A «MORTE DA SEMENTE»
SUA IMPORTÂNCIA NA TECNOLOGIA
PÓS-COLHEITA DO CACAU
A TECNOLOGIA PÓS-COLHEITA DO
CACAU
A partir do cacau comercial, depois de
submetido à torra e a um conjunto de outras
operações complementares, obtém-se o
chocolate e outros produtos afins.
Duas características principais são sempre
procuradas pelo industrial no cacau comercial
que trabalha.
A primeira é a possibilidade do cacau, por
efeito da torra, exibir o «flavour» a chocolate,
tão característico e apreciado.
A segunda é o teor em gordura dos
cotilédones que ultrapassa com frequência os
52% em matéria-prima de boa qualidade e que
depende, entre outras, das condições de
cultura, nomeadamente o estado mais ou
menos perfeito em que se encontram os frutos
e as sementes quando se colhem Quanto mais
elevado for o teor de gordura, maior é o valor
comercial do cacau, em igualdade de outras
características da semente. A gordura extraída,
por processos mecânicos ou por solventes,
recebe o nome de «manteiga de cacau», é
muito valorizada pelo seu emprego na preparação de chocolates de muito boa qualidade,
para fins medicinais, farmacêuticos e cosméticos. O seu valor comercial é tão acentuado
que por vezes o industrial prefere cacaus ricos
em gordura, embora de menos qualidade no
que se refere ao desenvolvimento do «flavour»
que virão a produzir.
Os teores de gordura dos cotilédones
atingem o valor conveniente se a colheita dos
frutos for feita com eles maduros, pois a
tecnologia pós-colheita nada lhe acrescenta e
pouco ou nada a modifica.
O «flavour» a chocolate resulta de um
conjunto de compostos, a maioria dos quais
não existe na semente quando é colhida, mas
são formados durante a tecnologia póscolheita. Uma semente retirada do fruto,
lavada, seca e torrada nunca exibirá o «flavour» a chocolate que se referiu.
Por esse motivo, a tecnologia pós-colheita
do cacau é assim de enorme importância para
se reunirem no cacau comercial as
características que o fazem um produto tão
apreciado.
Sumariamente a tecnologia pós-colheita
do cacau compreende as fases seguintes:
1. Colheita dos frutos. Deverá ser feita
quando eles se encontrem bem maduros,
ou próximo disso. A maturação e colheita
decorrem ao longo do ano, embora com
épocas do ano com maior concentração de
frutos maduros.
2. Quebra (abertura) dos frutos. Realizada
normalmente no campo. Abrem-se os
frutos, retira-se do seu interior as sementes
envolvidas numa polpa branca e açucarada
e reúnem-se em recipientes de preferência
estanques para que as perdas de polpa se
reduzam ao mínimo. Separam-se as
sementes com defeitos visíveis (germinadas quando entre a colheita e a quebra
se passa muito tempo, sementes pedradas,
sementes geminadas, sementes atacadas
por fungos, etc.) que devem ser tratadas à
parte para produzirem um cacau de
«segunda qualidade». A massa constituída
pelas sementes de cacau e polpa que as
envolve é conhecida como «cacau em
goma». Esta massa deve ser conduzida o
mais rapidamente possível para os locais
onde vai continuar a tecnologia. Como
regra geral, inicia-se muito rapidamente
uma fermentação alcoólica à custa dos
açúcares da polpa, facilitada pela
temperatura ambiental e pela existência de
uma flora de microorganismos muito rica
que se multiplica nos recipientes de
colheita e transporte de umas operações
para as seguintes.
3. Fermentação. É uma operação complexa
que no seu conjunto ultrapassa a
fermentação no conceito microbiológico.
Durante esta fase desenvolve-se uma
fermentação alcoólica com base nos
açúcares da polpa, à custa de leveduras e
depois uma oxidação do álcool formado
em ácido acético, provocada principalmente por bactérias acéticas, seguindo-se
transformações físico-químicas muito
importantes nos cotilédones, algumas das
quais correlacionadas com a formação dos
percursores do «flavour» a chocolate
desenvolvido durante a torra. Normalmente é a fase da tecnologia pós-colheita
mais longa, chegando a demorar nalguns
locais 9 e mais dias.
4. Secagem. Tem por objectivo fundamental
reduzir a humidade das sementes a teores
tais que garantam a sua conservação.
Nalguns casos, principalmente quando a
secagem é feita ao sol e é relativamente
lenta, continuam a dar-se, durante as primeiras fases da secagem, transformações
nos compostos dos cotilédones iniciadas
durante a fermentação. Por isso, alguns
autores costumam chamar a esta primeira
fase da secagem uma «segunda fermentação».
5. Dansagem (dansing). É uma técnica hoje
praticamente desaparecida com tal,
embora substituída por outras acções. Tem
por objectivo melhorar o aspecto exterior
do cacau, retirando-lhe pedaços de polpa
que se não destacaram completamente
durante a fermentação e poderão ser sede
de fixação de humidade durante o armazenamento. O nome vem do facto de a
operação ser feita com os pés de operários
que realizavam o trabalho enquanto
«dançavam» sobre as sementes.
6. Terragem. Hoje uma técnica completamente abandonada. Consistia em envolver
as sementes, quando passavam para a
secagem, por uma camada de terra argilosa
vermelha que dava ao produto uma cor
mais uniforme, mascarava defeitos da
semente e incluía no produto final a
massa da terra incorporada. Tinha ainda
a vantagem de proteger melhor a semente
dos ataques de pragas e doenças
enquanto o cacau estava armazenado.
7. Escolha, calibragem e classificação.
Durante esta operação «afina-se» a qualidade do produto final. Por via manual,
mecânica ou pelas duas, retiram-se as
«matérias estranhas», as sementes indesejáveis, as sementes partidas, os restos
de polpa, restos das cascas dos frutos,
objectos metálicos e outros que acompanham as sementes, de forma que o cacau
comercial resultante tenha uma boa apresentação, o que se associa a uma cor adequada e tanto quanto possível uniforme.
O cacau é depois calibrado separando-se
geralmente lotes de «bago grado» e de
«bago miúdo» ou «sem escolha».
8. Conservação. O cacau, depois de «pronto», passa para armazéns adequados onde
devem reunir-se as condições para uma
boa conservação. Particularmente importante é o controlo da humidade das sementes que não deve ultrapassar o «factor
de segurança», o que nem sempre é fácil
conseguir-se nas zonas produtoras em que
a humidade relativa ambiental é muito
elevada. O cacau armazenado deve ser
vigiado quanto ao aparecimento de pragas
e doenças típicas dos produtos armazenados. Os riscos de ataques aumentam com
a humidade relativa ambiental e com os
teores de humidade do cacau comercial.
A humidade do cacau comercial nunca
deve exceder 7%.
Algumas transformações operadas durante
a fermentação
Embora todas as fases da tecnologia póscolheita do cacau sejam importantes para a
obtenção de um cacau comercial de boa
qualidade, é durante a fermentação que se dão
ou devem dar as transformações mais
acentuadas no exterior e no interior das
sementes. Por esse facto esta fase da tecnologia
exige um maior acompanhamento e tem
merecido maior investigação.
Chegado o cacau em goma vindo do
campo aos locais onde se vai realizar a
fermentação ele vai ser colocado em «caixas»
de madeira com uma altura que não deve
exceder 1 m, onde à custa dos açúcares da
polpa e dos microorganismos existentes nas
paredes das caixas e resultantes de utilizações
anteriores ou já trazidos do campo e em
condições ambientais favoráveis de temperatura e humidade relativa, como é normal nas
zonas produtoras, declara-se uma fermentação
alcoólica. Como se trata de uma reacção
exotérmica, verifica-se uma aumento de
temperatura da massa que chega a atingir
cerca de 30-32º. Logo que no meio existir
álcool resultante daquela reacção, as bactérias
acéticas existentes no meio em grande
quantidade, oxidam-no para ácido acético. O
cacau nesta fase tem um cheiro marcado a
vinagre. É também uma reacção exotérmica
mas com maior número de calorias libertadas.
A primeira transformação dá-se enquanto
houver açúcares, a segunda logo que houver
álcool. Estas duas reacções realizam-se
simultaneamente na mesma massa de cacau
durante um certo período. Por efeito do calor
libertado por sobreposição destas reacções,
actuando em conjunto, a temperatura da massa
atinge cerca de 50-52º. Raramente se verificam
temperaturas superiores a estes. A fermentação
alcoólica inicia-se praticamente quando o
cacau em goma entrou nas «caixas» de
fermentação e algumas vezes ainda no campo
ou durante o transporte, principalmente
quando há atrasos na condução do cacau em
goma do campo.
Como regra, embora dependendo dos
volumes de cacau, da quantidade de açúcares
que a polpa doseia, da temperatura ambiental
e da «infecção» das caixas por operações
anteriores, a fermentação alcoólica começa
logo nas primeiras horas após a entrada nas
caixas e a fermentação acética pouco tempo
depois e logo que exista álcool no meio.
Em ensaios de fermentações «comerciais»
que fizemos com cerca de 600kg de «cacau
em goma» em caixas de madeira com 1 m de
espessura de cacau, realizadas em S. Tomé
no fim da «gravana» e princípios da época
das chuvas, obtiveram-se globalmente os
resultados seguintes:
A fermentação é a operação mais delicada
e mais demorada da tecnologia pós-colheita
do cacau. Qualquer redução do tempo em que
decorre, sem que a qualidade do produto final
seja com isso afectada, reflecte-se numa
melhor utilização do equipamento em que se
realiza e em economia de mão de obra.
Acresce que em cada dia de fermentação o
cacau perde, em média, cerca de 1% de matéria
seca e por isso a redução do período de
fermentação constitui uma preocupação que
deve estar presente.
A morte da semente e as condições para
modificações na composição dos cotilédones
Na composição da semente de cacau
existem compostos polifenólicos, proteínas,
aminoácidos livres, açúcares e outros
constituintes que vão ser mais ou menos
intensamente afectados durante a fermentação,
entendida como se referiu e cuja transformação vai provocar a formação dos «percursores» do «flavour» a chocolate que se
desenvolverá durante a torra.
No caso vertente, interessa concentrar a
atenção nos compostos fenólicos que na
semente do cacau são essencialmente de
dois tipos: as cianinas e as catequinas.
Na semente fresca de cacau estes compostos encontram-se concentrados em células
especiais dos cotilédones, cuja presença é
facilmente assinalável nos cacaus forasteros
pela cor violácea devido à presença das
cianinas. As catequinas também estão presentes nas mesmas células, mas são incolores.
Nas células dos cotilédones onde
aquelas células estão dispersas ou reunidas
em pequenos grupos, estão presentes
sistemas enzimáticos diversos responsáveis
pelas transformações operados naqueles e
noutros compostos da semente.
Para que a transformação daqueles compostos ocorra, é necessários que os conteúdos
celulares daqueles dois tipos de células se
misturam, o que só é possível quando as
paredes celulares se tornarem permeáveis.
Este mecanismo consegue-se com a «morte da semente». Quando o cacau em fermentação atinge temperaturas de 50-52 ºC e em
meio ácido, facilitado pela presença de ácido
acético, a semente não só perde a sua capacidade de germinar, mas também as paredes
celulares atingem a permeabilidade referida
permitindo assim a mistura dos seus conteúdos.
Das substâncias polifenólicas, as cianinas
são as primeiras a ser transformadas libertando
a aglucona (cianidina de cor violácea) e o
açúcar a que estava ligada. Logo após a morte
da semente o pigmento púrpura difunde-se por
todas as células dos cotilédones deixando
assim de se distinguir as células coradas, a
cianidina é rapidamente decomposta em
compostos incolores ou condensa-se nos
chamados «taninos flavónicos».
Esta transformação exige condições de
anaerobiose, facilitadas pela massa de cacau
em fermentação que deixa em si poucos espaços para a retenção de ar e decorre imediatamente a seguir à morte da semente.
Os compostos polifenólicos do tipo
catequina condensam-se e dão origem aos
«taninos catéquicos», acastanhados, ou
combinam-se com aminoácidos e proteínas
para darem compostos muito importantes
dos percursores.
O primeiro tipo de reacções provoca a
perda de adstringência e o acastanhamento dos
cotilédones e se é certo que não interferem
decisivamente na formação dos percursores,
constituem um índice fácil de observar da
forma como decorre o processo.
Na condensação das catequinas interferem
enzimas polifenólicos (polifenoloxidases) que
actuam na presença do oxigénio..
Sendo assim, desejando-se que a evolução
dos compostos flavónicos se realize em
condições de anaerobiose, a condensação das
catequinas impõe um arejamento, o que neste
caso é conseguido remexendo a massa do
cacau em fermentação na mesma caixa ou,
com mais eficiência, fazendo passar o cacau
de uma para outra caixa, com a consequente
entrada de ar.
Uma fermentação bem orientada, em que
se facilitem as transformações referidas, exige
uma primeira fase que deve decorrer na
ausência ou rarefacção de ar e uma segunda
onde a presença de oxigénio é fundamental.
Conhecer, em termos práticos, quando
termina a primeira e começa a segunda é de
enorme importância, não só para se criarem
as condições ideais ou próximo disso, mas
também para encurtar o tempo de fermentação,
pelas razões brevemente indicadas.
A experiência demonstra que o pigmento
púrpura se difunde rapidamente a seguir à
morte da semente, corando por igual todas as
células dos cotilédones e exsudando para o
espaço que se forma entre aos cotilédones e o
tegumento e aparecendo à superfície da casca
nos pontos em que ela é mais frágil, isto é, na
extremidade correspondente ao embrião.
Logo que a semente apresentar a coloração
violácea na região referida, deve considerar-se terminada a primeira fase da fermentação, o
que decorre nas primeiras 36-38 horas,
conforme o volume das sementes e condições
ambientais e deve começar-se imediatamente
com o remeximento do cacau ou a sua passagem para outra caixa.
Desta forma, consegue-se obter um
produto final de boa qualidade, bem fermentado num período total de fermentação de 96-120 horas e não os 7-12 dias como às vezes
sucede.
As caixas de fermentação ficam livres mais
cedo, poupa-se mão-de-obra e perde-se muito
menos matéria seca.