Tuberculose: Apresentação Incomum
Introdução
Passados 129 anos da descoberta do bacilo Mycobacterium Tuberculosis(MT) por
Robert Koch, a Tuberculose tem-se mantido como um problema de saúde Pública
constituindo a principal causa de morte provocada por uma doença infecciosa
curável.
O recrudescimento desta patologia em meados da década de 80 colocou a população
mundial em alerta e despoletou a sua classificação em 1993 pela Organização
Mundial de saúde (OMS) como emergência global.
Em 2009 a OMS estimou a incidência da tuberculose em 9 milhões de casos (139/
100.000 habitantes) condicionando a mortalidade de 1,3 milhões de
pessoas.1Muito embora a redução mantida, a um ritmo médio de 3,8%/ano, a
incidência na união europeia cifra-se nos 15,8/100.000 habitantes. em Portugal,
o número ascende aos 22,3/100.000 habitantes, não atingindo a fasquia <20/
100.000 habitantes, o que permitiria a sua inclusão nos países de baixa
incidência.2
A incidência de Tuberculose com envolvimento exclusivo extra-pulmonar e
sistémico constitui em Portugal aproximadamente 2% dos casos.2Esta apresentação
pode ser denominada como Tuberculose Miliar. A utilização deste termo data de
1700 por John Jacobus Manget como descrição anatomo-patológica do envolvimento
pulmonar difuso caracterizada por vários e pequenos nódulos esbranquiçados
semelhantes a sementes de milho. Actualmente, é utilizada para a caracterização
de todas as formas progressivas e com disseminação hematogénica, mesma na
ausência do padrão anatomo-patológico/radiológico típico. A sua apresentação
clínica é extremamente variável, abrangente e pouco específica, constituindo
formas agudas, subagudas e crónicas. Pode envolver, entre outros, o sistema
respiratório, gastrointestinal, nervoso, cardiovascular, endócrino,
hematológico3
As alterações hematológicas são comuns. A anemia normocítica normocrómica está
presente em cerca de metade dos doentes. A maioria apresenta valor absoluto de
leucócitos normal mas podem ocorrer casos de leucopenia ou leucocitose.
Trombocitopenia e trombocitose são também reportadas.4
Caso clínico
Doente de raça caucasiana, sexo feminino, 77 anos, ex-trabalhadora rural, com
antecedentes pessoais de Hipertensão Arterial essencial, que recorreu ao
serviço de urgência por distensão e dor abdominal frustre e difusa com duas
semanas de evolução, sem factores de alívio e/ou agravamento.
Concomitantemente, e durante o mesmo período, referia febre sem padrão
característico, associada a sudorese nocturna, anorexia, astenia e adinamia.
Não destacava outros sintomas e não apresentava dados epidemiológicos de
relevo.
Objectivamente, encontrava-se febril, hemodinamicamente estável, eupneica, sem
exantema e sem adenomegalias palpáveis, sem alterações na auscultação
cardiopulmonar mas com abdómen globoso e distendido com hepatomegalia palpável
3cm abaixo do rebordo costal direito e esplenomegalia palpável 9cm abaixo do
rebordo costal esquerdo.
Na avaliação analítica efectuada entretanto, verificava-se: anemia normocítica
normocrómica (hemoglobina= 10,1mg/dL); leucocitose (142700/ mm3) com 52% de
neutrófilos, 46% de precursores mielóides, 1% de blastos, 1% de linfócitos e 0%
de basófilos; 296000/mm3plaquetas; insuficiência renal (ureia= 61mg/dL,
creatinina 1,4mg/dL), aumento da desidrogenase láctica (1870ui/L), albumina
3,2mg/dL e uma proteína c-reactiva 0,9mg/ dL. O esfregaço sanguíneo revelava
uma ligeira anisocitose na série rubra e uma linha mielóide com precursores nas
diversas fases mas sem alterações citoplasmáticas relevantes (bastões=14%).
A telerradiografia torácica e a ecografia abdominal reveleram respectivamente
padrão intersticial difuso incipientee hepatoesplenomegalia associada a ascite
de muito pequeno volume (Figura_1).
Procedeu-se a paracentese diagnóstica de líquido amarelo-citrino destacando-se
a presença de 3000 leucócitos (60% polimorfonucleares e 40% de mononucleares),
adenosina deaminase normal (38ui/L), glicose 122mg/dL, desidrogenase láctica
658ui/L, proteínas 2,5g/dL e albumina 0,9mg/ dL (definindo um gradiente de
albumina soro-ascite =1,1).
Foi internada com os diagnósticos de Leucemia Mielóide Crónica provável e
insuficiência renal Aguda (pré-renal). iniciou fluidoterapia e hidroxicarbamida
como agente citorredutor.
Durante os primeiros dias de internamento não se registaram alterações
subjectivas e objectivas de relevo (manteve febre) e assistiu-se a uma
diminuição ligeira e não sustentada dos leucócitos (mínimo 48300/mm3) e
normalização da função renal. efectuou-se mielograma que revelou hiperplasia
mielóide, aumento dos precursores neutrofílicos, 1,3% de blastos e ausência de
displasia; mielocultura que foi negativa e biópsia óssea que foi descrita como
compatível com síndrome mieloproliferativo. Na análise citogenética, técnica de
hibridização in situ por fluorescência e posteriormente na reacção em cadeia
pela polimerase reversa para detecção do gene de fusão bcr/ablnão foram
encontrados transcritos de fusão. A mutação p.V617F no gene JAK2 também não foi
detectada.
Ao 14º dia de internamento, foi identificado no exame cultural do líquido
ascítico e nas hemoculturas bacilo ácido-álcool resistente identificado
posteriormente como Mycobacterium Tuberculosis(resistente apenas à
estreptomicina). Assumiu-se reacção leucemóide secundária a Tuberculose
sistémica. suspendeu hidroxicarbamida e iniciou antibacilares (isoniazida 5mg/
kg, rifampicina 10mg/ kg, pirazinamida 25mg/kg e etambutol 20mg/kg).
Apresentou melhoria clínica significativa com apirexia sustentada.
Analiticamente assistiu-se à normalização dos valores hematológicos e
bioquímicos (Tabela_1
) e à negativação das hemoculturas.
A Tomografia Computorizada torácica evidenciou manutenção de padrão reticular
difuso e a imagiologia abdominal seriada foi reveladora de remissão paulatina
da hepatoesplenomeglia eda ascite.
Adoentetevealtaao45ºdiadeinternamento,clínica e laboratorialmente melhorada.
Foi reavaliada posteriormente em Consulta externa não apresentando alterações
dignas de registo.
Discussão
A particularidade deste caso centra-se na atipicidade de apresentação
daTuberculose Disseminada. A alteração hematológica rara e pouco frequente é
crucial tornando-o incomum e revestido de especial interesse. A anamnese e o
exame físico incaracterísticos associados às alterações analíticas descritas
tornaram o diagnóstico de doença hematológica primária como mais provável. É
considerado para a detecção de infecção/inflamação em situações de
hiperleucocitose o valor da proteína c-reactiva igual ou superior a 1mg/dL, a
presença de corpos de Dohle, granulações tóxicas e vacúolos citoplasmáticos nos
neutrófilos e a contagem manual de bastões = 20%.5Todos estes dados ausentes no
presente caso.
Assim, na abordagem da doente, decidiu-se iniciar a citorredução em simultâneo
com a confirmação citogénica e molecular do diagnóstico mais provável: Leucemia
Mielóide Crónica. Apesar do aspecto sugestivo de síndrome mieloproliferativo na
biópsia óssea, o resultado negativo no despiste do gene de fusão bcr/abl e
também da mutação no gene JAK2 permitiu a suspensão da hidroxicarbamida. O
diagnóstico alternativo de reacção leucemóide ganhou consistência apesar da
negatividade persistente dos vários exames microbiológicos directos e culturais
e dos testes de amplificação de ácidos nucleicos. Ao 14º dia foi isolado e
identificado MycobacteriumTuberculosistendo sido iniciado terapêutica
antibacilar quadrupla durante dois meses e mantida posterior-mente isoniazida e
rifampicina por quatro.6
Conclusão
A dificuldade diagnóstica da reacção leucemóide e a infecção sistémica por
Mycobacterium tuberculosis, particulariza esta descrição pelo número reduzido
de casos descritos na literatura.
Pese embora os avanços científicos recentes e de forma a evitar o atraso
diagnóstico da Tuberculose Miliar, o grau de suspeição na presença de
manifestações pouco frequentes e a correcta abordagem microbiológica
(nomeadamente de líquidos biológicos) são fundamentais dada a panóplia de
apresentações e a incidência desta infecção em Portugal.