Controlo de dano em cirurgia electiva. Fará sentido? A propósito de um caso
clínico
INTRODUÇÃO
A cirurgia de controlo de dano - damage control- é um dos maiores avanços
conceptuais na cirurgia dos últimos 20 anos.(1)
A ideia emana da cirurgia de trauma e consiste em abordar o doente instável de
uma forma rápida, eficaz e provisória. Nesse sentido, propõe-se parar a
hemorragia, conter a contaminação e encerrar transitoriamente a ferida
operatória. Os procedimentos definitivos ficam adiados para quando o doente
estiver equilibrado. (1)
Há vários relatos publicados desde o início do século XX que encerram esta
filosofia, seria no entanto só em 1998 com Charles Schwab e Rotondo, que se
propôs o termo "damage control"e que se iniciou a descrição detalhada
e normalizada das técnicas. (2)
A fisiopatologia inerente ao conceito assenta no princípio de que em
circunstâncias de trauma grave, com hemorragia importante, o doente pode
desenvolver o que chamaram tríade letal.Este ponto de viragem, caracteriza-se
por três sinais (acidose metabólica, hipotermia grave e coagulopatia) que
conduzem à morte do doente, caso não seja interrompida rapidamente a hemorragia
e corrigidas as alterações. (1)
No trauma, a abordagem de controlo de dano é constituída por 4 fases (1):
1 - Selecção dos doentes;
2 - Fase intra-operatória;
3 - Estabilização fisiológica;
4 - Re-intervenção.
A Selecção dos doentes deve ser feita na avaliação pré-operatória ou nos
primeiros minutos da intervenção cirúrgica. Alguns preceitos devem ser tidos em
conta na tomada de decisão como a existência de lesões de viscera ôca
associadas a lesões vasculares, lesão venosa major inacessível, a necessidade
de consumo de tempo, a necessidade de controlar múltiplas lesões ou a
impossibilidade previsível do encerramento abdominal.
Não existem, contudo, critérios bem definidos que indiquem definitivamente para
a necessidade de uma abordagem de controlo de dano, cabendo a decisão final ao
cirurgião. (3)
Apesar disso, a literatura aponta alguns parâmetros objectivos que nos indicam
uma maior probabilidade de o doente necessitar de este tipo de intervenção (1).
São eles:
1. Ph < 7,30 e Base excesso < - 7,5mmol/L que traduzem uma acidose metabólica
grave.
2. Temperatura corporal < 35ºC
3. Transfusão de > 10 U de concentrado de eritrócitos que traduz uma
coagulopatia e hemorragia grave.
4. Coagulopatia traduzida por aPTT (tempo de tromboplastina parcial ativada) >
60 segundos.
5. Pressão sitólica <90mmHg
6. Injury Severity Score (ISS) >36
Em 2010, Matsumoto H et al. analisaram doentes de trauma submetidos a
tratamento de controlo de dano e verificaram que quando estavam presentes 3 dos
critérios referidos anteriormente a mortalidade atingia 70%, enquanto que
quando a decisão era tomada antes de o doente apresentar 3 variáveis, a taxa de
mortalidade era de 25%. (3)
Assim depreende-se que a decisão deve ser rápida quando estiverem presentes 1
ou 2 critérios de instabilidade fisiológica (3).
A fase intra-operatória assenta nos seguintes princípios cirúrgicos (1):
1. O controlo da hemorragia pode ser feito com recurso a tamponamento (packing)
com compressas, a pinças vasculares, suturas automáticas, clips ou mesmo
tamponamento com balão.
2. O controlo da contaminação é efectuado com a simples sutura manual ou
automática das extremidades e lesões de vísceras ocas, e derivação de drenagem
biliar, pancreática ou urinária.
3. O encerramento da parede é feito com sutura simples, por vezes com saco de
Bogotá ou plástico autocolante, e penso provisório, ou utilizando o método
conhecido por "OpSite sandwich". (1)
A fase seguinte consiste na estabilização fisiológica que deve ser efectuada
numa unidade de cuidados intensivos, com monitorização apertada dos parâmetros
fisiológicos e das terapêuticas instituídas. Esta estabilização é feita com
recurso a reposição de fluidos, suporte transfusional, suporte ventilatório,
suporte cardiogénico e aquecimento activo. (1)
Geralmente este período tem uma duração de até 48 horas, sendo que depois das
72 horas aumentam os riscos inerentes à cirurgia abreviada, como a formação de
abcessos, infecção e nova hemorragia. (1)
Após a estabilização fisiológica e saída de parâmetros da tríade letal,o doente
volta à sala de operações para cirurgia definitiva: controlo de hemorragia sem
packing, anastomoses, lavagem abundante da cavidade peritoneal e encerramento
adequado da parede abdominal. (1)
Existem diversos estudos que apresentam resultados relativos à aplicação de
cirurgia damage controlem doentes politraumatizados críticos, variando a
sobrevivência de 33% a 62% e a taxa de morbilidade de 16 a 44%. Uma revisão
realizada por Shapiro em 2000 avalia 1001 doentes que foram submetidos a este
tipo de abordagem, tendo verificado uma sobrevivência de 50% e uma taxa de
morbilidade de 40%. (2)
Controlo de dano fora do contexto de trauma
Recentemente o conceito de controlo de dano tem sido alargado a doentes fora do
contexto de trauma. Os estudos ainda são escassos e apresentam amostras muito
reduzidas.
Em 2008, Stawicki et al avaliaram 16 doentes submetidos a cirurgia damage
controlpor motivos que não o trauma: 6 sepsis grave, 5 hemorragia intra-
operatória, 3 isquemia intestinal e 2 pancreatite grave. Compararam as taxas de
mortalidade pos-operatórias com as mortalidades previstas nas escalas POSSUM e
APACHE e concluíram que esta abordagem permitiu o aumento de 40% da sobrevida
além do esperado. (4)
Morgan et al em 2010, descreveram a utilização da abordagem damage controlem 8
doentes submetidos a cirurgia pancreática com hemorragia intra-operatória, não
tendo verificado qualquer mortalidade hospitalar.(5)
CASO CLÍNICO
Doente de 72 anos, sexo feminino, autónoma, Índice de Massa Corporal=26Kg/m2,
com antecedentes de HTA (sem atingimento de órgãos alvo), dislipidemia, e
patologia depressiva seguida em consulta de psiquiatria. Medicada habitualmente
com anti-hipertensor e anti-depressivo.
Recorreu ao SU com icterícia obstrutiva e progressiva com 8 semanas de
evolução. Além do dos exames analíticos efectuou caracterização imagiológica
com TAC, RMN e EDA (figura_I).
O estudo revelou neoplasia peri-ampular e neoplasia do rim direito. Não havia
evidência de doença metastática ou de doença avançada regionalmente. O caso foi
discutido em reunião multidisciplinar, propondo-se duodenopancreatectomia
cefálica e nefrectomia direita no mesmo tempo operatório.
A cirurgia iniciou-se com laparoscopia de estadiamento que confirmou
ressecabilidade da doença. A fase de dissecção e remoção de peça de
duodenopancreatectomia decorreu sem incidentes com perdas estimadas de cerca de
300 cc de sangue.
Após isto, iniciou-se a nefrectomia direita, durante a qual ocorreu um acidente
hemorrágico com perdas estimadas em 1500 cc, proveniente de vasos peritumorais
lombares.
Após a nefrectomia e após transfusão de 4 Unidades de concentrado de
eritrócitos, a doente desenvolveu instabilidade fisiológica caracterizada por:
1. Hipotermia (T = 33,4 ºC),
2. Acidemia (pH = 7,28) e Lactatos = 1,4.
Face a este quadro a equipa cirúrgica decidiu por uma abordagem de controlo de
dano.
Faltava ainda nesta fase a reconstrução do trânsito digestivo com anastomose
pancreato-gástrica, gastro-jejunal, jejuno-jejunal e hepático-jejunal. Já
tinham decorrido 5 horas de cirurgia.
Com o objectivo de estabilizar e terminar rapidamente a cirurgia as medidas
foram:
1. Controlo da hemorragia com packinge sutura
2. Encerramento digestivo gástrico e jejunal com sutura mecânica
3. Derivação biliar externa sobre sonda de Foley
4. Derivação pancreática externa sobre SNG pediátrica
5. Encerramento provisório da parede com pontos cutâneos e steri-drape
A doente foi admitida na unidade de cuidados intensivos (UCI), tendo realizado
aquecimento, reposição de volume intra-vascular e correcção metabólica,
ventilação mecânica, suporte vasopressor com dopamina (dose máxima: 10mcg/Kg/
min), não tendo tido necessidade de mais suporte transfusional.
Após 24 horas a doente encontrava-se em bom estado fisiológico e foi
reintervencionada pela mesma equipa cirúrgica que removeu as compressas e
realizou as anastomoses sem intercorrências técnicas. Procedeu-se ao
encerramento definitivo da parede abdominal.
No decurso do pós-operatório verificou-se:
1. Hemorragia digestiva alta por úlcera da boca anastomótica que foi tratada
por via endoscópica com sucesso
1. Infecção respiratória associada ao ventilador, com boa resposta a
antibioterapia
2. Colecção peripancreática, que resolveu com drenagem percutânea e
antibioterapia.
A doente teve alta ao 30° dia pós-operatório.
A histologia das peças cirúrgicas revelou: adenocarcinoma moderadamente
diferenciado da ampola de Vater - pT2 N0 M0 R0) e carcinoma de células renais
cromófobo - pT1b N0 M0 R0.
Em consulta de grupo oncológico foi decidido vigilância sem necessidade de
terapêuticas adjuvantes.
Após 9 meses de seguimento a doente apresenta-se autónoma, assintomática, com
bom estado nutricional e sem sinais de recidiva ou outras intercorrências.
COMENTÁRIOS
Apesar de não ser este o contexto mais frequente para a cirurgia de controlo de
dano, o facto é que em cirurgia maior complicada podemos rapidamente cair na
tríade letal e com ela a mortalidade proibitiva que a acompanha. (5)
O caso apresentado ilustra esta possível estratégia numa cirurgia de grande
porte numa doente de 72 anos com múltiplas comorbilidades. A reconstrução
definitiva acabou por ser realizada com a doente equilibrada e com a equipa
cirúrgica descansada.
O desfecho sem mortalidade seria porventura muito mais difícil se não fosse
alterado o plano inicial. A juntar a isto, o estádio inicial dos tumores
permite almejar uma sobrevivência larga.
O conceito de controlo de dano está assim irmanado ao bom senso cirúrgico.