Caso electroencefalográfico
Apresenta-se o caso de lactente do sexo feminino, primeira filha de pais
saudáveis não consanguíneos, parto eutócico às 36 semanas, Índice de Apgar 8/9/
10, sem necessidade de manobras de reanimação e somatometria adequada. Sem
história familiar de doença neurológica.
No segundo dia de vida apresentava hipotonia e letargia e iniciou convulsões
associadas a episódios de apneia. No quinto dia de vida, por agravamento
progressivo, necessitou de suporte ventilatório, com transferência para uma
Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos. À entrada apresentava crises
mioclónicas e clónicas multifocais, hipotonia com flutuações do tónus,
letargia, face inexpressiva e ausência de contacto visual. Realizou vídeo-EEG,
que mostrava actividade epileptiforme multifocal com padrão de surto-supressão
(Figuras 1 e 2). Os períodos de supressão eram assíncronos e com duração até 10
segundos ou mais. Registaram-se crises clínicas, clónicas, e crises eléctricas
focais com localização variável. Este padrão persistiu para além do período
neonatal (Figuras 3 e 4).
Figura 1' Actividade paroxística multifocal (idade corrigida: 38 semanas 4
dias).
Figura 2' Padrão de surto-supressão (idade corrigida: 38 semanas 4 dias).
Figura 3 ' Actividade epileptiforme multifocal e registo de crises clónicas
focais (idade: 4 meses).
Figura 4 ' Persistência de actividade paroxística multifocal com trechos de
supressão (4 meses de idade).
Fez ressonância magnética cerebral com um mês de vida, normal; repetiu aos
cinco meses (atrofia difusa). Não foi realizada espectroscopia.
Manteve crises epilépticas refractárias à múltipla terapêutica: fenobarbital,
fenitoína, valproato de sódio, topiramato e pirodixina. Necessitou de indução
de coma com tiopental, mantendo ventilação mecânica com traqueostomia ao mês e
meio de vida. Faleceu aos cinco meses de vida.
Qual o diagnóstico clínico-electroencefalográfico?
Qual a investigação complementar?
DIAGNÓSTICO
Epilepsia neonatal grave com padrão de surto-supressão (epilepsia mioclónica
precoce)
Perante este diagnóstico é essencial excluir erros inatos do metabolismo, sendo
uma das causas metabólicas mais frequentes a hiperglicinemia não cetótica
(HGNC) ou encefalopatia glicínica.
Nesta doente a relação glicina no líquido cefalorraquidiano (LCR) / plasma com
um mês de vida foi normal (0,03), assim como o estudo dos restantes aminoácidos
no plasma e LCR. A segunda amostra, colhida aos três meses de idade, mostrou
uma relação aumentada (0,11, com valor de referência <0,02).
No tecido hepático post-morten foi detectado défice no sistema de clivagem da
glicina (6,6 μkat/ kg - normal 45,0 -195,0) e o estudo molecular com presença
de uma mutação no gene GLDC, o que confirmou o diagnóstico de hiperglicinemia
não cetótica (HGNC) de apresentação neonatal.
DISCUSSÃO
O padrão electroencefalográfico de surto-supressão, caracterizado por uma
sucessão de surtos de actividade paroxística intercalados por episódios de
traçado de muito baixa amplitude ou plano é relativamente comum no período
neonatal e frequentemente associado a convulsões. Ocorre em casos de lesões
anoxico-isquémicas, mas nestas é geralmente transitório, ao contrário do que
acontece quando associado a malformações cerebrais ou doenças metabólicas.(1)
O síndrome de Ohtahara, também conhecido por encefalopatia epiléptica infantil
precoce, é uma entidade rara, quase sempre associada a lesões estruturais
graves. As crises mioclónicas são raras, sendo frequentes os espasmos tónicos
e crises focais. Na maioria dos casos o prognóstico é mau, com epilepsia
refractária.(1)
A epilepsia mioclónica precoce, como no caso apresentado, manifesta-se com
mioclonias erráticas e crises focais motoras. Há casos criptogénicos e até
familiares, mas importa reter que se associa muitas vezes a doenças
neurometabólicas ' mais frequentemente HGNC, mas também a acidúrias orgânicas
(D-glicérica, metilmalónica, isovalérica e propiónica). (1,4)
Na forma neonatal de HGNC, além do padrão de crises epilépticas, são
característicos a hipotonia, letargia e apneia de causa central. (2-4)
A hiperglicinemia não cetótica é uma doença de transmissão autossómica
recessiva em que ocorre um defeito no sistema de clivagem da glicina (SCG) que
leva à sua acumulação nos tecidos corporais, nomeadamente no cérebro, sendo
responsável pela maioria dos sintomas, principalmente no período neonatal. (2-
4) O SCG é um complexo de quatro proteínas (P,H,T,L), localizado no interior
da membrana mitocondrial do fígado, rim, cérebro e placenta. A maioria das
mutações ocorrem no gene da descarboxilase da glicina GLDC (locus 9p22,
codifica a P-proteína, 70-75% dos casos). Estão descritas também mutações no
gene AMT (locus 3p21.2-p21.1, codifica a T-proteína, cerca de 20%) e GCSH
(locus 16q23.2, codifica a H-proteína, em menos de 1%).(2)
O diagnóstico faz-se pelo aumento de glicina na urina, plasma e líquor, na
ausência de uma acidúria orgânica, com aumento da relação glicina líquor/
plasma (3,4) (diagnóstico se >0,08; se >0,04 requer pesquisa do défice
enzimático do SCG (biópsia de fígado ou em linfoblastos) ou estudo molecular.
Este, se bem que muitas vezes não necessário para o diagnóstico, interessa
sobretudo para aconselhamento genético. (4)
Existem outras duas formas desta doença; uma rara, transitória, com o mesmo
fenótipo inicial da neonatal e uma forma tardia.(4)
As alternativas terapêuticas disponíveis são de eficácia limitada: a dieta
hipoproteica; o benzoato de sódio, que promove a diminuição da glicina através
da eliminação renal, principalmente a nível plasmático; antagonistas do
receptor do NMDA, como o dextrometorfano (actualmente não comercializado), que
inibe o efeito excitotóxico da glicina no cérebro, sendo um potente
antiepiléptico em alguns casos, e a quetamina que parece melhorar de forma
parcial os sintomas neurológicos e a necessidade de suporte ventilatório. As
benzodiazepinas (diazepam) são consideradas mais eficazes que outros
antiepilépticos, devido ao efeito competidor dos receptores de glicina. (3,4)Os
outros antiepilépticos são ineficazes; em particular, o valproato está contra-
indicado na HGNC, por aumentar a concentração de glicina no líquor e, assim, as
complicações neurológicas. (2)
O prognóstico destes doentes é, excepto nas formas transitórias, muito
reservado, com mortalidade significativa no primeiro ano de vida e sequelas
neurológicas importantes nos sobreviventes.(4)
CONCLUSÃO
O padrão electroclínico da epilepsia mioclónica precoce leva a suspeitar de
doença metabólica, sendo a hiperglicinemia não cetótica uma das mais comuns. A
investigação deve ser exaustiva nestes casos, de forma permitir o tratamento
adequado precoce e o aconselhamento genético.