana na América
Latina e, no caso do Brasil, antes mesmo das iniciativas do governo brasileiro,
as quais tiveram início em 1938, sob o patrocínio de Osvaldo Aranha.
Naturalmente que o que motivava o enviado sul-africano não eram os temas
políticos, praticamente inexistentes, mas sim as matérias de cunho comercial
que poderiam ser agilizadas, uma vez que a União pudesse contar com
representação própria na América do Sul.
A aproximação diplomática: o Brasil toma a iniciativa
Coube ao Brasil a iniciativa de tentar se aproximar politicamente da União Sul-
Africana, propondo o estabelecimento de relações diplomáticas diretas através
da criação de uma Legação brasileira em Pretória e da correspondente
contrapartida sul-africana abrindo uma Legação no Rio de Janeiro.
A abordagem inicial foi feita no Rio de Janeiro, em maio de 1938, pelo recém-
indicado Ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, ao embaixador Hugh
Gurney, da Grã-Bretanha. A princípio, a argumentação de Aranha baseava-se no
fato de que as perspectivas de incremento comercial eram boas e que ambos os
países ' assim como o Canadá, outro país incluído na conversa entre Aranha e
Gurney ' tinham "mentalidade similar", isto é, eram nações que valorizavam a
democracia 12 .
Dando seqüência ao assunto, o Alto Comissário para o Reino Unido procedeu,
então, a consultas informais a Pretória a fim de identificar o ponto de vista
do governo da União Sul-Africana a respeito da intenção brasileira de abrir uma
Legação em Pretória. A resposta sul-africana foi rápida e negativa. Em menos de
vinte dias após a consulta, P. R. Botha, Secretário do Department of External
Affairs sul-africano, escreveu ao Alto Comissário do Reino Unido, M.E.
Antrobus, informando-o de que, se por um lado, a criação de uma Legação
brasileira em Pretória seria bem vinda, por outro, destacava que também seria
natural que o Brasil esperasse a reciprocidade do ato, para o qual a União Sul-
Africana não estaria ainda preparada e nem haveria como indicar sequer uma
provável data para que tal pudesse vir a ocorrer. O único aspecto concreto era
que o governo da União havia enviado um emissário especial como seu
representante para a América do Sul, em 1936, com a missão de avaliar as
possibilidades de estreitamento das relações entre a União e os países da
região, especificamente com o Brasil, Argentina e o Uruguai. Dessa forma, a
missão enviada à América do Sul tinha por objetivo efetuar estudos das
possibilidades comerciais existentes e de verificar se se justificava ou não a
criação de representação ' ou representações ' diplomática sul-africana
permanente naquela região13 .
Do ponto de vista de Pretória, a idéia de aprofundar o relacionamento com o
Brasil ' e, no geral, com os países sul-americanos ' seguia uma lógica
diferente. O comércio, certamente, não era o elemento mais importante para os
sul-africanos, haja vista que as suas exportações para o Brasil nunca foram
expressivas. Todavia, do ponto de vista político, era altamente recomendável
para o governo da União estabelecer vínculos com os países do continente sul-
americano.
Foi somente durante o primeiro semestre de 1947 que as autoridades sul-
africanas de fato consideraram a idéia de estabelecer relações diplomáticas com
os países sul-americanos. Tal atitude esteve estreitamente relacionada com a
conjuntura política internacional e com a pressão que o governo da União vinha
sofrendo no âmbito da Nações Unidas. Mas, além disso, os ingleses também
desempenharam um papel na aproximação entre a União Sul-Africana e a América
Latina. Como bem salienta Schellnack, ao final da Segunda Guerra, enfraquecidos
pela longa duração do conflito e sendo suplantados pelos Estados Unidos no
comércio internacional, os britânicos tentaram animar as relações comerciais
diplomáticas envolvendo a América Latina e as várias partes do Império,
principalmente distribuindo relatórios favoráveis ao comércio com os países
latino-americanos, numa derradeira tentativa de manter as relações
preexistentes. Assim, o seu papel foi principalmente o de estimular Pretória a
buscar esse relacionamento, exatamente pensando em aumentar o comércio e a
encontrar alternativas para ampliar o leque das possíveis alianças da União no
contexto das Nações Unidas14 .
As relações diplomáticas: o jogo dos opostos (1947-1974)
O final da Segunda Guerra Mundial significou, para as relações entre o Brasil e
a União Sul-Africana, um período de renovação e um marco nas relações
bilaterais, tal qual havia acontecido ao final da Primeira Guerra, quando o
Brasil abriu o Consulado de Carreira na Cidade do Cabo. Aliados, durante o
conflito, as perspectivas para as relações bilaterais apresentavam-se de forma
positiva. No plano comercial, houve, durante a década de 1940, um crescimento
extraordinário das trocas comerciais, levando o Brasil grande vantagem; na
perspectiva política, a projeção alcançada pela União, sobretudo pela marcante
presença internacional de seu Primeiro Ministro, Jan Smuts, redobrou o
interesse brasileiro em se aproximar daquele país, interesse este que datava do
final dos anos 1930, quando o então Ministro das Relações Exteriores, Osvaldo
Aranha, manifestou o interesse do Brasil em se aproximar da União, com o desejo
de abrir uma Legação em Pretória.
Além do interesse nos fatores econômicos, é preciso levar-se em conta que
outros elementos contribuíram decisivamente para a iniciativa do governo Dutra
em abrir aquela Legação, destacando-se, no caso, o fato de a União Sul-Africana
ser um dos poucos países independentes do continente africano e de ser
considerado um aliado ocidental inconteste no confronto bipolar que já se
vislumbrava no horizonte das relações internacionais do pós-Segunda Guerra
Mundial15 . Há ainda que mencionar que desde o ano de 1943 o governo da África
do Sul já se fazia representar no Rio de Janeiro através de um Consulado Geral,
mais tarde elevado à categoria de Legação Diplomática, o que de certa maneira
incentivava o Brasil a instalar uma Legação naquele país, entrando também no
cômputo da decisão o fator reciprocidade.
Outro fator estimulante para que os sul-africanos encetassem relações com o
Brasil estava ligado à expansão das relações exteriores da União Sul-Africana
que, efetivamente, eram muito modestas. Saliente-se que até o final dos anos
1940 a União se fazia representar, entre a Europa e a América, somente em 11
países, a saber: Holanda (1929), Estados Unidos (1929), Itália (1929), Portugal
(1934), Bélgica (1934), França (1934), Alemanha (1934), Suécia (1934), Canadá
(1938), Argentina (1938) e Brasil (1943). Na África e na Ásia, as
representações da União se resumiam a um Consulado Geral em Moçambique (1920),
um Comissariado de Comércio para a África Ocidental e do Norte, estabelecido no
Marrocos (1938), Escritórios de Representação Comercial em Cingapura e na Índia
e Comissários Honorários de Comércio na Palestina e na China. Há ainda a
ressaltar o fato de que, durante a Segunda Guerra, e motivado pela sua
conjuntura específica, o governo da União abriu missões no Congo Belga, em
Madagascar e no Egito (1942)16 .
Do ponto de vista da União, diferentemente da perspectiva assumida pelo
Itamaraty, a diplomacia sul-africana percebia o Brasil não como um parceiro
comercial importante, mas sim como um eventual aliado político que poderia
ajudar a romper a crítica à política racial sul-africana e a possibilidade de
isolamento crescente contra a União verificada no interior da Organização das
Nações Unidas.
Em decorrência da abertura proporcionada pela II Guerra Mundial, houve a
perspectiva, muito embora frustrada, de que haveria possibilidade de o comércio
e as relações entre os dois países entrar em ritmo constante e mais acelerado.
No entanto, com o fim do conflito e a reestruturação da economia internacional,
Brasil e União Sul-Africana retomaram seus fluxos de comércio com as
tradicionais áreas reassumindo as posições anteriores17 , o que praticamente
encerrou o relacionamento que vinha se destacando no cenário atípico das
relações comerciais causados pelo efeito da guerra.
De qualquer forma, é importante notar que o Brasil esboçou uma política de
relacionamento com a União Sul-Africana, centrando-se fortemente nos aspectos
comerciais, sem sobrevalorizar os aspectos geopolíticos, os quais, embora devam
ser levados em conta, jamais foram cruciais para o relacionamento entre os dois
países, pelo menos do ponto de vista brasileiro. Desta maneira, observa-se uma
linha de continuidade com o período anterior que, como discutido, foi
essencialmente motivado pelo aspecto comercial.
A análise da influência da geopolítica na execução da política externa
brasileira merece uma abordagem específica, dado que o Brasil atravessou uma
fase na qual os militares assumiram o poder e deram azo, alguns deles, aos
princípios da geopolítica, tanto em sua vertente territorial quanto naval. Com
efeito, elementos de geopolítica despertaram algum interesse em setores das
forças armadas brasileiras, sendo que, no caso específico das relações com a
África do Sul, mais acentuadamente na Marinha, a qual intentou concretizar
senão uma aliança militar tendo em mente a defesa do Atlântico Sul, pelo menos
um acordo de cooperação militar, do qual o primeiro passo para sua efetivação
seria o intercâmbio de informações sobre movimentos navais na área do Atlântico
Sul. Tendo sido inicialmente uma proposta vinda de Pretória, no âmbito da
outward policy do governo Voster, a Marinha brasileira, de imediato, demonstrou
interesse, porém, como o Itamaraty possuía ponto de vista diferenciado sobre o
assunto, conseguiu neutralizar a ação sul-africana e evitar o plano da Marinha
do Brasil em aceitar o esquema proposto pela África do Sul, que afinal não
passou do plano das intenções (e de uma agitada movimentação diplomática, que
envolveu representantes brasileiros em Pretória, Buenos Aires, Washington,
Londres e Nova York), embora o Ministério da Marinha tivesse chegado,
inclusive, a iniciar entendimentos com oficiais sul-africanos na base naval de
Simonstown18 .
Chama atenção também o fato de o Brasil haver esboçado primeiro uma política
voltada para a União Sul-Africana enquanto país destacado no continente
africano, sem levar em consideração, no período inicial desse relacionamento, o
pensamento de uma política externa orientada e dirigida para o continente como
um todo. Enquanto persistiu o colonialismo e enquanto os novos países africanos
ainda lutavam para obter uma mínima estruturação e participação na política
mundial, foi possível ao Brasil conduzir relações específicas com a União Sul-
Africana. Contudo, com o avanço da descolonização e a crescente complexidade da
realidade africana, mormente na ampla região da África Austral, tornou-se
inviável a continuidade desse tipo de relacionamento.
Paradoxalmente, o período compreendido entre os anos de 1947-1948 e 1974-1975
representou o auge e, ao mesmo tempo, o declínio das relações bilaterais entre
o Brasil e a União Sul-Africana. Paulatinamente, as agendas externas dos dois
mais importantes países de suas respectivas áreas continentais foram se
revelando divergentes e, em alguns casos, mesmo excludentes.
O esgotamento do pragmatismo consciente: o Brasil se afasta e pressiona a
África do Sul (1975-1991)
O período compreendido entre meados da década de 1970 e o final dos anos 1980 é
caracterizado pelo quase congelamento das relações bilaterais entre Brasil e
África do Sul, as quais atingiram seu nível mais baixo desde a troca de missões
diplomáticas em 1947. Assim, houve o esvaziamento da pauta política, que passou
a ser de confrontação, com o Brasil assumindo as críticas ao regime sul-
africano com total desenvoltura.
Uma vez concretizadas as independências das colônias portuguesas e removida
definitivamente a incômoda presença do sistema colonial português, o Brasil
pôde, enfim, desencadear uma política mais agressiva no continente africano.
Para tanto, foi necessário, igualmente, tomar uma atitude mais coerente nas
suas relações com Pretória.
A decisão de se afastar de Pretória e encerrar a contradição da política
exterior do Brasil para o continente africano foi tomada no bojo da
descolonização das áreas coloniais portuguesas. Mas não só isso explica o
afastamento com relação à África do Sul. A diplomacia brasileira já vinha
sentindo o peso desse relacionamento, uma vez que a comunidade internacional e,
sobretudo, os países afro-asiáticos, acompanhavam pari passutodos os episódios
e conexões envolvendo o regime sul-africano.
O Brasil já havia sofrido pressão por parte de Estados africanos, da Liga
Árabe, dos asiáticos e do bloco socialista, os quais identificavam a posição
brasileira frente à África do Sul como sendo basicamente a mesma dos países da
Europa Ocidental e dos Estados Unidos, ou seja, criticava o regime mas mantinha
expressivos vínculos comerciais e, como suspeitavam, tinha até mesmo um secreto
envolvimento militar com Pretória, consubstanciado na idéia da Organização do
Tratado do Atlântico Sul-OTAS19 .
Assim, para que a política africana do Brasil obtivesse um grau adequado de
coerência era preciso rever o relacionamento com a África do Sul. O Itamaraty,
desde a intensificação da ação diplomática sul-africana e o lançamento da idéia
da OTAS, na segunda metade da década de 1960, já vinha praticando uma política
discreta com relação a Pretória, cuja definição mais apropriada era a de um
pragmatismo consciente, ou seja, havia, por parte da diplomacia brasileira a
exata compreensão que as relações com a África do Sul tinham sua razão de ser
exclusivamente nas vantagens econômicas que o país obtinha do intercâmbio
comercial.
O Brasil procurou moldar o relacionamento com Pretória através da discrição,
com o mais baixo grau possível de contatos políticos, e da manutenção e
expansão das relações comerciais, em um contexto em que a África do Sul era
responsável por mais de 90% das exportações brasileiras para o continente
africano. Mas este quadro estava sofrendo alterações no início da década de
1970, com a decisão brasileira de conquistar novos mercados no continente
africano. Disso resultou a visita do Ministro das Relações Exteriores, Gibson
Barboza, a vários países africanos no início dos anos 1970 como o primeiro
passo concreto para a redefinição das prioridades brasileiras no continente.
A deterioração da imagem sul-africana perante a comunidade internacional,
através da permanência dos mesmos problemas ' ocupação ilegal do Sudoeste
Africano, questão do apartheid, desestabilização dos países da África Austral '
foi tornando sua situação internacional insustentável. O fim da década de 1970
viu a África do Sul alinhada quase que somente com Estados isolados na
comunidade internacional, via de regra, acusados pelo desrespeito sistemático
dos direitos humanos. No continente africano, a África do Sul optou, após a
descolonização angolana, por endurecer o jogo com os Estados vizinhos,
ampliando e sistematizando a política de desestabilização, a qual possuía
estratégias diversas, indo da pressão econômica à sabotagem militar.
Assim, quase ao mesmo tempo em que o governo angolano era reconhecido pelo
governo brasileiro, a África do Sul patrocinava a invasão de Angola com tropas
regulares e dava prosseguimento a suas atividades de suporte à UNITA. Como o
Brasil havia optado por uma aproximação especial com os novos países de
expressão portuguesa na África, a agressão sul-africana a Angola contribuiu
ainda mais para que as relações entre os dois países se deteriorassem.
Dentre as medidas tomadas pelo governo brasileiro para reduzir ao máximo suas
relações com a África do Sul, destacavam-se: a) a decisão de desestimular o
comércio bilateral, retirando-se o governo de qualquer participação neste
sentido; b) dificultar a concessão de vistos para a entrada no Brasil de
personalidades sul-africanas, especialmente de funcionários de empresas
estatais ou do setor privado (o objetivo desta medida era reforçar o
desestímulo à promoção comercial); c) monitorar os investimentos sul-africanos
no Brasil, especialmente os que pudessem dar uma conotação de sociedade entre
sul-africanos e o governo brasileiro; d) reduzir ao máximo os contatos
culturais, desencorajando iniciativas de artistas e desportistas brasileiros
que desejassem se apresentar em solo sul-africano; e) estabelecer estrito
controle sobre as exportações de armas para a África do Sul, se possível
efetivamente proibindo que produtos brasileiros dessa natureza atingissem o
mercado sul-africano, tendo em vista não permitir que se levantassem suspeitas
sobre o país nesse campo20 ; f) desestimular qualquer iniciativa no campo da
cooperação técnica; g) intensificar as críticas, no âmbito das Nações Unidas,
contra o apartheid e contra a ocupação ilegal da Namíbia.
Na contramão da tendência à redução das relações bilaterais apresentadas pelo
Brasil, estava a idéia do Ministério dos Negócios Estrangeiros da África do
Sul, que desejava, antes, a intensificação das relações. Desta forma, o
Secretário de Assuntos Externos, J. Van Dalsen, no início de 1975, orientava a
Embaixada sul-africana em Brasília a buscar renovar as relações com o Brasil,
"por várias razões, dentre as quais por sua posição de proeminência econômica
no hemisfério, nossas relações com o Brasil precisam assumir um caráter
prioritário"21 . Todavia, o Brasil caminhava noutro rumo.
A embaixada sul-africana em Brasília, convencida de que no plano oficial nada
conseguiria, passou a atuar de maneira independente, mantendo contatos diretos
com governos estaduais e empresas privadas interessadas em fazer o comércio com
a África do Sul ou obter cooperação técnica em setores nos quais os sul-
africanos estavam adiantados. Outra atividade que a embaixada sul-africana
exerceu intensamente nos anos de distanciamento oficial foi a prática rotineira
de contatos com a imprensa brasileira. Com relativa freqüência, os diplomatas
sul-africanos, dentre eles o próprio Embaixador, esforçavam-se por responder a
eventuais críticas contra o regime do apartheid ou a estimular a propaganda
oficial do seu país, inclusive convidando jornalistas brasileiros para visitas
à África do Sul.
O caso mais grave da ação da diplomacia sul-africana no Brasil, contudo, recaiu
nas gestões que foram feitas junto a alguns governos estaduais. Os sul-
africanos ofereceram, por exemplo, ao governo do Paraná cooperação para o
desenvolvimento de fontes alternativas de energia, utilizando-se o carvão para
dele extrair petróleo, com uma tecnologia desenvolvida pela estatal sul-
africana SASOL22 . O problema residia no fato de que essas ações eram efetuadas
sem o conhecimento ou o consentimento do Itamaraty, o que acabava por gerar um
atrito entre o MRE e a embaixada sul-africana.
Época de possibilidades: a construção da parceria estratégica entre Brasil e
África do Sul na última década do século (1991-2000)
A última década do século XX mostrou-se favorável para o relacionamento entre o
Brasil e a África do Sul. Removido o apartheid, principal empecilho para a
normalização das relações entre os dois países, ambos buscaram, a princípio
timidamente e ao avançar a década com um pouco mais de desenvoltura, resgatar
um relacionamento antigo, porém pontuado por restrições de cunho político que
mais colaboraram para o afastamento e a permanente condição de desconhecimento
mútuo, apesar do caráter de vizinhança atlântica, como bem acentuou o diplomata
sul-africano Alwyn Zountendyk na longínqua década de 1930.
Animado pela perspectiva de solução pacífica e democrática para o problema do
apartheid, e considerando a importância econômica que a África do Sul
representava (e representa) no continente africano, o Brasil teve todo o
interesse em normalizar suas relações com Pretória, tão logo as circunstâncias
políticas internas sul-africanas o permitiram.
O contexto político da África Austral era dos mais promissores no início da
década de 1990, apresentando um cenário positivo que não era visto desde a
época da descolonização. Havia fortes indícios de que a guerra em Angola estava
por findar, com eleições marcadas para 1992. Moçambique atravessava uma fase de
pacificação política e transição econômica, da economia socialista para o livre
mercado. A Namíbia obtivera, em 1990, a independência. A África do Sul, o
principal responsável pela situação de insegurança regional, estava
comprometida com um processo irreversível de acomodação interna, cujo objetivo
último era a democratização de sua sociedade.
A visita de Mandela ao Brasil, em 1991, foi um sinal de que o país despertava,
pelo menos entre a liderança do Congresso Nacional Africano, algum interesse,
embora nunca tenha sido considerado como prioridade para a política exterior da
África do Sul. A boa vontade do governo sul-africano e a estratégia de
revigoramento das relações sul-sul, no entanto, motivaram Pretória a incluir a
América Latina na sua agenda externa.
Em sua abertura extracontinental, a verdadeira situação de caos econômico e
social que parece não ter fim no continente africano, salvo poucas exceções, é
um dos fatores que mais colaboram para que a África do Sul busque alternativas
ao contexto africano. Desta forma, há movimentos de Pretória que buscam
associações ou acordos comerciais com a União Européia, com os Estados Unidos,
com a Ásia-Pacífico, com países banhados pelo oceano Índico (no que resultou a
criação, em março de 1997, da Associação dos Países da Margem do Índico 'Indian
Ocean Rim ' 23 e, também, com a América Latina, não sem propósito enumerada em
último lugar), tendo no Brasil a porta de entrada para uma eventual associação
com o Mercosul, ou mesmo para a criação de uma Associação do Atlântico Sul, que
poderia ser elaborada nos moldes da celebrada com os países da margem do
Índico, inclusive aproveitando-se da estrutura já em funcionamento da Zona de
Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPCAS)24 .
No plano multilateral existem amplas possibilidades de atuação coordenada, haja
vista a notável convergência de interesses. Um desses campos está relacionado
com o tema do comércio internacional. A argumentação junto à OMC contra a
política de subsídios praticada pela União Européia seria um deles. A reforma
das regras de comércio internacional, incluindo-se a reestruturação da própria
Organização Mundial do Comércio é outro exemplo de como há espaço e necessidade
de atuação coordenada para se atingir objetivos difíceis no âmbito da temática
do comércio internacional. O Brasil, em sua disputa com o governo do Canadá
envolvendo a política brasileira de financiamento à exportação, tem
experimentado como as regras do jogo foram construídas para beneficiar os
países mais desenvolvidos. Noutros foros, pode-se e deve-se trabalhar
conjuntamente a proposta de controle dos fluxos financeiros internacionais,
principalmente os fluxos de capital de curto prazo, assunto que prejudica as
economias de ambos, sobretudo por conta da extrema volatilidade do capital
financeiro e especulativo.
Ademais, há perspectivas no campo da cooperação bilateral, pois existem
especializações complementares. Assim, pode-se citar os seguintes exemplos: a
África do Sul detém tecnologia de ponta no setor minerador, podendo contribuir
significativamente com o Brasil, seja através de programas oficiais de
intercâmbio, como o envio de técnicos brasileiros para cursos de especialização
em universidades e centros de pesquisa sul-africanos, ou mesmo para o
desenvolvimento de estágios em companhias mineradoras, como já ocorre (porém em
escala ainda diminuta), seja através da transferência de tecnologia e por
investimentos diretos no Brasil, exemplificado pelo conglomerado sul-africano
de mineração Billinton, que adquiriu uma participação acionária de 2,1% da
Companhia Vale do Rio Doce pelo valor de US$ 327 milhões, como anunciado em
julho de 200025 .
O Brasil, por seu turno, tem valiosa contribuição a oferecer para a África do
Sul em termos de cooperação bilateral, especialmente no campo da saúde pública.
A África do Sul é um dos países mais atingidos pela epidemia de AIDS no
continente africano, que por sua vez detém a triste marca de possuir cerca de
2/3 do total dos seres humanos infectados26 . Neste sentido, aproveitando-se da
experiência adquirida pelo Brasil no combate à AIDS, e lembrando que o país
transformou-se em um exemplo para a comunidade internacional por sua iniciativa
contra a doença, já está em andamento a discussão em torno da cooperação neste
setor. Em 1999, uma missão técnica da Coordenação Nacional de Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DST/AIDS), do Ministério da Saúde, visitou a África
do Sul e constatou que, em três áreas, há grande possibilidade de cooperação:
vigilância epidemiológica, informação em saúde e informação ao público,
educação e comunicação (IEC). Ainda nesta área, o Brasil também ofereceu às
autoridades sul-africanas tecnologia para produção de AZT em laboratórios do
país, o que ajudaria consideravelmente no esforço de combate à doença, com
evidentes implicações para a economia sul-africana como um todo27 . Existem
também outras iniciativas no campo da cooperação bilateral que poderiam ser
aproveitadas mutuamente. Em setores como a agricultura e recursos humanos, por
exemplo, já existem projetos em andamento28 .
Assim, delineia-se um quadro amplamente satisfatório para os dois países, haja
vista que a natureza da cooperação bilateral pode ser estabelecida em bases
igualitárias, em um genuíno exercício de cooperação sul-sul, sem os esquemas
tradicionais de dependência que se verificam nas relações norte-sul, até mesmo
quando esta se apresenta com a roupagem da cooperação.
Conclusão
A história das relações Brasil-África do Sul apresenta mais momentos de
desencontros do que de encontros. Países com perfil econômico semelhante, com
estrutura social complexa e formação histórico-cultural diferenciada, os dois
Estados mais importantes dos seus respectivos continentes fizeram, ao longo do
seu processo de desenvolvimento, opções políticas diferentes. Assim, com a
complexidade crescente das relações internacionais, a inserção internacional de
ambos se deu de maneira diversa. Enquanto o Brasil buscou inserir-se
positivamente no contexto internacional e regional, acatando as regras ' nem
sempre codificadas ' estabelecidas pela ordem internacional, a África do Sul
assumiu uma postura de desafio, inserindo-se, pois, de forma negativa, em um
processo que chegou ao ápice em meados dos anos 1980, quando o cerco
internacional se fechou sobre Pretória, ajudando, e muito, na revisão do
anacronismo da política de segregação racial adotada pelos africânderes.
Política esta que se chocava, frontalmente, com aquela defendida pela
diplomacia brasileira, que valorizava os elementos multirraciais de sua
formação étnica.
A ausência de elementos de cunho notadamente histórico convergentes, assim como
de aspectos culturais afins, colaborou significativamente para que não houvesse
o aprofundamento dos contatos entre os dois povos. O comércio foi o elemento
mais importante para manter o interesse brasileiro pela África do Sul e, até
certo ponto, desta pelo Brasil, sobretudo na primeira metade do século XX.
Ressalte-se, igualmente, que uma característica importante do comércio
bilateral foi a proeminência dos negócios privados, que puderam contar muito
pouco com a assistência estatal, quadro permanente e que perdura até os dias
atuais.
O apartheid teve implicações de toda natureza para a vida sul-africana, seja no
plano interno, seja no campo internacional. E teve também implicações para as
relações entre o Brasil e a África do Sul. Com efeito, os dois países
desenvolveram princípios de política racial diametralmente opostas. Enquanto o
governo de minoria branca na África do Sul erigia o apartheid, a sociedade
brasileira tornava ilegal a discriminação racial, embora seja necessário
reafirmar que isto não significa que, no Brasil, a discriminação racial tenha
desaparecido ao toque mágico de uma lei. É por demais evidente que o Brasil,
apesar da legislação anti-racista, não concretizou nenhuma política racial que
tenha tornado possível, à sua numerosa parcela de negros e mestiços, condições
de ascensão social.
A grande preocupação do Itamaraty centrava-se em dois aspectos: a) os prejuízos
que adviriam para a imagem do Brasil na cena internacional, sobretudo no seio
das Nações Unidas, em razão de relações próximas com a pátria do apartheid; daí
o adiamento, até o último momento, da elevação da Legação para Embaixada em
Pretória, o que só ocorreu em virtude de reformas internas e de caráter
administrativo no Itamaraty que, finalmente, decidiu suprimir todas as
remanescentes legações; b) uma vez decidida a aproximação com a África negra,
fez-se mais do que necessário estabelecer o mais baixo perfil possível nas
relações com a África do Sul. Assim, o Brasil, muito embora não tenha rompido
relações, como era desejo da maioria dos países africanos, desestimulou ao
máximo as relações comerciais com Pretória e não enviou um Embaixador para o
posto, demonstrando com este gesto a sua decisão de congelar as relações
bilaterais, política reforçada pelo desestímulo de todo tipo de contato oficial
em qualquer nível.
Outro aspecto relevante da conduta do Itamaraty com relação à África do Sul foi
a sua coerência em termos de conduta política. Desde o final da Segunda Guerra
Mundial, quando entrou em discussão nas Nações Unidas a questão do Sudoeste
Africano, o Brasil deixou claro sua posição contrária a qualquer tentativa de
anexação do território por parte da então União Sul-Africana. O entendimento do
governo brasileiro era condizente com o sentimento geral que prevalecia na ONU,
qual seja: a África do Sul tinha um mandato de administração concedido pela
Liga das Nações, o qual passou a ser de responsabilidade direta das Nações
Unidas, uma vez criado este organismo internacional como sucessor da antiga
Liga. Esta idéia prevaleceu como um princípio para o Itamaraty, o qual, ao
longo dos anos, intensificou suas críticas à ocupação ilegal do território por
parte de Pretória, principalmente após a aprovação da Resolução 435 (1978) do
Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Nesse mesmo contexto da coerência da política externa brasileira para a África
do Sul, esteve a questão do apartheid. Muito embora o Brasil tenha tomado, a
princípio, a questão como sendo um caso de política interna, não sendo, pois,
da alçada das Nações Unidas se intrometer, a posição brasileira gradualmente
evoluiu para uma postura crítica, alimentada inclusive pela inflexibilidade do
governo africânder que se recusava a aceitar as críticas da comunidade
internacional e a proceder, até mesmo, a reformas do sistema de discriminação
racial. Assim, para a projeção internacional do Brasil, o apartheid passou, de
elemento inibidor e constrangedor, para uma variável proibitiva para a política
exterior brasileira, sobremodo, àquela voltada para o continente africano. Com
o avanço e consolidação da política africana brasileira, a partir de meados da
década de 1970, o Brasil passou a intensificar, ao máximo, a sua contundente
crítica à discriminação racial praticada na África do Sul, feita em todas as
oportunidades que se apresentaram, principalmente nas declarações conjuntas
elaboradas durante os contatos com os países africanos e nos debates ocorridos
nas Nações Unidas.
Nos anos 1990, o Brasil acompanhou a retomada da aproximação com a República da
África do Sul, comportamento semelhante àquele adotado pela maior parte dos
países do Ocidente. A África do Sul passou, portanto, a ser vista pelo governo
brasileiro como possível aliada no plano multilateral ' numa época de
globalização e incertezas variadas ' e parceira importante no plano do comércio
bilateral.
Considerando a difícil situação da África Austral, o Itamaraty vem
desenvolvendo uma política de atracão da República da África do Sul para
entendimentos bilaterais, caso não seja possível um acordo entre o Mercosul e a
SADC, ou mesmo entre o Mercosul e a África do Sul. Além do convite para que o
Presidente Nelson Mandela participasse da reunião do Mercosul, em 1998, o ex-
Ministro das Relações Exteriores do Brasil esteve, no início de 2000, na Cidade
do Cabo, para conversações com autoridades sul-africanas a respeito de um
projeto de integração econômica, o que demonstra que há interesse por parte do
Brasil em intensificar as relações comerciais com a África do Sul, a qual vem
sendo considerada pelo MRE, na década de 1990, como um dos três países
prioritários para a política externa brasileira no continente africano (sendo
os outros dois países Angola e Nigéria).
Com relação à política exterior sul-africana na última década do século XX, o
seu estudo permite concluir que o Brasil está longe de ser uma de suas
prioridades. A normalização das relações internacionais da África do Sul exigiu
um hercúleo esforço dos seus dirigentes, que em muitos aspectos não estavam
preparados para assumir tantas responsabilidade a um só tempo. De repente, o
Ministério dos Negócios Estrangeiros da África do Sul se viu na contingência de
atender inúmeros pedidos de estabelecimento de relações diplomáticas, assim
como ser integrado (ou reintegrado) em vários organismos internacionais. Do
ponto de vista administrativo, ainda durante o ano de 2000, estava o Ministério
passando por uma série de transformações e de ajustes internos, relacionados à
transição democrática e à conseqüente necessidade de renovação dos quadros
diplomáticos, com a ascensão dos negros aos postos proeminentes.
No que diz respeito às relações entre Brasil e África do Sul desde a
democratização da sociedade sul-africana e sua reintegração à comunidade
internacional, um dos campos mais propícios para uma eventual cooperação entre
ambos localiza-se na arena multilateral, onde os dois países têm interesses
convergentes, como em temas relativos ao comércio internacional (por exemplo, a
luta pelo fim dos esquemas protecionistas dos países desenvolvidos, isto é, a
liberalização, de fato, do comércio internacional, e não a manutenção de
mecanismos que protejam os países desenvolvidos em detrimento dos em
desenvolvimento) e aos fluxos internacionais de capital, os quais, quase que
totalmente desregulamentados, vêm afetando ambas as economias nacionais em uma
intensidade nunca antes vista.
Na pauta bilateral também evidenciam-se possibilidades de cooperação, em
diversos setores. Constituindo-se em sociedades marcadas pela desigualdade
social, Brasil e África do Sul podem aprender muito um com o outro, e até mesmo
desenvolver conjuntamente projetos de interesse mútuo. O Brasil possui alguma
experiência na difícil questão do crescimento desordenado de suas grandes
cidades, conhecimento que poderia auxiliar os sul-africanos em uma questão que
vem se intensificando rapidamente na África do Sul desde os anos 1990. Outro
campo em que o Brasil está bem adiantado é no setor de saúde pública, mais
especificamente com relação a doenças sexualmente transmissíveis. Como o
problema é gravíssimo na África do Sul, o Brasil já ofereceu cooperação nessa
área, sobretudo na questão da AIDS. Os sul-africanos, por sua vez, para citar
um exemplo, acumularam conhecimentos especializados na área de mineração, os
quais certamente seriam muito úteis ao Brasil. Há, também, boas perspectivas
para a troca de informação e conhecimento no setor agrícola, em que um e outro
desenvolveram tecnologias próprias e adaptáveis a ambas as realidades.
O comércio entre os dois países também cresce continuamente, mantendo o padrão
histórico de crescimento gradual e constante verificado desde o início dos
contatos comerciais. Mas o mais importante é que a pauta bilateral vem sofrendo
alterações qualitativas nas últimas décadas, sendo já uma característica do
passado o intercâmbio de produtos primários. Assim, o entrosamento é grande,
particularmente, no setor automobilístico. A recém anunciada venda de aviões da
Embraer (modelo ERJ-135) para a companhia sul-africana South Africa Airlink, em
um negócio que pode chegar a US$1 bilhão, é outro forte indicativo das grandes
possibilidades comerciais que o Brasil possui na África do Sul.
Finalmente, não seria exagerado concluir que, após tantos desencontros entre os
dois países, motivados por questões de princípio, de difícil arranjo político
para sua superação, o relacionamento entre o Brasil e a África do Sul apresenta
a tendência a um gradual crescimento justamente na última década do período
cronológico em que se encerra a análise desenvolvida no presente trabalho. Com
efeito, pela primeira vez no âmbito das vinculações históricas entre ambos, não
existem condicionamentos ideológicos ou outros de natureza exógena a dificultar
ou impossibilitar um entendimento que se apresenta altamente profícuo para os
dois países.
Notas
1 A União Sul-Africana nasceu em 1910, da federação das antigas colônias do
Cabo e de Natal e dos ex-Estados independentes de Orange e Transvaal, então
colônias britânicas. Através de um referendo, a União Sul-Africana transformou-
se em República em 1960, quando passou a denominar-se República da África do
Sul. Em 1961, desligou-se da Commonwealth Britânica, assumindo para si a
soberania plena e totalmente desvinculada da Grã-Bretanha. Neste trabalho os
termos União Sul-Africana e República da África do Sul, ou, simplesmente,
África do Sul, eqüivalem-se, salvo quando houver referência em contrário.
2 Pesou muito para a decisão brasileira de distanciar-se de Pretória o
resultado do processo da descolonização dos territórios portugueses. O Império
colonial português ruiu entre 1974 e 1975. Tal presença colonial em África
inibia uma ação mais desenvolta da diplomacia brasileira, uma vez que o país
não conseguiu manter-se afastado de todo dos desígnios portugueses em África,
os quais se revelaram numa incômoda herança para a diplomacia brasileira
administrar no continente africano.
3 Report by Alwyn Zoutendyk on the Interchange of Trade between The Union of
South Africa and South America Republics ' Brazil; Argentine; Uruguay.
Pretória, 18 th July, 1936, p.2. National Archives of South Africa (doravante
NASA). caixa Buitelandse Sake (doravante BTS), 10/1/35, vol.1, Brazil ' Union
of South Africa ' Comercial Relations.
4 Brasil. Ministério das Relações Exteriores. Relatório.Rio de Janeiro: Seção
de Publicações da Divisão de Documentação do Ministério das Relações
Exteriores, 1944, p.190. Doravante somente Relatório.
5 Muito embora o Ato de criação da União Sul-Africana (South African Act, de
1909) não reconheça autonomia total à União, esta gozava, com efeito, de alto
grau de autonomia, possuindo parlamento próprio, primeiro ministro e governador
geral, que representava a Coroa Britânica. Constituía, pois, um Estado unitário
e em muito se diferenciava de uma colônia, razão pela qual se refere à União
como "país". Gradualmente, o governo da União Sul-Africana foi conquistando
mais autonomia, até mesmo com relação à sua política externa, garantida pela
Declaração Balfour, em 1926.
6 Informação recebida pela Professora Zélia Roelofse do Comandante A.L.du
Preez, então Capitão do Exército sul-africano em atividade na Itália. Citado
em: ROELOFSE, Zélia. " Brazil ' A lesson in national unity". In: Unisa Latin
American Report, 2(2), September 1986, p. 29.
7 O Acordo Comercial de 1939 foi proposto pela União Sul-Africana, e se
estendia "aos produtos da União Sul-Africana e do Território do Sudoeste
Africano sob seu mandato", além de prever a cláusula da nação mais favorecida.
Memorando DAF-II/75, assinado por Bernardo Pericás Neto, Chefe substituto da
DAF-II. Brasília, 24 de novembro de 1977. AMRE, Memorandos/Pareceres/
Requerimentos, caixa F 01, 1977. Confidencial.
8 Decreto n° 23.943 de 28/10/1947 ' Artigo 1° Fica criada a Legação do Brasil
na União Sul Africana, com sede em Pretória. (In: Leis do Brasil, 1947, v.
8,p.57) p. 7. Cf. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores
(Biblioteca). Missões Diplomáticas e Repartições Consulares ' criação,
transformação e extinção.Legislação atualizada até 31 de dezembro de 1966.
Seção de Publicações, 1968.
9 Report by Alwyn Zoutendyk on the Interchange of Trade between The Union of
South Africa and South America Republics ' Brazil; Argentine; Uruguay.
Pretória, 18 th July, 1936, p.2. National Archives of South Africa (doravante
NASA). caixa Buitelandse Sake (doravante BTS), 10/1/35, vol.1, Brazil ' Union
of South Africa ' Comercial Relations. Ver especialmente p. 2 a 8.
10 Ibidem, p. 6-8.
11 Ibidem.
12 É relevante observar a contradição explícita entre o discurso de Osvaldo
Aranha e a realidade política brasileira, haja vista que o país vivia em plena
ditadura do governo Vargas. Ofício de M. E. Antrobus, Office of the High
Comissioner for the United Kingdom. para H.D.J. Bodenstein, Secretário para
Assuntos Externos. Cape Town, 27 de maio de 1938. NASA, BTS, caixa 72/10/1,
Brazilian Legation in the Union (of South Africa).
13 Idem.
14 SCHELLNACK, Isabel S. Chile, South Africa and the great powers, 1795-1948.
Pretória: University of South Africa, 1998, p. 134.
15 O governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra se caracterizou, em certa medida,
pelo alinhamento aos Estados Unidos e por uma expressiva política
anticomunista, de acordo com os moldes da nascente Guerra Fria. Sobre a
política externa daquele governo ver: MOURA, Gerson. O alinhamento sem
recompensa: a política externa do governo Dutra. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV,
1990.
16 Ver: GELDENHUYS, Deon. The diplomacy of isolation'South African foreign
policy making. Nova York: St. Martin's Press, 1984, p.4. Na
Argentina e no Brasil, até 1947, as relações eram em nível consular.
17 No caso do Brasil, ocorreu a consolidação de uma tendência que vinha se
cristalizando desde pelo menos o início dos anos 1930, qual seja: a
substituição da Grã-Bretanha pelo Estados Unidos da América como o principal
parceiro do Brasil, tanto em termos econômicos quanto de influência política e
cultural. Pedro Malan discute a inserção econômica internacional brasileira em
seu clássico trabalho: MALAN, Pedro. "Relações Econômicas Internacionais do
Brasil (1945-1964)". In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização
brasileira. São Paulo: Difel, 1986, t. 3, v. 4, p.51-106.
18 É de se notar que a grande maioria dos teóricos que se dedicaram ao estudo
da geopolítica e aos seus reflexos para o futuro do Brasil eram oriundos das
forças armadas, muitas vezes ainda na ativa. Assim, tal característica reforça
o papel influente de tais teóricos durante o regime militar, uma vez que se
tratava da aplicação ou, no mínimo, discussão, de pensamentos elaborados por
"companheiros de armas", muitas das vezes em plena atividade. Dentre os
oficiais que mais se destacaram no estudo da geopolítica e suas implicações
para o Brasil pode se citar: no Exército, o General Golbery do Couto e Silva,
que escreveu a obra Geopolítica do Brasil.Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. Na Marinha destacou-se o Almirante Carlos de Meira Mattos. De
suas obras citamos: Projeção Mundial do Brasil.São Paulo: Leal, 1961; Brasil:geopolítica e trópicos. Rio de Janeiro: Bibliex, 1984; Brasil
' geopolítica e destino. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977;
"O Atlântico Sul ' sua importância estratégica". A Defesa Nacional,688, 1980,
p.73-90.
19 OTAS, abreviatura para Organização do Tratado do Atlântico Sul. Iniciativa
sul-africana tendo em vista a criação de um Pacto Militar para defesa do
Atlântico Sul e que continha, em sua formulação, a idéia subjacente de romper o
isolamento político e diplomático que vinha sendo imposto à África do Sul em
decorrência da política de segregação racial, ou apartheid. O Brasil chegou a
ser incluído entre os países a serem alvos de represálias nas recomendações da
Conferência de Dar-Es-Salaam, quando foi, para efeitos de sanções diplomáticas
e econômicas, colocado ao lado de Portugal, África do Sul, França, Grã-
Bretanha, Alemanha e Estados Unidos. Cf. Memorando DAO/12, assinado por
Wladimir do Amaral Murtinho, Chefe do Departamento da África, Ásia e Oceania,
para o Secretário Geral das Relações Exteriores. Brasília, 11 de fevereiro de
1974. AMRE, Memorandos, caixa C ' 02, 1974. Confidencial.
20 O Brasil não permitia a venda de armas para a África do Sul desde meados da
década de 1960. Contudo, armas leves, de defesa pessoal, ou para fins
esportivos produzidas no país pelas empresas Rossi e Taurus, continuaram sendo
exportadas para a África do Sul, sem o aval do governo brasileiro. O
exportadores, na verdade, utilizavam-se de vários artifícios para promover esse
comércio. Um deles era vender armas para empresas aparentemente registradas no
Lesoto, mas geralmente inexistentes. Como o envio da mercadoria tinha que,
necessariamente, passar pela África do Sul, a carga era desviada no aeroporto
de Johannesburg, seu verdadeiro destino final.
21 Ofício de J. Van Dalsen, Secretário de Assuntos Externos, para Embaixada em
Brasília. 11 de março de 1975. ADFA, Brazil Relations with South Africa, 1/10/
3, vol. 7. Secreto.
22 Memorando DAF-II/52, para o Chefe da Divisão de África II. Brasília, 22 de
outubro de 1979. AMRE, Memorandos, caixa H 01, 1979. Confidencial.
23 A propósito da participação da África do Sul na Associação dos Países da
Margem do Índico, ver: BURROWS, David. "South Africa's role in the Indian Ocean
Rim Initiative". In: South Africa Yearbook of International Affairs, 1997,
p.169-178.
24 Essa idéia já foi defendida por alguns intelectuais sul-africanos, mas
aparentemente não empolgou a diplomacia da África do Sul. Ver: BROEKMAN, David
O . "A South Atlantic Rim Association: from a notion to a reality?". UNISA
Latin American Report. 14 (2) July-December, 1998, p.4-20.
STAHL, Heinz-Michael. "Prospects for co-operation between SADC and Latin
American trade blocs." UNISA Latin American Report. 14 (2) July-December, 1998,
p.21-27.
25 Cf. Informação n° 581 da Assessoria de Comunicação Social do Ministério das
Relações Exteriores. 08 de dezembro de 2000. Disponível em: http://
www.mre.gov.br/infocred/info581-00.htm
26 As estimativas para o número de pessoas infectadas vírus HIV na África do
Sul variam muito. A mais otimista indica que cerca de 10% da população estaria
infectada. A mais pessimista, e talvez realista, estima algo em torno de 30% da
população. O mais grave, no entanto, é que o país carece de uma política
pública voltada para o controle da epidemia através do esclarecimento da
população. Não há, sequer, atendimento especializado acessível à população de
baixa renda. Outro detalhe, de especial importância e que vem contribuindo para
agravar a situação, é o fato de que o próprio Presidente Thabo Mbeki tentou
"politizar" a discussão científica, manifestando suas sérias dúvidas se o HIV
realmente é o causador da AIDS. Enquanto isso, sequer as mulheres grávidas têm
direito a receber a medicação mundialmente utilizada para evitar a contaminação
do filho e melhorar a qualidade de vida do doente, o AZT e o coquetel de
remédios que acompanha a administração da droga. Essas informações foram
colhidas através da leitura diária dos jornais sul-africanos, vivamente
embalados na polêmica envolvendo os conhecimentos "científicos" do Presidente
Thabo Mbeki, e através de conversas com cidadãos sul-africanos durante o
período em que este autor passou na África do Sul como pesquisador visitante na
Universidade da África do Sul, em Pretória.
27 Cf. Informação n° 581 da Assessoria de Comunicação Social do Ministério das
Relações Exteriores. 08 de dezembro de 2000. Disponível em: http://
www.mre.gov.br/infocred/info581-00.htm
28 A EMBRAPA e a Agricultural Research Council assinaram em 1992 um "Memorando
de Entendimento" visando à troca de técnicos entre os dois países. Interessa
aos sul-africanos o conhecimento brasileiro no setor de produção de sucos de
frutas. O Brasil, por sua vez, tem interesse na tecnologia sul-africana de
irrigação por gotejamento, na produção de uvas e vinhos e criação de animais
adaptados a climas semi-áridos.
Junho de 2001