Pertussis em Portugal - A importância de uma nova estratégia vacinal
A tosse convulsa é uma toxi-infecção respiratória causada pela bactéria
Bordetella pertussis(ou em alguns casos também pela Bordetella parapertussis),
que atinge o homem desde a idade de recém-nascido à idade adulta. Com uma
incidência global estimada de 17 600 milhões de casos anuais e responsável por
279 000 mortes/ano, esta doença altamente infecciosa continua a afectar
gravemente crianças no primeiro ano de vida, onde a taxa de letalidade é
significativa e as taxas de internamento atingem os 75 a 90% 1-3. A vacinação
universal dos lactentes contra a tosse convulsa diminuiu drasticamente a
incidência da doença. No entanto, de todas as doenças incluídas no plano
nacional de vacinação, a tosse convulsa é aquela que actualmente se encontra
menos controlada, permanecendo endémica em Portugal e em todo o mundo.
A tosse convulsa não está erradicada, nem poderá ser erradicada por nenhuma das
estratégias vacinais até agora descritas. A imunidade após doença ou vacinação
não é duradoira e as infecções por Bordetella pertussisnos adolescentes e
adultos são comuns e endémicas4-8. Das estratégias estudadas, a vacinação de
adolescentes, a estratégia Cocoon (vacinação de contactos de recém-nascidos não
vacinados há menos de 5 anos) e a combinação adolescentes + Cocoon parecem ser
as politicas mais promissoras para reduzir ainda mais a morbilidade e a
mortalidade pela pertussis, tendo em conta outros factores, como o custo ligado
à idade dos casos de tosse convulsa e a acessibilidade ao público-alvo. A
vacinação de recém-nascidos também tem sido estudada, mas ainda é controversa,
com segurança não perfeitamente estabelecida e podendo interferir com a
resposta imunitária a outras vacinas9.
A substituição sistemática do reforço da vacina dupla bacteriana na
adolescência pela tríplice bacteriana acelular (dTpa) já foi efectuada em
alguns países, com bons resultados: esta parece ser uma medida prontamente
indicada em Portugal, mantendo-se a indicação da vacina dT para os reforços
subsequentes a cada 10 anos. Para além de uma provável relação custo-benefício
positiva para o nosso país, esta medida levará a uma maior protecção da
população em geral contra uma doença que pode ser fatal. Deve ser também
considerada a recomendação da vacina para todos aqueles que trabalham
diariamente com recém-nascidos ou lactentes que não receberam ainda o esquema
básico de vacinação contra tosse convulsa, nomeadamente profissionais de saúde
e educadores.
A tosse convulsa ao longo dos anos
Antes da implementação da vacina antipertussis, a tosse convulsa atingia
sobretudo as crianças em idade pré-escolar, sendo uma das principais causas de
morte no século xix. As infecções secundárias, frequentes, eram leves ou
assintomáticas, permitindo uma imunidade natural de grupo duradoira9.
Com a introdução e a generalização da vacina holocelular na década de 1970, a
incidência da tosse convulsa diminuiu drasticamente, em cerca de 50 vezes a da
era pré-vacinal (Fig. 1)10-11. Apesar de efeitos laterais locais e sistémicos
frequentes, a maioria ligeiros mas alguns graves, como convulsões febris e
episódios de hipotonia e hiporreactividade, conseguiu-se uma elevada cobertura
vacinal na maioria dos países desenvolvidos. O decréscimo de incidência, quer
nas infecções primárias quer nas secundárias, incluiu os recém-nascidos e
lactentes menores de 2 meses, não vacinados, com uma diminuição importante da
sua mortalidade e morbilidade. Nas duas últimas décadas, apesar desta elevada
cobertura vacinal, tem-se assistido a um aumento do número de casos de tosse
convulsa, um aumento que parece ser gradual mas significativo12.
Fig. 1 – Incidência anual de casos notificados de tosse convulsa e cobertura
vacinal de DTP3, 1980-2007. Fonte: Organização Mundial de Saúde
Várias razões têm sido apontadas para este aumento de notificação de casos,
como o maior reconhecimento da doença e da perda de imunidade natural e
adquirida por parte dos profissionais de saúde, ou o desenvolvimento de novos
métodos de diagnóstico. No caso do Canadá, uma vacina pouco eficaz levou ao
aumento de incidência de doença em grupos etários específicos, provocando um
efeito de cohort13. No caso particular da Holanda, em 1996, o aumento foi
atribuído a uma evolução genética da bactéria, com perda de eficácia vacinal11.
Esta perda de eficácia não foi considerada relevante nos estudos efectuados em
outros países, parecendo por isso estar implicado um factor adicional na vacina
holandesa que justificasse esta situação14-16. O facto de se identificarem
surtos grandes em adolescentes e adultos, casos típicos que não passariam
despercebidos em anos anteriores6, a plausibilidade biológica, já que há uma
diminuição da circulação da bactéria com diminuição dos boostersnaturais e,
por outro lado, o facto conhecido de que a imunidade conferida pela vacinação
dura menos do que a conferida pela doença natural, indicam que a mudança na
epidemiologia não é aparente.
Os ciclos de tosse convulsa endémica continuam a ser interrompidos por uma
epidemia a cada 4 anos, sugerindo que a pertussis circula da mesma forma agora
do que na era pré-vacinal, enquanto outras doenças que continuam a ter ciclos
epidémicos viram o seu intervalo interepidémico aumentar17. O número de óbitos
tem aumentado: na década de 1980 nos EUA foram notificados 77 óbitos (61
lactentes, 49 menores de 4 meses), correspondendo a 1,7 óbitos/milhão de
habitantes, e na década de 1990 foram notificados 103 óbitos (93 lactentes, 84
menores de 4 meses), correspondendo este número a 2,4 óbitos/ /milhão18.
A distribuição etária da tosse convulsa também se alterou. A vacinação em
massa, ao condicionar uma diminuição da transmissão da bactéria com diminuição
do efeito boosternatural, tornou adolescentes e adultos mais susceptíveis do
que na era pré-vacinal. São estes muitas vezes as fontes de infecção dos
lactentes pequenos, e não os companheiros de escola das crianças pequenas, como
antes19,20.
A consciencialização do ressurgimento da tosse convulsa em todo o mundo e o
aparecimento de vacinas acelulares seguras para adolescentes e adultos veio
suscitar um interesse crescente na revacinação nestas idades, que permitiria
não só diminuir a prevalência de tosse convulsa nestas faixas etárias como
também teria um efeito indirecto significativo sobre a morbilidade e
mortalidade dos pequenos lactentes21-24.
O futuro nos modelos matemáticos
Vários modelos matemáticos têm sido criados e adaptados para ajudar na
interpretação dos dados epidemiológicos da tosse convulsa. Utilizando estes
modelos matemáticos, é possível prever a progressão da maioria das doenças
infecciosas ou descobrir a evolução de uma epidemia. Entre outras
possibilidades, a modelação matemática permite ainda aceder ao impacto de novas
estratégias vacinais antes da sua verdadeira implementação, através de fórmulas
matemáticas e simulações no computador da evolução da doença ao longo dos anos.
Estes modelos são uma representação simbólica da vida real, sempre abertos a
reformulações e aperfeiçoamentos, pois nenhum modelo pode ter a pretensão de
abarcar toda uma realidade. Eles serão tanto melhores quanto melhores e mais
completos forem os pressupostos em que se baseiam, sendo contabilizados no
modelo, podendo também por isso ser limitados pela qualidade da notificação de
dados e pelo conhecimento científico da dinâmica da doença.
No modelo de Van Rie e col. (Fig. 2)25, todos os indivíduos nascem susceptíveis
(S) e estão sujeitos a três graus de gravidade de infecção (infecção primária
mais grave ou típica, infecção leve e infecção assintomática), consoante a sua
imunidade na altura da infecção, com protecção máxima em N4 (após infecção
natural) ou V4 (vacinação completa). A imunidade aumenta com o número de
vacinas antipertussis efectuadas, e a imunidade por doença natural é máxima
(N4). A imunidade adquirida por doença natural ou por vacinação vai diminuindo
ao longo do tempo (WN3 a WN1, WV3 a WV1). Este modelo tem em consideração
vários pressupostos que têm por base estudos científicos anteriormente
efectuados: a vacinação após o primeiro ano de idade é igualmente eficaz após
duas ou três doses de vacina, conforme foi constatado, e por isso aqueles que
não fazem uma das vacinas dos 2, 4 ou 6 meses, mas recebem uma 3.ª dose após o
ano de idade, atingem o nível mais alto de imunização provocado pela vacina26.
Os períodos infecciosos médios (uma semana de fase catarral + duração da tosse
paroxística) variam entre 4 semanas na tosse convulsa típica e uma semana na
infecção assintomática. A infectividade relativa é de 1 na infecção típica e na
infecção leve, onde há menos tosse mas maior número de contactos por o
indivíduo manter actividade diária, e menor, de 0,2, na infecção assintomática.
Fig. 2 – O modelo de Van Rie e colaboradores
Van Rie simula no seu modelo seis estratégias vacinais, avaliando em cada uma
delas efeitos directos e indirectos (decorrentes da imunidade de grupo): 1)
Estratégia vacinal clássica; 2) Estratégia clássica + boosterna adolescência;
3) Estratégia clássica + boosterna adolescência; e na idade adulta; 4)
Estratégia clássica + estratégia Cocoon (vacinação de contactos de recém-
nascidos); 5) Estratégia clássica + vacinação na adolescência + estratégia
Cocoon; 6) estratégia clássica + vacinação na adolescência + vacinação dos
adultos + estratégia Cocoon.
Enquanto a vacinação por rotina dos adolescentes (estratégia 2) tem
maioritariamente um efeito directo, diminuindo a doença nos vacinados, a
estratégia de Cocoon (estratégia 4) tem um efeito grande na prevenção de doença
em lactentes muito pequenos. Tendo em conta o número de vacinas necessário para
prevenir um caso típico de tosse convulsa na população em geral, a vacinação de
adolescentes (estratégia 2) é 1,8 vezes mais eficaz do que a estratégia
adolescente mais Cocoon (estratégia 5), e duas a três vezes mais eficaz do que
as outras estratégias. No que diz respeito apenas aos casos típicos de tosse
convulsa nos lactentes dos 0 aos 3 meses, o grupo que tem maior taxa de
hospitalização, complicações e taxa de mortalidade, a estratégia Cocoon
(estratégia 4) é 1,3 vezes mais eficaz do que a combinação vacinação de
adolescentes + Cocoon (estratégia 5) e duas a cinco vezes mais eficaz do que as
outras estratégias. Hethcote e col.27 compararam estratégias vacinais na
Austrália, baseando-se também num modelo matemático. Na Austrália, a dose
efectuada aos 18 meses foi eliminada em 2003 e substituída por uma dose de
vacina acelular aos 15 -17 anos, pois dados recentes mostraram que a protecção
dos casos típicos de pertussis após três doses de vacina acelular persiste
durante pelo menos 6 anos28. Assumindo os 80% de cobertura vacinal conseguidos,
uma cobertura elevada por estar inserida num programa de saúde escolar,
concluíram que esta alteração levava a uma diminuição em 30% dos casos de tosse
convulsa entre os 0 e os 23 meses e em 25% nos adolescentes. Esperava-se no
entanto um aumento em 15% dos casos em crianças entre os 2 e os 4 anos, e não
haveria alteração significativa de incidência nos adultos jovens. Esta
alteração permitiria a redução da incidência de tosse convulsa sem aumento do
custo do Programa Nacional de Vacinação, mas se a cobertura vacinal diminuísse
para 70% a vantagem da vacinação na adolescência poder-se-ia perder.
Luz e col.29 criaram um modelo com o objectivo de analisar a dinâmica da tosse
convulsa num grande centro urbano como o Rio de Janeiro. Apesar de não haver
ainda sinais de ressurgimento da doença no Brasil, o modelo prevê um aumento do
número de infecções secundárias em idades mais avançadas. Eles concluem que o
sistema de vigilância no Brasil pode não estar a captar estas novas infecções.
Uma outra possibilidade prevista pelo modelo é a de que a incidência de tosse
convulsa no Rio de Janeiro pudesse estar ainda num período de adaptação, com o
número de casos a oscilar antes de aumentar novamente, até se atingir um novo
equilíbrio em idades mais avançadas (Fig. 3).
Fig. 3 – Comparação entre o número absoluto de infecções primárias (a) e
infecções secundárias (b) na presença ( - - -) ou ausência (...) de vacinação.
Fonte: Luz e colaboradores
É de salientar que estes modelos têm em comum o facto de parecerem exagerar em
muito o número de infecções. Na realidade, sabe-se que as infecções por
pertussis estão muito subnotificadas, quase limitadas às infecções primárias.
Para esta subnotificação contribuem os factos de a definição de caso não ser
consensual, os sinais e sintomas das infecções secundárias serem inespecíficos,
muito semelhantes a outras doenças respiratórias infecciosas, os meios de
diagnóstico serem ainda pouco sensíveis e específicos e os profissionais de
saúde não estarem suficientemente alertados para a perda de imunidade vacinal,
não entrando a doença nos diagnósticos diferenciais.
O Grupo de Iniciativa Global para o combate à tosse convulsa
O Grupo de Iniciativa Global para o combate à Tosse Convulsa (Global Pertussis
Initiative,ou GPI) foi organizado em 2001, para avaliar toda a extensão do
problema actual e estabelecer estratégias de controlo prioritárias. Este grupo,
constituído por 37 especialistas provenientes de 17 países diferentes,
concretizou em 2003 a recomendação de que todos os países deveriam considerar a
expansão de estratégias vacinais existentes para incluir a adição de doses de
reforço a crianças em idades pré-escolar (4 -6 anos), adolescentes e adultos
específicos com risco crescido de transmitir a doença a lactentes vulneráveis,
nomeadamente pessoal de saúde e outros prestadores de cuidados a crianças30.
Desde que a Austrália introduziu a vacina na adolescência no seu plano nacional
de vacinação, são já vários os países que seguiram as recomendações da GPI
nesse sentido, como a Áustria, o Canadá, a França, a Alemanha, a Suécia e os
EUA.
O GPI encontrou -se novamente em 2005, reforçando nesta altura a recomendação
da vacinação dos adolescentes, e recomendou adicionalmente a implementação da
estratégia de Cocoon nos países em que esta medida fosse economicamente viável.
Apelou ainda uma vez mais para a necessidade de uniformização da definição de
caso e dos exames diagnósticos a efectuar31.
A situação de Portugal
O esquema de vacinação da tosse convulsa não é uniforme em todo o mundo,
existindo várias estratégias vacinais em curso actualmente, com diferentes
vacinas e diferentes coberturas vacinais. Em cada país, a estratégia vacinal
deverá então depender do plano vacinal em curso, da situação epidemiológica
local, do custo de um caso de tosse convulsa nos variados grupos etários e dos
custos de cessibilidade e vacinação para a população-alvo.
Até ao início de 2006, o esquema de vacinação em Portugal incluía 5 doses de
vacina holocelular (DTPw) e dois reforços aos 18 meses e aos 5-6 anos. A vacina
acelular veio posteriormente substituí -la no programa nacional de vacinação,
sendo incorporada numa vacina pentavalente (DTPaHibVIP aos 2, 4 e 6 meses) e
duas vacinas tetravalentes (DTPaHib aos 18 meses e DTPaVIP aos 5-6 anos)32.
Este tipo de vacina só pode ser efectuada até aos 6 anos, inclusive, sendo que
as duas vacinas recomendadas como reforço para adolescentes e adultos
apresentam resposta imunológica semelhante, são imunogénicas e seguras, mas as
suas fórmulas têm só aproximadamente 1/3 a 1/4 da concentração do componente
acelular da tosse convulsa da fórmula pediátrica (dTpa)33. Estas últimas
vacinas ainda não estão comercializadas em Portugal.
Em Portugal, o sistema de vigilância cobre toda a população e é baseado em
informações clínicas de casos de doença declarados, tendo por base a definição
de caso proposta pela Organização Mundial de Saúde32. Aqui a tosse convulsa
também diminuiu com a vacinação (Fig. 4)35, mas apesar de uma alta cobertura
vacinal ' mais de 90% das crianças com um ano de idade recebem três doses de
vacina ', o número de casos notificados de tosse convulsa tem vindo a aumentar
nos últimos anos (Quadro I)36-38.
Fig. 4– Notificações por 105 indivíduos em Portugal 1950 -1995. Fonte: Gomes MC
e colaboradores35
Quadro I – Notificações de tosse convulsa em Portugal 1995-2000 e
estratificação por idade 2001-2007.
O reforço da vacinação antipertussis nos adolescentes teria provavelmente um
custo ' benefício positivo já comprovado em outros países. Purdy etcol.39
avaliaram em 2004 a morbilidade relacionada com a tosse convulsa, os seus
custos e a relação custo -benefício de sete estratégias vacinais em grupos de
indivíduos nos EUA ' 1) adolescentes entre 10-19 anos; 2) adultos > 20 anos; 3)
adultos > 50 anos; 4) pessoas > 18 anos com doença pulmonar obstrutiva crónica;
5) pessoas > 15 anos prestadores de cuidados directos a crianças menores de um
ano; 6) trabalhadores da área da saúde > 20 anos; 7) todos os indivíduos > 10
anos. Neste estudo, a estratégia mais económica seria a de imunizar todos os
adolescentes entre os 10-19 anos. Esta será também a estratégia mais fácil de
implementar em Portugal, sobretudo se se optar por substituir a actual
recomendação da vacina dT por uma combinação dTpa. Para além disso, sabemos que
em Portugal a cobertura vacinal da vacina para a tosse convulsa nos
adolescentes manter-se-á elevada aos 11-13 anos, como é para a actual vacina
dT, porque estes adolescentes jovens ainda estão a estudar e necessitam de
actualizar o seu boletim de vacinas para se inscrever no novo ano escolar.
Também em Portugal a fonte de infecção de Bordetella pertussistem sido
atribuída aos familiares da criança, frequentemente pais ou irmãos mais
velhos37. A estratégia Cocoon é uma medida aparentemente mais difícil de
executar, mas aliciante, com efeitos indirectos importantes nos recém-nascidos
e lactentes, o que pode facilitar a sua implementação. A recomendação da vacina
aos pais dos recém-nascidos (ou futuros pais) por parte da Direcção-Geral de
Saúde (DGS) poderá ter grande interesse e uma aceitação significativa. A DGS
poderia associá-la à recomendação da vacina antitetânica na mulher que
desejasse engravidar, recomendá-la aos pais nos primeiros dias após o
nascimento do filho, ou mesmo optar por autorizar a sua comercialização com ou
sem comparticipação, tendo em conta as actuais recomendações mundiais e
benefícios previstos.