Brasil-China: trinta anos de uma parceria estratégica
INTRODUÇÃO
Nas duas últimas décadas do século XX, o Brasil passou por um processo paralelo
de transformações. Enquanto, no plano político, os anos 1980 marcaram a
transição de um regime militar para a democracia, no plano econômico o Brasil
assistiu à exaustão do modelo essencialmente autárquico de desenvolvimento. Em
conjunto com a turbulência financeira, a estratégia de inserção à economia
mundial sob controle do Estado tornou-se crescentemente mais difícil.
Adicionalmente, nos anos 1990, a diluição das fronteiras econômicas e a
"internalização" da economia mundial como um novo fato suscitaram conseqüências
que representaram importantes lições para a condução da política externa
brasileira. Embora no passado o país tivesse buscado a autonomia possível
através de um relativo distanciamento do mundo, na virada do milênio a
autonomia possível e necessária para o desenvolvimento somente pode ser
construída através de uma ativa participação na formulação das regras e normas
de conduta para o gerenciamento da ordem mundial.1
Com o objetivo de o país manter uma relativa margem de manobra no plano
externo, a distribuição diversificada da estrutura brasileira de comércio
exterior não só é percebida como uma vantagem, como se procura mantê-la. Em
2003, 23,1% das exportações brasileiras foram para os Estados Unidos e 24,8%
para a União Européia. A América do Sul foi responsável por 17,7%, a Ásia por
16% e o resto do mundo por 18,4%. Assim, todas as principais áreas do mundo são
importantes mercados para o Brasil. Entretanto, o desafio de ampliação da
participação do país no mercado mundial e de continuidade do processo de
desenvolvimento econômico requer ações nas diversas regiões (veja Tabelas_Ie
II).
Esse objetivo de universalização ou de diversificação de parcerias mostra-se
como uma constância na definição da política externa brasileira, sendo que, na
visão de Maria Regina S. Lima, "representa um traço do estilo diplomático
brasileiro, o qual favorece a flexibilidade no processo decisório e o
alargamento das possíveis opções internacionais, de forma que a possibilidade
de escolhas futuras seja mantida em aberto".2
Nesse sentido, o atual governo brasileiro, ainda que com possíveis ênfases
diferenciadas, mantém a perspectiva de diversificação.
É assim que, na minha opinião, o Brasil precisa proceder. Nós temos a
América do Sul, nós temos a China, nós temos todo o mundo asiático,
nós temos o Oriente Médio, nós temos a Índia e temos a África, e é
uma obrigação política, moral e histórica nossa estreitar cada vez
mais a relação com o continente africano, não podemos esquecer isso.
(...) Tenho repetido que a América do Sul será prioridade em meu
governo, pois estou convencido de que o desenvolvimento pleno do
Brasil só será possível como parte da integração do continente como
um todo. (...) E se temos uma vocação regional, somos, também um país
global. Da mesma forma que a integração nacional passa pela
integração regional, estou convencido de que a aproximação com a Ásia
e, em particular com a China, será decisiva para o Brasil realizar
esse destino maior.3
Assim, em seu atual projeto de inserção internacional, o Brasil delega à região
asiática um espaço especial, considerando-se a grande demanda por investimentos
e por acesso a tecnologias de ponta, bem como por um mercado com alta
capacidade de consumo. Por sua vez, o Brasil suscita interesses na Ásia por se
caracterizar como uma importante fonte supridora de matérias-primas,
principalmente produtos alimentícios e insumos básicos. Nesse sentido, à medida
que a Ásia se dinamiza e se especializa em produtos manufaturados, é mantido ou
ampliado o interesse na importação de produtos básicos do Brasil.
A presente análise baseia-se na premissa de que, até a década de 1970, o
relacionamento brasileiro com a Ásia restringia-se basicamente às relações com
o Japão, com a aproximação, de caráter mais político, com a República Popular
da China na metade dos anos 1970. Acata igualmente a percepção de que esse
restrito relacionamento sofre uma retração com a sucessão de crises nos anos
1980, retomando força na década de 1990.
Na última década, a retomada e ampliação do relacionamento com a Ásia adquirem
novo vigor pela maior presença tanto da Coréia do Sul e dos países do Sudeste
Asiático, quanto da China, que, em decorrência de seu desenvolvimento
acelerado, não mais é só um ator político, mas um forte mercado consumidor além
de fornecedor. Essa retomada tem clara conotação econômica, mas também é
influenciada pela disputa comercial entre os países desenvolvidos e a proposta
de criação de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca), por muitos
entendida como uma modalidade de protecionismo regional, com entraves para a
inserção de atores externos.
No início dos anos 1960, a partir da constatação de perspectivas divergentes,
os Estados Unidos envolvidos com as questões da segurança internacional e o
Brasil voltado para a busca de instrumentos que possibilitassem seu
desenvolvimento econômico, a política externa brasileira entrou num processo de
alteração de seu paradigma anterior, baseado numa aliança estratégica com os
Estados Unidos. Foi fundamental nesse processo, de um lado, a perspectiva de
diversificação de parceiras, econômicas e/ou políticas, e, de outro, a
aceitação das teses do Terceiro Mundo, em especial a necessidade da definição
de uma Nova Ordem Econômica Internacional.
Os argumentos aqui apresentados sugerem que o fim do regime militar, nos anos
1980, não introduziu maiores alterações na política externa brasileira.
Diferentemente de outros países da América Latina, o processo de
redemocratização no Brasil teve somente um efeito residual na condução da
política internacional. Apesar da mudança política e tímida liberalização
econômica, a política externa ainda constitui um dos instrumentos centrais da
política nacional de desenvolvimento. E, se as relações com a Ásia forem
analisadas sob essa perspectiva, quatro pontos merecem destaque especial:
1) Numa perspectiva histórica, enquanto o discurso da política
externa favorecendo a Cooperação Sul-Sul poderia ter aproximado mais
o Brasil da Ásia, o relacionamento brasileiro, até a metade dos anos
1980, esteve muito mais direcionado para a África e para o Oriente
Médio. Teve um relacionamento político mais intenso somente com a
China, enquanto que com o Japão, ainda que de extrema importância
para o conceito de diversificação de parcerias, não pode ser
considerado como um país em desenvolvimento.4
2) O fato de que, no pós-Guerra Fria, a manutenção da ênfase
desenvolvimentista brasileira na política externa em conjunto com o
dinamismo econômico asiático aumentou as perspectivas de busca de uma
cooperação mais íntima com os países da Ásia. A abertura comercial
brasileira e a procura pelo país de acesso a novos mercados
aumentaram as potencialidades para relações econômicas mais intensas.
Além do mais, os países asiáticos começaram a perceber o Brasil e a
América do Sul como parceiros potencialmente interessantes,
especialmente desde a Crise Asiática e a ampliação das tendências de
aprofundamento do regionalismo na Europa (a fortaleza européia) e nas
Américas (Alca).
3) Apesar desses aspectos positivos com vistas à intensificação das
relações entre o Brasil e a Ásia, a posição brasileira tem sofrido
constrangimentos decorrentes de compromissos no contexto regional ou
até mesmo ocidental, fazendo com que o aprofundamento das relações
com a Ásia, no geral, seja muito mais reativo às iniciativas
asiáticas.
4) A melhoria e a implementação de um relacionamento com a Ásia têm
sido muito dependentes de iniciativas governamentais. Embora, nos
últimos anos, tenha havido uma participação mais ativa da sociedade
civil no processo de definição da política externa brasileira, essa
participação tem sido muito mais direcionada às questões regionais e
hemisféricas do que às relações brasileiras com a Ásia.
1. O DESENVOLVIMENTO INICIAL DAS RELAÇÕES DO BRASIL COM A ÁSIA E CHINA
Até quase o final do século XIX pode-se afirmar que não havia qualquer tipo de
relacionamento entre o Brasil e a Ásia. No que se refere ao Japão, por exemplo,
somente com a Restauração Meiji (1867) é que o Japão vai sofrer uma série de
modificações estruturais que possibilitam o estabelecimento do Japão moderno e
também uma abertura para o exterior.
Em decorrência da Restauração Meiji, a economia japonesa sofre um processo de
desestabilização provocando fluxos migratórios inicialmente para o Havaí e a
Costa Oeste dos Estados Unidos. Do lado brasileiro, com a abolição da
escravidão em 1888 e com o crescimento rápido da lavoura cafeeira no Estado de
São Paulo, tornou-se necessária a ampliação da migração de mão-de-obra externa.
Dessa forma, o relacionamento bilateral entre o Brasil e o Japão inicia-se com
a vinda de migrantes para o trabalho nas lavouras cafeeiras. A base legal para
esse relacionamento é criada, primeiramente, pela assinatura do Tratado de
Amizade, Comércio e Navegação em novembro de 1895 e, depois, pelo
estabelecimento de companhias que trabalhavam especificamente no recrutamento e
transporte de emigrantes.
Note-se que inicialmente a opção era por mão-de-obra chinesa, motivando o
deslocamento de uma missão brasileira para a China em 1879. Mesmo com a não
concretização dessa corrente migratória, pela proibição formal da China em
permitir emigração para o Brasil, os dois países assinaram o Tratado de
Amizade, Comércio e Navegação em 1881, com o Brasil abrindo um consulado em
Shangai em 1883.
A razão da não permissão de vinda dessa mão-de-obra ao Brasil decorre
essencialmente dos problemas que as primeiras correntes migratórias para o
continente americano tinham sofrido, em especial em Cuba, no Peru e na
Califórnia (Estados Unidos).
Acresce-se ainda que o Tratado assinado entre Brasil e China seguia o modelo
dos firmados pela China com as potências ocidentais (denominados detratados
desiguais), buscando assegurar privilégios através dos princípios da nação mais
favorecida e da extraterritorialidade.5
A chegada do navio Kosato Maru, em 1908, dá início à imigração japonesa ao
Brasil, tendo um crescimento significativo até 1934 quando a nova Constituição
brasileira limita o fluxo migratório, o qual praticamente se interrompe com a
Segunda Guerra Mundial, sendo retomado somente após 1955 6.
Já com a China, os contatos bilaterais foram escassos em decorrência da
sucessão de conflitos internos e externos que a afetaram no final do século XIX
e na primeira metade do século XX. Com a vitória de Mao Zedong em 1949, o
Brasil rompe as relações diplomáticas com a China continental, fechando o
consulado em Shangai e abrindo uma embaixada em Taipei (1952). Mesmo assim,
registra-se durante o século XIX a entrada oficial de aproximadamente 3.000
chineses, decorrente, em especial, de tentativas isoladas de recrutamento de
mão-de-obra para trabalho na agricultura e para o cultivo do chá no Rio de
Janeiro.7 Após 1949, constata-se a intensificação de um fluxo migratório
chinês, não oficial para o Brasil, em especial para a cidade de São Paulo.
2. AS RELAÇÕES POLÍTICAS E COMERCIAIS DURANTE A GUERRA FRIA
Nas décadas de 1950 a 1970, não se pode pensar propriamente num relacionamento
Brasil-Ásia. Apesar de presente em discursos, principalmente a partir da
política externa independente8 no governo Jânio Quadros, constata-se, na
realidade, somente uma interação, no plano multilateral, de construção de uma
agenda política comum a países em desenvolvimento, no processo de defesa de
instauração de uma nova ordem econômica internacional.
Sukarno, por exemplo, em 1959, foi o primeiro presidente asiático a visitar o
Brasil. E, em maio de 1961, foi assinado um acordo bilateral econômico.
Excluindo esses dois eventos, pode-se afirmar sobre a inexistência, até a
década de 1980, de um relacionamento concreto entre os dois países, ou mesmo
com o Sudeste Asiático. Na realidade, a Indonésia passa a compor o imaginário
político no que se refere ao estreitamento de vínculos com o mundo afro-
asiático, dentro dos pressupostos de Bandung e da política externa
independente. A intensificação das relações com o mundo afro-asiático seria
conseqüência da necessidade de autodeterminação não só nacional mas também do
contexto afro-asiático com vistas à superação mútua do subdesenvolvimento.
Dentro dessa perspectiva de Cooperação Sul-Sul, a política externa brasileira
nitidamente envolveu-se mais profundamente com o continente africano,
desenvolvendo o que se chamou de política africana. Essa política claramente
representou, enquanto emblema, o envolvimento brasileiro com as perspectivas de
geração de uma nova ordem econômica internacional ou com sua política de
Terceiro Mundo.9
Essa aproximação com o continente africano, interpretada como uma opção em
relação à Ásia e, em especial, ao Sudeste Asiático, que poderia oferecer
vantajosas oportunidades comerciais, passou a sofrer no início dos anos 1990
uma série de críticas. Gibson Barbosa, Ministro de Relações Exteriores de 1969
a 1973, pondera que
não houve opção naquela ocasião, como também não deve haver hoje,
pois uma coisa não exclui a outra. De qualquer modo, o fato dominante
no sudeste asiático, na primeira metade da década de 1970, não eram
os famosos "tigres", tão louvados e invejados hoje, mas sim a guerra
do Vietnã, que, como se sabe, terminou somente em 30 de abril de
1975. De tigre na região só havia na época os Estados Unidos da
América, que aliás os chineses chamavam de "tigre de papel". Os
chamados tigres asiáticos surgiram muito depois.10
A China foi o único país da Ásia com o qual o Brasil conseguiu estabelecer
alguns laços significativos no contexto da Cooperação Sul-Sul. Após o
restabelecimento das relações diplomáticas em 15 de agosto de 1974, a parceria
sino-brasileira objetivou uma ação conjunta em tópicos de interesses comuns de
desenvolvimento na agenda internacional. Apesar das diferenças em relação aos
sistemas políticos, ambos, Brasil e China demonstraram similaridades em alguns
princípios de política externa, principalmente a determinação em assegurar a
autonomia internacional, sua ênfase na soberania nacional e integridade
territorial, opondo-se assim a qualquer tipo de interferência externa nos
assuntos internos. China e Brasil apresentaram também posicionamentos similares
em relação a outras questões internacionais, tais como a oposição à diplomacia
de direitos humanos dos Estados Unidos e a responsabilidade comum à cooperação
multilateral Sul-Sul, em especial a oposição ao protecionismo comercial dos
países desenvolvidos.11
Vale a pena retomar a idéia de que no final dos anos 1960 a política externa
brasileira, após a interrupção no primeiro governo da Revolução, estava
retomando as perspectivas da política externa independente. Assim, já no início
do governo Costa e Silva, o Brasil recusava-se a assinar o Tratado de Não
Proliferação Nuclear, privilegiava a participação nos fóruns multilaterais, e,
entre outras ações, recuperava seu papel de liderança na Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio de Desenvolvimento (Unctad). O Brasil, resumidamente,
estava apostando enfaticamente na agenda do Terceiro Mundo e, conseqüentemente,
visualizou a República Popular da China, retomando sua cadeira no Conselho de
Segurança da ONU e defendendo os mesmos ideais como um promissor parceiro na
defesa dos interesses comuns.
A China, por sua vez, buscava igualmente por um lugar próprio na política
mundial. Deng Xiaoping, em 1972, anunciava o fim do "Campo Socialista" e
identificava a China como pertencendo ao Terceiro Mundo, e Mao Zedong, em 1974,
desenvolvia a "Teoria dos Três Mundos" 12. Com base nesse novo conceito, a
partir de 1969, a China passou a diminuir seu apoio aos movimentos
revolucionários da América Latina e buscou desenvolver uma diplomacia
estratégica de governo a governo, prometendo respeitar o princípio de não
interferência nos assuntos internos.13
Aponta-se, de um lado, que, para a política externa brasileira, com forte
atuação nos fóruns multilaterais e com ênfase nas teses do Terceiro Mundo, o
restabelecimento de relações com a China era fundamental para dar credibilidade
e legitimidade à ação brasileira. No entanto, já se notava um relativo
interesse, por parte do empresariado brasileiro, pelo mercado chinês. A
primeira iniciativa, digna de nota, compreende, de um lado, a missão comercial
brasileira que se dirigiu a Pequim em 1961, sob coordenação do vice-presidente
João Goulart e, de outro, a missão comercial chinesa que foi interrompida com o
golpe de 1964 e com a prisão de seus nove membros. Essa iniciativa, no entanto,
era comprovadamente precoce e de difícil continuidade em decorrência das baixas
potencialidades de intercâmbio bilateral.
De qualquer forma, a iniciativa, assim como a que se tomava em relação ao
continente africano, decorria da percepção e interesse de Jânio Quadros em
aproximar-se do grupo dos países não-desenvolvidos.
De modo afirmativo e conciso dirigiu-se, em 19 de setembro de 1961,
num de seus famosos bilhetes, aos Ministros das Relações Exteriores e
da Indústria e Comércio: "(...) 1) solicito de Vossas Excelências, em
conjunto, o exame e sugestão de nomes para a constituição da Missão
Econômica Brasileira, que irá à República Popular da China. Desejo
Missão de alto nível, parecendo conveniente incluir, como um dos
Conselheiros, o Ministro João Augusto Araújo Castro, ora servindo em
Tóquio. 2) Sugerir, ainda, a ida da mesma Missão a alguns outros
países. É o caso da Indonésia e da Malásia, com o exame atento das
possibilidades de Singapura, como entreposto." A finalidade da missão
fora firmada em carta do Chanceler Afonso Arinos dirigida ao Chefe da
Missão o vice-presidente João Goulart (...) "no propósito da
administração de promover substancial expansão no comércio
internacional do Brasil, à vista da imperiosa necessidade de um
vigoroso desenvolvimento econômico do país".14
Posteriormente, no início da década de 1970, detectam-se as primeiras
tentativas de aproximação comercial correspondendo tanto ao processo inicial de
reaproximação entre Estados Unidos-China, quanto aos interesses do Brasil que,
em decorrência de seu crescimento econômico, estava buscando novas parcerias.
Chen Duqing relembra que a primeira venda de açúcar brasileiro à China ocorreu
no início dos anos 1970, por intermédio do ministro Pratini de Morais que
convenceu o presidente Médici de que a venda de açúcar não tinha nada a ver com
política.15 E essa venda foi logo seguida pela missão pioneira de Horácio
Coimbra, da Companhia Cacique de Café Solúvel, em 1971, estando acompanhado
pelo cônsul brasileiro em Hong Kong, Geraldo de Holanda Cavalcanti.
É interessante a observação de que o Ministério das Relações Exteriores
(Itamaraty)
não descurou, no passado, dos interesses brasileiros na Ásia. (...)
Na verdade, nossa política, então, consistia praticamente em
reconhecer comercialmente o regime chinês, sem rompermos
politicamente com Taiwan, com o qual mantínhamos importante e
promissor relacionamento comercial e financeiro. Nosso primeiro passo
nesse sentido, cuidadosamente planejado, teria sido celebrar um
acordo interbancário entre o Brasil e a China, pelo qual seriam
reciprocamente abertos escritórios comerciais em Nanquim e São Paulo,
com um número determinado de funcionários, gozando eles de imunidade
diplomática para poderem agir livremente, inclusive podendo usar
códigos, e mantendo-se, ao mesmo tempo, relações diplomáticas com
Taiwan. Uma espécie da política das duas Chinas, que os Estados
Unidos tentaram, sem sucesso. À semelhança do que havíamos feito com
as duas Alemanhas, quando vigorava a Doutrina Hallstein, que proibia
relações políticas com ambas as Alemanhas ao mesmo tempo. Por meio
desse acordo, em relação às duas Alemanhas, entre o nosso Banco
Central e o Deutsche Notebank, pudemos manter significativas relações
comerciais, na época, com a Alemanha do Leste, sem que isso
provocasse um rompimento com a Alemanha Federal. Circunstâncias
políticas não permitiram, contudo, a realização desse plano com a
China.16
Assim, ainda mesmo que nos anos 1970 e 1980 as relações bilaterais sino-
brasileiras tenham se mantido modestas no plano econômico, no plano
multilateral freqüentemente os votos de ambos os países coincidiam nas questões
acima mencionadas.
Como os resultados obtidos no alargamento dos laços, com a região, no contexto
da Cooperação Sul-Sul foram extremamente reduzidos, o relacionamento brasileiro
com a região asiática nesse período esteve basicamente restrito a suas relações
com o Japão.
3. Novos interesses do Brasil na Ásia a partir da década de 1990
Em função do fim da Guerra Fria e, em especial das mudanças políticas e
econômicas implementadas, o Brasil reequaciona sua estratégia de inserção
internacional e passa a priorizar um relacionamento mais intenso com a região
da Ásia-Pacífico. Assim, em 1993, no governo Itamar Franco, a Ásia foi definida
como uma das prioridades da diplomacia brasileira em função de seu potencial
cooperativo nos campos científico e tecnológico, bem como enquanto mercado para
exportação e importação.
Esse reposicionamento brasileiro pode ser considerado como tendo um duplo
interesse. De um lado, é motivado pela perspectiva de associar-se a uma região
que se apresenta como um modelo de desenvolvimento econômico e científico-
tecnológico, com potenciais possibilidades de complementaridade ou parcerias.
De outro, é um espaço que, politicamente, atende os objetivos brasileiros de
relacionamentos bilaterais e de posições similares nos fóruns multilaterais, de
forma a garantir as diretrizes brasileiras de autonomia e diversificação de
parcerias.
Nesse sentido, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, no pronunciamento em sua
posse em 1º de Janeiro de 1995 definiu a Ásia como uma das prioridades de sua
política externa, tendo visitado a China, a Malásia e Japão em seu primeiro
mandato. E, no seu segundo mandato, já no início do século XXI, realizou as
visitas históricas a Seul, Dili e Jacarta, sendo as primeiras realizadas por um
presidente brasileiro a essas capitais. E, da mesma forma, o Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, em seu discurso de posse, em 1º de janeiro de 2003, cita
nominalmente a necessidade de estreitamento de laços com o Japão, China e
Índia. Sua visita à China, no final de maio de 2004, recebeu um apoio inédito
por parte do empresariado brasileiro.17 Essas visitas e referências de alto
nível indicam o interesse e a vigência de uma nova fase ascendente nas relações
entre Brasil e Ásia, e em especial, no interesse de ampliação do relacionamento
com a China. Note-se que tanto Cardoso quanto Lula visitaram, em primeiro
lugar, a China e não o parceiro mais tradicional na região, o Japão.18
Nesse sentido, a partir dos anos 1990, nota-se uma revitalização do
relacionamento brasileiro com a Ásia com algumas importantes diferenças em
relação aos períodos anteriores. Em primeiro, Japão mantém-se como o mais
importante parceiro no campo comercial e em investimentos, perdendo, no
entanto, espaço para outros competidores. As relações com a China, Coréia do
Sul e Asean (Association of Southeast Asian Nations) são significativamente
ampliadas. Essas melhorias, no entanto, chocaram-se com a crise asiática,
provocando uma drástica redução nas exportações brasileiras para a Ásia
enquanto que as importações mantiveram-se nos níveis anteriores aos da crise.
A crise asiática, em conjunto com a própria crise brasileira no início de 1999,
ainda que provocando retração no comércio e no fluxo de investimentos, propicia
uma maior aproximação política com vistas a um posicionamento mais próximo
frente aos desafios do sistema internacional.
No entanto, a percepção generalizada, na maior parte das análises sobre o
relacionamento Brasil-Ásia, era de dificuldades de priorização dessas relações,
tendo em vista outros compromissos no contexto regional ou mesmo no ocidental.
Tem-se a impressão de que há um verdadeiro e grande interesse na ampliação dos
laços políticos e/ou parcerias comerciais com a Ásia, mas ainda não se
delinearam as formas de se atingir esse objetivo. Em outros termos, o
relacionamento é muito mais reativo a fatores conjunturais ou a iniciativas
asiáticas do que propriamente derivado de um ativismo.
Sob outro ponto de vista, duas questões são pertinentes. Primeiro, "o quão
importante é a Ásia para o Brasil?". A Ásia é muito importante na busca de
diversificação de mercados e de parcerias políticas, mas de importância
secundária devido aos tradicionais laços com a Europa e as Américas. Segundo,
"o quão importante é o Brasil para a Ásia?". Aparentemente, a resposta seria
negativa e conseqüentemente poder-se-ia estar gastando muita energia para
estreitamento de relações com uma região que considera, tanto o Brasil quanto a
América Latina, de forma secundária.
A presente análise, entretanto, trabalha com a percepção de que a crise
asiática gerou os fundamentos para o atual maior interesse asiático pela
América Latina e pelo Brasil. Ou, de outro lado, propiciou o desenvolvimento
dos canais de aproximação que o Brasil não conseguia desenvolver, apesar de sua
prévia disposição.
Assim, a partir de 1999 é institucionalizado um mecanismo de aproximação entre
a América Latina e a Ásia, sob o nome de Fórum de Cooperação Ásia do Leste-
América Latina (EALACF) 19, tendo como ponto inicial uma proposta de Cingapura
e englobando os países-membro da Asean mais o Japão, China e Coréia do Sul.
Como proposta básica, trata-se de uma iniciativa com vistas a institucionalizar
uma aproximação política de alto nível e implementar programas e planos que
ampliem os laços econômicos, políticos e culturais entre as duas regiões.
Seus objetivos oficiais podem ser assim definidos:
o primeiro objetivo seria gerar condições favoráveis para ampliar e
aprofundar as relações bi-regionais em cooperação econômica e social
(por exemplo, comércio de bens e serviços, promoção de investimentos,
transferência de tecnologia) e o intercâmbio de visões sobre
estratégias de desenvolvimento e comércio, educação, formação de
capital humano, criação de empregos e desenvolvimento social. O
segundo objetivo seria definir, conjunta e gradualmente, um programa
permanente de trabalho que incluísse projetos e ações concretos e
viáveis, bem como estabelecesse mecanismos formais para diálogo e
consulta entre as duas regiões.20
Assim, na Primeira Reunião de Chanceleres, em março de 2001, definiu-se que o
EALACF
se insere no contexto da globalização e do adensamento das relações
entre as diferentes regiões do mundo e tem por objetivo preencher
lacuna no relacionamento entre as duas regiões. O propósito principal
deste mecanismo de cooperação e diálogo multidisciplinar
interregional é o de fomentar o diálogo político, entendimento e
cooperação.21
Para o nosso propósito, o EALACF apresenta um forte conteúdo simbólico ao
procurar ampliar e aprofundar relações com a região da América Latina, sem a
presença dos Estados Unidos. Demonstra não só um crescente interesse asiático
pelo espaço latino-americano, mas também a disposição de diferentes Estados,
como o Japão, China e Coréia do Sul em participar desse processo. Considera-se
que um dos incentivos para essa iniciativa é a percepção asiática de que a Alca
é um projeto que tende a se efetivar no prazo estabelecido e que,
conseqüentemente, pode afetar ou diminuir as possibilidades de inserção da Ásia
no espaço latino-americano.
Em decorrência da retomada da atratividade do Brasil, de um lado, pela abertura
do mercado e estabilidade financeira e, de outro, pela ampliação do mercado
através do processo integrativo regional, o Mercosul, percebe-se claramente um
crescente interesse asiático pelo Brasil. Esse interesse não é só econômico-
comercial, mas igualmente político-estratégico, em função da disputa por poder
e por mercados que se processa na OMC e em outros fóruns multilaterais. Dessa
forma, considera-se que a iniciativa de aproximação entre as duas regiões,
através do EALACF, deve gerar a ampliação das potencialidades brasileiras.
Isto é, o presente interesse mútuo, além da busca das complementaridades óbvias
em termos de comércio e alianças políticas tanto nos planos bilaterais quanto
nos multilaterais, demonstra a vontade política de estreitamento de relações em
função da necessidade de estabelecimento de parcerias, de um lado, no processo
de distribuição de poder internacional e, de outro, na disputa pela garantia de
acesso a mercados.
4. O relacionamento do Brasil com a China a partir da década de 1990
O Brasil tinha restabelecido relações diplomáticas com a China, em 1974, num
momento em que o país, em decorrência de seu desenvolvimento econômico e de uma
conjuntura internacional favorável, estava diversificando suas parcerias
internacionais e buscando uma inserção mais competitiva. Dentro de seu projeto
de política externa, com forte atuação nos fóruns multilaterais e com ênfase
nas teses do Terceiro Mundo, a reaproximação com a China era fundamental para
dar credibilidade e legitimidade à ação brasileira.
Assim, ainda que de início tenha implicado um aumento dos fluxos comerciais, as
relações sino-brasileiras manter-se-ão mais restritas ao campo político-
diplomático, realçando as similaridades de posicionamentos comuns frente ao
sistema internacional. Somente na década de 1990, com a abertura econômica
brasileira e com a maior inserção chinesa, processa-se uma maior aproximação
comercial entre os dois países, ainda que prioritariamente se resguarde a
importância do relacionamento político.
Destarte, no decorrer dos 1990 e início do século XXI, o relacionamento
brasileiro com a China mostra a manutenção do forte relacionamento político,
agora complementado com o crescimento do relacionamento comercial. Enquanto em
2000/2001, as exportações brasileiras para a China só ficaram abaixo das para o
Japão, a partir de 2002 a China passa a ser o principal destino das exportações
brasileiras para a Ásia. Observa-se também um crescimento significativo nas
importações, mantendo-se abaixo somente do Japão. (Tabelas_III, IV, V e VI)
A tendência em termos do relacionamento comercial aparenta ser crescente. Em
agosto de 2002, foi assinado um acordo de equivalência sanitária que abre
possibilidades de exportação de carne bovina e de frango. Em novembro de 2001,
foi criada uma joint-venture entre a Companhia Vale do Rio Doce e a siderúrgica
Baosteel. Em setembro de 2002, foi concluída a parceria entre a Embraer e a
empresa aeronáutica chinesa AVIC2. Enfim, as grandes empresas, como Companhia
Vale do Rio Doce, Petrobrás, Embraer, Embraco, Marcopolo, Sadi, entre outras,
estão envidando esforços para entrarem no promissor e gigantesco mercado
chinês.
De acordo com Chengxu,
o rápido crescimento do comércio sino-brasileiro na década passada é
particularmente digno de nota. O comércio da China com o Brasil era
de somente US$ 630 milhões em 1990. Estima-se que estará acima de US$
2,8 bilhões em 2000. Embora esse volume represente uma proporção do
comércio total de cada país, ele sinaliza um grande potencial para os
futuros laços econômicos bilaterais. Tanto a China quanto o Brasil
encontram-se num estágio de desenvolvimento rápido e sustentado. O
acesso da China à OMC deverá criar novas oportunidades para um
crescimento da cooperação econômica e comercial entre os dois países.
E essa cooperação apresenta a característica de complementaridade.22
No campo político,
Brasil e China têm partilhado posições convergentes em muitos dos
grandes temas da política internacional. Os acontecimentos de 11 de
setembro transformaram de forma dramática as percepções acerca da paz
e segurança mundiais. Os dois países mostraram-se solidários desde o
primeiro momento na luta contra o terrorismo internacional, sem, no
entanto, favorecer uma militarização à outrance da agenda
internacional em detrimento de outras prioridades nos campos social,
econômico, ambiental e humano. Brasil e China constituem importantes
pólos de influência no mundo em desenvolvimento e merecem ser parte
ativa nas considerações dos grandes temas que afetam toda a
humanidade, pois a construção da nova ordem e da nova arquitetura
mundial neste início de século requer a participação equilibrada de
todos os atores relevantes.23
Considerando-se o potencial de aprofundamento das relações a longo prazo, a
expressão parceria estratégica, cunhada em 1993 pelo Primeiro Ministro Chinês,
Zhu Rongji, tem sido amplamente utilizada pelos dois países. Ainda não se
definiu exatamente nem o significado da expressão nem os mecanismos para o
desenvolvimento da parceria. Apenas especula-se positivamente sobre o futuro
das relações, as quais, ainda que pouco desenvolvidas, já progrediram
significativamente desde 1974.
Li Ruihuan ao visitar o Brasil assim procurava definir a idéia de uma parceria
estratégica:
A América Latina representa uma das regiões mais dinâmicas do planeta
no que se refere ao desenvolvimento econômico. No plano político, a
região, em particular o Brasil, ocupa importante localização
estratégica no mundo. O Brasil é o maior país em desenvolvimento no
cenário latino-americano e a China é o maior país em desenvolvimento
no mundo. Entre os dois países existem muitos pontos de identidade:
estão empenhados em conseguir desenvolvimento econômico e em melhorar
as condições de vida de suas populações. Portanto, a cooperação
carrega um significado muito relevante para os dois países, já que
entre nós não existem choques de interesses fundamentais. O que
existe, sim, são dois países que se complementam. Portanto, vejo
horizontes muito promissores para as relações entre os nossos países,
especialmente no campo econômico.24
No plano político, um ponto central da agenda internacional dos dois países
refere-se às suas pretensões em relação à OMC (Organização Mundial do Comércio)
e à ONU (Organização das Nações Unidas). A China utiliza-se de seu assento
permanente no Conselho de Segurança para se aproximar dos países em
desenvolvimento e nesse sentido acena com a possibilidade de apoiar o interesse
brasileiro em aceder ao Conselho de Segurança. De outro lado, o Brasil, em seu
posicionamento por regras mais justas no comércio internacional e defendendo o
sistema multilateral de comércio apoiava a entrada da China na OMC e, agora,
após seu acesso, considera que a China, com base no seu imenso mercado
doméstico, poderá obter concessões que privilegiem os países em
desenvolvimento.
A parceria estratégica ganha um contorno mais definido na área de cooperação
técnica e científico-tecnológica, com o trabalho conjunto para o
desenvolvimento de satélites de sensoriamento remoto (CBERS)25, tendo sido
lançado, em 1999, o primeiro satélite. Em 1995, o projeto foi ampliado,
planejando-se produzir mais dois satélites, além dos dois inicialmente
previstos. Os satélites permitirão aos dois países uma independência na área de
imagens por satélites, possibilitando-os inclusive a passar de usuários a
exportadores desse tipo de serviço. O satélite CBERS 2 teve seu lançamento em
outubro de 2003.
A cooperação está ainda sendo estendida a outros setores, como biotecnologia,
informática e desenvolvimento de novos materiais. E na área de saúde estão em
andamento iniciativas conjuntas no combate a Aids, na produção e
comercialização de genéricos e remédios de medicina tradicional e na pesquisa
de novos medicamentos.
No plano genérico, costuma-se citar que o Brasil considera a Ásia como um
parceiro prioritário. Cita-se o continente asiático, pois não parece claro,
dentre Japão e China, qual representaria o parceiro prioritário na região se é
que o conceito de parceiro prioritário seja aplicável. Os comentários são mais
volumosos em relação à China, inclusive de que esta seria uma parceria
estratégica. Considerando-se que a China detém maior autonomia política em
termos regionais, enquanto o Japão ainda mostra relativa dependência política
dos Estados Unidos, pode-se aventar a hipótese de que a política externa
brasileira priorizava o Japão nos temas econômicos, enquanto que a China era
privilegiada nas questões políticas.
5. Apontamentos finais e perspectivas no relacionamento sino-brasileiro
Independentemente das discussões sobre o momento inicial da tendência da
política externa brasileira de relacionamento com os países em desenvolvimento,
aí incluídos os também denominados de emergentes, como a China, Índia, África
do Sul e Rússia, não se têm dúvidas de que o governo Lula, na sua proposta de
universalização, privilegia de maneira especial o contato com esses Estados.
De um lado, pode-se aventar a hipótese de que a principal motivação decorre do
fato de essas parcerias corresponderem a mercados emergentes, com amplas
possibilidades de absorção de produtos brasileiros e de fornecimento de insumos
ou de investimentos requisitados pelo Brasil. De outro lado, no entanto,
compreendem espaços políticos, com forte expressão regional e, precipuamente,
com perspectiva de atuação conjunta em organismos internacionais.
Essa última proposição reveste-se de significância a partir da percepção de
que, desde o final da Guerra Fria, desenvolve-se um processo de redefinição do
Sistema Internacional e similarmente de reordenamento internacional, com um
impasse contínuo na definição das regras que possam reger o comércio
internacional. Nesse sentido, em adequação ao atual momento conjuntural das
relações internacionais, o que se busca é a formação de uma frente, entendida
como um processo de Cooperação Sul-Sul, para discussão e defesa conjunta de
interesses relativamente mútuos entre esses países frente aos desenvolvidos.
Sob nenhuma proposta, pode-se raciocinar que se tenha o objetivo de
constituição de um movimento em oposição ou de repulsa ao relacionamento com os
países desenvolvidos. O que se visa é uma estratégia de posicionamento comum
frente ao atual estágio de negociação nos diferentes fóruns multilaterais.
É também na direção dos processos de negociação comercial que se
inscreve iniciativa interessante, ainda de ganhos imprevisíveis,
esboçada na reunião ministerial da OMC em Cancún. Com efeito, mais do
que resultados práticos, a criação do G20 deve ser vista sob a ótica
da retomada da capacidade de articulação política do Brasil, mesmo
que esboçada em foro tão inusitado. Nessa direção, a liderança do G20
permite entrever o relançamento do perfil reivindicatório da política
externa brasileira, em baixa desde o final dos anos oitenta, mas que
pôde ser vislumbrado também na criação do G3, grupo de coordenação
política criado pelo Brasil, África do Sul e Índia, que pode se
transformar em um agrupamento maior, com a eventual atração de outros
países de igual porte, como o Egito, por exemplo. São todos
movimentos que refletem a vontade de esboçar um novo modelo de
cooperação Sul-Sul, que não deve, entretanto, erigir-se como
alternativo às relações com o Norte sabidamente a dimensão em que
países como o Brasil mais realizam interesses.26
Dentro dessa linha de pensamento, a China, com seu impressionante crescimento
econômico, não deixa de representar uma grande oportunidade para a ampliação
das relações comerciais e econômicas entre os dois países. Desnecessário
apontar os setores, da agricultura a manufaturados, da cooperação tecnológica a
serviços de engenharia, de áreas estratégicas como siderurgia e hidrocarbonetos
a patentes de produtos farmacêuticos, entre tantos outros que se abrem para a
possibilidade de uma cooperação frutífera a ambos.
No entanto, pode-se apontar como um fator favorável à maior presença brasileira
no mercado chinês a construção anterior de um clima de confiança mútua e
delineando, através de uma ação conjunta no plano internacional, o que se
convencionou denominar de uma parceria estratégica.
Após ressaltar o histórico de cooperação e principalmente de demonstração
contínua do apoio ou coincidência de interesses em diferentes questões da
agenda internacional, Shang Deliang, numa análise propositiva e voltada a
prever a manutenção da parceria estratégica durante o século XXI, pondera que:
Primeiro, os líderes de ambos os países devem manter os contatos,
continuar aprofundando os diálogos políticos, buscando posições
comuns nas principais questões e ao mesmo tempo evitando as
diferenças nas questões de menor porte, até que se tenha ampliado a
confiança mútua. Dentro das organizações internacionais, China e
Brasil devem consultar-se mais um com o outro sobre as questões
internacionais. No que respeita a problemas políticos e econômicos
existentes nas relações bilaterais, China e Brasil devem
apropriadamente fazer suas escolhas entre os interesses imediatos e
os de longo prazo. Para essas questões que apontam benefícios
imediatos, mas prejuízos para as relações estatais no longo prazo,
deve-se pensar duas vezes antes de agir.27
Se a China era privilegiada como um parceiro político, hoje é igualmente um
parceiro econômico. No entanto, no plano econômico, aparentemente é o Brasil
que mais necessita da China do que a China precisa do Brasil. Nosso principal
produto no relacionamento comercial, a soja, sofre grande concorrência do
mercado internacional e, em especial, dos Estados Unidos, que pressionam a
China para ampliação das compras de soja norte-americana como forma de redução
do forte superávit bilateral favorável à China.
Nesse sentido, o recente desenvolvimento do Conselho Empresarial Brasil-China,
reunindo grandes empresas chinesas e brasileiras, não deixa de ser um fato
extremamente positivo no relacionamento bilateral ao possibilitar um tratamento
mais coordenado e profissional no plano comercial, mas igualmente político ao
propiciar a satisfação mútua dos respectivos interesses nacionais.
Como forma de conclusão, destaca-se que o relacionamento sino-brasileiro
apresenta-se, de um lado, como altamente promissor pela constatação de inúmeras
complementaridades no plano econômico e, de outro, pela não recente mas
contínua presença em ambos os países, nos últimos trinta anos, de uma real
vontade política de estabelecimento de uma cooperação tanto no plano bilateral
quanto de atuação conjunta na agenda internacional.
Maio de 2004