Nocardiose torácica
Introdução
A infecção por Nocardiaera até há pouco tempo considerada uma raridade e
curiosidade laboratorial. Actualmente, apresenta-se como um patogenio
oportunista, com importância crescente, sobretudo em indivíduos
imunocomprometidos.
A apresentação pulmonar e a mais frequente, no entanto pode atingir pele,
tecidos moles e disseminar-se para outros locais do organismo, em particular
pelo sistema nervoso central.
A propósito do tema, os autores apresentam um caso clínico e elaboram algumas
considerações teóricas acerca da infecção por Nocardia.
Caso clínico
Doente de 60 anos, sexo masculino, raça caucasiana, residente em Leiria e
comerciante. Internado em Janeiro de 2007 através da consulta de Pneumologia
para estudo e controlo de toracalgia associada a alterações radiológicas.
Referia toracalgia anterolateral direita, com cerca de um mês de evolução. A
dor era intensa, de carácter intermitente, aliviava em decubito dorsal e na
posição de sentado e inclinado para a frente. Negava febre, dispneia, tosse ou
expectoração, bem como queixas de outros aparelhos e sistemas. Antecedentes
pessoais de artrite psoriatica, gastrite, diabetes mellitustipo 2 insulino
tratada, hipertensao arterial e fistula perianal.
Ex-fumador de 20 UMA e sem hábitos alcoolicos. Polimedicado, a fazer
antidiabeticos orais, insulina, anti-hipertensores, protector gástrico e
terapêutica imunossupressora (ciclosporina 100 mg 2id e dexametasona 16mg 2id)
desde há alguns anos.
Os antecedentes familiares eram irrelevantes. Ao exame objectivo apresentava-se
consciente, orientado e colaborante. Obeso, com fácies cuxingoide, eupneico com
saturação O2 de 91% em ar ambiente, tensão arterial de 130/70 mmHg e
temperatura axilar de 37,6oC. Sem adenopatias periféricas palpáveis.
No exame do tórax observava-se uma tumefacção da região peitoral direita, sem
rubor, mas com dor a palpação. Havia submacicez simétrica a percussão de ambos
os hemitoraces.
A auscultação pulmonar revelava diminuição generalizada do murmúrio vesicular,
de predomínio basal direito. Auscultação cardíaca rítmica, sem sopros. Abdómen
globoso, depressivel, indolor, sem organomegalias. Em relação aos membros
superiores e inferiores, apenas se salientava dor e tumefacção da raiz do braço
direito. Já tinha realizado radiografia e TAC torácicas. Na radiografia
torácica observavam-se: uma opacidade não sistematizada, em faixa, que se
estendia desde a hemicupula até à região axilar, de limite interno bem definido
mas irregular, com aspecto bosselado; opacidades vagamente arredondadas com
cerca de 25 e 36 mm que se localizam respectivamente a nível da projecção
posterior do 6.o e 7.o arcos costais, na linha medioclavicular (Fig. 1).
Fig.1 – Radiografia torácica – opacidade em faixa que se estende desde a
hemicúpula até à região axilar de limite interno bem definido mas irregular,
com aspecto bosselado; opacidades vagamente arredondadas com cerca de 25 e 36
mm que se localizam respectivamente a nível da projecção posterior do 6.º e 7.º
arcos costais, na linha medioclavicular
A TAC torácica (29/12/2006) confirmava o espessamento pleural irregular,
adquirindo em algumas áreas aspecto nodular heterogéneo e com perda de
interface com a parede torácica; no recesso costofrenico posterior tinha
extensão para o mediastino (Fig. 2). Sem outras alterações a nível do
mediastino ou parenquima pulmonar.
Fig. 2 – TAC torácica – Espessamento pleural irregular, adquirindo em algumas
áreas aspecto nodular heterogéneo e com perda de interface com a parede
torácica; no recesso costofrénico posterior com extensão para o mediastino
Foram colocadas as seguintes hipóteses de diagnostico: a) infecção tuberculosa,
b) infecção não tuberculosa, c) neoplasia pleural secundaria, e d) neoplasia
pleural primaria.
Foi medicado empiricamente com amoxicilina + acido clavulanico e, do estudo
analítico realizado, de salientar o aumento dos marcadores inflamatórios com
PCR 24,9 mg/dl, VS 109 mm/1.oh e 9870 leucócitos com 82,7% de neutrófilos. Os
restantes estudos analíticos, nomeadamente função hepática e renal, ionograma,
sumaria de urina, marcadores tumorais (AFP, CEA, Ca 125, Ca 15.3, Ca 19.9 e
NSE), proteinograma electroforetico, doseamento de Igs (Ig G, A, M), marcadores
VIH 1 e 2, hepatite B e C, estudo do complemento e doseamento de ANA, ANCA e
ENA, não apresentaram alterações.
O estudo microbiológico da expectoração (aeróbios e micobacterias) foi
negativo. A broncofibroscopia mostrou uma árvore brônquica de morfologia normal
e os exames microbiológico e citologico do aspirado brônquico foram negativos.
Perante o agravamento dos sintomas e da tumefacção descrita, repetiu-se TAC
torácica (31/01/2007), que mostrou um aumento significativo do envolvimento dos
tecidos moles da parede torácica e extensão ao membro superior (Fig. 3).
Fig. 3 – TAC Torácica – agravamento radiológico e progressão do envolvimento
dos tecidos moles
Foram feitas biopsias da lesão da parede torácica (guiadas por ecografia), cujo
exame anatomopatologico mostrou alterações sugestivas de lesão abcedada. A
citologia confirmou um processo inflamatório agudo exuberante. No estudo
microbiologico, ao exame directo observaram-se muitos bacilos gram positivos e
em cultura foi isolada Nocardia asteroides(Fig. 4). A pesquisa de fungos
(metodo de PAS e Grocott) e de micobacterias foi negativa.
Fig. 4 – Nocardia asteroides (exame directo e cultura em gelose de sangue)
Perante o diagnostico de nocardiose toracica, institui-se terapêutica segundo
teste de sensibilidade antibiótica (TSA) com cotrimoxazol (1600 mg
sulfametoxazol + 320 mg trimeptropim) em três tomas diárias, com regressão da
tumefacção torácica e melhoria das queixas algicas em oito dias.
Por iniciativa própria suspendeu precocemente a terapêutica, tendo completado
apenas 1,5 meses de antibioterapia.
Dois meses depois do internamento, estava assintomático e com melhoria
radiológica (Fig. 5).
Fig. 5 – TAC torácica – controlo radiológico dois meses após o internamento,
com melhoria das alterações
Reavaliado quatro meses após suspensão do tratamento, o doente mantinha-se bem
clínica e radiologicamente, tendo tido alta da consulta.
Considerações teóricas
A nocardiose é uma doença infecciosa localizada ou disseminada causada por
bactérias do género Nocardia, das quais a mais frequente é a Nocardia
asteroides;no entanto, outras espécies, como a Nocardia brasiliensise
caviaepodem estar associadas a doença humana. São bacilos filamentosos gram
positivos, aeróbios, não capsulados e fracamente acido álcool resistentes,
presentes no solo.
Apesar de poder ocorrer em indivíduos saudáveis, atinge sobretudo
imunocomprometidos, como os doentes que recebem terapêutica imunossupressora
prolongada, transplantados, infectados pelo VIH ou com patologia pulmonar
crónica.
A maioria das infecções é adquirida por via inalatória, sendo o pulmão o local
mais frequente de infecção primária.
Outros locais, como pele, tecido subcutâneo, sistema nervosos central (SNC),
rim, osso e musculo também podem estar atingidos, sobretudo pela disseminação
da infecção.
O quadro clínico é inespecífico, com queixas de tosse, mal-estar, febre e
anorexia, podendo ter uma evolução variável, de subaguda a crónica.
O envolvimento cutâneo pode ocorrer na forma primária ou disseminada, como
ulceração, celulite e/ou abcesso subcutâneo. Em relação ao envolvimento do SNC,
o mais frequente é o abcesso cerebral1
.
Os achados radiológicos são variáveis, podendo haver nódulos ou massas
(isolados ou múltiplos), com ou sem cavitação, infiltrados reticulares,
consolidação alveolar, derrame pleural e empiema1.
Para o diagnostico definitivo é necessário o isolamento e a identificação da
bactéria do género Nocardiaa partir da colheita de material do local atingido.
Ao exame directo observam-se bacilos gram positivos e com positividade na
coloração de Ziehl-Neelson (bacilos acido alcool-resistentes fracamente
positivos). Em cultura tem um crescimento lento, entre 2 dias a 4 semanas,
razão pela qual na suspeita de nocardiose se devem manter as culturas cerca de
20 a 30 dias, antes de excluir o diagnostico. A hemocultura raramente é
positiva
Na avaliação histopatologica, evidenciam-se necrose e abcesso, com infiltrado
de neutrófilos, linfocitos e macrofagos, sem formação de granuloma1. Não
existem testes serológicos para diagnostico de infecção por nocardia.
O tratamento antibiótico preferencial recomendado são as sulfamidas, mas nos
últimos anos muitos doentes tem sido tratados com a associação de
sulfametoxazol (SMZ) e trimeptoprin (TMP) (cotrimoxazol), no entanto sem
evidência de que a associação seja superior ao uso das sulfamidas isolado
4
.
Optando pela associação, a dose recomendada para iniciar tratamento é de 10 a
20 mg/kg de TMP e 50 a 100 mg/kg SMZ, dividido em duas tomas diarias
3
.
Após controlo da doença, as doses devem ser reduzidas para 5 mg/kg e 25 mg/kg,
respectivamente3.
Em caso de efeitos secundários ou resistência a associação SMZ-TMP, as
alternativas são associação de imipenem e amicacina, amoxicilina e acido
clavulanico ou monoterapia com ceftriaxone, minociclina e linezulida 1. No
entanto, sugere-se que seja realizado o TSA, pelo facto de existirem diferentes
susceptibilidades aos antibióticos entre as diferentes espécies de
Nocardia.Para além do tratamento médico, pode haver necessidade de drenagem
cirúrgica nos casos refractarios a antibioterapia, quando o envolvimento
cutâneo é extenso é para a maioria das lesões do SNC.
A duração do tratamento depende da localização das lesões e do estado
imunitário do doente, mas habitualmente dura entre 6 a 12 meses, de forma a
evitar recidivas4.