Legitimidade, democracia e accountability no Mercosul
Neighboring states are obliged not only to treat one another according to the
rules of justice and good faith, but must also, both for the sake of their own
security and the common interest, create for themselves a kind of society and
general republic.
FRANÇOIS DE SALLIGNAC DE LA MOTHE FÉNELON1
Introdução
O Mercado Comum do Sul, Mercosul, completou quinze anos em março de 2006. Ele
reflete, ao lado de inúmeros outros processos de organização regional
internacional (ORI), a conseqüência de um processo de mutação do Estado-nação,
que parece não mais conseguir atuar como primo regulador da vida social. Como
atesta Deutsch:
No mundo atual, o Estado - isto é, o típico Estado-nação soberano - é
simultaneamente indispensável e inadequado. Ele é um instrumento
indispensável para a realização de inúmeras tarefas, para prover
serviços e para lidar com muitos problemas reais. Mas ele é
inadequado no gerenciamento de um número crescente de outros
problemas de vida e de morte de seus cidadãos (1981, p. 331).2
Essa mutação, no entanto, persiste ancorada em padrões interpretativos ainda
por demais tributários da lógica estato-cêntrica. Tal tem sido o caso, por
exemplo, das tentativas de compreensão da evolução do sistema político da União
Européia, referencial contemporâneo pioneiro em matéria de inovação
integracionista (Hoffmann e Van der Vleuten, 2007). Ora, a cartografia
institucional3 que daí deriva encerra, pois, incoerências e incompatibilidades
entre, de um lado, a demanda real dos atores sociais e agentes econômicos, de
outro, as instituições políticas de fato concebidas e implementadas. O esforço
teleológico empreendido por ambos os lados busca, contudo, um modo de
governança capaz de conciliar eficiência e controle legítimo do poder.
Nesse contexto, o presente artigo propõe-se a investigar como o fenômeno da
governança tem se transformado no âmbito do Mercosul. Enfocam-se as complexas e
imbricadas relações entre os níveis regional, nacional e, sobretudo,
subnacional, privilegiando os nexos institucionais que daí derivam. A primeira
parte, mais teórica, procura situar a problemática da relação entre
legitimidade, democracia e accountability no terreno da governança regional e
da ação dos atores estatais subnacionais. Será privilegiado o quadro político
da União Européia (UE), dado que esse processo, por ser o mais aprofundado, tem
sido objeto da maioria das apreciações teóricas disponíveis na literatura
especializada. Apreciações essas, no mais das vezes, seminais e incontornáveis
como referenciais de comparação.4 A segunda parte concentra-se, sob essa ótica,
na análise empírica da relação do tandem argentino-brasileiro e no estudo da
cartografia institucional e de redes de relacionamento no âmago do Mercado
Comum do Sul. Aqui, a UE emerge apenas como um yardstick, um referencial
exógeno, um elemento de passagem, pelo qual se transita para efetuar um melhor
processo de conhecimento endógeno do Mercosul.
Legitimidade, democracia e accountability versus governança regional
Uma das críticas que mais tem assolado as organizações regionais internacionais
aponta para o chamado déficit democrático. Entretanto, não raro, elas se pautam
num exercício comparativo que toma como referencial o Estado-nação clássico:
Comparações são traçadas entre a UE e uma antiga, estilo-Westminster,
forma de democracia deliberativa. Se essa comparação pode ser útil
para propósitos filosóficos, o uso de padrões ideais que governos
modernos não comportam obscurece o contexto social da política
européia contemporânea (Moravcsik, 2002, p. 605).5
Ora, essa falácia comparativa também tem caracterizado a análise de outros
processos de integração regional - entre eles o Mercosul. É verdade que para os
processos de integração regional posteriores ao Tratado de Roma o referencial
comparativo deixa de ser unicamente o Estado-nação, passando a ser também o
próprio sistema político da União Européia, com toda complexidade do mimetismo
institucional que isso implica (Meny, 1993, pp. 7-38). Assim há que se
considerar na análise dos conceitos de legitimidade, democracia e
accountability, no quadro mercosulino, o referencial do Estado-nação
contemporâneo, de tipo cada vez mais gerenciador (Bresser Pereira e Cunill
Grau, 1999, pp. 15-50), como também aquele da UE, incontornável por sua
capacidade de cooptação intelectual e empirismo - sucessos e fracassos, um
verdadeiro laboratório. A questão que se coloca então é: para que haja controle
legítimo do poder instituído pelas organizações regionais internacionais, é
imperativa a existência de participação democrática?
Aspectos conceituais
Uma das características mais marcantes do Estado-nação contemporâneo é o fato
de o Poder Legislativo ter perdido, em muito, sua capacidade de legislar. Os
Poderes Executivos têm, cada vez mais, feito uso de institutos legais expeditos
para balizar não somente ações historicamente situadas na esfera de sua
competência, por exemplo, política comercial, monetária e fiscal, mas também
para efetuar incursões em outras esferas mais tipicamente ligadas ao controle
parlamentar, como as de seguridade social, emprego e educação, que afetam mais
de perto o dia-a-dia do cidadão. Dois exemplos, um no Mercosul e outro na União
Européia, explicitam essa tendência: Brasil e França.
No Brasil, a Constituição de 1988, em seu artigo 62, baliza o poder legislativo
do Executivo por intermédio do instituto da Medida Provisória (MP) que, em
princípio, apenas deve ser empregado em caso de relevância e urgência. Ora, o
que se observa é que o Executivo vem fazendo uso sistemático desse
instrumento,6 e isso apesar das tentativas do Legislativo em limitar os abusos
-, por exemplo, a Emenda Constitucional n. 32, de 11 de Setembro de 2001, a
qual busca restringir o campo de utilização das referidas medidas e associá-las
ao processo legislativo ordinário, podendo até mesmo bloqueá-lo (Art. 62, §
6).7 Segundo a "justificação" da Proposta de Emenda Constitucional do Deputado
Carlos Souza (PP-AM),8 que propõe que o presidente da República poderá adotar
por mês até três Medidas Provisórias,
[...] após a reforma em 2001, em um período de 15 meses do segundo
mandato de FHC e três anos de Lula (até dezembro de 2005), o número
médio de MPs subiu de três para cinco. Por outro lado, o número médio
de projetos de lei manteve-se estável. [...] Antes da reforma, de
todas as propostas legislativas baseadas em maioria simples, 28% eram
MPs. Após a reforma, essa porcentagem passa para 52%. Se levarmos em
conta que todas as MPs enviadas ao Congresso, 79% foram aprovadas
pelo plenário, isso indica que o Executivo continua governando com
base em legislação extraordinária, em total desrespeito ao
Legislativo.
Quiçá, estudos estatísticos mais refinados poderiam nuançar fenômenos não
devidamente percebidos pela visão do supracitado deputado. A literatura
nacional deles carece. Todavia, muito dificilmente eles contrariariam a
propensão geral de maior expressão legislativa do Executivo brasileiro. Como
assinala Limongi, "O fato é que o presidente brasileiro é poderoso do ponto de
vista legislativo não porque usurpe o poder legislativo, mas porque a
Constituição de 1988 assim o estabeleceu" (2006, p. 27).9
Contudo esse não é um fenômeno singular do Brasil ou da América do Sul. A
França da V República também traz, em sua Constituição (1958), instrumento
legislativo, a ordonnance, que guia a ação do Executivo como produtor de lei.
Trata-se do artigo 38, o qual afirma que: "O Governo pode, para a execução do
seu programa, pedir ao Parlamento autorização para tomar via ordonnances,
durante um período limitado, medidas que são normalmente da alçada da lei". O
que acontece na prática, entretanto, é que entre 1984 e 2005, 290 ordonnances
foram editadas, das quais mais de dois terços desde 2000. Em 2004, o número de
ordonnances editadas chega a 52 e, em 2005, a 83, ou seja, mais de um terço do
total das ordonnances editadas desde 1984. Assim, durante o ano de 2005, em
torno de dois terços da legislação produzida foram estabelecidos por intermédio
desse instrumento do Executivo.10 Recentemente, políticos franceses ligados aos
mais diferentes matizes ideológicos - o ex-premiê Dominique de Villepin, do
mesmo partido do presidente Sarkozy, a socialista Ségolène Royal, derrotada por
ele em maio do ano passado, o líder centrista François Bayrou e Pierre Lefranc,
ex-chefe-de-gabinete do presidente De Gaulle - lançaram um manifesto de alerta
contra a tendência pró-monarquia no estilo e nas políticas do presidente
Nicolas Sarkozy. Tal manifesto alerta para "uma forma pessoal de poder que se
assemelha ao de um monarca eleito", cristalizando, pois, essa propensão
histórica de hipertrofia do Executivo do regime presidencial francês da V
República.11
Observa-se, assim, tanto no caso francês como no brasileiro, um pendor que é
menos de tipo partidário-ideológico e mais de viés burocrático-administrativo,
fundamentado, entre outros, no critério de urgência, que reafirma a hipertrofia
do Executivo.
Para contrabalançar essa hipertrofia do Poder Executivo em face do Poder
Legislativo, assistimos a uma ascensão e politização cada vez maior do Poder
Judiciário. Como assinala Carvalho: "A expansão do poder judicial é um fenômeno
que tomou conta do final do século passado. A grande maioria dos países
ocidentais democráticos adotou o Tribunal Constitucional como mecanismo de
controle dos demais poderes" (2004, p. 115). Todavia, por ser essencialmente
uma corte política cujos membros são nomeados pelo chefe de Estado/Governo, tem
quase sempre se manifestado em consonância com sua lealdade original. Donde o
questionamento se trata de um verdadeiro contrapeso ou de uma degeneração da
harmonia dos três poderes.
Além das fronteiras do Estado-nação, o que se observa não é diferente. Isto é,
as competências supranacionais exclusivas são raras e estão quase sempre
circunscritas a domínios específicos situados historicamente em esferas de
exercício do Poder Executivo. Estes são os casos da Política Comercial Comum e
da Política Monetária no seio da União Européia. Em ambos, o Estado-nação
encontra-se alijado de sua soberania. Berlim, Paris ou Londres não decidem
individualmente nesses domínios de políticas públicas. As decisões são tomadas
em nível do Conselho de Ministros da UE por meio de votações por maioria
qualificada. É Bruxelas quem decide. Como assinala Françoise de la Serre em
relação ao projeto de integração proposto pelo Tratado de Maastricht - que de
fato fundamentou os Tratados subseqüentes de Amsterdã e Nice (ainda hoje em
vigor) - "A originalidade do projeto [da União Européia] consiste em
estabelecer a coexistência, pelo menos por um tempo, de uma integração
econômica de essência federal e uma cooperação [política] de inspiração
confederal" (1992, p. 7).12
Isso não significa, contudo, que não haja spillover e que não haja também um
controle por parte das instâncias executivas nacionais. A UE e, a fortiori, as
ORIs mais recentes ainda limitam, em muito, suas ações a temáticas de cunho
mais econômico do que político. Elas ainda existem mais para o consumidor do
que para o cidadão. Não obstante, é verdade que a contaminação de setor a setor
começa paulatinamente a se concretizar e que alguns domínios ligados a temas
sociais, como polícia e justiça, começam a ser tratados por políticas públicas
supranacionais incipientes. Esse é o caso, por exemplo, da política de vistos
da UE. O Tratado de Amsterdã (1999, p. 88), em seu artigo 62, estabelece que
para os vistos com duração máxima de noventa dias deverá haver uma lista comum
contendo os nomes dos países que deles necessitam e os daqueles que não para
penetrar nas fronteiras da União. Na verdade, foi esse dispositivo comunitário
que levou a França a abolir, na última década do século passado, o visto para
brasileiros, posto que nenhum outro país da UE exigia esse procedimento. A
França alinhou-se, voluntariamente, antes que se visse constrangida a fazê-lo
por imposição de uma decisão por maioria qualificada no âmbito do Conselho de
Ministros da União.
Em algumas organizações regionais internacionais o Poder Judiciário tem se
apresentado como ator capital, mesmo quando restrito a arenas específicas. Ele
tem se revelado um agente indispensável da credibilidade das instituições e das
políticas públicas comunitárias. Além disso, contrariamente ao que acontece com
as cortes supremas de Estados-nação como o Brasil ou os Estados-Unidos, onde a
lealdade do magistrado para com o Poder Executivo é deveras manifesta, as
cortes supranacionais - por exemplo, a Corte de Justiça da Comunidade Européia
- parecem ser menos permeáveis a esse processo de cooptação por parte do Poder
Executivo (Legal, 2001).
Aquém das fronteiras nacionais, há que se sublinhar um movimento de mobilização
por parte dos entes infra-estatais. Ele surge com o fito de melhor controlar a
tomada de decisão nos níveis nacional e supranacional, como também com o
objetivo de defender seus interesses próprios na arena internacional. Destarte,
o Comitê de Regiões é criado pelo Tratado de Maastricht. Embora tenha tão-
somente uma função consultiva, ele se revela um importante locus de
contestação, com potencial para subsidiar novas formas de legitimidade. Essa
contestação, como será visto adiante, também se dá pelo exercício constitutivo
da diplomacia nacional e/ou de uma paradiplomacy.
Do imbricamento desses três níveis de competências resulta a noção de
multilevel governance como definida por Banchoff e Smith: "a UE como uma
política fora do molde estatal, uma constelação de instituições enquadrada numa
densa e envolvente malha de interações informais que une os atores
supranacional, nacional e subnacional" (1999, p. 12).13 Malgrado o fato de a
definição estar atrelada à União Européia e às suas idiossincrasias, ela pode,
tomada as devidas precauções de relatividade, ser usada para a interpretação de
outras organizações regionais internacionais, a exemplo do Mercosul.
A complexidade técnica, assim como a necessidade de celeridade das decisões,
parece estimular formas outras de legitimidade do que apenas aquela calcada
exclusivamente no controle democrático direto (via referendum) ou semidireto
(via representação). Uma dessas outras formas é o que Scharpf (2000, p. 192)
chama de legitimação por inputs, isto é, que o que tem dado legitimidade, de
facto, ao uso do poder não tem sido necessariamente a existência do controle
democrático de jure, mas sim mecanismos múltiplos e indiretos de
accountability. Ou o que Scharpf denomina legitimação por outputs, pois para
ele em termos de autodeterminação democrática o que importa é a capacidade
institucional de resolução efetiva dos problemas públicos e a presença de
salvaguardas institucionais contra os abusos do poder público.
Se partirmos do princípio de que a legitimidade se ancora unicamente no binômio
reconhecimento e representatividade, as organizações regionais internacionais,
realmente, não podem ser apontadas como legítimas. A mais avançada delas, a
União Européia, revela índices muito baixos de identificação do cidadão para
com ela, cidadão este cuja lealdade manifesta se dá incontestavelmente com o
Estado-nação, onde de fato há um demos historicamente construído e reconhecido.
Do mesmo modo, apesar dos avanços sistemáticos do Parlamento Europeu (PE) e da
criação de órgãos consultivos como o Comitê Econômico e Social e o Comitê de
Regiões, a representação mostra-se limitada pelo papel secundário dessas
instituições no processo de tomada de decisão stricto sensu e pouco legitimada
pela fraca participação cidadã no processo eleitoral do PE. A situação é ainda
mais complicada em ORIs menos ativas politicamente e funcionando com menos
elementos representativos, como é o caso do Mercosul.
No entanto, percebemos que, embora esse padrão binominal - reconhecimento e
representatividade - não seja contemplado, as ORIs delineiam-se como um espaço
de contestação alternativo de porte. Para os atores sociais e os agentes
econômicos, quaisquer que sejam sua natureza e pertencimento, a arena
supranacional desponta, progressivamente, como um lugar de manifestação e
exercício de desejos ligados a temáticas por vezes marginalizadas no cenário
nacional e/ou subnacional. Tais são os casos, por exemplo, das temáticas
ligadas à ecologia, aos direitos humanos ou ainda ao respeito dos princípios
democráticos. O acquis comunitário é, a esse respeito, ilustrativo no seio da
UE, pois garante aos novos membros standards mínimos de conduta e novas
possibilidades de diligenciar interesses junto aos mais diversos tipos de
autoridade. Também no caso do Mercosul, o Protocolo de Ushuaia, estabelecendo
que "a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o
desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes",14
funciona como um estai exógeno relevante para a consolidação democrática no
cone Sul. Na verdade pode-se falar da adoção de regimes regionais, mais
estritos do que os internacionais, mas guardando os principais parâmetros
conceituais destes: "Regimes podem ser definidos como conjuntos implícitos ou
explícitos de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão
em torno dos quais as expectativas dos atores convergem em uma dada área das
relações internacionais" (Krasner, 1988, p. 2).15
Ou seja, o potencial de contestação corrobora o entrelaçamento dos três níveis
de governance e, de certa forma, forja uma legitimidade de tipo seminal entre
os canais formais e informais que os permeiam. Os múltiplos regimes regionais
constroem-se em função das expectativas de atores sociais e políticos, assim
como de agentes econômicos, subnacionais, nacionais e supranacionais. Como
Banchoff e Smith declararam: "Estas formas fluidas mais informais de
representação não coincidem com os padrões de soberania popular estabelecidos
pela tradicional teoria democrática. Não obstante, elas refletem a realidade da
UE como política composta de múltiplas identidades enquadradas em múltiplos
níveis de governança" (1999, p. 15).16
Assim, na mesma linha de Scharpf, Grant e Keohane afirmam: "Se a governança
acima do nível do Estado-nação deve ser, numa Era democrática, legitimada,
mecanismos apropriados de accountability precisam ser institucionalizados.
Todavia, tais mecanismos não podem simplesmente reproduzir, em larga escala, os
procedimentos e as práticas típicos dos Estados democráticos" (2005, p. 29).17
Partindo do pressuposto de que há dois tipos básicos de accountability18
delegação e representação , cada qual concebido dentro de parâmetro diferente
de legitimidade,19 esses autores identificam sete mecanismos de accountability
que podem ser observados nas ORIs e que, de fato, correspondem, grosso modo,
aos regimes regionais acima evocados.20 A idéia é que esses mecanismos geram
uma malha de proteção aos abusos de poder num sistema regional marcado por uma
intensa variedade de power-wielders e por uma ausência de poder centralizado.
Todavia, como sugere Majone (1996), em ORIs a accountability tem sido cada vez
mais praticada não em sua forma de participação direta em processos de tomada
de decisão fundados em maioria, mas via complexos sistemas de representação,
seleção de delegados, socialização profissional, ex post review e equilíbrios
entre setores governamentais. Isso porque se constata a necessidade progressiva
de maior atenção, eficiência e expertise em áreas onde a maioria dos cidadãos
permanecem racionalmente ignorantes ou pouco participantes (Moravcsik, 2002, p.
614). Ou ainda como afirma Nicolaidis e Howse: "Certamente, as fontes de
legitimidade são diversas: algumas são tecnocráticas e presumem uma expertise
para gerenciar as complexidades das políticas" (2001, p. 4).21
Enfim, se for possível em princípio libertar-se das amarras analíticas
inspiradas no Estado-nação e caso se conceba as organizações regionais
internacionais como possíveis unidades de sobrevivência genuínas (Elias, 1987),
pode-se considerar a probabilidade real de existir um controle legítimo do
poder irradiado pelas ORIs sem que haja necessariamente participação
democrática. Neste contexto de busca por legitimidade, um dos atores políticos
que mais tem demonstrado interesse de participação são os entes subnacionais.
Atores estatais subnacionais
Na procura por legitimidade, um dos princípios basilares que mais tem pautado a
ação da União Européia é o de subsidiaridade.22 Ele preconiza, lato sensu, que
as decisões devem ser tomadas o mais próximo possível dos cidadãos. Ora, nesse
sentido, e considerando os níveis subnacional, nacional e supranacional de
governança envolvidos, pode-se inferir que os entes infra-estatais assumem
papel de destaque. A criação do Comitê de Regiões pelo Tratado de Maastricht
ilustra a galvanização institucional desse esforço legitimista (Medeiros, p.
2004). Mas ele é apenas a ponta de um iceberg. Na verdade, os atores estatais
subnacionais vêm se mobilizando em outras frentes, talvez menos formais, no
seio do Estado-nacional, como também diretamente na esfera supranacional,23 o
que é função das características intrínsecas de cada ator, a saber: PIB,
população e território. Essa démarche gera novos modos de controle e,
conseqüentemente, eleva o nível de accountability do sistema como um todo. É
nessa conjunção que emergem as noções de paradiplomacy e constituent diplomacy.
Como sublinha Keating: "A globalização e o surgimento de regimes
transnacionais, especialmente áreas de comércio regional, têm erodido a
distinção entre negócios domésticos e estrangeiros e, ao mesmo tempo,
modificado a divisão de competências entre Estado e governos subnacionais"
(1999, p. 1).24 O aumento da permeabilidade fronteiriça nacional expõe mais
fortemente os entes subnacionais à realidade externa. E mesmo que não se possa
vislumbrar (ainda) o "fim do território" (Badie, 1995), não se pode negar que
sua concepção se metamorfoseia. Ele não aparece mais, como outrora,
necessariamente associado ao Estado-nação e à idéia de uma soberania hermética
e unívoca. O território hoje assume o papel de catalisador entre a sociedade e
o mercado global, ao mesmo tempo em que se presta como locus para o debate
político e para ações coletivas. Sua vinculação com o poder se processa de
forma múltipla e, essencialmente, de acordo com uma lógica funcional. Os atores
estatais subnacionais projetam-se, pois, como alternativas territoriais nessa
lógica funcional. Eles atuam como um terceiro nível de poder e, dada a
diminuição da capacidade de mediação do Estado-nação, com ele disputam as
prerrogativas de caráter público, tanto na vertente endógena como na exógena. A
ação dos atores estatais subnacionais nessa última vertente é denominada
paradiplomacy.
Para Keating,
A paradiplomacia não é a mesma coisa que diplomacia, que persegue um
interesse estatal bem definido na arena internacional. Ela é
funcionalmente mais específica e direcionada, quase sempre
oportunista e experimental. A paradiplomacia é também caracterizada
por um alto envolvimento da sociedade civil e do setor privado (Idem,
p. 11).25
Portanto, trata-se de um conceito que encerra, pari passu, aspirações
teleológicas distintas no que concerne à ação externa e à capacidade de
associação de atores locais. Capacidade que promove um aumento de
accountability e, conseqüentemente, de legitimidade. A paradiplomacy não é
incompatível com a diplomacia. Na verdade, ela atua também internamente
tentando moldá-la segundo os interesses específicos de cada ator estatal
subnacional.
Nesse sentido, o conflito das papeleras entre Argentina e Uruguai é
ilustrativo. Como assinalam Saraiva e Medeiros:
Na disputa das papeleras a contenda estabelece-se entre, de um lado,
o Estado uruguaio, que concentra um maior poder de decisão no caso e,
de outro, um amálgama formado pelo governo nacional argentino, o
governo de Entre Rios e setores da sociedade civil. Considerando a
paradiplomacia como um epifenômeno no quadro uruguaio e detendo-se na
problemática da questão subnacional na Argentina, a rationale desse
amálgama parece repousar sobre três fatores basilares: 1) a
utilização coerente do regime internacional que rege as questões
ecológicas; 2) a capacidade de Entre Rios de mover uma ação coletiva
paroquial conjugando interesses governamentais e não-governamentais;
3) a habilidade do governo federal de se apropriar da bandeira do
movimento infra-estatal, subscrevendo-o internacionalmente (2007, p.
177).26
Isso reflete uma relação complexa entre poder central e subnacional, alertando,
ao mesmo tempo, para o fato de que o Estado-nação ainda mantém influência
determinante no gerenciamento dos negócios estrangeiros (entendidos aqui como
uma imbricação entre diplomacia e paradiplomacia).
Considerando esse último aspecto como essencial e lembrando que o sufixo para
remete à idéia de hierarquia, Kincaid sugere o uso da terminologia constituent
diplomacy:
O termo constituent diplomacy procura ser um descritor neutro,
evitando a idéia de que as atividades dos governos constituintes são
necessariamente inferiores, subordinadas ou suplementares à high
politics da diplomacia do Estado-nação. O que é high ou low politics
depende da perspectiva do observador (2001, p. 74).27
Essa eqüidade original funda-se, não raro, no próprio pacto federativo.28
Inovador é o fato de que, se no passado esse pacto estabelecia uma reserva de
atuação no cenário externo para as autoridades centrais, hoje se discute a
pertinência da extensão dessa atuação para os atores estatais subnacionais.
Conflito e competição são características intrínsecas da política interna.
Então por que não podem estar presentes na política externa? Por que suprimi-
los? O que parece remanescer é o mito da já referida soberania hermética e
unívoca usada pelos governos nacionais para dar legitimidade a tal supressão.
Como lembra Kincaid: "mesmo que a competição exista, e exista legitimamente em
outros campos da política, nos negócios estrangeiros a reação instintiva das
elites nacionais é tentar suprimir a competição e proteger a concepção da
política externa detrás do véu do segredo de Estado" (Idem, p. 61).29
Argumenta-se que os atores estatais subnacionais não agiriam, necessariamente,
sob o veil of ignorance,30 o que provocaria a defesa de interesses individuais
e não do interesse geral, reduzindo, assim, o grau de legitimidade da ação.
Contudo, o temps mondial da democracia de mercado (Laïdi, 1993), estabelecido
no final do século XX, mostra-se distinto daquele que pautou o design
vestifaliano do cenário internacional. Nele os dispositivos de controle de
poder procuram se coadunar com a interdependência complexa (Keohane e Nye,
1987) fornecendo novos mecanismos de accountability externa por meio da
constituent diplomacy.
Todavia não se pode esquecer de assinalar que, em artigo seminal publicado na
International Organization em 1988, Putnam já sinalizava para essa vertente
interna da constituent diplomacy, imaginando a relação entre diplomacia e
política doméstica segundo uma lógica de jogo em dois níveis:
A política de várias negociações pode ser utilmente concebida como um
jogo de dois níveis. No nível nacional, grupos domésticos perseguem
seus interesses pressionando o governo para adotar políticas
favoráveis, enquanto os políticos buscam o poder costurando coalizões
no interior destes grupos. No nível internacional, governos nacionais
tentam maximizar suas próprias habilidades a fim de satisfazer as
pressões domésticas, enquanto os políticos procuram minimizar as
conseqüências adversas deste nível de negociação. Nenhum desses dois
jogos pode ser ignorado pelos tomadores centrais de decisão, na
medida em que seus países se mostram interdependentes, ainda que
soberanos (1988, p. 434).31
Essa lógica, contudo, não focava, stricto sensu, a ação dos atores estatais
subnacionais, como o fez em seguida o conceito de constituent diplomacy.
Em resumo, constata-se que: (1) algumas organizações regionais internacionais
estão dotadas de instrumentos de controle de poder que garantem uma
legitimidade que repousa essencialmente sobre uma malha de accountability das
políticas públicas supranacionais. Standards, sanções e informações constituem
o tripé que assegura a legitimidade destas políticas públicas; (2) as ORIs
estão funcionando como um espaço alternativo de contestação e, assim, podem ser
consideradas, de certa maneira, um vetor propulsor de legitimidade; e (3)
dentro do espírito de subsidiaridade revisitado pela União Européia,32 os
atores estatais subnacionais revelam-se um elo importante entre o cidadão e os
poderes nacional e supranacional. Eles atuam, no que tange a seus interesses
exógenos, por meio da constituent diplomacy que, apesar de incipiente, reforça
os parâmetros de legitimidade do sistema.
A experiência do Mercosul
O Mercado Comum do Sul surge num momento de redemocratização da América Latina
(Camargo, 2006). Ele não poderia, pois, deixar de refletir no seu âmago um
interesse precípuo pela vigência de princípios democráticos. Em face da
malograda experiência do Pacto Andino, cujas instituições se anteciparam à
capacidade de subordinação de facto dos Estados-nação, o Mercosul hesita em se
lançar em projetos institucionais que não correspondam à real capacidade de
comprometimento de seus Estados-membros. Apesar disso, o Mercado Comum do Sul
abriga uma dinâmica política autêntica que mescla, formal e informalmente, uma
multitude de redes e atores. Entre eles, os atores estatais subnacionais
começam, paulatinamente, a ocupar mais espaço e a tecer suas próprias redes
através de uma constituent diplomacy favorecida por reformas constitucionais
ocorridas na Argentina e no Brasil (Vigevani et al., 2004). Todavia, como
alhures, a relação destes atores com o poder central no seio do Mercosul não é
simples. Segundo Kulgemas e Branco:
Duas forças convivem e se tensionam na relação entre o governo
central e as províncias: uma tendência centrípeta, que procura reter
o poder para o governo central, não impedindo ações autônomas das
unidades subnacionais, mas regulando e controlando; e a tendência
centrífuga, que mostra a ação das unidades subnacionais em buscar
maior autonomia política e econômica para seus interesses próprios,
facilitadas pelas crescentes assimetrias na distribuição dos recursos
internos e pelas oportunidades de negócios abertas com os efeitos
decorrentes da globalização (2005, p. 169).
Essa relação de forças e seus pressupostos de legitimidade ancoram-se
essencialmente na relação do tandem argentino-brasileiro, sendo também função
da cartografia institucional e das redes de relacionamento.
O tandem argentino-brasileiro
Antes de tudo, é preciso ressaltar que Argentina e Brasil representam, grosso
modo, 95% do PIB do território e da população do Mercado Comum name="top33">33
E que o Brasil, sozinho, representa, grosso modo, 2/3 dessas mesmas variáveis.
Além dessa heterogeneidade abissal de natureza exógena, pode-se igualmente
identificar uma heterogeneidade endógena não menos considerável. A Patagônia
argentina, o Nordeste brasileiro ou o Chaco paraguaio, contrastando com regiões
bem mais desenvolvidas desses mesmos países como, respectivamente, Buenos
Aires, São Paulo ou ainda Assunção. Assim, identifica-se no Mercosul uma lógica
de centro-periferia em níveis múltiplos (Medeiros, 2003, p. 155) que gera
intensas dificuldades para o funcionamento das instituições mercosulinas, até o
momento caracterizadas por mecanismos intergovernamentais de tomada de decisão
consensual. Além disso, contrariamente à União Européia, o Mercado Comum do Sul
não possui orçamento próprio, o que o impede, em parte, promover uma integração
positiva (Scharpf, 1996, p. 15) e de atuar como vetor redistributivo, o que
erode, obviamente, os fundamentos de sua legitimidade.
Daí deriva que as transformações institucionais mercosulinas tem sido
tributárias da convergência existente no âmbito do tandem Brasil-Argentina.
Quando ela se verifica, nota-se um efeito de atração que se processa em relação
aos demais parceiros que reconhecem um custo por demais elevado em adotar uma
postura opting out of. Eles são quase que comercialmente aspirados. Esse é o
caso especialmente do Paraguai e do Uruguai, ambos economicamente assaz
dependentes das decisões de Brasília e Buenos Aires. Como indicam Cervo e
Bueno: "Desde o início da década de 1990, o Brasil traçou uma estratégia
regional que permaneceria invariável: o reforço do Mercosul com convergência
política entre Brasil e Argentina e organização do espaço sul-americano com
autonomia perante os Estados Unidos" (2002, p. 486). Claro que nem sempre essa
estratégia é compartilhada pela política externa portenha, o que tem,
evidentemente, incidido na evolução do Mercado Comum do Sul. Como aponta Paulo
Nogueira Batista Jr.:
Nos tempos de Carlos Menem e Domingo Cavallo, na década de 1990, a
minha preocupação central era que os argentinos pudessem ser
arrastados para a dolarização total e a subordinação completa aos
Estados Unidos, contaminando em alguma medida a posição brasileira e
solapando de vez a integração sul-americana. Depois, sobreveio a
crise terrível de 1999-2002, uma das piores de que se tem notícia
(2007, s/p).
Essa última, não se pode olvidar, causada, entre outras coisas, pela
desvalorização do Real realizada unilateralmente pelas autoridades monetárias
brasileiras. Por outro lado, a dinâmica do tandem Brasil-Argentina mostra-se
muito expressiva nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas - Alca
ante os Estados Unidos. Como nota Tulchin: "Mais significativo no longo prazo
foi a sofrida e lenta negociação para incluir a Argentina e o restante do
Mercosul na área de livre-comércio formada pelos Estados Unidos, México e
Canadá" (1998, p. 187).34
Sob uma ótica neo-institucionalista, o Mercosul parece poder ser compreendido
dentro de uma visão dita de second movement,35 ou seja, como um fenômeno
simultaneamente tributário de um path dependence, de uma escolha racional e de
elementos cognitivos que permeiam o entendimento da sociedade civil. O
intergovernamentalismo exacerbado deve-se a um apego histórico, mas recente, ao
exercício da soberania conquistada após os processos de descolonização no
primeiro quartel do século XIX, e a uma quase ausência de conflitos bélicos de
porte que pudessem ter estimulado os Estados-nação do cone Sul, como foi o caso
na Europa, a admitir com menos reticência limitações de soberania.36 O Estado-
nação sul-americano é, ainda hoje, deveras enraizado em sua fórmula fundadora
de centralidade,37 em que os atores estatais subnacionais têm reduzida margem
de manobra. Por outro lado, não se pode negar que esse poder centralizado tem
agido segundo uma análise fina da relação custo/benefício. Apesar da integração
mercosulina ser assimétrica e, a curto prazo, concentrar os ganhos e socializar
os prejuízos, ela é levada a cabo por ser considerada pelos seus componentes, a
longo prazo, um projeto recompensador do ponto de vista político e/ou
econômico. Ainda, apesar dos percalços de legitimidade que a centralidade possa
engendrar, as sociedades civis dos Estados-partes não percebem o Mercosul de
forma negativa, contrariamente ao que acontece, por exemplo, com a visão da
Área de Livre Comércio das Américas - Alca. É como se a fase pragmática da
integração sul-americana (Barbosa, 1996, p. 135), iniciada em meados dos anos
de 1980, contivesse ainda um ranço romântico no imaginário dos povos e
tomadores de decisão - o sonho bolivariano ainda remanescente.38 Esse
reconhecimento difuso no imaginário do povo sul-americano funciona como um
substrato potencial para o desenvolvimento legítimo da construção
integracionista.
A volta dos regimes democráticos ao cone Sul e as reformas constitucionais
argentina e brasileira são fatores determinantes para a alteração das
configurações de governança. Internamente, o regime autoritário esgotara sua
capacidade de legitimação via incremento econômico; na verdade uma pseudo-
legitimação por outputs, visto que a presença de salvaguardas institucionais
contra os abusos do poder público inexistiam. Externamente, imunes ao
hermetismo intrínseco que marca os caudilhismos, Argentina e Brasil se
aproximam, inaugurando pragmaticamente uma parceria inédita (Almeida, 1998). O
objetivo é pensar uma re-fundação do Estado-nação sobre bases democráticas e em
função da nova realidade competitiva internacional (Vaz, 1999). O Mercado Comum
do Sul surge, então, na qualidade de condições intermediárias de contorno, um
catalisador pedagógico e contributivo para um novo arranjo institucional
(Medeiros, 2000).
A Constituição brasileira de 1988 apresenta-se como descentralizadora. Uma
tendência natural após duas décadas de centralismo, em que as unidades da
federação, assim como as municipalidades, pouco tinham como margem de manobra.
Em seu art. 18 estabelece: "A organização político-administrativa da República
Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição". Como assinala
Frazão: "A Constituição de 1988 estende até certo ponto a competência
legislativa dos estados. Ela também beneficia as autoridades municipais desta
extensão" (1994, p. 318).39 Destarte, os atores estatais subnacionais
brasileiros adquirem a possibilidade de maior atuação política nacional e, ao
menos em princípio, na internacional, na medida em que também a Constituição de
1988 atesta, em seu art. 4: "A República Federativa do Brasil buscará a
integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina,
visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações". Os elementos
para a prática de uma constituent diplomacy são assim lançados e, de fato, em
1997, Fernando Henrique Cardoso cria a Assessoria de Relações Federativas - ARF
no gabinete do Ministro das Relações Exteriores para estimular a aproximação
com estados e municípios via escritórios regionais.40 No Governo Lula, a ARF
transmuta-se em Assessoria Especial de Assuntos Federativos e Parlamentares -
AFEPA e cria-se uma Subchefia de Assuntos Federativos com o objetivo de
coordenar as ações do Executivo com as dos estados e municípios. Esses últimos,
então, assumem um papel pró-ativo nas relações exteriores dentro das suas
respectivas competências constitucionais, podendo, de tal sorte, englobar
políticas públicas no setor de saúde, educação, cultura, meio-ambiente,
transportes, entre outros. É exatamente essa Subchefia, vinculada à Secretaria
de Relações Institucionais, que co-organiza com o seu homólogo argentino, em
maio de 2007, o Seminário de Tucumán, reunindo os governadores do Nordeste
brasileiro e do Noroeste argentino para discutir parcerias nas mais diversas
áreas.41
A República Argentina, genuinamente um Estado-nação federal,42 efetua, em 1994,
uma reforma constitucional que irá tanto interna como externamente ter
repercussões relevantes. O art. 24 da nova carta permite a aprovação de
tratados de integração "que deleguem competências e jurisdição a organizações
supra-estatais em condicões de reciprocidade e igualdade, e que respeitem a
ordem democrática e os direitos humanos. As normas daí derivadas têm hierarquia
superior às leis".43 Essa inovação deixa clara a possibilidade de predominância
do direito comunitário sobre o nacional dentro de uma visão clássica
vislumbrada pela teoria monista (Kelsen, 1992, p. 352). Por outro lado, o art.
124 estabelece que as províncias poderão "celebrar convênios internacionais
desde que não sejam incompatíveis com a política exterior da Nação e não afetem
as faculdades delegadas ao governo federal ou o crédito público da Nação; com
conhecimento do Congresso Nacional".44 O que, como no caso brasileiro, confere
uma margem de atuação dos atores estatais subnacionais argentinos bem mais
conseqüente do que no passado.
De tal modo, as visões argentina e brasileira associam democracia e
descentralização, ao mesmo tempo em que as articulam à idéia de eficiência. O
gerenciamento não tem sido simples. O forte clientelismo ainda presente nas
esferas locais e o despreparo das suas burocracias têm dificultado sobremaneira
os mecanismos de governança. Em nível interno, alguns dispositivos de
accountability tiveram que ser criados para estancar apropriações privadas de
bens públicos e atos de corrupção, como por exemplo a Lei de Responsabilidade
Fiscal no Brasil.45 A dilatação da capacidade participativa dos atores estatais
subnacionais passaria assim a contribuir para a legitimidade do processo
político nacional de forma restrita se, somente se, associada a mecanismos
rigorosos de controle. A legitimidade estaria, pois, forjada por uma
accountability miscigenada, combinando, pari passu, participação e delegação. A
dinâmica mercosulina oferece um canal alternativo para a movimentação dos
atores estatais subnacionais e funciona como um suporte complementar à
accountability nacional.
Cartografia institucional e redes de relacionamento
O Mercosul, desde seus primórdios, tem estimulado a discussão sobre a
refundação dos pactos federativos de Argentina e Brasil, permitindo que o
diálogo entre seus atores estatais subnacionais se intensifique. Essa
intensificação vem se dando mediante duas formas principais: a primeira
constitui-se numa tentativa de maior participação nas instituições formais do
Mercosul; a segunda por meio da articulação de redes. É dessa forma que os
atores estatais subnacionais atuam na governança do Mercado Comum do Sul.
Trata-se de uma via de mão dupla retroalimentada, como ilustra o diagrama da
página seguinte: Democracia e livre-mercado nos Estados-nação (input interno)
promovendo descentralização com accountability internamente (output interno) e
integração regional externamente (output externo); essa integração regional,
por sua vez, contribuindo: (i) para a consolidação da descentralização como
locus para a ação das unidades subnacionais [input (A+P1+...+Pn) +
(B+P1+...+Pn)]; e (ii) para o aumento da accountability do multilevel
governance do sistema como um todo. Esse todo está inserido dentro dos regimes
internacionais (representado, no diagrama, pelo fundo branco circunscrito pelo
enquadramento retangular). A constituent diplomacy encontra-se representada nas
expressões input (A+P1+...+Pn) e (B+P1+...+Pn), ou seja, a ação sobre o
Mercosul de uma política externa argentina e/ou brasileira composta pelas
componentes federal e subnacional. A paradiplomacy, por sua vez, mostra-se mais
vinculada aos relacionamentos entre os Atores Estatais Subnacionais - AES
(estados e municípios brasileiros e províncias e municípios argentinos)
representados no diagrama pelas redes, a saber: AES1, AES2, AESn.
Dentro das instituições formais do Mercosul, apenas em 2004 os atores estatais
subnacionais obtêm, de jure, prerrogativa de participação, quando, em Belo
Horizonte, o Conselho Mercado Comum (CMC) decide: "Criar o Fórum Consultivo de
Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul, com a
finalidade de estimular o diálogo e a cooperação entre as autoridades de nível
municipal, estadual, provincial e departamental dos Estados Partes do
Mercosul".46 Esse fórum47 sucede, na verdade, a Reunião Especializada de
Municípios e Intendências (REMI) criada em 2000 por resolução do Grupo Mercado
Comum (GMC).48 Ele, porém, é mais abrangente, englobando não apenas os
municípios e intendências, mas também províncias, estados federados e
departamentos, geralmente níveis de poder mais desenvolvidos dentro de um
sistema federal. Também não é anódino o fato de a REMI ter sido criada por uma
resolução do GMC, e do fórum ter sido instituído por uma decisão do CMC. O teor
político da decisão é muito mais forte do que o da resolução, posto que
expressa a vontade direta dos chefes de Estado. Ainda, pode-se assinalar que o
fórum tem status de instituição plena do Mercosul e, portanto, mais perene,
enquanto a REMI, apenas de reunião, com vocação mais efêmera. Dados os
problemas de heterogeneidade enfrentados pela unicidade do Comitê de Regiões na
UE, o FUES é formado por um comitê de municípios e um comitê dos estados
federados, províncias e departamentos. Com o que se espera uma maior fluidez no
diálogo e nas manifestações de interesses. O fórum pode propor ao GMC medidas
destinadas à coordenação de políticas para promover o bem-estar e melhorar a
qualidade de vida dos cidadãos.
Entretanto, essa participação mais direta dos atores estatais subnacionais no
quadro institucional mercosulino foi precedida de atividades de relacionamento
no seio de duas redes: Crecenea/Codesul e Mercocidades. A rede composta pela
Comissão Regional de Comércio Exterior do Nordeste Argentino (Crecenea) e pelo
Conselho de Desenvolvimento e Integração Sul (Codesul) reúne em cimeira duas
vezes por ano, desde junho de 1995, os governadores das províncias do Nordeste
argentino e dos estados do sul e centro-oeste brasileiros. Esta cimeira vai bem
além dos desafios estritamente administrativos e constitui um ato político no
qual os atores estatais subnacionais proclamam a importância de seus papéis no
processo da governança regional. Eles alegam ser o elo mor na cadeia de
políticas públicas e detentor, ao lado do poder central, de competências, como
acima referenciado, em áreas de integração como educação, cultura, meio
ambiente e transportes. Por outro lado, a rede das mercocidades foi
estabelecida em novembro de 1995 por dezenove cidades do Mercosul e do Chile.
Não muito diferente da percepção do Crecenea/Codesul, esta rede considera que o
objetivo primordial da integração reside na participação cidadã e que,
conseqüentemente, as cidades devem, em matéria de sua competência, associar-se
ao processo de decisão das instituições do Mercosul. Para tal, as mercocidades
criaram nove comissões temáticas que procuram desenvolver projetos de
cooperação que encorajem uma microlocalização das atividades industriais,
mercantis e de serviços (arranjos produtivos locais, clusters etc.) no seio do
Mercado Comum do Sul.
Um instrumento importante que poderá reforçar o papel dos atores estatais
subnacionais é o Fondo para la Convergência Estructural del Mercosur (Focem).
Criado pela Decisão CMC n. 45/04, ele tem como objetivo financiar programas
para promover a convergência estrutural, desenvolver a competitividade,
promover a coesão social das economias menores e regiões menos desenvolvidas e
apoiar o funcionamento da estrutura institucional e o fortalecimento do
processo de integração. Esse fundo é constituído de aportes anuais de cem
milhões de dólares por parte dos Estados-partes, a Argentina contribuindo com
27%, o Brasil com 70%, o Paraguai com 1% e o Uruguai com 2%. Contrariamente aos
fundos estruturais da UE, o Focem está sujeito à discricionariedade
contributiva dos Estados-partes, o que diminui o grau de independência da
estrutura supranacional. Contudo, ele sinaliza para uma possível participação
efetiva dos atores estatais subnacionais no seu gerenciamento, na medida em que
toca em competências constitucionalmente a eles atribuídas. Além disso, o
Focem, por meio de sua ação redistributiva, poderá colaborar também para um
aumento da legitimidade que cresceria tanto no que diz respeito ao seu viés
participativo, como àquele relacionado com um acréscimo do nível de
accountability.
Considerações finais
Observa-se, de tal modo, seja formalmente, seja através de redes, que os atores
estatais subnacionais têm compartilhado da governança regional mercosulina.
Eles são reconhecidos pelos próprios Estados nacionais como entes capitais para
a consecução da prática democrática - pelo menos quando esta se dá aquém de
suas fronteiras. Além delas, o posicionamento é bem mais mitigado e o poder
central hesita em se desfazer de suas competências originais. Como escreve
Keating: "oportunidades para as regiões agirem na Europa continuam limitadas,
sendo ainda os estados os atores dominantes" (1999, p. 7).49 Inclusive o
Tratado de Lisboa, atualmente em processo de ratificação pelos Estados-membros,
traz consigo uma evidência de que o Estado-nação insiste em manter-se como ator
de monta na arena comunitária: o "Protocolo relativo ao papel dos Parlamentos
Nacionais na União Européia". Este protocolo visa a "incentivar uma maior
participação dos Parlamentos nacionais nas atividades da União Européia e
reforçar a sua capacidade de exprimirem as suas opiniões sobre os projetos de
atos legislativos da União Européia e sobre outras questões que para eles
possam revestir especial interesse".50 Dessa forma, introduz-se, nas
engrenagens institucionais da União, mais um ator estatal, ao lado do já
hipertrofiado poder do Conselho, reforçando-se, portanto, a lógica
intergovernamental em detrimento da supranacional. Mesmo que, como alega a
Comissão, isso aconteça paralelamente a um aumento de poder do Parlamento
Europeu51 e com o objetivo de "desenvolver a democracia e aumentar a
legitimidade do funcionamento da União".52
No Mercosul a situação é ainda mais limitada. A influência dos atores estatais
subnacionais se dá por uma constituent diplomacy restrita à sua ação interna
junto ao Executivo federal (diplomacia federativa para o Itamaraty). Apesar
disso, não se pode negar a existência de uma interconexão crescente entre os
diversos níveis políticos, gerando, de fato, uma multilevel governance, em que,
de uma maneira ou de outra, os atores estatais subnacionais atuam (ver Diagrama
supra), mesmo que não se possa ainda falar de níveis coadjuvantes de
governança. Também não se pode refutar que o Mercado Comum do Sul tem se
apresentado como um espaço de contestação alternativo, constituindo-se, desse
ponto de vista, como um bastião de legitimação, como demonstra a criação do
Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Provincias y Departamentos
del Mercosur.
Salomón e Nunes estudando o caso da atuação do estado do Rio Grande do Sul e da
cidade de Porto Alegre no âmbito do Mercosul e revisitando os estudos de
Hocking (2004), Paquin (2004) e Rosenau (1990) concluem
[...] que, tanto os governos regionais, como os locais, podem ser
considerados atores internacionais mistos, em parte condicionados
pela soberania que compartilham com outros governos no território que
administram, mas também mais livres que os governos centrais no que
diz respeito a suas opções de política exterior, com algumas pautas
de atuação semelhantes às dos atores não estatais (2007, p. 139).
Essa condição faz do ator subnacional um elo relevante na cadeia das políticas
públicas relacionadas com a arena regional e/ou internacional. E isso tanto no
que concerne ao processo de democratização das ações, como no que diz respeito
aos procedimentos de legitimação e accountability.
Sem embargo, como assinala Jenkins, "uma das questões mais duvidosas da nossa
Era [é] se a globalização está drenando o sangue político do Estado-nação: sua
soberania" (2003, p. 63).53 O peculiar é que, tanto a tradição
transnacionalista, como a realista, ambas na expectativa de responderem a essa
questão, apontam e reconhecem a emergência dos atores subnacionais na arena
internacional como elemento relevante para esse debate, se bem que por motivos
distintos. Enquanto a primeira aponta essa emergência como uma perda de
soberania do Estado-nação no que concerne aos negócios externos (Ohmae, 1995),
a segunda percebe o fenômeno como uma mera reconfiguração do Estado-nacional a
fim de melhor responder às novas exigências da globalização (Shipman, 2002), ou
seja, como sugere Slaughter: "O Estado não está desaparecendo, ele está se
desagregando por meio dos componentes que o formam" (1999, p. 178).54
Entretanto, o que se observa, em ambas as visões, é que o Estado-nação não se
apresenta mais como o único depositário dos elementos reguladores da sociedade.
Nesse sentido, Held anota que:
Considerando que grupos se sentem humilhados por forças globais e por
regimes políticos impróprios ou sem efetividade, novas demandas por
autonomia regional e local são feitas. [...] Eles vislumbram uma
ordem política de associações, cidades e nações democráticas, assim
como de regiões e malhas globais. Nesta ordem, o princípio da
autonomia estaria ancorado em diversos loci de poder e na interseção
de vários domínios espaciais (1996, p. 357).55
Fazendo com que esses outros níveis de governança - o supra e o subnacional -
operem como loci genuínos e complementares de legitimidade e accountability.
É o que se observa na evolução do Mercosul. Ela, como um todo, demonstra uma
preocupação de conciliação entre eficiência institucional e prática
democrática. A fórmula parece passar por uma nanoaccountability, ou seja, uma
accountability multipontual que mescle participação e delegação em medida
ideal. Como afirma Félix Pena se referindo à idéia de uma nova etapa na
integração mercosulina marcada pela criação do Parlasul e do Tribunal
Permanente de Revisão, "se iniciou o caminho de um necessário aperfeiçoamento
institucional do processo de integração" (2005,s/p).56
Notas
1 Apud Brown, Nardin e Rengger (2002, p. 301).
2 "In this present-day world, the State - and this is typically the more or
less sovereign national state - is both indispensable and inadequate. It is
indispensable instrument to get many things done, to provide many needed
services and to deal with many real problems. But it is inadequate to cope with
an increasing number of other problems of life and death for many of its
inhabitants".
3 Entendemos por cartografia institucional não apenas o conjunto de
instituições formais e informais, mas também os modos de relacionamento
existente entre elas. Esse conjunto dinâmico é de natureza reticulada,
constituindo-se em uma malha de regimes de poder.
4 Tentamos, em termos de revisão bibliográfica, privilegiar as idéias matrizes
relacionadas com a problemática analisada. Constatou-se que a maior parte da
literatura pertinente não é brasileira. Isso não significa que autores
nacionais não foram utilizados, mas apenas que o foram quando se tratava de
argumentos inovadores ou aplicados a realidade mercosulina.
5 "Comparisons are drawn between EU and an ancient, Westminster-style, or
frankly utopian form of deliberative democracy. While perhaps useful for
philosophical purpuses, the use of idealistic standards no modern governments
can meet obscures the social context of contemporary European policy-making".
6 A lista completa de todas as Medidas Provisórias está disponível no site
http://www.planalto.gov.br/ccivil/MPV/Quadro/_Quadro%20Geral.htm#posteriorec
(acessado em 14/2/2008).
7 Essa emenda está disponível no site http://www._planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Emendas/Emc/emc32.htm (acessado em 14/2/2008).
8 Disponível no site http://www.camara.gov.br/sileg/integras/456085.pdf
(acessado em 14/2/2008).
9 Limongi ainda afirma: "Propositalmente, deixei por último a arma mais
poderosa com que conta o presidente, o poder de decreto, a medida provisória,
para mostrar que se trata de um entre outros tantos recursos à disposição do
presidente. O mais poderoso sem dúvida alguma, pois altera unilateralmente o
status quo" (2006, p. 27).
10 O Senado francês procedeu em 10 de fevereiro de 2006 a uma análise histórica
do recurso às ordonnances durante a V República. Informação disponível no site
http://www.agoravox.fr/article.php3?_id_article=7600._php3?id_article=61
(acessado em 14/2/2008).
11 Cf. Folha de São Paulo, "Manifesto dá a Sarkozy estilo monárquico", no site
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1802200820.htm (acessado em 18/2/
2008).
12 "L'originalité du projet [de l'Union Européenne] consiste à faire coexister,
au moins pour un temps, une intégration économique d'essence fédérale et une
coopération [politique] d'inspiration confédérale".
13 "[...] the EU as a fluid polity outside the statist mold, a constellation of
institutions embedded in a dense and evolving network of informal interactions
that brings together supranational, national and subnational actors".
14 Artigo 1° do Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso democrático no Mercosul,
Bolívia e Chile (cf. site http://www2.mre.gov.br/dai/ushuaia.htm [acessado em
25/4/2006]).
15 "Regimes can be defined as sets of implicit or explicit principles, norms,
rules and decision-making procedures around which actors' expectations converge
in a given area of international relations".
16 "These more informal, fluid forms of representation do not meet the
standards of popular sovereignity set by traditional democratic theory.
Nonetheless, they reflect the reality of the EU as polity composed of multiple
identities embedded at multiple levels of governance".
17 "If governance above the level of the nation-state is to be legitimate in a
democratic era, mechanisms for appropriate accountability need to be
institutionalised. Yet these mechanisms cannot simply replicate, on a larger
scale, the familiar procedures and practices of democratic states".
18 Usamos a definição de Grant e Keohane para accountability: "como nós usamos,
implica que alguns atores têm o direito de responsabilizar outros atores em
relação a um conjunto de padrões, de julgar se eles assumiram suas
responsabilidades em relação a esse conjunto de padrões, de impor sanções se
eles consideram que essas responsabilidades não foram assumidas" (2005, p. 1).
["as we use the term, implies that some actors have the right to hold other
actors to a set of standards, to judge whether they have fulfilled their
responsibilities in light of these standards, and to impose sanctions if they
determine that these responsibilities have not been met".]
19 "No modelo de participação, os que são afetados controlam os detentores de
poder diretamente por meio da participação, ao passo que no modelo de
delegação, os que delegam poder tornam os detentores de poder responsáveis
mediante uma variedade de mecanismos de julgamento ex post" (Grant e Keohane,
2005, pp. 32-33). ["In the participation model, those affected hold power-
wielders accountable directly through participation, whereas in the delegation
model, those delegating power hold power-wielders accountable through a variety
of mechanisms for judgment after fact".]
20 São eles: Hierarchical, Supervisory, Fiscal, Legal, Market, Peer and Public
reputational (Grant e Keohane, 2005, p. 36)
21 "Surely, the sources of legitimacy are diverse: some are technocratic, and
relate to presume expertise to manage the complexities of policies".
22 Preâmbulo do Tratado da União Européia e artigo 5 do Tratado da Comunidade
Européia consolidados em Nice em 2002. Título III, artigo I-11 do Tratado
estabelecendo uma Constituição para a Europa (este Tratado não foi aprovado
pelos referenda realizados na França e nos Países Baixos em 2005).
23 É considerável o número de escritórios de representação e de missões
regionais em Bruxelas. Seu trabalho de divulgação e lobby tem assumido
proporções relevantes. Vale também lembrar que o Tratado de Maastricht
estabeleceu não só a possibilidade, em circunstâncias específicas, de entes
subnacionais assumirem a cadeira do Estado-nação no interior do Conselho de
Ministros - o que tem sido praticado por Lånder alemães, austríacos e regiões
belgas -, como também a possibilidade de participação freqüente de funcionários
regionais no gerenciamento dos fundos estruturais e, ainda, a constante
formação de redes setoriais entre os atores estatais subnacionais.
24 "Globalization and the rise of transnational regimes, especially regional
trading areas, have eroded the distinction between domestic and foreign affairs
and by the same token have transformed the division of responsibilities between
state and subnational governments".
25 "Paradiplomacy is not the same as conventional state diplomacy, which is
about pursuing a defined state interest in the international arena. It is more
functionally specific and targeted, often opportunistic and experimental. [...]
Paradiplomacy is also characterized by a high degree of involvement of civil
society and the private sector".
26 "En la disputa de las papeleras la contienda se establece entre, por um
lado, el Estado uruguayo, que concentra um mayor poder de decisión en el caso,
y, por outro, uma elusiva amalgama formada por el gobierno nacional argentino,
el gobierno de Entre Rios y sectores de la sociedad civil. Considerando la
paradiplomacia como un epifenómeno em el cuadro uruguayo y enfocando en la
problemática de la cuestión subnacional en la Argentina, la rationale de esa
amalgama parece repousar sobre tres factores basilares: 1. la utilización
coherente del régimen internacional que rige lãs cuestiones ecológicas; 2. la
capacidad de Entre Rios de mover uma acción colectiva parroquial conjugando
intereses gubernamentales y no gubernamentales; 3. la habilidad del gobierno
federal de apropriarse de la bandera del movimiento infraestatal,
subscribiéndolo internacionalmente".
27 "The term constituent diplomacy is intended to be a neutral descriptor, one
that avoids the implication that the activities of constituent governments are
necessarily inferior, ancillary, or supplemental to the high politics of
nation-state diplomacy. What is high or low politics depends on one's
perspective".
28 Apesar de não ser uma especificidade dos Estados-nação federais democráticos
ou seus assemelhados, a constituent diplomacy tem sido mais praticada por eles.
29 "[...] whatever competition may exist, and exist legitimately, within other
policy fields, in foreign affairs the seemingly instinctual reaction of
national élites is to try to suppress competition and shield foreign-policy-
making behind a veil of state secrecy. The nation, it is said, must speak with
a single voice".
30 Esta noção é explorada por Rawls: "De alguma maneira devemos anular os
efeitos de contingências específicas que colocam os homens em desacordo,
tentando-os a explorar circunstâncias naturais e sociais em benefício próprio.
Agora, para fazer isso, assumo que as partes estão situadas atrás de um véu de
ignorância. Elas não sabem como as várias alternativas afetarão seu caso
particular e são obrigadas a avaliar os princípios somente com base em
considerações gerais" (1999, p. 118). ["Somehow we must nullify the effects of
specific contingencies which put men at odds and tempt them to exploit social
and natural circumstances to their own advantage. Now in order to do this I
assume that the parties are situated behind a veil of ignorance. They do not
know how the various alternatives will affect their own particular case and
they are obliged to evaluate principles solely on the basis of general
considerations".]
31 "The politics of many international negotiations can usefully be conceived
as a two-level game. At national level, domestic groups pursue their interests
by pressuring the government to adopt favorable policies, and politicians seek
power by constructing coalitions among those groups. At the international
level, national governments seek to maximize their own ability to satisfy
domestic pressures, while minimizing the adverse consequences of foreign
developments. Neither of the two games can be ignored by central decision-
makers, so long as their countries remain interdependent, yet sovereign".
32 Uma das possíveis fontes de inspiração para o princípio de subsidiaridade é
a Encíclica Quadragésimo Anno, escrita por Pio XI em 1931. Nela diz o Sumo
Pontífice: "Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à
mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito, o que
antes podiam até mesmo as pequenas; permanece, contudo, imutável aquele solene
princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o
que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à
coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o
que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave
dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua
ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los" (Pio XI,
1969, p. 36).
33 Estamos considerando o Mercosul sem seus membros associados, ou seja,
formado apenas por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. São apenas esses
países que participam de forma plena da dinâmica institucional.
34 "More significant in the long run were the painfully slow negociation to
include Argentina and the rest of Mercosur in the free trade area contemplated
by the United States in its treaty with México and Canada".
35 "[...] no final de 1990, acadêmicos começaram a clamar por um segundo
movimento na análise institucional, isto é, um diálogo mais construtivo que
explorasse os caminhos nos quais estes paradigmas [escolha racional, histórico
e organizacional] pudessem se complementar" (Campbell, 2004, p. 4). ["in the
late 1990s scholars began calling for a second movement in institutional
analysis, that is, a more constructive dialogue that explores the ways in which
these paradigms [rational choice, historical and organizational] might
complement and connect to each other favor.]
36 Vale lembrar a dita Guerra do Paraguai e suas conseqüências nefastas
sobretudo para o povo guarani (Chiavenatto, 1979). Para uma reflexão literato-
filosófica sobre o poder ditatorial na América Latina e sobre a figura polêmica
de José Gaspar de Francia e sua importância para o desenvolvimento paraguaio,
ver Roa Bastos (1974).
37 É verdade que as Províncias Unidas do Rio da Prata, hoje Argentina, tiveram
uma experiência confederativa importante até 1860. Mas desde então a hegemonia
bonarense se faz sentir constitucionalmente de maneira sistemática. Isso mudará
um pouco, como veremos a seguir, com a reforma constitucional de 1994.
38 Ver, por exemplo, a República da Venezuela que, após a chegada de Hugo
Chavez ao poder, passou a chamar-se República Bolivariana de Venezuela. Chavez
solicitou ao Mercosul a adesão do seu país. A Decisão n. 29/05 do Mercosul
estabelece que o Conselho Mercado Comum decide: "Acoger com satisfacción la
solicitud de la República Bolivariana de Venezuela de incorporarse al Mercosur
como Estado Parte" (Art. 1). O populismo clássico de Chavez ancora-se sobre a
pré-disposição positiva que a percepção popular tem das idéias integracionistas
e anti-imperialistas de Bolívar.
39 "La Constitution de 1988 étend jusqu'à un certain point la compétence
législative des États. Elle fait également bénéficier les autorités municipales
de cette extension".
40 Já em 1996 o então chanceler brasileiro, Luiz Felipe Lampreia, afirmava:
"Novos temas, novas formas de interação entre as Chancelarias e entre essas e
os demais órgãos governamentais e da sociedade civil, os imperativos da
diplomacia pública e federativa, os imperativos da diplomacia de Chefes de
Estado e Governo, marca exponencial do nosso tempo, a informatização, a busca
de eficiência e de economicidade na gestão da máquina administrativa federal
essa é uma complexa realidade que aponta a necessidade da permanente
atualização do Itamaraty, da carreira diplomática e dos nossos métodos de
trabalho". Discurso proferido pelo Senhor Ministro das Relações Exteriores,
Embaixador Luiz Felipe Lampreia por ocasião da cerimônia de formatura da turma
"Florestan Fernandes" do Instituto Rio Branco em 30 de abril de 1996.
41 Fomos convidados pelo Sr. Vicente Trevas, titular da Subchefia de Assuntos
federativos e Coordenador Nacional do Foro Consultivo de Municípios, Estados
Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul, para participar das
discussões preliminares visando à realização do Seminário de Tucumán, na
condição de experto universitário. O objetivo principal foi tentar organizar um
seminário técnico antes do encontro dos governadores. Esse seminário técnico
teve dois objetivos: dar visibilidade às duas regiões envolvidas; sugerir
recomendações aos governadores. Por outro lado, teve três vertentes: Academia;
Gestão Pública; e Empresas.
42 Contrariamente à Argentina ou aos Estados-Unidos, que resultam da união
entre entes soberanos, o Brasil federaliza-se, em 1889, a partir de uma
monarquia centralizada. Trata-se de um federalismo invertido, em que o poder
central transfere competências às suas partes; e não de um federalismo
tradicional, em que as partes renunciam competências em favor do centro
(Abrucio, 1998).
43 "[...] que deleguen competencias y jurisdicción a organizaciones
supraestatales em condiciones de reciprocidad e igualdad, y que respeten el
orden democrático y los derechos humanos. Las normas dictadas en su
consecuencia tienen jerarquía superior a las leys".
44 "[...] celebrar convênios internacionales en tanto no sean incompatibles con
la política exterior de la Nación y no afecten las facultades delegadas al
Gobierno federal o el crédito público de la Nación; con conocimiento del
Congreso Nacional".
45 "A Lei de Responsabilidade Fiscal LRF (Lei Complementar n. 101, de 04 de
maio de 2000) estabelece normas de finanças públicas voltadas para a
responsabilidade na gestão fiscal, mediante ações em que se previnam riscos e
corrijam os desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas,
destacando-se o planejamento, o controle, a transparência e a
responsabilização, como premissas básicas". Definição capturada em 30/04/06 no
site oficial do Ministério da Fazenda do governo brasileiro (http://
www.tesouro.fazenda._gov.br/hp/lei_responsabilidade_fiscal.asp).
46 "Crear el Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Provincias y
Departamentos del Mercosur, con la finalidad de estimular el diálogo y la
cooperación entre las autoridades de nível municipal, estadual, provincial y
departamental dos Estados Partes del Mercosur". Mercosur/CMC/DEC. n. 41/04,
art. 1 (site http://www.mercosur.int/msweb/, acessado em 14/2/2005).
47 Devido à extensão da denominação do fórum, doravante, por uma questão de
comodidade vocabular, o denominaremos Fórum das Unidades Estatais Subnacionais
- FUES.
48 Mercosur /GMC/RES. N. 90/00 (site http://www._mercosur.int/msweb/, acessado
em 01/5/2006).
49 "[...] opportunities for regions to act in Europe remain limited and states
are still the dominant actors".
50 Protocolo relativo ao papel dos parlamentos nacionais na União Européia -
Tratado de Lisboa.
51 Tratado de Lisboa (Art. 9A).
52 "[...] enhance democracy and increase legitimacy in the functioning of the
Union". Informação disponível no site oficial da União Européia, http://
europa.eu/lisbon_treaty/glance/index_en.htm (acessado em 21/2/2008).
53 "[...] one of the most contentious questions of our era [is] whether
globalization is draining away the political lifeblood of the nation-state, its
sovereinty".
54 "The State is not disappearing; it is disaggregating into its component
institutions".
55 "New demands are made for regional and local autonomy as groups find
themselves buffeted by global forces and by inappropriate or ineffective
political regimes. [...] They portend a political order of democratic
associations, cities and nations as well as of regions and global networks. In
such an order, the principle of autonomy would be entrenched in diverse sites
of power and across diverse spatial domains".
56 "[...] se inició el camino de un necesario perfectionamiento institucional
del proceso de integración".