A realidade do consumo de drogas nas populações escolares
INTRODUÇÃO
O consumo de drogas transformou-se numa preocupação mundial, particularmente
nos países industrializados, em função da sua grande prevalência e dos riscos
que pode acarretar. A adolescência é uma etapa do desenvolvimento que suscita
grandes preocupações quanto ao consumo de drogas pois constitui uma época de
exposição e vulnerabilidade às mesmas.
Os vários Estados têm fomentado o estudo e o controlo do fenómeno do consumo de
drogas com o objectivo de definir políticas de intervenção.
O European School Survey on Alcohol and Drugs (ESPAD) é um projecto com
inquéritos realizados a cada 4 anos em 35 países europeus, que conta com o
apoio do Grupo Pompidou do Conselho da Europa e do Observatório Europeu da
Droga e da Toxicodependência (OEDT). O estudo realizado em 2007 concluiu que,
em Portugal Continental, 18% dos rapazes e 10% das raparigas de 16 anos de
idade já experimentaram o consumo de drogas ilícitas pelo menos uma vez. A
média europeia de consumo de drogas foi de 23% no sexo masculino e 17% no sexo
feminino.1
O Inquérito Nacional em Meio Escolar, realizado em 2006, revelou um consumo de
cannabis de 10% dos alunos do 3.o ciclo e de 32% dos alunos do ensino
secundário da Região Autónoma dos Açores, superior à prevalência de qualquer
outra região do país para os mesmos grupos etários.2 Notou-se uma diminuição do
consumo em relação ao mesmo estudo em 2001 em todas as regiões, excepto nos
alunos açorianos do ensino secundário, em que a prevalência se manteve igual
(32%).3
Os objectivos deste estudo foram caracterizar o consumo de drogas ilícitas dos
estudantes açorianos do 3.o ciclo e avaliar os seus conhecimentos sobre a
temática.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo observacional, transversal descritivo no ano de 2009. A
população em estudo era constituída pelos estudantes do 3.o ciclo da Região
Autónoma dos Açores. A amostra foi seleccionada por conveniência sendo composta
pelos alunos de todas as turmas do 9.o ano de 5 escolas da Região Autónoma dos
Açores, o que correspondeu a 605 estudantes, ou seja, 6,4% do total de alunos
inscritos no 3.o ciclo na Região nesse ano (9484 alunos). A selecção das
escolas dependeu de condicionalismos inerentes à situação geográfica das ilhas.
Foi aplicado um inquérito anónimo (Anexo_I), após autorização do Conselho
Executivo de cada escola e dos pais dos alunos. O questionário foi criado pelos
autores, com algumas perguntas adaptadas do ESPAD,1 não tendo sido validado. O
formulário foi entregue pelos autores no início de uma aula, informando os
alunos sobre o objectivo do estudo.
Os inquéritos foram distribuídos explicando-se as instruções para o seu
preenchimento e explicitando-se o anonimato das respostas. Os participantes
foram encorajados a responder individualmente, com honestidade e em silêncio.
Os alunos foram informados de que poderiam esclarecer qualquer dúvida que
surgisse ao longo do preenchimento do inquérito.
Após o seu preenchimento os inquéritos foram dobrados e colocados pelos
próprios alunos numa urna fechada e transportados pelos autores, mantendo o
anonimato de cada estudante.
As variáveis estudadas foram a idade, sexo, informação sobre drogas e seus
efeitos, consumo de drogas, e, em caso afirmativo, local, forma de utilização,
tipo de estupefaciente, idade de início, frequência e motivo que levou ao
consumo.
Foi utilizado o programa SPSS v. 16.0 na análise estatística.
RESULTADOS
Foram entregues 605 inquéritos (taxa de resposta de 100%), dos quais 3 foram
excluídos do estudo por apresentarem respostas incoerentes ou sem fidedignidade
(um aluno não respondeu a nenhuma questão, dois responderam seleccionando
várias opções para a mesma pergunta). Os questionários incluídos foram
respondidos de forma integral.
Assim, a amostra incluiu 602 adolescentes, 307 do sexo feminino e 295 do sexo
masculino, com idades compreendidas entre os 14 e os 18 anos. A média de idades
foi 15,2 anos, com predomínio da faixa etária dos 14 e 15 anos, 66,7% dos
adolescentes, seguida de 16 e 17 anos, 28,9% dos estudantes (Quadro I).
QUADRO I. Caracterização da amostra
Todos os inquiridos afirmaram já ter ouvido falar de drogas e seus efeitos em
vários contextos. Cerca de 76,4% já abordaram o tema na escola e apenas 47,0%
discutiram o problema em casa (Quadro II).
QUADRO II. Local onde os alunos já abordaram o tema das drogas
A prevalência de consumo de droga entre os estudantes foi de 25,6%, 29,2% dos
rapazes e 22,1% das raparigas (Quadro III).
QUADRO III. Prevalência da utilização de drogas ilícitas
A droga mais utilizada foi a cannabis, já experimentada por todos os indivíduos
que afirmaram já ter utilizado drogas ilícitas. A cocaína foi consumida por
5,2%, o ecstasy também por 5,2%, as anfetaminas por 3,2% e a heroína por 1,9%
dos alunos. Em todos os tipos de droga a prevalência de utilização foi sempre
superior no sexo masculino (Quadro IV).
QUADRO IV. Tipo de Droga consumida
Do total de inquiridos, 62,3% afirmaram já ter visto amigos ou colegas
consumirem drogas ilícitas e 38,0% afirmaram já lhes ter sido oferecida droga.
A percentagem de consumo de drogas ilícitas entre os estudantes foi semelhante
para todos os níveis de escolaridade dos pais (Quadro V).
QUADRO V. Escolaridade dos pais e consumo de drogas ilícitas
O Quadro VI mostra os locais de consumo e as vias de administração das drogas.
O local de consumo preferencial foi um bar/discoteca, referido por 78,6% dos
alunos que afirmaram já ter consumido drogas. Quanto ao consumo de drogas na
escola, 249 (41,2%) dos inquiridos já viram consumir neste local e 72 (11,9%)
já o fizeram, correspondendo a 46,8% dos alunos que já consumiram droga. Todos
estes já experimentaram droga fumada, 8 também a consumiram por via nasal, 13
por via oral e 3 por via endovenosa.
QUADRO VI. Local de consumo e via de administração
A idade de início de utilização foi em média de 14,4 anos (14,3 para os rapazes
e 14,5 para as raparigas), sendo a idade mínima de 10 anos e a máxima de 18
anos (Quadro VII).
QUADRO VII. Idade de início de consumo de drogas
Quanto à frequência de consumo, é de notar que 42,9% correspondeu a uma ou duas
experiências na vida, mas 44,2% já apresentava um consumo regular ao fim-de-
semana. Cinco estudantes do sexo masculino já consumiam diariamente, sendo que
destes 3 tinham 15 anos, um 16 anos e outro 18 anos (Quadro VIII).
QUADRO VIII. Frequência de consumo
Os motivos de início de consumo (Quadro IX) mais referidos pelos estudantes
foram a curiosidade (80,5%), a oferta de um amigo (27,3%) e a diversão (31,4%
dos rapazes e 17,6% das raparigas). Estas razões foram escolhidas pelos
estudantes a partir de sete opções, incluindo «outras». Vários motivos podiam
ser apontados. Dois estudantes afirmaram ter consumido em momentos de solidão.
QUADRO IX. Motivo de iniciação de consumo
DISCUSSÃO
Este estudo mostra uma prevalência de consumo de drogas ilícitas de 25,6%
(29,2% nos rapazes e 22,1% nas raparigas) nos alunos respondedores. Estes
valores são superiores à média europeia de consumidores, identificada em
estudos internacionais. A média de adolescentes entre os 15 e os 16 anos que já
experimentaram drogas ilícitas pelo menos uma vez na vida, dos países europeus
participantes no ESPAD, situou-se nos 23% nos rapazes e 17% nas raparigas, com
variação considerável entre os vários países. Os níveis de prevalência mais
reduzidos encontraram-se nos países nórdicos e Europa Oriental. Na República
Checa, 46% dos adolescentes referiram ter consumido drogas ilícitas. Na Suíça,
França e República Eslovaca cerca de 30%. Em Portugal 13%. Na Noruega, Chipre e
Roménia apenas 6%.1
A prevalência de consumo de drogas entre os estudantes encontrada nesta amostra
é superior à prevalência encontrada em qualquer outra região do país num estudo
de 2006 em estudantes do 3.o ciclo (Norte 6%, Centro 6%, Lisboa-Vale do Tejo
6%, Alentejo 8%, Algarve 7% e Madeira 7%). Nos Açores a prevalência encontrada
no referido estudo foi de 10%.2
Tal como noutros estudos, são os rapazes quem mais frequentemente consome.4,5
A idade de início de consumo foi em média de 14,4 anos, semelhante à encontrada
por outros autores.6-8
A droga mais consumida foi a cannabis, utilizada por todos os estudantes que
afirmaram já ter experimentado algum tipo de droga ilícita. Este resultado é
semelhante ao encontrado noutros trabalhos.6,9
No presente estudo, 19 alunos (3,2%) tinham já experimentado uma ou mais drogas
além da cannabis. A média europeia de utilização de outras drogas situou-se em
7% em 2007.1
Vários são os factores de risco que têm sido implicados no consumo de drogas
ilícitas, tais como factores genéticos, neurobiológicos, de personalidade e
psicológicos. Contudo, o meio familiar e o ambiente em que o adolescente se
insere são considerados factores de risco major para o abuso de substâncias
lícitas e ilícitas.10-13
As relações positivas na família, o suporte emocional e social dos pais e um
estilo de disciplina parental construtivo e consistente tendem a estar
relacionados com menos envolvimento em comportamentos de risco.14,15
O facto de os jovens passarem o tempo livre em contextos sociais não
estruturados está relacionado com um maior uso de substâncias.16 Ao contrário,
a participação em actividades organizadas funciona como um factor de
protecção.17
Existem vários tipos de consumo de drogas, nomeadamente um consumo tipo
festivo, que acontece em grupo e através do qual se procura divertimento,18 e
um consumo autoterapêutico que procura o alívio de sintomas de mal-estar e
stress.18-20 Os principais locais de consumo foram realmente os locais de
lazer, nomeadamente bares e discotecas (78,6%). Quanto aos factores motivadores
do consumo, o desejo de diversão foi referido por 25,3% e o facto de estar
triste por 8,4% dos participantes.
A curiosidade foi o factor motivante da experimentação referido por mais
adolescentes (45,5%), facto de acordo com outros estudos realizados noutros
países.7,8,21
Neste estudo verificou-se uma percentagem elevada de alunos que consome droga
em ambiente escolar. Do total de inquiridos, 41,2% já viram consumir na escola
e 46,7% dos consumidores já o fizeram neste local. Isto revelou-se um factor
extremamente inquietante, uma vez que a escola deveria ser tida como um local
privilegiado para prevenir estes comportamentos de risco. No entanto, é o local
de convívio entre pares e em que essas condutas se perpetuam, de certo modo
como tentativa de afirmação. A intervenção na escola, pelo que foi possível
apurar, tem sido feita sobretudo através de sessões de esclarecimento,
organizadas pelos Centros de Saúde e que envolvem médicos de Medicina Geral e
Familiar, enfermeiros e psicólogos. Contudo, as intervenções realizadas, apesar
de fundamentais, parecem não ser suficientes.
Dependendo de vários factores, a escola pode ser um factor protector ou
propiciador de comportamentos de risco.22 Um ambiente escolar que seja promotor
de saúde pode ser encarado como um recurso para o desenvolvimento de
comportamentos de aumento de saúde e de bem-estar, sendo que a satisfação com a
escola pode contribuir para esse bem-estar e para a qualidade de vida dos
jovens. O contexto escolar (grupo de pares) e social em que o adolescente está
inserido tem sido apontado como o preditor mais consistente do uso de
substâncias na adolescência.23 No seio do ambiente escolar identificam-se
factores como a falta de motivação para a aprendizagem, o fraco desempenho
escolar, o absentismo e a vontade de ser independente, articulados com a falta
de interesse na realização pessoal como factores de risco para o uso de
substâncias ilícitas.24 Por outro lado, a atitude dos amigos em relação à
escola parece ser um factor determinante na forma como os adolescentes vêem a
escola.25,26 Neste estudo, o desejo de integração num grupo foi referido como
motivador do consumo por 18,2% dos utilizadores, sendo que a experimentação
levada pela oferta de um amigo foi referida por 16,2%.
A disponibilidade da droga parece ser um factor importante no consumo. Cerca de
62,3% dos estudantes afirmaram já ter visto amigos ou colegas consumirem drogas
ilícitas e 38,0% afirmaram já lhes ter sido oferecida droga. A nível europeu,
cerca de 30,0% dos estudantes referiram ser fácil encontrar cannabis.1
As intervenções com o intuito de prevenir o consumo de substâncias psico-
activas a nível escolar são fundamentais, havendo necessidade de uma abordagem
dos múltiplos problemas do contexto escolar, tal como tem sido proposto e
legislado recentemente.2 Estes resultados também alertam para a necessidade de
se intervir em factores específicos associados ao risco, como os locais de
diversão frequentados pelos adolescentes. Contudo, a socialização com o grupo
de pares é fundamental no desenvolvimento, bem-estar e auto-estima dos jovens,
pelo que as intervenções têm que abordar alternativas para lidar com os
desafios com que os adolescentes se deparam, permitindo-lhes alcançar
estabilidade pessoal e social, sem recorrer ao uso de drogas.
Em conclusão, este estudo sugere que a prevalência de consumo de droga entre os
adolescentes açorianos é muito elevada, superior a qualquer outra região do
país e à média europeia.
No entanto, é importante realçar as limitações metodológicas deste estudo, que
poderão ter contribuído para este valor tão elevado. O facto de se terem
seleccionado apenas os alunos do 9.o ano, os seja, os mais velhos do 3.o ciclo,
pode ter influenciado a elevada percentagem de estudantes que referiram já ter
consumido substâncias ilícitas, quando comparada com outros estudos. Também a
utilização de uma amostra de conveniência, muito provavelmente não
representativa da população em estudo, impede a generalização dos resultados
para a população estudantil do 3.o ciclo, como era o objectivo do trabalho. Por
outro lado, como o estudo foi realizado apenas em ambiente escolar não é
possível generalizar estes resultados para a população adolescente da Região
Autónoma dos Açores.
A não validação do questionário é uma limitação importante, tanto mais que se
admite que algumas perguntas podem ter induzido as respostas.