Síndroma de leriche num doente infectado pelo vih
INTRODUÇÃO
Foi demonstrada uma elevada prevalência de doença coronária nos doentes
infectados pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), que se torna um
problema de importância crescente, com a maior sobrevida proporcionada pela
terapêutica anti-retrovírica (1,2). A doença coronária nestes pacientes
relaciona-se com factores de risco tradicionais, possíveis efeitos do vírus, e
alterações metabólicas produzidas pela terapêutica anti-retrovírica, em
especial os inibidores da protease (IP) (3). O panorama está menos bem estudado
no que toca à doença arterial periférica (DAP), mas vários estudos têm mostrado
que a prevalência de aterosclerose nos doentes infectados pelo VIH pode ser
superior à dos doentes com características semelhantes não infectados (4).
A Síndroma de Leriche, devida à oclusão arterial aortoiliaca, caracteriza-se
por claudicação dos glúteos, coxas e região gemelar, estando frequentemente
associada a impotência sexual masculina (5).
DESCRIÇÃO DO CASO
Um homem de 40 anos dependente de heroína por via intravenosa nos últimos seis
anos foi referenciado em 2006 à Consulta de Medicina Interna do Hospital de
Vila Real por infecção pelo VIH tipo 1. Apresentava também infecção crónica
pelo Vírus da Hepatite C e tabagismo (40 unidades maço-ano). Negava hipertensão
arterial, diabetes e dislipidemia. Referia dor na região lombo-sagrada, dor e
diminuição de força nos membros inferiores e parestesias na região perineal,
que se acentuavam com a marcha. Negava febre ou sudorese, mas tinha anorexia,
astenia e perda de peso há alguns meses (não quantificada). Ao exame físico,
apresentava-se emagrecido, com peso 55 Kg, altura 1.70 m; os sinais vitais eram
normais (TA membro superior: 135/80 mmHg; TA membro inferior: 130/80 mmHg; Fc:
80 bpm); na pele dos membros superiores e inferiores tinha sequelas de
cauterização de trajectos venosos relacionadas com o uso de drogas por via
injectável; não apresentava adenopatias; a auscultação cardíaca e pulmonar era
normal; o abdómen era normal à palpação e sem sopros à auscultação; no exame
neurológico observava-se hipoestesia nos membros inferiores e no períneo; não
apresentava fasciculações nem atrofia muscular. Admitiu-se a possibilidade de
síndrome da cauda equina e foram solicitadas electromiografia (EMG),
radiografias da coluna e Ressonância magnética nuclear (RMN) da espinal medula.
As análises de sangue não revelaram alterações do hemograma, coagulação e
bioquímica, salvo discreta elevação das transaminases (AST: 45U/L, [normal
entre 12-28 U/L]; ALT: 55U/L, [normal entre 7-41 U/L] e da aldolase (9,0 U/L,
[normal entre1,5-8,1 U/L]; a velocidade de sedimentação (VS) era 35 mm (normal
<15 mm); a contagem de linfócitos T CD4+ era 443/mm3 e a carga vírica do VIH
era igual a 105.000 cópias RNA/ml. A EMG mostrou alterações sugestivas de
polineuropatia sensitivo-motora. O doente não realizou os outros exames
solicitados e faltou subsequentemente a repetidas convocatórias. Foi reavaliado
mais de dois anos depois (2008), altura em que foi admitido no hospital por
infecção respiratória e emagrecimento.
Estava integrado num programa de substituição de opiáceos por metadona.
Analiticamente apresentava hemoglobina 10.2 g/dl, leucócitos 2.700/mm3
(neutrófilos 55%, linfócitos 33%, monócitos 9.6%), plaquetas 238.000/mm3
(150.000-450.000/mm3) e a VS de 80 mm (<15 mm). Nessa altura a contagem de CD4+
era 128/mm3 e a carga vírica do VIH 282.000 cópias/ml. O colesterol total era
de 186 mg/dl ( < 200 mg/dl), as fracções HDL e LDL respectivamente 25.3 mg/dl
(>40 mg/dl) e 89.1 mg/dl (<100 mg/dl), e os triglicerídeos 358 mg/dl (<150 mg/
dl). Do ponto de vista respiratório o doente melhorou rapidamente com
amoxicilina / ácido clavulânico. Excluiu-se tuberculose. Iniciou-se terapêutica
anti-retrovírica combinada com zidovudina, lamivudina e nevirapina. Em
avaliação posterior o doente referiu a persistência de dor ao nível da região
pélvica e glútea, associada a parestesias e disestesias na região perineal, com
sensação como se fosse de borracha, sic e com cerca de dois anos de evolução.
Apresentava nesta altura claudicação intermitente para distâncias inferiores a
50 m. Quando questionado o doente admitiu que tinha impotência sexual há cerca
de três anos. Na avaliação clínica dos pulsos arteriais periféricos constatou-
se que as artérias femorais eram como tubos rígidos sem pulsatilidade, e os
pulsos distais eram dificilmente palpáveis, embora não apresentasse sinais de
isquemia.
A tomografia axial computorizada (TAC) abdominopélvica contrastada mostrou
extensas calcificações ateromatosas da aorta infra-renal e da porção proximal
das ilíacas, invulgares no grupo etário, sugestivas de estenose aórtica
significativa (Fig._1 e 2).
Estes achados foram confirmados por Ecodoppler, que mostrou alterações
sugestivas de oclusão da aorta abdominal e a presença de circulação colateral.
Na sua porção distal as artérias ilíacas apresentavam permeabilidade, tal como
as artérias femorais comuns, superficiais e profundas e poplíteas, embora com
fluxo de tipo parvus tardus com acentuada diminuição da amplitude da velocidade
do pico sistólico.
O doente foi medicado com clopidogrel e pentoxifilina, além de manter a
terapêutica combinada de zidovudina, lamivudina e nevirapina e a profilaxia de
infecções oportunistas com cotrimoxazol. Foi prontamente referenciado à
consulta de Cirurgia Vascular do hospital central de referência ( qual?), onde
foi submetido a revascularização aorto-bifemoral com prótese de Dacron após
realização de aortografia que mostrou doença aórtica oclusiva justa-renal com
reabilitação femoral bilateral, e ainda oclusão da artéria mesentérica
inferior. O pós-operatório decorreu sem complicações e o paciente teve notável
recuperação da sua sintomatologia, apenas persistindo certo grau de disfunção
eréctil. Teve altamedicado com a mesma terapêutica de ambulatório.
Infelizmente, revelou sempre má adesão à consulta e à terapêutica anti-
retrovírica e abandonou seguimento. Nota: Já na preparação deste manuscrito,
esteve internado no nosso hospital por pneumonia por Pneumocystis jiroveci, que
evoluiu favoravelmente. Apresentava candidíase oral e a contagem de CD4+ era de
apenas 33 /mm3. Do ponto de vista vascular encontrava-se assintomático. Foi
medicado com tenofovir, emtricitabina, efavirenz e cotrimoxazol. Compareceu a
consulta programada.
DISCUSSÃO
Com a introdução da terapêutica anti-retrovírica de alta eficácia (HAART)
diminuíram de forma drástica a mortalidade e a morbilidade associadas às
infecções oportunistas, permitindo a muitos doentes uma sobrevida longa e
melhor qualidade de vida (2). Como contraponto, tem-se assistido a uma
prevalência crescente de doenças cardiovasculares nesta população (1;3). Embora
se admita haver alguma participação do vírus em si na patogénese da
aterosclerose, esta tem sido relacionada sobretudo com factores de risco
tradicionais e uma complexa rede de alterações metabólicas produzidas pela
própria terapêutica anti-retrovírica, em especial por regimes baseados em
inibidores da protease (6 - 11).
A doença arterial periférica (DAP) parece ter prevalência aumentada nos doentes
infectados pelo VIH relativamente a doentes de grupos de controlo, o que tem
sido posto em evidência com estudos de aterosclerose subclínica avaliada pela
medição ultrassonográfica da espessura das camadas íntima e média (IM) da
carótida (7,12,13,14,15,16). Embora alguns estudos tenham mostrado uma maior
progressão da doença arterial em doentes infectados pelo VIH relativamente a um
grupo de controlo (14,17), outros não o confirmaram (18,19). Um trabalho
desenhado para minimizar vieses relacionados com factores de risco tradicionais
não encontrou diferenças em ambos os grupos ao fim de quase três anos (18).
Contudo, noutro estudo recente em doentes infectados pelo VIH que utilizou como
método de detecção de DAP o índice de pressão arterial tornozelo-braço (Ankle-
Brachial blood pressure Index, ABI), previamente validado, constatou-se uma
prevalência de DAP de 20.7%, elevada comparativamente com a prevalência na
população geral que ronda os 3% aos 60 anos (17). Nesta coorte de 92 doentes,
com mediana de 49.5 anos de idade, os autores consideraram haver doença
arterial se o ABI em repouso fosse <0.90 ou se após o exercício mostrasse uma
redução de pelo menos 25%. Todos os doentes que cumpriam um destes critérios
foram posteriormente submetidos a estudo por Duplex scan (ultrassonografia que
permite obtenção de imagem artificial colorida do fluxo sanguíneo) da aorta
abdominal e artérias dos membros inferiores, para confirmar e localizar as
lesões. Constatou-se que todos os doentes com ABI em repouso <0,90 o Duplex
scan mostrou doença aterosclerótica das artérias ilíacas e femorais (17). Alta
prevalência de aterosclerose subclínica foi também demonstrada noutro ensaio,
que estudou, através da medição ultrassonográfica da espessura das camadas IM
da carótida, o papel da HAART em infectados pelo VIH estratificados segundo os
critérios de Framingham por grupos de risco cardiovascular muito baixo, baixo,
e moderado a alto (20). Observou-se aterosclerose carotídea subclínica em
26.6%, 35.3% e 76.5%, respectivamente. A exposição à HAART foi um factor
predictivo independente de aterosclerose carotídea em todos os grupos (20).
Admite-se que a infecção pelo VIH per se possa ter alguns efeitos na patogénese
da aterosclerose, resultando em disfunção endotelial. Um estudo muito recente
comparando a espessura IM da carótida de um grupo de indivíduos infectados pelo
VIH não-progressores de tipo elite (imunidade preservada e cargas víricas
espontaneamente baixas, mesmo indetectáveis) com a de um grupo de pessoas não
infectadas e de resto sem outras diferenças, nomeadamente quanto a factores de
risco vascular, mostrou um aumento significativo no primeiro grupo. Este achado
leva a concluir que existe responsabilidade da própria infecção no processo
aterosclerótico (22). Já antes foi demonstrado que doentes não tratados
apresentam aumento dos marcadores de activação endotelial, como moléculas de
adesão intercelular (ICAM-1) ou vascular (VCAM-1) e o factor de Von Willebrand,
e que os níveis destes marcadores diminuem com a instituição da terapêutica
anti-retrovírica (23). Por outro lado, existe evidência de que a proteína Tatdo
VIH pode promover a secreção pelos monócitos de uma proteína quimioatractiva
(MCP-1), que desempenha um papel importante no desenvolvimento da aterosclerose
(24,25).
Para lá destes aspectos específicos, tal como na população em geral, também nos
pacientes infectados pelo VIH a prevalência de DAP, evidenciada através da
medição da espessura das camadas íntima e média da carótida, é maior em
presença dos factores de risco tradicionais, como a idade, a relação aumentada
do perímetro cintura-anca, o tabagismo, a hipertensão, a hipercolesterolemia e
o consumo do álcool (21).
CONCLUSÃO
Casos de Síndrome de Leriche têm sido descritos em doentes infectados pelo VIH,
em geral já em tratamento anti-retrovírico (5,26). O nosso caso constitui um
exemplo de doença arterial grave e prematura num doente jovem com infecção pelo
VIH e sem experiência prévia quanto a terapêutica anti-retrovírica. Poderão ter
contribuído para a sua ateromatose oclusiva, a elevada carga tabágica e a
dislipidemia, além da própria infecção pelo VIH.
A Síndroma de Leriche, devida à oclusão arterial aortoilíaca, caracteriza-se
por claudicação dos glúteos, coxas e região gemelar, estando frequentemente
associada a impotência sexual masculina (5).
O caso que descrevemos ilustra a importância de uma história clínica detalhada
e de um exame físico adequado (no qual se destaca a avaliação dos pulsos
periféricos) para o reconhecimento pronto de uma grave doença arterial.
Enfatizamos ainda a utilidade de métodos complementares não invasivos, como o
ecodoppler, para o diagnóstico precoce de doença aterosclerótica, nomeadamente
em indivíduos com infecção pelo VIH.