Pneumonia adquirida na comunidade numa unidade de cuidados intensivos
Introdução
A pneumonia adquirida na comunidade (PAC) é a principal causa de sépsis em
cuidados intensivos de adultos, com uma mortalidade e morbilidade
significativas. Corresponde a 35,6 a 51,9 % dos doentes com sépsis grave
1,2
a 49,2% dos doentes com choque séptico. No entanto, os estudos sobre PAC em
UCI são escassos em Portugal.
Objectivos
Caracterizar as PAC que motivaram internamento em unidade de cuidados
intensivos, com ênfase nos resultados, clínica, laboratório, microbiologia,
antibioterapia e sua repercussão na morbilidade e mortalidade.
Material e métodos
Estudo retrospectivo dos doentes admitidos numa UCI polivalente com PAC, de 1
de Junho de 2004 a 31 de Dezembro de 2006. Foram seleccionados doentes com
pneumonia na admissão hospitalar ou nas primeiras 48 horas, tendo -se excluído
aqueles com internamento hospitalar recente (< 10 dias) e os doentes residentes
em lar/casa de repouso
3, 4,5
.
Analisaram-se dados demográficos, índices de gravidade, dados laboratoriais
relevantes, antibioterapia e sua adequação, necessidade de ventilação mecânica
e sua duração, mortalidade e duração da estadia na UCI. Os dados foram tratados
em EXCEL e SPSS.
A etiologia foi classificada como provável se o exame cultural de expectoração
ou de secreções brônquicas (colhidas por aspirado traqueal) revelasse um
determinado agente bacteriológico.
A etiologia foi considerada definitiva se se verificasse um dos seguintes
critérios: por hemocultura sem foco extrapulmonar aparente; por aspirado
transtorácico e fluido pleural; seroconversão ' um aumento de 4 vezes no título
de IgG para Chlamydia pneumoniae(IgG>1:512), Chlamydia psittaci(IgG>64),
Legionella pneumophila>1:128, Coxiella burnetii>1:80 e vírus respiratórios
(i.e. vírus influenzaA e B, vírus parainfluenza1 a 3, VSR, adenovírus; um
título de IgM único aumentado para C. pneumoniae>1:32, C. burnetii>1:80 e
Mycoplasma pneumoniae(qualquer título); um único título >1:128 ou antigénio
urinário positivo L. pneumophila
6
.
A antibioterapia foi considerada adequada se o agente isolado era susceptível à
antibioterapia em curso.
Resultados
Os internamentos por pneumonias adquiridas na comunidade corresponderam a 11,8%
do total de internamentos (644). Analisaram-se 76 doentes com uma idade média
de 62,88 (18,75) anos, 26,3 % do sexo feminino e 73,7% do sexo masculino.
As síndromas de admissão mais frequentes foram: insuficiência respiratória
aguda (41), insuficiência respiratória crónica agudizada (20), choque séptico
(9), edema pulmonar cardiogénico (5).
A gravidade de doença era grande, com APACHE II médio de 24,88 (9,75), SAPS 2
médio de 51,18 (18,05), a que correspondia mortalidade prevista de 47,27%.
Todos os doentes apresentavam comorbilidades, com número médio de 4 e máximo de
6. As comorbilidades mais frequentes foram: cardiopatia isquémica (15), DPOC
(13), infecção VIH (11), diabetes mellitus(11), doença oncológica (11),
tabagismo (9), alcoolismo (6) e insuficiência cardíaca (5).
Dos 76 doentes com PAC, isolou-se microrganismo responsável em 42,1% (32/76)
(Quadro I). Em 57,9% (44/76) não foi possível isolar microrganismo.
Quadro I - Positividade dos exames culturais, serologias e antigenúrias
efectuadas
O agente etiológico mais identificado foi o Streptococcus pneumoniae, mas o
grupo de agentes etiológicos mais frequentemente identificados foi o dos
bacilos entéricos gram negativos (Quadro II).
Quadro II - Agentes etiológicos
Houve 20 agentes prováveis e 12 etiologias definitivas que corresponderam aos
seguintes microrganismos ' Streptococcus pneumoniae, Salmonella enteritidis,
Stenotrophomonas maltophilia, Burkholderia cepacia, Pseudomonas aeruginosa,
Escherichia coli, Pneumocystis jirovecii, Legionella e Mycoplasma pneumoniae.
Os 4 doentes em que se isolou Pneumocystis jiroveciitinham infecção VIH/SIDA.
A maioria dos doentes, 52 (68,4%) vinha sob antibioterapia prévia à admissão na
UCI. Em 67,3% (35) destes a antibioterapia foi alterada na admissão. A
antibioterapia prévia mais usada foi a levofloxacina. O esquema de
antibioterapia mais usado na admissão foi a associação ceftriaxone com
azitromicina (Quadro III). Nos 32 doentes em que foi possível avaliar a
adequação terapêutica, 27 (6 da antibioterapia prévia) tinham esquemas de
antibioterapia adequados, e em 4 destes (14,8%) houve descalação (2 da
antibioterapia prévia), 5 não eram adequados. Em 44 doentes não foi possível
isolar agente.
Quadro III - Principais esquemas de antibioterapia prévia e na admissão
A grande maioria dos doentes, 66 (86,8%), foi ventilada, com uma duração
mediana de 4 [1-10] dias.
As principais complicações foram: pneumonia nosocomial (10), reentubação (9),
ARDS (7), insuficiência renal aguda (5) e pneumotórax (2) (Quadro IV).
Quadro IV - Principais complicações
A demora mediana foi de 5,3 [2,6 ' 11,7] dias. A mortalidade na unidade foi de
36,8% (28 doentes). A mortalidade hospitalar foi de 55,26% (42 doentes).
Para avaliar o impacto de algumas variáveis descritas na literatura como
associadas ao prognóstico dos doentes com PAC na nossa população, efectuou-se
análise univariada, cujo resultado consta do Quadro V. Na análise univariada, o
índice SAPS 2 relacionou-se com uma maior mortalidade, de forma muito mais
significativa do que o APACHE II.Também o valor de PCR e o de potássio se
relacionaram, com significado estatístico, com maior mortalidade. A
antibioterapia inicial não adequada relacionou-se com maior mortalidade, com
odds ratiode 11,43 IC 95% (1,085-120,42). Não havia diferença estatisticamente
significativa nas médias de idade, APACHE II, valores de admissão de
hemoglobina, leucócitos, plaquetas, creatinina, ureia, bilirrubina. A
positividade de hemoculturas não se relacionou com maior mortalidade.
Quadro V - Análise univariada de variáveis prognósticas
As variáveis com significado estatístico na análise univariada foram incluídas
na análise logística multivariada (Quadro VI). Nesta análise, apenas o SAPS II
manteve significado estatístico ' p= 0,021, com OR= 2,8 (2,73-2.91),
verificando-se uma forte tendência para o aumento da mortalidade com a não
adequação da antibioterapia.
Quadro VI - Análise multivariada de variáveis com significado estatístico na
análise univariada
O tempo de internamento dos sobreviventes na UCI está relacionado com a
gravidade de doença ' SAPS II (p=0,000), da resposta inflamatória ' n.º de
leucócitos (p=0,036), PCR (p=0,022) e com o INR (p=0,004) (Quadro VII).
Quadro VII - Regressão dependente da demora média (variáveis com significado
estatístico)
A insuficiência respiratória com necessidade de ventilação mecânica foi a
principal razão de admissão dos doentes. A análise do tempo de ventilação (sem
dados de oximetria) mostrou que este dependeu de número de leucócitos
(p=0,021), o INR (p=0,014) e o SAPS II (p=0,000) (Quadro VIII).
Quadro VIII - Regressão dependente do tempo médio de ventilação mecânica
(variáveis com significado estatístico)
Discussão
A prevalência das PAC na nossa unidade de cuidados intensivos correspondeu a
cerca do dobro de outras séries
6,7
.
Alguns pontos merecem discussão: a gravidade e carga de trabalho destes
doentes, a elevada percentagem de bacilos gram negativos, a importância da
antibioterapia inicial no resultado final.
A mortalidade hospitalar foi mais elevada do que anteriormente descrito num
estudo de 6 UCI portuguesas (38%)
8
, mas a gravidade de doença é francamente elevada. Os doentes admitidos tinham
índices de gravidade superiores aos das séries analisadas
7
, com maior presença de comorbilidades do que outras séries
7
.
Infelizmente, os dados na admissão hospitalar não eram completos, não
permitindo o cálculo de scoresespecíficos, como CURB65
9
e/ou scorede Fine
10
. Este facto não permite a comparação com outras séries e poderá indicar uma
ausência de estratificação formal da gravidade destes doentes, ao contrário do
recomendado por diversas sociedades.
Sabe-se que a comorbilidade pulmonar predispõe para pneumonia devido a bacilos
entéricos gram negativos e Pseudomonas aeruginosa, provavelmente devido a
colonização prévia na DPOC (e/ou bronquiectasias)
11
.
O Streptococcus pneumoniaefoi o microrganismo mais frequentemente isolado; no
entanto, ao contrário do que é classicamente descrito na literatura, houve uma
preponderância do grupo dos bacilos entéricos gram negativos. Este predomínio é
provavelmente explicado pelo número significativo de comorbilidades, uma vez
que excluímos à partida doentes com contacto recente com instituições de saúde,
incluindo lares e casas de repouso. Não dispomos de dados para determinar se
alguns destes doentes correspondem a casos de pneumonia associada a cuidados de
saúde, como definido por Niederman e outros
5
. No entanto, esta diferença de prevalência dos microrganismos entre as
populações de cuidados intensivos e enfermaria está de acordo com outras séries
que analisaram a PAC grave
6, 12,13, 14
.
De salientar também que o segundo agente etiológico mais identificado '
Klebsiella pneumoniae' também é muito frequentemente causador de PAC grave
noutras séries
15
. Em estudos de prevalência europeus
12
, S. aureus, Legionellae bacilos entéricos gram-negativos são raros na doença
abordada fora do hospital, mas mostram um padrão de aumento progressivo na sua
frequência com a crescente gravidade da doença.
Os exames culturais apresentaram rentabilidade moderada provavelmente pelo
facto de a maioria dos doentes estar sob antibioterapia prévia. Provavelmente
também o facto de o microrganismo causador ser eventualmente difícil de
identificar pelos métodos convencionais, tal como as bactérias anaeróbias ou
outros ainda não identificados podem contribuir para essa falência. No entanto
a maioria desses casos parecem ser pneumonias a Streptococcus pneumoniaenão
isolados
12
. Os doentes falecidos apresentavam na admissão maior gravidade de doença. Na
análise univariada e multivariada, o índice SAPS 2 relacionou-se com uma maior
mortalidade, tal como esperado
15
, de forma mais significativa do que o APACHE II.A não adequação de
antibioterapia apresentou também significado estatístico na análise univariada.
A intensidade da resposta inflamatória (avaliada pela PCR) e o potássio
relacionaram-se com significado estatístico com maior mortalidade, mas apenas
na análise univariada, não mantendo valor prognóstico na análise multivariada,
o que está de acordo com outros autores
16
. As pneumonias bacteriémicas são apontadas como de maior gravidade
15
; no entanto, a positividade de hemoculturas não se relacionou com maior
mortalidade nesta série, ao contrário do que tem sido observado.
A descalação terapêutica, muito em voga, foi praticada apenas em quatro casos
de antibioterapia adequada. O tempo até obtenção de resultados e a boa resposta
clínica dos doentes foram a principal causa de não aplicação deste princípio,
no entanto não dispomos de dados concretos que nos permitam esclarecer este
ponto.
Conclusões
A PAC é uma patologia relativamente frequente em cuidados intensivos, com uma
mortalidade elevada e importante consumo de recursos.
O uso da antibioterapia deve ser criterioso, tendo em conta os principais
agentes e a sua susceptibilidade, o que nos deve fazer reflectir acerca da
adaptação das opções de antibioterapia empírica ao contexto epidemiológico em
que estamos inseridos.