Divertículo de Meckel: diagnóstico por enteroscopia de duplo balão
INTRODUÇÃO
O divertículo de Meckel (DM) é uma entidade descrita pela primeira vez em
18061. É a malformação mais frequente do tubo digestivo e está presente em 2 a
3% da população.
O DM resulta do encerramento e obliteração incompletos do canal
onfalomesentérico. É, tipicamente, um divertículo pequeno, de boca larga, que
se localiza no bordo anti-mesentérico dos 100 cm distais do íleon. Existe
mucosa ectópica (geralmente gástrica ou pancreática) em cerca de 55% dos casos.
O DM é, geralmente, assintomático, sendo um achado incidental durante cirurgias
abdominais ou em autópsias. Contudo, em 15 a 20% dos casos, poderá associar-se
a dor abdominal ou a complicações, nomeadamente hemorragia e oclusão
intestinal2.
Embora as características clínicas, histopatológicas e as complicações do DM
sejam bem conhecidas, o seu diagnóstico é muitas vezes problemático.
A cintigrafia com 99mTc-pertecnetato, que se baseia na captação do pertecnetato
pela mucosa gástrica ectópica, é o método clássico de diagnóstico. Esta técnica
tem uma sensibilidade de 85% e uma acuidade de 90% para o diagnóstico do DM em
crianças
3
. Contudo as suas sensibilidades e acuidades na população adulta são de apenas
63% e 43%
4
.
A enteroscopia de duplo balão (EDB) é um procedimento endoscópico de
desenvolvimento recente que permite, potencialmente, a observação de todo o
intestino delgado5. O sistema de duplo balão inclui um enteroscópio e um
overtube flexíveis, ambos com um balão na sua extremidade distal, os quais,
ao serem insuflados de forma alternada, permitem fixar o aparelho à parede
intestinal e a progressão do enteroscópio no intestino delgado. A insuflação de
ambos os balões possibilita a rectificação do aparelho de forma a evitar a
formação de ansas redundantes. Esta técnica tem-se mostrado útil no diagnóstico
e tratamento da patologia do intestino delgado, evitando a realização e
repetição de múltiplos exames complementares de diagnóstico bem como a
realização de enteroscopias intra-operatórias.
A EDB pode ser efectuada por via anterógrada (introdução do aparelho pela boca)
ou por via retrógrada (introdução pelo ânus). Estima-se que por cada via de
introdução seja possível a observação de metade a dois terços da extensão do
intestino delgado ou, em casos excepcionais, a observação da totalidade do
intestino delgado
6
. A enteroscopia total é geralmente conseguida utilizando uma das abordagens,
tatuando o limite de progressão com tinta-da-china e completando posteriormente
a avaliação utilizando a outra via de introdução. A escolha da via de inserção
inicial é dependente do local provável de lesão identificado por outras
técnicas. Nos casos em que não existe uma localização provável da lesão optamos
por iniciar a nossa exploração por via oral já que a abordagem por via
retrógrada é mais complexa e associada a uma taxa de insucesso por falência na
intubação do íleon terminal de 20 a 30%
7
.
CASO CLÍNICO
Apresentamos o caso clínico de um indivíduo do sexo masculino, actualmente com
18 anos de idade, com uma história de anemia ferropénica e hemorragia digestiva
de repetição com 5 anos de evolução.
O doente tinha historial médico irrelevante até aos 13 anos de idade, altura em
que desenvolveu hematoquezias/melenas com repercussão hemodinâmica e analítica
(hemoglobina de 8,5 g/dl). Para investigação etiológica da hemorragia digestiva
efectuou endoscopia digestiva alta (EDA) e colonoscopia com ileoscopia terminal
que não revelaram alterações.
Três anos mais tarde observou-se novo episódio de hemorragia digestiva com
hematoquesias. Efectuou novamente EDA onde não foram observadas lesões e
colonoscopia com ileoscopia terminal, tendo-se detectado sangue em todo o cólon
e íleon terminal, sem se identificar a origem da hemorragia. Efectuou, em
seguida, estudo radiológico do intestino delgado por enteroclise que não
mostrou lesões, enteroscopia por cápsula que apenas revelou hiperplasia
linfóide do íleon terminal e TAC abdominal que foi normal. A cintigrafia com
99mTc-pertecnetato também não mostrou alterações, nomeadamente fixações
anómalas do isótopo. A EDB por via oral, com progressão até ao jejuno distal,
não detectou qualquer lesão potencialmente sangante.
Um ano depois, aos 17 anos de idade, observou-se novo episódio de hemorragia
digestiva baixa com hematoquezias abundantes. Foram repetidas a EDA e
colonoscopia que não revelaram lesões, tendo-se observado novamente abundante
sangue no cólon. Foi efectuada nova enteroscopia por cápsula, que não detectou
lesões mas que apresentou um atraso na progressão da cápsula no íleon médio que
não permitiu a visualização completa do intestino delgado.
O doente foi submetido a EDB por via retrógrada, tendo-se observado, no íleon
médio, formação diverticular, com cerca de 5 cm, com mucosa de aspecto
atrófico. No fundo do divertículo observou-se anel que se ultrapassou para zona
em fundo de saco (Fig. 1 a,b,c). Os achados foram considerados sugestivos de
DM.
Fig. 1. No íleon médio identifica-se formação diverticular com cerca de 6 cm
com mucosa de aspecto atrófico (a e B). No fundo do divertículo observa-se anel
(C) que se ultrapassa para zona que termina em fundo de saco.
O doente foi submetido a excisão do divertículo por via laparoscópica (Fig. 2).
A avaliação histológica confirmou o diagnóstico de DM e a presença de mucosa
gástrica ectópica ulcerada (Fig. 3).
Fig. 2. Cirurgia com identificação de Divertículo de Meckel
Fig. 3. Avaliação histológica de divertículo de Meckel A- Mucosa Gástrica (1) e
mucosa intestinal (2) com intensa actividade inflamatória; B- Mucosa Gãstrica
com inflamação ligeira; C- Fundo de úlcera.
O pós-operatório decorreu sem intercorrências e o doente encontra-se
assintomático e sem qualquer alteração analítica.
DISCUSSÃO
O desenvolvimento da EDB melhorou de forma significativa a avaliação do
intestino delgado5, permitindo a observação endoscópica completa deste segmento
do tubo digestivo, a colheita de material para histologia e a realização de
vários procedimentos terapêuticos, nomeadamente hemostase, polipectomia e
dilatação com balão.
No presente caso, e apesar da extensa avaliação efectuada ao longo dos anos com
a realização e repetição de inúmeros exames complementares de diagnóstico, a
EDB foi o único exame que permitiu estabelecer o diagnóstico de DM, evitando a
realização de enteroscopia intra-operatória.
Estão descritos na literatura vários casos de diagnóstico de DM por EDB8-13. Na
maioria dos doentes este diagnóstico foi estabelecido após terem sido
efectuados inúmeros exames complementares de diagnóstico, incluindo, tal como
no caso agora descrito, a realização de exames endoscópicos (endoscopia
digestiva alta, colonoscopia com ileoscopia, e cápsula endoscópica) e
imagiológicos (tomografia computorizada abdominal, cintigrafia com 99mTc-
pertecnetato e, em alguns casos, angiografia), com referência à sua repetição
após os vários episódios de hemorragia.
Assim, tendo em conta a baixa sensibilidade da cintigrafia com 99 Tm-
pertecnetato na população adulta, a EDB deve ser equacionada em todos os
indivíduos com suspeita clínica de DM, nomeadamente em adultos jovens com
episódios de hemorragia digestiva recidivante.