Utopias do pós-socialismo: esboços e projetos de reorganização radical da
sociedade
Segundo uma perspectiva que já faz parte do senso comum, vivemos uma época de
fim das utopias. O colapso do chamado "socialismo real", emblematizado pela
queda do muro de Berlim, há quinze anos, deu força à idéia de que não existe no
horizonte nenhuma alternativa viável ao capitalismo. Em suas diferentes
variedades, unido a alguma forma de democracia eleitoral, ele seria uma
condição inextirpável do mundo moderno. A esquerda voltou suas atenções para
propostas de aprimoramento do convívio político, sob rótulos como democracia
deliberativa (ou radical) e multiculturalismo. No entanto, como anotou Nancy
Fraser (1997, p. 2), tais propostas são fracos substitutos para o ideal do
socialismo, uma vez que não enfrentam uma questão-chave, a economia política.
De fato, não há disponível nenhuma visão de sociedade alternativa com a
penetração e a abrangência que o socialismo, em seus diversos matizes,
demonstrou entre, digamos, 1880 e 1980. No entanto, estão em circulação
inúmeras propostas utópicas, que reorganizam a vida social por inteiro. Algumas
possuem certo impacto no debate político, sobretudo europeu; outras permanecem
na condição de meras fantasias intelectuais. Nenhuma alcançou a mesma
centralidade que o socialismo teve, o que se deve, talvez, menos à incipiência
das formulações do que à ausência de conexões com um movimento social. Seu
valor, muitas vezes, reside mais na indicação dos pontos problemáticos do
ordenamento capitalista e no desafio de pensar diferente do que nas
instituições propostas.
Este artigo analisa quatro propostas utópicas, representativas de diferentes
correntes de pensamento. Há um projeto de socialismo de mercado, cujo principal
teórico é o cientista político estadunidense John Roemer, que busca combinar a
pretendida eficiência econômica do mercado com a garantia de real igualdade
social, que seria o coração ético do socialismo. Mais ousado, o filósofo
franco-austríaco André Gorz quer realizar os objetivos do comunismo
desenvolvido, segundo Marx, por meio de uma sociedade de tempo liberado. A
universalização da possibilidade de dispor de tempo livre, entendido como tempo
de não-trabalho, também está no cerne das propostas de renda básica universal,
que encontram diferentes versões e que examino aqui na obra de seu maior
expoente, o economista belga Phillipe Van Parijs. De maneira muito mais
provocativa, a filósofa britânica Barbara Goodwin concebe uma sociedade
lotérica, em que todos os bens sociais seriam distribuídos de forma aleatória e
provisória.
Todas as quatro propostas pertencem claramente ao campo da esquerda, na medida
em que buscam realizar uma sociedade que amplie a igualdade material de seus
integrantes, ficando ao menos implícito que a privação relativa gerada pela
desigualdade é um obstáculo para o desfrute da liberdade. Todas também indicam
' em maior ou menor medida, mas ao menos indicam ' que é necessária uma
intervenção estatal corretiva permanente, restringindo a esfera das trocas
econômicas e, assim, impedindo o retorno da desigualdade.
Como contraponto, uma quinta utopia é acrescentada, correspondendo ao extremo
oposto do espectro político. Os anarcocapitalistas desejam a universalização do
mercado, que passaria a prover mesmo as funções estatais mais básicas, como
justiça e segurança.1 Diferindo até de economistas ultraliberais como Ludwig
von Mises, Friedrich Hayek, Milton Friedman e James Buchanan ' que, no entanto,
formam o alicerce intelectual da doutrina ' e de filósofos como Robert Nozick,
sem falar de figuras mais bizarras como a influente escritora de ficção
científica e líder messiânica Ayn Rand, eles defendem a abolição do Estado.
Embora a formulação mais elaborada esteja provavelmente na obra de Murray
Rothbard, a melhor síntese foi formulada por outro economista estadunidense,
David Friedman (filho de Milton Friedman).
Nas próximas seções, apresentarei e discutirei brevemente as cinco correntes,
resumindo suas diferenças na conclusão. Começo com os anarcocapitalistas,
passando em seguida pelo socialismo de mercado, sociedade de tempo liberado,
renda básica universal e, por fim, sociedade lotérica, numa ordem que segue
apenas os caprichos da argumentação. Antes, porém, é necessário entender o
significado de "utopia" e situar a discussão em outra, mais ampla, sobre
justiça e organização social.
Justiça e utopia
Embora seja arriscado fazer esse tipo de avaliação sem um prévio estudo
aprofundado, é razoável pensar que a carga semântica associada à palavra utopia
é antes negativa do que positiva. À direita, há a célebre crítica de Karl
Popper ao caráter inerentemente totalitário do pensamento utópico, que "tenta
realizar um estado ideal, usando um projeto de sociedade como um todo; e isso
exige o forte regime centralizado de uns poucos" (Popper, 1974 [1945], vol. I,
p. 175). Uma crítica que vai reaparecer, por exemplo, em Ralf Dahrendorf, para
quem a utopia "é, pela natureza da idéia, uma sociedade totalitarista"
(Dahrendorf, 1991 [1990], p. 81); e que é desenvolvida sobretudo por Robert
Nozick, crítico do caráter uniformizante e inflexível da utopia, uma sociedade
"estática e rígida, sem oportunidades ou expectativas de mudança ou progresso e
nenhum meio de seus próprios habitantes escolherem novos padrões" (Nozick, 1991
[1974], p. 352).
À esquerda, o utopismo foi anatematizado por Marx, que o via como uma etapa
anterior do pensamento operário, superada na época do socialismo científico.
Enquanto os utopistas fantasiavam sobre a sociedade futura, Marx julgava que
era necessário depreendê-la do movimento histórico real:
Para nós, são utopistas aqueles que separam as formas políticas de
seu fundamento social e as apresentam como dogmas abstratos e gerais.
[...] O comunismo alemão é o inimigo mais determinado de todo
utopismo e, longe de excluir o desenvolvimento histórico, ele se
funda em primeiro lugar sobre tal desenvolvimento (Marx, 1976 [1848],
p. 79).
Embora, no seio do socialismo ou mesmo do marxismo, seja possível encontrar
pensadores que concedem uma valoração positiva à utopia, como Ernst Bloch, a
vertente dominante parece ser a adesão ortodoxa ao campo oposto, da "ciência".2
A linguagem corrente, por sua vez, associa utopia e utópico predominantemente
ao sentido de "irrealizável" e "quimérico".
Neste artigo, no entanto, uso o termo utopia de uma forma que se pretende
agnóstica em relação à viabilidade das propostas de transformação da sociedade.
Utopia adquire o significado de um norte para a organização/reorganização da
estrutura social: "a visão de futuro sobre a qual uma civilização baseia seus
projetos, estabelece seus objetivos ideais e constrói suas esperanças" (Gorz,
1988, p. 22). A definição realça o aspecto de indeterminação histórica e o
caráter normativo da proposta utópica. No sentido que Gorz empresta ao termo,
uma utopia provavelmente não será passível de concretização plena. Mas é útil
por fornecer diretrizes que orientam a produção de uma nova sociedade, mais
próxima do ideal. A utopia direciona a ação política e potencializa a
insatisfação com o mundo existente.
Um crítico da utopia ' neste sentido da palavra ' pode argumentar que a busca
do ideal inatingível acaba por fechar os olhos do utopista para ações mais
corriqueiras que podem surtir efeitos benéficos no imperfeito mundo concreto
(Nove, 1989 [1983], pp. 364-365). A resposta a esta crítica passa pela
demonstração do caráter realista da utopia, que deve ser uma extrapolação a
partir de um movimento real. O "político em ação" da fórmula de Antonio Gramsci
define o utopista no sentido proposto por Gorz: "O político em ação é um
criador, um suscitador; mas não cria do nada, nem se move no vazio túrbido dos
seus desejos e sonhos. Baseia-se na realidade fatual" (Gramsci, 1929-1935, p.
43).
Por outro lado, é preciso observar que a denúncia do caráter totalitário da
utopia, feita pelo pensamento conservador, exclui, ela própria, o dever-ser da
esfera política. Como afirma um historiador do pensamento utópico,
[...] a invenção utópica mostra-se cúmplice da invenção do espaço
democrático. De fato, é apenas com a invenção deste espaço que a
sociedade se dá a representação de ser fundada apenas sobre ela
mesma, sobre sua "vontade" livremente expressa e fundadora de sua
ordem. De pronto, este espaço se oferece como um espaço social a
modelar, a gerar, a reinventar (Baczko, 1984, p. 144).
A narrativa utópica afirma a sociedade humana como auto-instituída, isto é,
regida por normas que as mulheres e os homens se deram e, se quiserem, podem
modificar. Em qualquer projeto político transformador existe, ao menos em
germe, a projeção de uma sociedade nova, que nunca se realizou. Caso isto não
esteja presente, a disputa política se reduz à mera alocação de recursos.3
Considerando adequada a caracterização das propostas em discussão como
utópicas, é possível passar para a análise de sua relação com o debate sobre
justiça, que é um dos eixos principais da teoria política das últimas décadas.
Seu ponto de partida é, como se sabe, Uma teoria da justiça, o influente livro
de John Rawls (1997 [1971]), que suscitou uma diversidade de interpretações e
polêmicas. Sem entrar nos meandros da teoria rawlsiana e, muito menos, nas
transformações que ela sofre até se cristalizar numa síntese posterior (Rawls,
2000 [1993]), é razoável destacar dois aspectos. Primeiro, embora seja
delineada uma estrutura básica justa para a sociedade em termos bastante
abstratos, ela se ajusta bem à combinação entre economia capitalista e Estado
de bem-estar. De fato, apesar de Rawls produzir uma teoria igualitária da
justiça, o princípio da diferença admite desigualdades que, no final das
contas, revertem em favor dos mais desafortunados ' o que é a justificativa
padrão para a manutenção da propriedade privada e da competição mercantil, que
combateriam a preguiça e a acomodação, beneficiando a inovação, o progresso e a
prosperidade para todos. Os mecanismos de bem-estar, por sua vez, garantem a
cada um o usufruto das liberdades básicas.
Os pensadores à direita, entre os quais se destacou Nozick, criticaram Rawls
por ele se comprometer com um padrão final de distribuição que exigiria uma
intervenção constante para retificar os resultados da livre interação dos
agentes (Nozick, 1991 [1974], cap. 7). De acordo com esta concepção, dado um
ponto de partida equânime, seguido por trocas livres, qualquer resultado
alcançado deve ser considerado como justo ' ainda que o azar ou a incompetência
condenem alguns a situações muito piores do que as de outros. O pensamento
utópico e o modelo de Rawls são criticados indistintamente, por afetarem a
liberdade dos agentes na busca por uma padrão "adequado" de distribuição dos
bens sociais.
À esquerda, a igualdade postulada pela teoria rawlsiana da justiça é, em geral,
julgada insuficiente. Nem todos os autores, cujas propostas utópicas são
discutidas aqui, se engajaram numa interlocução explícita com Uma teoria da
justiça ' é mais clara em Barbara Goodwin e em Philippe Van Parijs, cuja defesa
mais conhecida da renda básica universal nasce em resposta a um artigo de Rawls
(Van Parijs, 1997 [1991]) ', mas ela está presente em todo o ambiente da
discussão.
O segundo aspecto a ser destacado, ainda mais importante para a presente
discussão, é que o esforço de Rawls se dirige à formulação de uma teoria da
justiça que seja neutra em relação às diversas concepções de bem existentes na
sociedade. A boa sociedade não é aquela que realiza algum valor, mas a que
permite que cada um persiga livremente o bem que deseja. A neutralidade
valorativa de Uma teoria da justiça foi questionada, uma vez que se apóia em
pressupostos fortemente individualistas (e que faz implicitamente da tolerância
a virtude social por excelência). De maneira ainda mais aguda, o artifício
apresentado por Rawls para alcançar a neutralidade ' a famosa posição original,
sobre a qual se estende o "véu da incerteza" quanto às preferências individuais
' foi acusado de introduzir concepções insustentáveis sobre a constituição do
self e a relação entre indivíduos e coletividades (Sandel, 1998).
Como norma, no entanto, a busca da neutralidade valorativa triunfou. Com duas
notáveis exceções ' a proposta de sociedade de tempo liberado de Gorz e a
sociedade lotérica de Goodwin ', as utopias aqui analisadas manifestam-se como
neutras em relação aos valores que realizariam. Elas permitiriam a ampliação do
espaço de liberdade de cada indivíduo, que então buscaria promover seus
próprios objetivos. Gorz, ao contrário, preenche essa busca com um conteúdo ' o
autodesenvolvimento humano ' revelando, assim, sua vinculação com a tradição
marxista. E Goodwin recusa validade à própria idéia de uma concepção pessoal de
bem, estabelecendo como valor a diversidade de experiências de vida.
Cabe notar, por fim, que as propostas aqui caracterizadas como utópicas
desenvolvem as instituições sociais que gostariam de ver implantadas com muito
maior detalhamento do que fazem Rawls e teóricos similares. Mais do que
princípios abstratos, elas indicam mecanismos concretos que gerariam
determinados efeitos. O plano, decerto, é apresentado com grande dose de
vagueza e o reconhecimento de que ainda restam muitos passos antes de ser
possível levá-lo à prática; nada próximo de um Fourier, que já assinalava os
quarteirões de Paris em que seriam erguidos os seus falanstérios. Ainda assim,
há uma diferença marcante, que permite lhes atribuir o adjetivo "utópicas" como
característica distintiva em relação a construções teóricas mais abstratas.
Mercado sem Estado
Um dos traços fundantes do pensamento liberal, em suas diversas vertentes, é a
contraposição entre o espaço das relações impositivas (o Estado) e o espaço das
trocas consensuais entre agentes livres (o mercado); ou, para usar as palavras
de Milton Friedman (1985 [1962], p. 21), a "direção central usando a coerção" e
a "cooperação voluntária dos indivíduos". Aceitando esta caracterização das
duas esferas e também o pressuposto de que a liberdade individual é o bem a ser
maximizado, segue-se que o Estado deve ser minimizado ' o menor Estado que seja
capaz de garantir a continuidade da vida social é o melhor possível. O problema
é saber onde se encontra este mínimo, que às vezes pode ser bastante alargado.
No protoliberalismo de Thomas Hobbes, por exemplo, as forças centrífugas
presentes nas coletividades humanas são tão poderosas que, para alcançarmos um
mínimo de coesão social, precisamos abdicar a quase toda liberdade pessoal.
Os anarcocapitalistas chegam à conclusão oposta: o Estado pode ser abolido, não
como no sonho de anarquistas e comunistas, porque suas funções seriam
desempenhadas pela livre associação dos produtores, mas porque todas as funções
do Estado seriam assumidas pelo mercado. O raciocínio subjacente às suas
propostas é de uma simplicidade estonteante; um de seus divulgadores diz que se
limita a levar algumas afirmações familiares da retórica política "à sua
conclusão natural" (D. Friedman, 1989 [1973], p. xiii). A simplicidade, que
consiste muitas vezes em ignorar quaisquer efeitos colaterais e não recuar um
milímetro da estrita aplicação de um número reduzido de princípios, é a fonte
do fascínio que o projeto anarcocapitalista desperta em muita gente ' e também,
é claro, de muito de sua fraqueza teórica.
O primeiro princípio é o antipaternalismo, que se expressa na crença absoluta
na máxima utilitarista de que cada um é o melhor juiz de seus próprios
interesses4 ' isto é, qualquer medida que implique uma proteção externa às
pessoas é inaceitável. Isto inclui, por exemplo, a proibição de determinadas
drogas, o veto ao comércio de órgãos ou a imposição do uso de cinto de
segurança, mas também a previdência social compulsória ou a legislação
trabalhista. Se alguém prefere consumir toda sua renda a garantir algum tipo de
aposentadoria no futuro, trata-se de uma decisão presumivelmente esclarecida e
cabe ao próprio indivíduo arcar com as conseqüências, esperando pela caridade
alheia ou, caso esta esteja ausente, padecendo de privações na velhice. Da
mesma forma, trabalhadores e patrões são livres para aceitarem ou não os termos
de seus contratos, sendo inadmissível que existam cláusulas impostas
externamente.5
Um pensador liberal mais sofisticado, como Stuart Mill, debate-se com o
problema das conseqüências sociais das decisões individuais, o que o leva a
buscar o melhor equilíbrio entre o máximo de liberdade pessoal e a manutenção
do bem-estar coletivo (Mill, 1991 [1859]) ' uma questão que não existe para os
anarcocapitalistas, com sua visão atomística da sociedade. Essa visão também
exila a solidariedade como componente atuante e necessário dos agregados
humanos; mesmo que ela possa existir, na forma da caridade ou do amor ao
próximo, trata-se sempre de uma escolha pessoal do agente, reversível a cada
momento (D. Friedman, 1989 [1973], pp. 15-16). Não há nada que implique a
responsabilidade mútua entre os participantes de uma mesma sociedade. Por fim,
é uma moldura teórica que impede que se coloque em pauta a formação das
preferências, vistas implicitamente como emanações naturais de cada indivíduo.
O princípio que complementa o antipaternalismo é a inviolabilidade da
propriedade privada, um conceito que se estende o suficiente para incluir o
controle sobre o próprio corpo e, dessa forma, todas as liberdades individuais.
Trata-se de uma versão do "individualismo possessivo", identificado no
pensamento de Hobbes e Locke por Macpherson (1962): meu corpo é minha
propriedade e, se eu posso movimentá-lo livremente, é porque posso dispor
livremente de todas as minhas propriedades. Daí já se depreende o corolário da
ausência de Estado, uma vez que a extração compulsória de impostos, sem a qual
nenhum Estado sobrevive, atinge a propriedade privada. Sobretudo, a intervenção
estatal, regulando o comportamento dos indivíduos, fere sua liberdade.
Os ultraliberais têm em comum a proposta de redução extrema das áreas da vida
social em que o Estado se faz presente, mesmo aquelas em que a ação estatal é
considerada indispensável por quase todos. Milton Friedman, por exemplo, não
julga adequado coibir o que hoje se chama de "exercício ilegal da medicina": se
alguém se faz passar por médico e prejudica um doente, "trata-se de exemplo de
contrato voluntário, e de trocas entre o paciente e o médico. Sob esse ponto de
vista, não há motivo para intervenção" (1985 [1962], p. 135). Como princípio
abstrato, caberia ao Estado apenas garantir o cumprimento dos contratos e
proteger os cidadãos contra o uso da força por parte de outros: "o Estado mais
amplo [do que o mínimo] violará os direitos das pessoas" (Nozick, 1991 [1974],
p. 9). Apenas como princípio abstrato, convém notar, já que na prática (e a
associação de Milton Friedman com o regime de Pinochet serve de perfeita
ilustração) seus aplausos costumam ir para Estados altamente repressivos, que
coíbem a ação dos grupos que perturbariam o funcionamento do mercado, como os
sindicatos de trabalhadores.
A diferença dos anarcocapitalistas é que eles julgam que mesmo essas funções
mais básicas podem ser cumpridas pelo mercado. David Friedman e Murray Rothbard
imaginam um esquema em que agências privadas de proteção venderiam seus
serviços aos particulares, cumprindo as funções hoje reservadas a organismos
estatais como a polícia. Já que existiriam várias firmas competindo entre si,
todas teriam incentivos para prover os melhores serviços aos menores custos.
Numa sociedade livre, a proteção
[...] deve ser suprida por pessoas ou firmas que (a) ganham seu
rendimento voluntariamente, e não por coerção, e (b) não se arrogam,
como fazem os Estados, um monopólio compulsório da polícia ou da
proteção judicial. Apenas esta provisão libertária do serviço de
defesa seria compatível com um mercado livre e uma sociedade livre.
Assim, firmas de defesa deveriam ser tão livremente competitivas e
não-coercivas contra não-invasores quanto todos os outros
fornecedores de bens e serviço no mercado livre. Serviços de defesa,
da mesma forma que todos os outros serviços, seriam vendidos no
mercado e apenas vendidos no mercado (Rothbard, 1970, pp. 1-2).
O risco de uma guerra entre as agências de proteção também é esconjurado graças
às virtudes intrínsecas do mercado: guerras são custosas e, portanto, empresas
que visam ao lucro as evitariam (D. Friedman, 1989 [1973], p. 116). Em vez da
guerra, elas buscariam árbitros para resolver os conflitos. Mais uma vez,
haveria um mercado competitivo de árbitros, isto é, de sistemas legais e de
cortes de justiça. Os árbitros fazem a lei, as agências de proteção escolhem
árbitros caso a caso, para cada um de seus conflitos, e os indivíduos privados
escolhem agências de proteção. (Um modelo similar geraria um mercado de padrões
monetários concorrentes.)
As deficiências do modelo são evidentes ' as respostas a uma questão mais
espinhosa, por exemplo a possibilidade de as agências tiranizarem seus
clientes, "vendendo" proteção à maneira da Máfia, são sempre insuficientes.
Baseiam-se na crença não-embasada de que a ação "honesta" é sempre mais
lucrativa do que a criminosa (Idem, pp. 121-122) ou, então, de que o mercado é
em si mesmo um sistema de controle, com as agências concorrentes se mobilizando
para impedir a ação da que se tornou fora-da-lei (Rothbard, 1970, p. 5). Mesmo
dentro do campo do ultraliberalismo, foi demonstrado que há uma tendência
natural de transformação da proteção (e da lei) num monopólio, caso em que está
formado um Estado de fato (Nozick, 1991 [1974], pp. 27-32).
Há ainda o problema da defesa externa, outra área em que mesmo os ultraliberais
reconhecem a necessidade da presença estatal (monopolística, aliás). David
Friedman o deixa em suspenso e apresenta o único momento de dúvida de sua
construção teórica, admitindo que talvez alguma forma rudimentar de Estado
fosse inevitável enquanto persistisse a ameaça soviética (D. Friedman, 1989
[1973], cap. 46).
Assim, a obstinação cega com que os anarcocapitalistas se aferram a seus
princípios faz com que sua teoria tenha um grande grau de simplicidade ' tudo é
apenas deduzido de uns poucos argumentos iniciais. A principal pressuposição,
de que as trocas mercantis são sempre livres de coerção e mutuamente vantajosas
(Rothbard, 1962, vol. I, pp. 71-72), nunca é questionada. Mas mesmo para o
mercado ideal com que operam a afirmação é insustentável; e os mercados reais
estão sempre muito longe do ideal (ver Boron, 1994 [1991]). A desigualdade
material representa uma séria limitação das possibilidades de ação para os que
estão no seu pólo negativo, constrangendo-os ao engajamento em trocas que, em
outras circunstâncias, não aceitariam. Na ausência de qualquer mecanismo de
proteção social ou de distribuição de riqueza, que o modelo veta expressamente,
uma parcela significativa da população ficaria em situação de penúria.
Um subtexto importante do argumento dos anarcocapitalistas, assim como de
outros ultraliberais, é a denúncia da democracia. Sua inferioridade como forma
de alocação de recursos é ressaltada com freqüência, com auxílio de uma
literatura próxima, que assinala a irracionalidade inerente aos processos de
decisão pelo voto (Riker, 1982). As decisões democráticas ferem o dogma da
liberdade individual, pois são impostas a todos, mesmo aos que discordam delas,
e tendem a ser irresponsáveis, na medida em que o voto é um recurso sem custos
para quem o usa. Além disso, num argumento surpreendente, David Friedman (1989
[1973], p. 104) diz que a democracia maximiza as desigualdades, em comparação
com o mercado. Afinal, se eu tenho o dobro da renda de outra pessoa, eu posso
comprar apenas o dobro de bens, não todos; mas quem pertence a um partido com o
dobro de votos vence todas as eleições. O argumento é especialmente capcioso,
quaisquer que sejam as críticas que as democracias majoritárias possam merecer:
um partido torna-se vitorioso com os votos de uma multiplicidade de pessoas, ao
passo que a riqueza pode estar concentrada nas mãos de um único ou de
pouquíssimos indivíduos.
Na utopia anarcocapitalista, todas as relações interpessoais são, em princípio,
instrumentais. Os laços entre os indivíduos se resumem àqueles que eles
estabelecem voluntariamente, por intermédio de seus contratos. Esta total
independência, imagina-se, leva ao máximo de liberdade, sempre entendida em seu
sentido negativo, de ausência de coerção externa. Os benefícios esperados,
portanto, concentram-se na ampliação da liberdade individual. Os argumentos
que, por vezes, indicam os benefícios econômicos esperados pela ausência de
intervenção estatal na esfera produtiva são estritamente secundários. A
sociedade esperada ' se é que o termo "sociedade" ainda se aplica de maneira
legítima ' é vantajosa por ser livre, e continuaria sendo vantajosa caso, por
algum motivo, se tornasse menos próspera.
Como desenho de uma nova forma de organização humana, a proposta exige uma
transformação bastante radical do mundo que temos hoje. Friedman e Rothbard não
se preocupam com a questão da transição ' como, partindo das sociedades atuais,
poderemos chegar na utopia. O caráter radicalmente anticonservador do
anarcocapitalismo é expresso na afirmação de que, como o pior que pode
acontecer é ter que reestabelecer o Estado, nada se perderia tentando
(Rothbard, 1970, p. 6). Trata-se da perfeita negação do elemento central do
credo do conservadorismo político, de Burke a Oakeshott, que é o entendimento
da fragilidade da construção de uma ordem social estável, fruto da experiência
acumulada de gerações, e, portanto, da necessidade da maior cautela ao alterá-
la.
Socialismo de ações
Para os anarcocapitalistas, como visto, o valor do mercado reside antes na
liberdade que ele proporciona do que em sua eficiência superior. O mesmo é
verdade para outros liberais extremados. Em meados do século XX, esta era a
linha principal de argumentação dos integrantes da Sociedade de Mont Pèlerin,
como se evidencia pela leitura do panfleto fundador sobre O caminho da servidão
(Hayek, 1944). Sua doutrina foi construída no momento em que políticas de
intervenção estatal levavam o capitalismo a uma fase de acelerado crescimento
(Anderson, 1995), ao mesmo tempo em que os países do socialismo real, sob
regime de planejamento centralizado, também experimentavam um rápido
desenvolvimento econômico. Não era nada evidente, muito pelo contrário, que a
competição mercantil fosse a forma mais eficaz de organização econômica.
Décadas depois, com a estagnação e o fim do socialismo real e a crise do modelo
keynesiano de gestão do capitalismo, firmou-se rapidamente um quase consenso de
que os mecanismos de mercado eram imprescindíveis para a condução eficiente da
economia e que, por trás da "anarquia da produção capitalista" criticada pelo
marxismo, escondia-se uma racionalidade sutil que nenhuma outra forma de gestão
seria capaz de alcançar. A concorrência garantiria, sobretudo, o incentivo à
inovação e o feedback sobre as preferências do público. Mesmo adversários do
capitalismo julgavam necessário garantir o funcionamento do mercado numa
sociedade alternativa. Ao contrário dos liberais, não depositavam fé em suas
virtudes emancipadoras e temiam a desigualdade gerada por ele. O mercado era
tido como necessário exclusivamente por seus efeitos na produção econômica.
A questão que se impõe, desta perspectiva, é como conciliar uma economia
mercantil com a igualdade social. As soluções mais simples são também as que
apresentam com maior nitidez suas deficiências. Por exemplo, impor um teto ao
crescimento das empresas, como propôs Miliband (1994), significa refrear o
incentivo à inovação exatamente daqueles que se mostraram mais eficientes.
A proposta de John Roemer (1994, 1996) é uma tentativa criativa de superar o
problema. Em resumo, seu projeto de socialismo com mercado passa pela
universalização da propriedade dos meios de produção, mediante um sistema
engenhoso que isola o mercado de capitais do mercado de bens de consumo.
Existiriam dois tipos de moeda em circulação na sociedade. Com uma, o dinheiro
comum, seriam pagos os salários e comprados os bens de consumo. A outra
("cupons") serviria apenas para a aquisição de ações de empresas. Para os
cidadãos, as duas moedas seriam estritamente inconversíveis entre si. Apenas as
firmas poderiam trocar cupons por dinheiro do Tesouro, para investir. Trata-se,
portanto, de um retorno à idéia de pluralidade monetária, presente no debate
político ao menos desde os anos de 1930, quando foi lançada na França por
Jacques Duboin.
Os cupons seriam distribuídos de forma igualitária; cada cidadã ou cidadão
receberia uma certa quantidade ao nascer (ou ao atingir a maioridade), para
ingressar no mercado de ações. De acordo com a competência e a sorte com que
fossem feitos os investimentos, o indivíduo alcançaria menor ou maior
participação no mercado; porém, não poderia utilizar seu dinheiro-de-consumo
para comprar mais ações. Aquelas que possuía, por sua vez, poderiam ser
reconvertidas em cupons, mas não seriam transmitidas a outras pessoas por
nenhum meio ' nem venda, nem doação, nem herança. A propriedade das ações
geraria o direito de receber dividendos, estes sim em forma de dinheiro-de-
consumo, e de eleger ao menos parte da direção da empresa.
No modelo, os incentivos da competição mercantil estão plenamente mantidos,
para empresas e investidores. Estes últimos preferirão investir nas firmas que
apresentam melhores perspectivas de geração elevada e continuada de dividendos.
As empresas, por sua vez, precisam apresentar um desempenho satisfatório para
atrair os investidores. Além disso, o direito de participação na escolha da
direção garante que nenhuma firma será indiferente aos interesses daqueles que
nela investiram os seus cupons.
O modelo também garantiria a realização do socialismo. Não a forma tradicional
de socialismo, que exige a propriedade pública dos meios de produção, mas pelo
menos a realização daqueles que seriam os três objetivos principais de uma
sociedade socialista, definidos como igualdade de oportunidades para a auto-
realização e o bem- estar, igualdade de oportunidades para a influência
política e igualdade de status social (Roemer, 1996, p. 10). O primeiro
objetivo seria uma igualdade de oportunidades para a auto-realização e o bem-
estar, não a igualdade efetiva, pois, caso contrário, seria necessário
despender recursos sociais gigantescos para aqueles que buscassem objetivos
demasiado caros e irrealistas. Assim, cabe a cada um optar por formas de
realização pessoal e padrões de bem-estar mais razoáveis. A influência política
também só é igualitária na oportunidade, na medida em que dependerá da escala
de prioridades de cada cidadã ou cidadão o esforço despendido para transformá-
la em presença real na arena política.
Apenas a igualdade de status é substantiva. O resultado é um ideário socialista
bastante similar ao liberal, no qual também é valorizada a existência de
oportunidades iguais, complementada pela igualdade "perante a lei", isto é, uma
igualdade de status legal. Embora o valor da igualdade de oportunidades não
seja desprezível, ela é compatível com uma desigualdade real gritante. Como
observa Phillips (1999, p. 60), "uma igualdade de recursos inicial, combinada
com uma oportunidade igual de fazer o que quisermos com eles, não é capaz de
satisfazer os requerimentos da igualdade" real. A autora está comentando
propostas como a de Ronald Dworkin, que enfatizam a responsabilidade moral
pelas escolhas, mas a crítica vale também para a utopia de Roemer.
Como o espaço da política está em aberto em seu projeto, nada impede a
construção de uma rede de proteção social, ao estilo do Welfare State. Mas
tampouco algo o exige. Na ausência até mesmo de uma cláusula rawlsiana de
diferença, o socialismo de ações pode lançar na miséria aqueles que manejaram
mal seus investimentos, enquanto os mais habilidosos ou afortunados ficarão
ricos com os dividendos recebidos. Seus filhos não receberão uma parcela maior
do controle das empresas, já que cupons ou ações não são transmissíveis por
herança, mas herdarão outras propriedades e serão beneficiados pelas vantagens
advindas da condição material dos pais ' educação de qualidade superior, acesso
a bens culturais etc.
Como solução parcial para esses problemas, Roemer estabelece que os
investimentos não seriam feitos em empresas específicas, mas obrigatoriamente
em fundos mútuos, administrados por especialistas. A medida contempla dois
objetivos. O primeiro, "paternalista", é impedir que os cidadãos invistam muito
mal os seus cupons. O segundo é evitar que surjam firmas de fachada, que
reinvistam muito pouco ou quase nada e gerem muitos dividendos, o que seria uma
forma disfarçada de conversão dos cupons em dinheiro-de-consumo (1996, p. 21).
A preocupação é voltada sobretudo para os mais velhos, que ' dada a proibição
da herança dos cupons ' teriam um horizonte temporal drasticamente reduzido e
pouquíssimo incentivo para aguardar retornos de longo prazo.6 Portanto, os
fundo mútuos são obrigados a incluir investidores de idades variadas.
A obrigatoriedade dos fundos mútuos reduz os benefícios esperados pelo modelo,
uma vez que a figura do investidor ousado e inovador, apostando na
multiplicação do seu próprio patrimônio, é substituída pelo gerente de fundos,
burocrata que cuida da riqueza alheia. A participação do cidadão-acionista na
gestão das empresas também é descartada, substituída por um implausível
monitoramento dos fundos (Simon, 1996, p. 53). Além do mais, o gerente é
pressionado para adotar uma postura mais conservadora, já que uma de suas
funções é impedir a dilapidação dos investimentos dos cotistas.
O mix de investidores de idades diferentes nos fundos não impediria uma
preferência generalizada por retornos rápidos, isto é, pela conversão dos
cupons em dinheiro-de-consumo. Os mais jovens podem receber grandes dividendos
de imediato e aplicar o dinheiro para consumo futuro (Idem, pp. 47-48) ' isto
sem levar em conta um viés muito comum na escala de preferências, que leva os
indivíduos a optar por uma gratificação imediata e segura em lugar de outra,
posterior e incerta, ainda que maior. Em suma, a proposta exige tamanho
controle público, para evitar fraudes ou irracionalidade excessiva no
investimento, que as vantagens esperadas em termos de inovação e concorrência
tendem a desaparecer.
Há ainda o problema da transição. Embora, como diz um crítico, seja
"autoconscientemente conservadora pelos padrões socialistas", ainda assim a
proposta exige uma transformação social radical, que afeta os interesses
cruciais da classe capitalista (Brighouse, 1996, p. 192). Afinal, é necessário
expropriar os meios de produção, antes de distribuir seu controle entre a
população, por meio dos cupons. De início, Roemer imaginava que as sociedades
em transição do mundo ex-comunista estariam em boas condições para implementar
o projeto. Nelas, não havia nenhum capitalista privado a ser prejudicado; era a
propriedade pública que seria distribuída. Mas aquele momento histórico passou.
As críticas mais graves à proposta de Roemer, porém, dizem respeito aos valores
que ela promove. De forma geral, o socialismo de mercado é criticado por
remover apenas uma fonte de injustiça e desigualdade (a propriedade do
capital), mantendo outras, como as causadas pela diferença de talentos; e,
sobretudo, por manter um "misto de ganância e medo" como motivação para os
atores econômicos (G. A. Cohen, apud Callinicos, 2000, p. 121). Isto é
insatisfatório porque, no ideal que norteia seus projetos de reconstrução da
sociedade, os socialistas buscam "não apenas novas formas de propriedade, mas
também um novo mecanismo dirigente, uma nova racionalidade, uma nova lógica
econômica" (Wood, 1995, p. 292).
O socialismo de ações não contempla nada disso. Como observa um de seus
comentaristas, enquanto alguns socialistas julgam que o mercado pode ser
permitido para sanar falhas do controle democrático da economia, para Roemer é
o contrário: as relações mercantis predominam, com as intervenções
democratizantes servindo para corrigir eventuais desfuncionalidades (Wright,
1996, pp. 123-124).
Sua utopia prevê a manutenção, entre os agentes econômicos, das mesmas
motivações existentes sob o capitalismo ' como se elas não pudessem ser
transformadas, isto é, como se as motivações humanas fossem dissociadas das
instituições sociais existentes. De fato, na medida em que todos se tornariam
jogadores da bolsa de valores, ela criaria uma "cultura de loteria", pouco
compatível com a solidariedade ou com a participação política ampliada (Simon,
1996, pp. 51-52).
Em comparação com outros projetos utópicos ' como o de Gorz, analisado na
próxima seção ', o de Roemer mostra-se mais "realista" e também mais factível,
em especial se é deixado de lado o problema da transição. Sua sociedade é
moldada para o indivíduo auto-interessado da filosofia utilitarista, em busca
da ampliação de seus benefícios ao menor custo. O preço a pagar pelo
"realismo", porém, é alto. Objetivos como a superação da alienação e do
fetichismo da mercadoria, a ampliação da liberdade individual ou mesmo a
igualdade material substantiva são deixados de lado, em prol da promoção de um
único e limitado valor, a igualdade de oportunidades.
A sociedade dual
Do ponto de vista dos valores que promove, do ideal que deseja alcançar, a
utopia proposta por André Gorz representa uma atualização do comunismo
desenvolvido marxista. A sociedade dual que ele propõe, na qual o tempo livre é
o maior bem social, apresenta-se, tal qual o comunismo de Marx, como uma
possibilidade histórica aberta pelo desenvolvimento das forças produtivas. Num
caso como no outro, a nova sociedade propiciaria a superação da alienação e a
realização das múltiplas potencialidades dos seres humanos. Embora os
sobrelanços utópicos sejam maiores em Marx do que em Gorz ' Marx tende a ver o
comunismo como uma inevitabilidade histórica e desenha-o com um nível muito
mais elevado de auto-realização dos indivíduos ', o sentido ético é o mesmo
(Miguel, 1999b).
Seguindo Josué Pereira da Silva (2002), é razoável distinguir três momentos na
obra de Gorz. Os primeiro livros, redigidos nos anos de 1950, têm uma
perspectiva sartreana e foco no problema da alienação. A segunda fase preocupa-
se com a formulação teórica de uma estratégia revolucionária apropriada para as
sociedades capitalistas desenvolvidas, nas quais a classe operária deixou de
viver em situação de pobreza extrema. Após um período de transição, em meados
dos anos de 1970, quando publicou obras com preocupação ecológica, o terceiro
momento da reflexão de Gorz é inaugurado com Adeus ao proletariado, em 1980. É
quando ele rompe com a identificação do proletariado como agente
revolucionário, questiona a centralidade do trabalho nas sociedades
contemporâneas e apresenta seu projeto utópico.
Ele parte da avaliação de que o desenvolvimento recente das forças produtivas,
sobretudo com a informática e a automação, tornou possível, pela primeira vez
na história da humanidade, o triunfo ' ainda que parcial ' da liberdade sobre a
necessidade. A reprodução de "uma sociedade viável, que disponha de tudo o que
é necessário e útil à vida", exige cada vez menos trabalho (Gorz, 1980, p. 91).
Mas o surgimento das condições materiais que permitem libertar mulheres e
homens de uma grande parcela do fardo do trabalho não reverteu concretamente em
ampliação da liberdade para os trabalhadores. Há, de um lado, a permanência da
"ideologia do trabalho", que faz do pleno emprego a bandeira mais importante do
movimento sindical. E, de outro, as classes dominantes têm interesse na
manutenção das relações de dominação que caracterizam o trabalho assalariado.
O resultado é uma situação sem sentido ' mas cujo nonsense por vezes nos
escapa, tão corriqueira se tornou: o trabalho deixou de ser meio para se tornar
fim, isto é, a sociedade produz para trabalhar (para "gerar empregos"), em vez
de trabalhar para produzir (Idem, p. 92). O reconhecimento cabal desse paradoxo
deve levar à constatação de que é necessário substituir a busca do pleno
emprego por um projeto de sociedade mais condizente com as novas realidades
produtivas. Tal projeto é, para Gorz, o de uma "sociedade dual".
A proposta prevê a criação de dois setores produtivos distintos, um "autônomo"
e outro "heterônomo". O setor heterônomo da economia permaneceria guiado pela
necessidade, com produtores subordinados e trabalho anônimo, indiferenciado.
Utilizando as mais modernas técnicas industriais, este setor produziria em
massa os produtos essenciais, que seriam distribuídos a toda população. Todo o
cidadão teria o dever de fornecer algumas horas de trabalho socialmente útil,
produzindo no setor heterônomo. Gorz fala em 20 mil horas de trabalho em toda a
vida ' contra as mais de 57 mil horas atuais de alguém que trabalhe quarenta
horas por semana, durante trinta anos, onze meses por ano. O indivíduo poderia
concentrar suas horas "socialmente úteis" em períodos de trabalho intenso ou
dispersá-las em parcelas diárias suaves.
Esse setor heterônomo (ou alienado) é imprescindível porque "as forças
produtivas desenvolvidas pelo capitalismo trazem a sua marca impressa a tal
ponto que não podem ser geradas ou colocadas em operação segundo uma
racionalidade socialista" (Idem, p. 26). A alienação é inerente à fábrica com
linha de montagem ' e, ao mesmo tempo, esta fábrica é necessária por
proporcionar economias crescentes de trabalho humano. Não se trata, portanto,
da apropriação capitalista: a lógica própria da grande indústria é alienante. O
trabalho morto força o trabalho vivo a servi-lo. "Em resumo", diz Gorz,
sumarizando teses de Marx sobre a grande indústria, "o processo de dominação da
natureza pelo homem (através da ciência) torna-se a dominação do homem pelo
processo de dominação" (Gorz, 1988, p. 74, ênfase suprimida).7
Ele acredita que "a única chance de abolir as relações de dominação é
reconhecer que o poder funcional é inevitável e conceder-lhe um lugar
circunscrito" (Gorz, 1980, p. 81). O trabalho heterônomo seria restrito à sua
esfera imprescindível ' a grande indústria ' permitindo o surgimento de um
setor livre, de trabalho autônomo, que propiciaria a auto-realização humana.
Nele são abolidos ou minimizados os critérios "econômicos" de produtividade,
eficiência e massificação. A atividade é criativa, porque ali se produz o que
não é necessário:
As atividades do tempo livre, na mesma medida em que são produtivas,
têm como objeto a autoprodução do facultativo, do gratuito, do
supérfluo, em suma, do não-necessário que dá à vida seu sabor e seu
valor: tão inútil quanto a vida mesma, ele [o "não-necessário"] a
exalta como o fim que funda todos os fins (Gorz, 1983, p. 117).
No tratamento que dá à relação entre os dois setores da economia, Gorz
reelabora uma idéia presente em O capital: é além do trabalho determinado pela
necessidade que "começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado um
fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, porém, só pode florescer
com aquele reino da necessidade como sua base" (Marx, 1988 [1861-1879], livro
III, p. 1044). A proposta de sociedade dual também apresenta amplas semelhanças
com Habermas; a manutenção de um setor de trabalho heterônomo corresponde, na
obra de Habermas, ao reconhecimento da legitimidade de uma esfera dominada pela
razão instrumental, o mundo sistêmico (das relações econômicas e de poder). A
esfera da atividade autônoma, na qual Gorz enfatiza os aspectos da
convivencialidade, é similar ao "mundo-da-vida", onde deve florescer a ação
comunicativa. Gorz assinala tais semelhanças, embora critique o conceito
habermasiano de mundo-da-vida, que designa
[...] não, de fato, o mundo da experiência vivida original, mas o do
vivido mediado pelos meios sociais de sua expressão formalizada, em
particular pelos estereótipos da linguagem, e despojada de sua
negatividade (Gorz, 1988, pp. 217-218).
Tal diferença é importante "numa situação em que não se trata de reproduzir a
sociedade, mas de concebê-la em nova base e nova perspectiva" (Idem, p. 213).
Mas, ainda assim, permanece uma concordância essencial entre Gorz e o Habermas
da fase crítica. Para ambos, a deturpação essencial da vida moderna é a
transferência de critérios próprios à esfera heterônoma para a esfera autônoma
' a "colonização do mundo-da-vida pela razão instrumental", no jargão
habermasiano; a instrumentalização das atividades gratuitas pela racionalidade
econômica, segundo Gorz.
Entendida como uma possibilidade histórica, a sociedade dual precisa sobrepor-
se a outras possibilidades igualmente presentes. Gorz identifica uma saída
conservadora para a crise da sociedade do trabalho, que passa pela ampliação da
hegemonia da razão instrumental (ou "racionalidade econômica", em seus termos)
em todos os espaços da vida humana. Os empregos estáveis de tempo integral
tornam-se privilégio de uma elite de trabalhadores bem-pagos. À sua volta, uma
periferia de subempregados executa os serviços subalternos. A borda externa
dessa periferia inclui marginalizados permanentes, mantidos por mecanismos do
Estado de bem-estar, como o seguro social.
Até aqui, a imagem é semelhante à do mercado de trabalho sob o regime de
acumulação capitalista flexível, tal como apresentada, por exemplo, por David
Harvey (1989, pp. 143-144). A esse quadro, Gorz acrescenta a expansão do campo
das atividades assalariadas, proposta por economistas como solução para a crise
de desemprego. Isso inclui, numa ponta, o pagamento de salários às donas-de-
casa e às mães; na outra, a expansão do mercado de mães de aluguel,
prostitutas, serviçais, gente que fica à disposição da elite empregada nas
atividades produtivas (Gorz, 1988). Essa imagem é a de uma sociedade em que
todo o avanço tecnológico não resulta em um segundo a mais de tempo livre para
ninguém. A elite trabalha sem cessar para manter seu consumo suntuoso e seus
serviçais. Estes estão presos à necessidade imperiosa de "ganhar a vida". E os
desempregados, entregues à boa-vontade do Estado, não têm condições materiais
de transformar o tempo de não-trabalho em tempo de autodeterminação.
A manutenção artificial de uma sociedade do trabalho também está ligada à
difusão de uma ideologia de "mais é melhor", núcleo da própria racionalidade
econômica (Idem, p. 154).8 Da mesma forma que produz para criar trabalho, o
capitalismo contemporâneo passa a "produzir consumidores para suas mercadorias,
necessidades que correspondam aos produtos de produção mais rentável" (Gorz,
1983, p. 50). Essa ideologia impregna os trabalhadores que, por isso, se mantêm
acorrentados ao trabalho, mais horas do que o necessário, para consumir mais do
que precisam ou mesmo podem. Esses trabalhadores transferem a racionalidade
econômica para a esfera do tempo livre, do lazer, das atividades que deveriam
utilizar outra racionalidade, que deveriam perseguir fins em si mesmos.
Inverter essa direção, subordinar o setor heterônomo à atividade
autodeterminada, é o objetivo da utopia dualista.
Fica evidente que os operários não podem ser os promotores da instauração de
uma sociedade de tempo liberado. Ao menos nos países centrais, uma parcela cada
vez menor da população encontra-se empregada em período integral na indústria
de transformação. Os operários remanescentes, orgulhosos de sua posição,
permanecem fiéis à ideologia do trabalho e não se identificam com o projeto de
uma sociedade de tempo liberado (Idem, p. 78). A utopia proposta por Gorz
encontraria ressonância no que ele chama de "não-classe dos não-trabalhadores":
desempregados e semi-empregados que cumprem tarefas de ocasião, intercambiáveis
e com vínculos empregatícios precários. O trabalho, para eles, não é um espaço
de realização e sim "um tempo morto à margem da vida" (Gorz, 1980, p. 89). Mas
a "não-classe" não está dotada de nenhuma missão teleológica similar à do
proletariado. Ao mesmo tempo em que prega a transformação da sociedade, Gorz
confessa não saber "que forma pode tomar essa ação nem que força política é
capaz de conduzi-la" (Idem, p. 22). A noção de "não-classe dos não-
trabalhadores", avançada provocativamente em Adeus ao proletariado, é
abandonada nas obras posteriores.9
Além da ausência de um sujeito coletivo capaz de encampar o projeto, existem
problemas no próprio funcionamento da sociedade projetada. O mais importante
deles diz respeito à existência de toda uma gama de serviços socialmente úteis,
embora não estritamente produtivos, que consomem muita mão-de-obra, como ocorre
nas áreas de saúde e educação. A solução é a criação de mais uma esfera de
trabalho, "comunitária" (Gorz, 1983, p. 126) ' um terceiro setor, dito
intermediário, para a utopia dualista. O cumprimento de tarefas na esfera
comunitária não seria obrigatório, como no setor heterônomo. Haveria um
incentivo: quem participasse do setor intermediário ganharia o direito de
receber bens ou serviços numa quantidade equivalente às horas trabalhadas.
Essa solução, na verdade, expande o espaço do trabalho heterodeterminado,
alienado, que não é um fim em si mesmo. O objetivo seria externo à tarefa: a
obtenção dos bens e serviços trocáveis pelas horas despendidas. Por isso, Gorz
acaba reduzindo sua idéia de setor intermediário ou comunitário à posição de
"segunda melhor opção". A plena realização da utopia exige que essas atividades
sejam assumidas pelo setor autônomo. Professores, médicos e profissionais
semelhantes, bem como artistas e cientistas, encontrariam ' como hoje, em certa
medida, já encontram ' no cumprimento de suas tarefas uma satisfação que
independe da recompensa monetária. É a satisfação proporcionada pelo
reconhecimento do discípulo, do paciente ou do público. A universalização
dessas relações exige uma generosidade recíproca alheia à racionalidade
econômica hoje hegemônica (Gorz, 1988).
Mas Gorz também procura mostrar que trabalhos especializados como o do médico,
do jornalista ou do professor não exigem dedicação permanente. Esta seria uma
idéia difundida pela elite dos especialistas bem-pagos, desejosos de manter seu
monopólio sobre fatias do mercado de trabalho. Portanto, esses especialistas
devem obter tempo para desenvolver outras atividades ' e, inversamente, suas
especialidades devem ficar ao alcance de qualquer indivíduo desejoso de
encontrar nelas alguns de seus caminhos para a auto-realização. Não se trata de
eliminar a especialização necessária ao cumprimento de tarefas complexas, mas
de democratizar o acesso a esses saberes (Gorz, 1983, p. 77).
A utopia dualista de Gorz mantém, assim, um compromisso essencial com a
concepção marxista da auto-realização humana, que ocorre por intermédio do
trabalho (entendido em oposição ao consumo):
A exigência de "trabalhar menos" não tem por sentido e por finalidade
"descansar mais", mas "viver mais", o que quer dizer: poder realizar
por si mesmo muitas coisas que o dinheiro não pode comprar e mesmo
uma parte das coisas que ele atualmente compra (Gorz, 1980, p. 11).
Também como Marx, Gorz aposta no surgimento de um novo homem, capaz de usufruir
as possibilidades que lhe são abertas pelo campo da atividade autônoma. Esse
surgimento seria possibilitado pela limitação da racionalidade econômica à sua
esfera própria. O não-surgimento desse novo homem acabaria por transformar a
utopia dualista em algo semelhante à sociedade do trabalho alienado atual '
pela via da esfera intermediária de trabalho "comunitário" monetarizado. Neste
caso, o triunfo da racionalidade econômica ocorreria sem constrangimentos
sistêmicos, por escolha dos indivíduos. Eles usariam a liberdade conquistada
para optar livremente pela servidão. Essa eventualidade pode ser descartada a
priori apenas na medida em que se tenha a visão de uma "natureza humana" que,
uma vez liberada dos constrangimentos atuais, ansiaria por oportunidades de
pleno desenvolvimento de suas potencialidades criativas. Tal é a visão que,
malgrado as críticas reiteradas à noção de "natureza humana", subjaz à
percepção de Gorz, como de Marx, sobre a auto-realização das mulheres e dos
homens.
Renda para todos
De todas as propostas analisadas aqui, a renda básica incondicional (ou
"salário cidadão") é a que encontra maior receptividade entre intelectuais e
políticos, sobretudo nos países da Europa ocidental. É necessário, em primeiro
lugar, diferenciá-lo de outras políticas de transferência direta de renda do
Estado para os cidadãos. Os projetos de "imposto negativo", patrocinados por
ultraliberais como Milton Friedman, visam a substituir os serviços prestados
pelo Estado (educação e saúde públicas, por exemplo) por uma quantia em
dinheiro entregue àqueles com menor renda. O seguro-desemprego é um auxílio
presumivelmente temporário para quem se encontra sem trabalho, pensado ainda
dentro da lógica de um ideal de pleno emprego. Medidas como bolsa-escola ou
renda mínima, defendidas no Brasil por líderes políticos como (respectivamente)
os senadores Cristovam Buarque e Eduardo Suplicy, são paliativos destinados aos
mais pobres, em alguns casos objetivando assegurar-lhes condições para a
inserção no mercado de trabalho. O "segundo cheque" de Guy Aznar, que será
discutido adiante com um pouco mais de detalhe, busca a redução da jornada de
trabalho daqueles que estão empregados.
A renda básica incondicional ou universal, por sua vez, é aquilo que seu nome
indica ' uma transferência de renda permanente do Estado para todo e qualquer
cidadão, independentemente de suas características pessoais, de possuir ou não
outras fontes de renda, de estar ou não disposto a aceitar um emprego, caso
tenha esta possibilidade. Todos recebem pelo simples fato de serem cidadãos. A
renda básica incondicional se estabelece como alternativa tanto à utopia
esboçada por Gorz como à saída conservadora para a crise da sociedade do
trabalho.
Seu objetivo é libertar as pessoas da imposição do trabalho assalariado ' ou
devido a uma postura filosófica, ou por se considerar, como Offe, Mückenberger
e Ostner (1996 [1989], pp. 208-209), que tentativas de retorno ao pleno emprego
são ilusórias, economicamente indesejáveis e ecologicamente nefastas. Embora
compartilhe do objetivo, Gorz mostrou-se avesso à alternativa, recusando o
desenho de sociedade que ela projetava. Na base desta rejeição, estava seu
entendimento de que a participação na atividade produtiva funda o direito de
cidadania.
De forma algo bombástica, o principal difusor da renda básica universal, o
filósofo belga Philippe Van Parijs, secretário do Basic Income European Network
(BIEN), afirma que a proposta pode realizar o "velho ideal emancipatório
associado ao movimento comunista, sem exigir para tanto nada semelhante a um
modo socialista de produção" (Van Parijs, 1992, p. 466) ' ou, então, que seria
"uma via capitalista para o comunismo" (Van Der Veen e Van Parijs, 1987). O
salário cidadão aboliria o jugo da necessidade, já que ninguém mais seria
obrigado ao trabalho para suprir sua subsistência ' na medida do
desenvolvimento econômico, estaria garantido até mesmo o conforto, já que a
idéia é oferecer aos cidadãos a "maior renda possível". Quem desejasse, porém,
poderia buscar um emprego, trocando parte de seu tempo livre por maiores
possibilidades de consumo. A organização capitalista ou socialista da economia
é, a princípio, indiferente, embora Van Parijs julgue que, por motivos
práticos, seria capitalista. Nenhum dos países de economia estatizada
remanescentes no final do século XX possuía um grau de desenvolvimento
suficiente para tentar implementar um tal projeto.
O caráter universal da renda básica impede que seus beneficiários sejam
estigmatizados, como ocorre com os recebedores de seguro-desemprego, ou que se
tornem presas do clientelismo político. Também garante o respeito à privacidade
e às liberdades civis de todos, ao passo que muitos programas sociais hoje
existentes envolvem o monitoramento dos favorecidos, para garantir que eles
atendam aos critérios de elegibilidade para o programa, quando não os obrigam a
cumprir alguns deveres (Van Parijs, 1997 [1991], p. 178). Assim, beneficiários
do seguro-desemprego são vigiados para que não exerçam atividade remunerada ou,
então, não podem recusar qualquer oferta de trabalho que lhes seja feita;
famílias que recebem bolsa-escola devem provar que seus filhos não faltam às
aulas; agentes do governo verificam as condições de pobreza dos candidatos aos
programas assistenciais.
Não se trata, portanto, de um programa compensatório, destinado a garantir
condições de vida aos "excluídos" ou a resolver a crise da oferta de emprego. É
a busca da ampliação da liberdade efetiva de todos os cidadãos, incluindo a
liberdade de não ganhar o pão com o suor do rosto, hoje desfrutada apenas por
alguns poucos rentistas ou herdeiros. Nesse sentido, se distancia de projetos
de garantia de emprego, pelo qual o Estado assumiria a responsabilidade de
oferecer trabalho e salário a todos os que necessitassem (Mitchell e Watts,
2004). Ao contrário do que afirmam mesmo alguns de seus defensores (Noguera,
2001), a renda básica não seria apenas mais exeqüível e facilmente aplicável do
que a garantia de emprego. Na perspectiva de Van Parijs, ela apresenta um ideal
superior, passando do direito ao trabalho para o direito ao não-trabalho.
De início, a renda básica universal poderia até ser inferior ao montante
socialmente considerado necessário para uma vida digna (Van Parijs, 1992, p.
472). No entanto, é possível objetar que, neste caso, o projeto não atingiria
seus fins. As pessoas continuariam constrangidas a procurar emprego assalariado
e a alocação universal de renda serviria apenas para reduzir o custo da mão-de-
obra, beneficiando o capital, mas não os trabalhadores. Apenas quando atinge o
limiar do "mínimo necessário" o salário-cidadão cumpre a função de fortalecer
os (possíveis) assalariados, que estão em melhor posição de barganha, já que
passam a ter a opção de não aceitar nenhum emprego. A partir daí, quanto mais
alta a alocação de renda, maior o poder de negociação dos trabalhadores.
Apesar do que afirma Van Parijs, é difícil vislumbrar a convivência, a longo
prazo, desse modelo com o capitalismo. Um dos traços fundamentais da ordem
capitalista é a desigualdade estrutural que força os não-possuidores de meios
de produção a venderem sua força de trabalho ao capital, premidos pela
necessidade de subsistência e pela existência do exército industrial de
reserva. A renda básica vive, então, um dilema, pois, quando está abaixo do
nível de subsistência, funciona "como um subsídio para empregadores pagando
baixos salários", e se sobe acima da subsistência "rompe o funcionamento da
economia capitalista" e passa a enfrentar a oposição feroz dos interesses
contrariados (Callinicos, 2000, p. 118). A avaliação da força da oposição da
burguesia é essencial para considerar as dificuldades de implementação do
projeto ' se é uma mera questão tributária (qual o nível de imposto necessário
para a concessão de renda básica a todos em determinado patamar, um problema
técnico do qual Van Parijs e outros se ocupam bastante, mas que aqui não
interessa) ou praticamente uma desapropriação.
Cumpre observar ainda que o modelo exige que uma determinada quantidade de
pessoas aceite os incentivos para se integrarem ao trabalho produtivo e, assim,
gerar a riqueza necessária para sustentar a renda universal de todos. Isto
significa a manutenção do padrão aquisitivo que caracteriza os homens e as
mulheres das sociedades capitalistas. Por outro lado, há a preocupação de
defender a legitimidade ética da opção por não trabalhar, em termos do respeito
liberal às diferentes concepções do que é a boa vida. Aqueles que decidem
permanecer apenas com o salário-cidadão não são parasitas que vivem às custas
da riqueza produzida por outros, mas indivíduos que, ao perseguirem sua própria
concepção do bem ' que valoriza o tempo livre, acima do consumo ou do conforto
material ', permitem que outros, com concepções de bem diversas, se assenhorem
dos postos de trabalho existentes (Van Parijs, 1991).
Numa veia diversa, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman apresentou uma defesa da
renda básica universal em termos de suas conseqüências políticas. Ela reduziria
a incerteza existencial que, hoje, mina o espaço público e "reintroduziria
padrões morais na vida social, substituindo o princípio da competição pelo da
participação" (Bauman, 2000 [1999], p. 186).10 No momento em que o Estado se
compromete a garantir a todos os cidadãos o necessário para sua sobrevivência
digna, ele reassume seu papel de promotor do bem comum. Ao que parece, Bauman
julga que, assegurado o provimento de suas necessidades, as pessoas vão, como
que automaticamente, ampliar a participação política. Para sustentar tal
conclusão, ele afirma que "o direito universal à renda vai baixar as apostas no
jogo do consumo, uma vez que entrar nele não será mais uma questão de
sobrevivência" (Idem, p. 190). A idéia de que a sociedade de consumo é fundada
na busca de sobrevivência de suas vítimas, porém, soa bizarra e não é explicada
pelo autor.
Gorz criticou duramente a proposta de renda básica, encarando suas
conseqüências políticas de forma oposta à de Bauman. Ela contribuiria para a
atomização dos indivíduos, eliminando o espaço público associado às atividades
econômicas, sem apresentar outro em troca (Gorz, 1991, p. 174). Mais importante
ainda, de seu ponto de vista, era a objeção moral. A alocação universal
"permite à sociedade não se ocupar da repartição eqüitativa do fardo" do
trabalho (Idem, p. 176). A sociedade seria cortada em dois, alguns permanecendo
vinculados a um ethos aquisitivo, buscando maior retribuição monetária e,
assim, maiores possibilidade de consumo, e outros se eximindo de dar sua
contribuição para o bem-estar coletivo.
Embora pudesse até eliminar a condenação da maioria da população ao
assalariamento, a renda básica permaneceria compatível com a monetarização das
relações sociais e não contribuiria para a geração de uma nova solidariedade,
que superasse o individualismo egoísta das sociedades capitalistas. Excluídos
pela sociedade, que os condena à marginalidade, os beneficiários do rendimento
universal receberiam do Estado um auxílio destinando a garantir sua
subsistência, sem reinseri-los no tecido social. Em suma, o projeto
desempenharia um papel conservador, visando apenas a "tornar socialmente
suportável a dominação [da racionalidade econômica] sobre a sociedade" (Gorz,
1988, p. 165) e negando a uma parcela da população o "direito de acesso à
esfera econômica pública por meio do próprio trabalho [que] é indissociável do
direito à cidadania" (Idem, p. 175).
Aceitável, no máximo, como medida de transição, enquanto o trabalho é
redistribuído, a medida reaparece de forma bem diferente na figura do "segundo
cheque", a proposta de Guy Aznar (1995 [1993]) endossada por Gorz. Trata-se de
uma compensação social, que recompõe a renda caso a redução da jornada implique
em redução do salário. Mas, ao contrário da renda básica universal, o
rendimento concedido pelo Estado não está desvinculado da participação de todos
na esfera pública do trabalho. Trata-se de um incentivo para a redução da
jornada nas empresas, de forma que mais pessoas participem da produção; "seu
objetivo não é a distribuição de renda, mas a distribuição de trabalho" (Silva,
2002, p. 191).
Em sua obra mais recente, porém, Gorz recuou desta posição. Ele passou a
admitir que os projetos de renda básica universal são politicamente mais
viáveis; ao mesmo tempo, reconheceu que a realidade das economias
contemporâneas, "pós-fordistas", impõe graves obstáculos ao cálculo do tempo de
trabalho, necessário em seu esquema anterior. Embora sejam acrescentadas certas
condições para a boa implementação de uma política de alocação incondicional de
renda, incluindo a busca de novas formas de cooperação e de sociabilidade, tal
mudança representa um sério aviltamento ' em nome do "realismo" ' do projeto
utópico desenvolvido nos escritores anteriores, fato do qual, aliás, o autor
demonstra estar consciente (Gorz, 1997, pp. 130-156).11
Como visto, a desvinculação entre o trabalho e o direito à subsistência, que
está no cerne da proposta de renda básica incondicional, ampliaria de forma
substantiva a capacidade que a maioria das pessoas tem de decidir como deseja
tocar a própria vida, isto é, "a liberdade real de levar a própria vida da
forma como se desejar" (Van Parijs, 1992, p. 470). Mas tal liberdade é
entendida como pertencendo exclusivamente à esfera privada, sem que sejam
previstas medidas de ampliação da autonomia coletiva no Estado ou na gestão da
economia.
Da mesma forma que o modelo de Gorz, a renda básica universal pressupõe uma
sociedade altamente industrializada, com elevadíssima produtividade, de modo
que o trabalho de alguns seja suficiente para suprir as necessidades de todos.
Para o resto do mundo, parece que a única alternativa é trilhar o mesmo caminho
dos países capitalistas desenvolvidos e, lá chegando, adotar seu próprio
sistema de renda incondicional. Por vezes, os autores que defendem a proposta
apresentam um reconhecimento protocolar dos problemas da justiça internacional,
apenas para afirmar que eles não serão abordados (Van Parijs, 1991, p. 102). No
entanto, trata-se de uma questão importante, ainda que se deixe de lado a idéia
de imperialismo, isto é, a investigação sobre o papel da transferência de
riquezas dos países pobres na prosperidade do chamado "primeiro mundo".
Um dos mais graves problemas enfrentados nos países para os quais a proposta de
renda básica se dirige é a presença de um vasto contingente de imigrantes de
países pobres, que não são admitidos à cidadania, estão submetidos a condições
precárias de vida e tornam-se o bode expiatório do discurso xenófobo da
extrema-direita. Uma política de salário-cidadão não pode acolhê-los, pois
pressionariam em excesso os recursos disponíveis ' ainda que admita os atuais
residentes, não teria como absorver novas levas de imigrantes, seguramente
ainda mais numerosas, pois atraídas pela própria existência da renda
incondicional.
Restam duas alternativas: um extremo rigor policial, para impedir a entrada e
permanência de estrangeiros, ou um sistema com duas castas, no qual os
estrangeiros não receberiam o benefício da renda básica e continuariam
dependentes da venda da sua força de trabalho para sobreviver. No primeiro
caso, a utopia tomaria a estranha forma de uma sociedade de vigilância
permanente, com um aparato repressivo alargado. (Não custa observar que, nas
condições de liberdade da obrigação de trabalhar que o modelo produz, a
manutenção de tal aparato seria extremamente dispendiosa.) No segundo caso, há
a geração de uma profunda desigualdade social, um verdadeiro apartheid entre
cidadãos e imigrantes. E a simples presença dos trabalhadores estrangeiros,
ainda constrangidos pelo aguilhão da necessidade, anularia um dos benefícios
esperados, o fortalecimento da posição dos vendedores de mão-de-obra vis-à-vis
o capital.
A loteria total
A proposta utópica mais radical, que implica na transformação mais extensa da
ordem social, é a de Barbara Goodwin. Ela consiste em fazer dos sorteios o meio
universal de alocação de recursos escassos, a começar pelas posições de poder e
prestígio. O apelo ao acaso é, em geral, considerado uma confissão da falência
no uso da razão. No entanto, a escolha aleatória é um método útil em situações
nas quais os custos da decisão são demasiado elevados ou ninguém quer arcar com
a responsabilidade moral por ela (Elster, 1991 [1988]). As loterias são
igualitárias, imunes à corrupção e evitam o conflito sobre critérios de
merecimento (Elster, 1992, p. 72). Nas últimas décadas, diversos pensadores têm
proposto a adoção de sorteios como forma de combater os vícios encontrados na
seleção eleitoral dos representantes políticos (Miguel, 2000).
A proposta de Goodwin é bem mais ousada do que o mero sorteio de legisladores.
Seu elemento básico é o entendimento radical de que nossas vidas são em grande
medida condicionadas por um acaso inicial, a "loteria do nascimento". Ela
determina nossas características genéticas e, muito mais importante, a posição
de onde partimos na sociedade, que faz com que herdemos não apenas bens, mas
status, formação cultural, títulos e contatos com outras pessoas. A família é o
mais renitente instrumento de perpetuação de desigualdades sociais, justamente
por desempenhar múltiplas funções ' afetivas, econômicas, educacionais e outras
', o que faz com que sugestões para que seja abolida, à la Platão, em geral
pareçam muito pouco atraentes.
Se não é possível eliminar a loteria do nascimento, então o caminho é reduzir
ao máximo a sua influência. Ela deixa de ser "a" loteria, aquela que define de
uma vez por todas as possibilidades de cada um no espaço social, para se tornar
apenas a primeira de uma longa série. A inspiração de Goodwin é "La lotería en
Babilonia", um conto de Borges (1974 [1944]), que ela lê, com exagero, como uma
sátira ao capitalismo, denunciando que as hierarquias sociais não refletem
mérito ou escolhas, mas apenas o acaso (Goodwin, 1992, p. 28). No conto,
insatisfeitos com o método convencional de premiação das loterias, os
babilônios adotam um modelo mais emocionante, em que passam a ser sorteadas
também punições. Ao final, toda a ordem social está dependente dos resultados
lotéricos.
À maneira das narrativas utópicas renascentistas, Goodwin abre seu livro com a
descrição de Aleatoria, sociedade imaginária na qual tudo é decidido pela
sorte, do recrutamento das forças policiais ao número de filhos de cada mulher,
de quem serão os magistrados à casa em que cada um vai residir. Nos capítulos
seguintes, analisa os pontos fortes e fracos do projeto, avaliando
potencialidades e limites da introdução da loteria como mecanismo de
distribuição de bens e posições nos diversos campos sociais.
A sociedade lotérica representa uma tentativa de combinação entre os valores da
diversidade e da igualdade. Os projetos socialistas tendem, muitas vezes, a uma
equalização excessiva das condições de existência, o que, na concepção de
Goodwin, representa uma perda. A convivência com uma multiplicidade de modos de
vida é um valor em si mesma e deve ser preservada; como ela depende da
diferença não apenas cultural, mas também de recursos materiais, implica na
manutenção de um grau razoavelmente elevado de desigualdade econômica.
Para garantir que o caráter igualitário da utopia vingará, Goodwin imagina três
mecanismos principais. Primeiro, a dissociação entre as diversas vantagens de
cada posição no espaço social. Uma das peculiaridades mais perversas do mundo
em que vivemos é que os desprivilegiados e os privilegiados tendem a se manter
como tal em todas as dimensões. Os trabalhos mais gratificantes são em geral
aqueles com maior prestígio social e com melhores salários; portanto, seus
ocupantes costumam morar em casas maiores e mais cômodas, que são também mais
bem localizadas; os ocupantes destas casas melhores possuem mais itens de
conforto e consomem produtos de melhor qualidade, têm mais acesso ao lazer e à
cultura e viajam com mais freqüência. A lista de vantagens cumulativas é quase
interminável. O projeto de Goodwin separa trabalho de renda (e, portanto, de
consumo) e também de moradia. Os diferentes empregos ' estimulantes ou
enfadonhos, satisfatórios ou desgastantes ' serão distribuídos de forma
aleatória e os diferentes salários também, mas em sorteios independentes. O
mesmo vale para as habitações.
O segundo mecanismo é a rotatividade. As diferentes posições serão
redistribuídas periodicamente, o que garante que a diversidade de modos de vida
não será experimentada apenas ao nível social, mas também pessoal. Embora, num
determinado momento, A esteja em situação inferior a B, em termos de status ou
renda, em seguida as posições podem se inverter. A rotação é caracterizada como
sendo o método justo de distribuição para bens indivisíveis de uso exclusivo
(Goodwin, 1992, p. 58), como é o caso dos bons empregos e das boas moradias. (A
renda poderia sofrer divisão eqüitativa, mas feriria a diversidade procurada e
enfraqueceria o primeiro mecanismo compensatório.)
O terceiro mecanismo, enfim, é a limitação da aleatoriedade. Não será possível
que a sorte (ou o azar) perpetue alguém numa posição; afinal, o objetivo é
fazer com que cada pessoa experimente diferentes tipos de trabalho e de modos
de vida, recebendo uma parcela equilibrada das vantagens e desvantagens (Idem,
p. 9). O resultado é uma espécie de "aleatoriedade vigiada". Embora a autora
critique Rawls por postular implicitamente que todos os participantes de sua
"posição original" teriam aversão ao risco, evitando produzir uma sociedade
injusta por temor de ficar no pólo negativo da injustiça (Idem, p. 32), este
mecanismo reduz de forma brutal as incertezas existentes em sua utopia
lotérica.
Embora o ponto não seja discutido por Goodwin, a implementação de sua utopia
exige a estatização dos meios de produção ' ainda que alguns possam ficar na
posição de rentistas e outros, de administradores de empresas, as posições
devem estar disponíveis para outros no momento do sorteio seguinte. Além dos
proprietários, a proposta enfrentaria a oposição dos detentores do poder
políticos, assalariados com alta renda, ocupantes dos melhores empregos, enfim,
de todos aqueles que de alguma maneira se encontram em posições de elite. A
autora está consciente do fato, mas evita qualquer discussão sobre a transição.
Os dois principais problemas da sociedade lotérica são identificados com
facilidade. O primeiro diz respeito às ocupações especializadas (algo que
também afeta, embora em menor medida, a utopia de Gorz). Seria razoável
preencher por sorteio funções delicadas e que exigem anos de preparo prévio,
como, digamos, as de engenheiro nuclear ou neurocirurgião?
Em favor da proposta de Goodwin, é necessário dizer que, por mais vistosas que
sejam, tais profissões ocupam uma parcela bastante minoritária da população
economicamente ativa. Os postos de trabalho mais numerosos exigem relativamente
pouca qualificação ' trabalhos braçais, empregos de escritório e assemelhados.
No entanto, são em geral as ocupações mais especializadas que atraem a
imaginação das pessoas e conferem charme à alternativa lotérica. Pouca gente se
entusiasmaria com a possibilidade de experimentar posições sucessivas de
pedreiro, motorista, bancário, porteiro e faxineiro, sonhando antes em ser
cosmonauta, médico, piloto de avião, violoncelista ou trapezista.
Por um lado, é possível argumentar que, da mesma forma que atividades hoje
corriqueiras foram no passado exclusivas de especialistas (ler e escrever,
dominar uma língua estrangeira, usar o computador), podemos banalizar várias
competências que ainda se mantêm exclusivas, muitas vezes por pressão de
profissionais desejosos de manter seus privilégios ' um ponto que é
desenvolvido por Gorz (1988, pp. 101-102). Por outro, a sociedade deve estar
adaptada à polivalência de seus integrantes. Por exemplo, um sistema legal
simplificado facilita o trabalho de juízes e advogados selecionados por sorteio
(Goodwin, 1992, p. 8). Mas restam muitos casos que não são passíveis de
resolução nem pela disseminação dos saberes necessários, nem pela redução da
complexidade das tarefas. Para estes, o que se aponta é uma solução
intermediária: os profissionais também executarão, eventualmente, trabalhos
não-especializados (Idem, p. 11).
Fica claro que a utopia é projetada para uma sociedade extremamente próspera,
capaz tanto de prover os múltiplos treinamentos necessários para que cada
indivíduo exerça suas atividades sucessivas, como de dispensar o trabalho de
profissionais com alta qualificação. Mesmo no caso de profissões menos
especializadas, o custo da anulação sistemática da experiência acumulada pode
ser significativo. O desperdício de recursos humanos é alto, bem como o risco
de incompetência no exercício das diversas funções ' este último, agravado pela
inexistência de grupos com continuidade significativa em qualquer campo de
atividade.12
O segundo grande problema da utopia lotérica é a ausência de liberdade
individual. Mesmo deixando de lado as medidas mais extremas ' como a imposição
do número de filhos por mulher ', a ausência da possibilidade de escolher uma
carreira ou o local de moradia reduz, de forma muito significativa, a
capacidade que cada pessoa tem de escolher o rumo da própria vida (ou, para
usar a linguagem da filosofia política, de perseguir sua própria concepção de
bem). A resposta à crítica passa pela negação da possibilidade de liberdade
real, com uma radicalização da denúncia (marxista, mas não só) da vacuidade das
liberdades formais sob as condições da sociedade capitalista.
O que limita a liberdade é a escassez, o fato de que, para darmos curso às
nossas escolhas, precisamos de meios de que muitas vezes não podemos dispor.
Hoje, a escassez é "resolvida" pelo mercado, isto é, em prejuízo sistemático
dos mais pobres e dos mais frágeis (Idem, p. 178). Para estes, a liberdade de
controlar a própria vida é uma quimera. De maneira esquemática, é razoável
dizer que o comunismo marxista imaginava a completa superação da escassez (e,
portanto, a liberdade total para todos). O igualitarismo socialista distribui
riqueza e escassez entre todos, em parcelas idênticas, gerando uma sociedade
com baixa diversidade. Descrente na abundância absoluta vislumbrada por Marx e
descontente com a mediocridade que detecta no socialismo, a utopia lotérica
descarta a liberdade individual como valor, por irrealizável. Em seu lugar,
deseja dar a cada um e a cada uma oportunidades para seguir variados caminhos,
em vez de ter uma única trajetória de vida, determinada pela loteria do
nascimento.
Conclusão
A exposição evidenciou que as cinco propostas utópicas aqui discutidas são
bastante diferenciadas quanto ao estatuto político que possuem. O projeto de
Barbara Goodwin é uma provocação intelectual, sem intenção de se tornar uma
diretriz para a ação política, destinada a revelar as perversidades da ordem
liberal. Em sentido oposto (e com maior repercussão), o anarcocapitalismo
cumpre função similar. Longe de ser um modelo que almeja ser implementado, é um
reforço ideológico para a equação que iguala o mercado à liberdade e o Estado,
à opressão. Numa curiosa transformação, quando se lembra das denúncias contra o
"comitê gestor dos interesses da burguesia", no século XIX e primeira metade do
século XX, são as propostas vinculadas ao ideário histórico da esquerda que
exigem um aparelho estatal consideravelmente fortalecido, capaz de reger toda a
organização social.
Já o projeto de renda básica universal, desenvolvido em grande detalhe e com
diversas simulações por redes de pesquisadores e ativistas como o BIEN de
Phillipe Van Parijs,13 é uma plataforma atuante no ambiente europeu ocidental,
impondo-se como uma alternativa a ser levada a sério no campo político. As
utopias de Gorz e, ainda mais, de Roemer não conseguiram alcançar tal patamar,
embora aspirassem a isso.
O Quadro_1 sintetiza as principais características dos cinco modelos utópicos
estudados. O de Gorz destaca-se pela aposta na redução do espaço das relações
instrumentais entre as pessoas, valorizando a convivencialidade mais solidária,
apreciada por si mesma e "desinteressada". Uma preocupação similar pode ser
vislumbrada no projeto de renda básica universal, mas apenas de forma tênue, e
está ausente por completo nos outros.
A solidariedade presente na proposta de Van Parijs é "fria", mediada pelo
aparato estatal, realizando-se na transferência de riqueza que permite a alguns
dispensarem uma obrigação de trabalhar que encaram como um fardo. Não há a
aposta em ' e o estímulo a ' trocas diretas generosas entre os integrantes da
sociedade, como ocorre na utopia dualista. Nesse sentido, o modelo apresentado
por Gorz implica um desafio muito mais elevado, na busca pela construção de um
mundo social diferente. Seu esforço tem como núcleo a redução ao mínimo
possível do espaço destinado à operação dos mecanismos de mercado, entendidos
como alienantes em si mesmos e opostos à interação humana solidária. Ele se
contrapõe não apenas aos anarcocapitalistas, como é óbvio, mas também às outras
propostas de esquerda, que mantêm as trocas mercantis, ainda quando as
constrangendo severamente (como no caso de Goodwin).
Assim, Gorz e, em menor medida, Van Parijs encontram-se num pólo, em oposição
ao qual estão os anarcocapitalistas e, com feições bem mais moderadas, Roemer.
É a escala relativa à continuidade ou à transformação das motivações humanas
dominantes nas sociedades atuais ' questão que, em si, sempre foi crucial para
o pensamento utópico. Goodwin mantém-se numa posição excêntrica; para ela, a
questão das motivações é irrelevante, já que se trata de impelir todos a
experimentarem uma diversidade de modos de vida.
Em todos os cinco modelos utópicos, os problemas sem resposta são grandes o
suficiente para comprometer a realização dos benefícios esperados. Mas o mesmo
pode ser dito das sociedades em que vivemos; suas promessas (de democracia, de
liberdade, de segurança, de igualdade, de abundância, de paz) permanecem em
larga medida não-cumpridas. Talvez seja exagerado dizer, como fez retoricamente
um colaborador de Gorz, Gunnar Adler-Karlsson, que os problemas das propostas
utópicas seriam solucionados se dessa tarefa se ocupasse "um centésimo do
pessoal e dos economistas" que hoje se empenham na salvação da sociedade atual
(apud Gorz, 1988, p. 262). Não resta dúvida, por outro lado, que os impasses
existentes hoje dificilmente serão resolvidos no quadro institucional existente
' o que não quer dizer que o "sistema" seja incapaz de se reproduzir por um
período indeterminado, e sim que ele é cada vez mais incapaz de realizar os
valores que abraça ostensivamente.
Ao criticar o mundo presente e mostrar que outras opções são possíveis ' ainda
que com lacunas ', o pensamento utópico cumpre o seu papel, espanando a
acomodação diante de conceitos, categorias e formas de reflexão dominantes.
Mais do que legitimar a ordem existente, o discurso da ideologia muitas vezes
nega viabilidade a qualquer alternativa: faz com que pensemos que "o mundo é
mesmo assim" e, por conseqüência, nos conformemos com o jeito que ele é. Por
isso, o discurso anti-ideológico carrega necessariamente um componente utópico
(como já dizia o velho Mannheim). Com suas limitações, com suas imperfeições,
em muitos casos mesmo com sua falta de ousadia, as propostas de Roemer, Gorz,
Van Parijs e Goodwin reafirmam este fato.