O estadiamento ganglionar na actualidade
MUDANÇAS RECENTES; PROBLEMAS NOVOS
Os anos noventa do século XX assistiram ao início da segunda grande revolução
na abordagem cirúrgica do cancro da mama (CM): o Conceito de Gânglio Sentinela
(GS).
Durante décadas o esvaziamento ganglionar axilar (EA) fez parte integrante do
tratamento cirúrgico. Numa altura em que os doentes se apresentavam com tumores
local e regionalmente avançados, o EA era encarado como parte do tratamento,
intervindo no controle regional da doença.
Mais tarde, já nos anos sessenta do século passado, perante tumores de menor
volume e numa altura em que se começa a desenvolver o tratamento sistémico,
quer com citostáticos quer com antagonistas de receptores hormonais, o EA
passou a ser também encarado como uma ferramenta para o estadiamento. É por
essa altura que se desenvolve o sistema TNM, de que faz parte integrante a
avaliação ganglionar, e que no caso do CM se conseguia com o estudo morfológico
dos gânglios da axila.
Em 1993 o EA era considerado um elemento fundamental do tratamento loco-
regional do CM, cujos principais objectivos eram a obtenção de informação
prognóstica e o planeamento de tratamentos adjuvantes; simultaneamente, o EA
promovia o controlo loco-regional da doença.
É em 1993 que Armando Giuliano e David Krag surgem com as primeiras publicações
[1; 2] que aplicam o Conceito de Gânglio Sentinela (GS) a doentes com CM.
A ideia de GS surge para resolver problemas específicos:
1 - de um modo geral, 50% dos doentes com CM não têm metástases ganglionares
axilares e por isso não beneficiam com o EA;
2 - o EA é a maior causa de morbilidade associada ao tratamento cirúrgico do CM
(o linfedema, nos seus diferentes graus, atinge uns 20% dos doentes);
3 - o EA faz parte de uma abordagem sistemática que trata todos os doentes por
igual, esquecendo outras áreas de drenagem ganglionar a partir da mama.
O conceito de GS e as técnicas para a identificação do GS foram validados em
inúmeros trabalhos publicados em revistas de oncologia cirúrgica, no final do
século XX e início do século XXI [3-5]. O impacto científico foi sério, de tal
modo que o conceito de GS foi aceite pela comunidade médica mundial como o
método adequado para estadiar, do ponto de vista ganglionar, os doentes
portadores de CM, permitindo identificar correctamente aqueles que são pN0.
Simultaneamente estabeleceu-se que os doentes cujo GS estava metastizado
deveriam ser submetidos a EA.
A evidência científica acumulada permitiu compreender que, de todos os doentes
cujo GS estava metastizado e eram submetidos a EA, apenas cerca de 30-60%
(entre nós, cerca de 45%) [6-8] apresentavam metástases em outros gânglios
axilares (gânglios não sentinela, GNS). Desse modo, ainda uma boa parte dos
doentes com CM é submetido a EA sem disso nada beneficiar, quer no controle
loco-regional quer na informação obtida para estadiamento, ficando, por outro
lado, sujeita à morbilidade associada ao EA.
Assim, surgem outros desafios, de novo para responder a questões concretas:
1 - Como poderemos identificar aqueles doentes que têm metástases apenas nos
GS?
2 - E aqueles doentes que supostamente terão GNS metastizados necessitarão
mesmo de serem submetidos a EA?
A SELECÇÃO DE DOENTES PN+ PARA ESVAZIAMENTO GANGLIONAR AXILAR
Muitos trabalhos publicados mostraram que quando o GS está metastizado apenas
13 a 66% dos doentes apresentam metástases ganglionares adicionais [9; 10].
Este facto levou investigadores a analisar factores, ou grupos de factores, que
possam predizer a ausência de metástases nos GNS e, desse modo, poupar doentes
ao EA.
Alguns autores desenvolveram ferramentasnomogramas - para avaliar o risco de
metastização em GNS. São ferramentas complexas, que combinam a análise de
diversas variáveis, e que emitem um resultado que quantifica o risco de
metastização. Fica depois ao critério dos clínicos o julgamento e a actuação em
função desse resultado.
As variáveis em questão são, em geral, as mesmas nos diferentes nomogramas: o
tamanho do tumor, o grau de malignidade, a invasão vascular linfática, a
multifocalidade, o tamanho da maior metástase no GS, a relação entre o n.º de
GS metastizado e o n.º de GS biopsados [6-10]. Mais recentemente um grupo
estudou e desenvolveu um novo conceito, o de Carga Tumoral Total no(s) GS(s),
que nasceu com a análise dos GS em OSNA (one step nucleic acid amplification)
[11; 12].
O nomograma desenvolvido no Memorial Sloan Kettering Cancer Center [13], o mais
antigo, foi testado em diferentes ambientes hospitalares e regiões do globo. Os
resultados da sua aplicação variam entre as séries de doentes, o que levou já a
algumas modificações por forma a torná-lo mais adequado.
Outros têm sido desenvolvidos e validados: Stanford [14], Universidade de
Cambridge [15], Hospital Tenon [16], Internacional Multicentrico [17].
Uma das limitações destas ferramentas é a sua modesta adaptação a diferentes
contextos sociais e hospitalares. Existe uma profunda diversidade mundial na
interpretação do conceito de GS, na técnica para a identificação do GS e no
estudo do GS pela Anatomia Patológica. A uniformização das técnicas para a
biópsia do GS e para o seu estudo morfológico seriam desejáveis. Todavia, será
impossível consegui-lo.
Desse modo, e procurando obter ferramentas adaptadas à realidade diária, outros
autores desenvolveram e validaram uma ferramenta mais simples, que engloba
apenas 3 variáveis, e nenhuma delas dependente do putativo GS: o estadio pT (T1
vs T2+), a presença ou ausência de multifocalidade e a presença ou ausência de
invasão vascular linfática (IVL) [8;18]. Na presença de um tumor de tamanho
igual ou inferior a 20 mm, unifocal e sem IVL, a probabilidade de haver GNS
metastizado é inferior a 11% e este grupo de doentes pode ser poupado com
segurança ao EA. Estima-se que, numa amostra comum de doentes com CM e cujo GS
está metastizado, cerca de 20% dos doentes apresentam tumores com estas
características, o que significa que 1 em cada 5 doentes com GS metastizado
poderá ser poupado ao EA, e representa um considerável interesse clínico.
O ESVAZIAMENTO AXILAR É MESMO NECESSÁRIO?
Se é claro que o EA não é necessário nem útil quando o GS não está metastizado,
já o contrário é motivo de intensa discussão, quando o GS está metastizado.
No contexto da metastização axilar, determinada por uma biópsia de GS positiva,
a realização de EA pode trazer potenciais vantagens.
Diminuição das taxas de recorrência loco-regional e melhores índices de
sobrevivência
Em 1971 o NSABP (National Surgical Adjuvant Breast and Bowel Project) abriu o
ensaio B04 [19]. Este ensaio dividiu-se em dois grupos de doentes, em função da
existência ou não de gânglios regionais clinicamente envolvidos. O grupo de
doentes sem gânglios clinicamente envolvidos foi randomizado em três ramos:
mastectomia radical modificada, mastectomia total com radioterapia axilar e
mastectomia total. O grupo de doentes com gânglios clinicamente envolvidos foi
randomizado em dois ramos: mastectomia radical modificada ou mastectomia total
com radioterapia axilar. Os investigadores verificaram que o grupo de doentes
tratados apenas com mastectomia total apresentou uma taxa de recidiva
ganglionar axilar abaixo do esperado (tendo em conta a taxa de metastização
axilar observada nos doentes tratados com mastectomia radical modificada),
embora maior que nos outros ramos, e que não houve diferenças significativas
nos resultados do tratamento (sobrevivência global e sobrevivência livre de
doença) nos três ramos do estudo.
Em 1999 Orr publica uma meta-análise [20] sobre o impacto do EA profilático na
sobrevivência, que estuda 6 ensaios, desenvolvidos em diferentes instituições,
entre 1951 e 1987. A meta-análise enfatiza que todos os estudos mostram um
benefício na sobrevivência, que varia entre 4 e 16%, com a realização do EA. No
entanto, devemos assinalar que os estudos englobam poucos doentes com tumores
até 5 mm, e por isso os resultados não devem ser extrapolados para este grupo,
e, mais importante, dizem respeito a uma era onde o tratamento sistémico era
inexistente ou dava os primeiros passos. Devemos admitir que a redução do risco
proporcionada pelo EA seja, hoje, suplantada pelo tratamento sistémico
disponível.
Mais recentemente um grupo de autores publica um estudo retrospectivo [21] que
analisa 97314 doentes com CM e GS metastizado, a partir do registo nacional de
cancro dos EUA. Cerca de 80% destes doentes (n=77097) foi submetido a EA e
cerca de 20% (n=20217) não fez EA. Com uma mediana de acompanhamento superior a
5 anos, os autores verificaram que, quer para os doentes com micrometastases no
GS, quer para aqueles com macrometastases, os resultados para a recorrência
ganglionar axilar e para a sobrevivência global são semelhantes, com ligeiras
vantagens para o grupo que fez EA, mas sem significância estatística.
O grupo para a oncologia do Colégio Americano de Cirurgiões promoveu um estudo
para avaliar o impacto da não realização de EA em doentes com CM e GS
metastizado; o recrutamento de doentes começou em maio de 1999, terminou em
dezembro de 2004 e os resultados desse ensaio clínico randomizado foram
publicados em 2011 [22]. O ensaio, de não inferioridade, previa a inclusão de
1900 casos; no entanto, o período de inclusão foi fechado apenas com 891 casos,
operados em 115 diferentes centros, dos quais 446 foram randomizados para não
fazer EA e 445 para fazer EA. A mediana do período de acompanhamento foi
superior a 6 anos.
Os resultados no que diz respeito à recorrência ganglionar axilar são de 0.5%
para o grupo que fez EA e de 0.9% para o grupo que fez apenas GS. No que diz
respeito à sobrevivência global e à sobrevivência livre de doença observaram-se
ligeiras vantagens para o grupo que fez apenas GS (embora sem significância
estatística). Os autores concluem que a utilização única do GS, comparada com a
realização de EA, não resulta em piores índices de sobrevivência.
Postulou-se que este seria um estudo que resultaria numa mudança da prática
clínica, pelo menos para os doentes que reproduzissem os critérios de inclusão:
tumores de tamanho inferior a 5 cm, sem adenopatias palpáveis, submetidas a
cirurgia conservadora e com 1 ou 2 GS metastizado em hematoxilina-eosina (H-E),
sem invasão extraganglionar e sem tratamentos neoadjuvantes. A comunidade
científica está dividida entre a aceitação do ensaio, traduzida pela inclusão
dos seus resultados em consensos internacionais [23-25] e a crítica aos
métodos. Os críticos relevam vários aspectos do ensaio: a dimensão da amostra,
que inicialmente previa 1900 e acabou por analisar apenas 856 (45%), os
critérios usados para definir não-inferioridade, a ausência de dados
significativos referentes a diversas variáveis (por exemplo, em 98 doentes
desconhece-se o número de GS metastizados, quando este era um critério de
inclusão), o facto de não haver ocultação para o braço a que estavam alocados
os doentes, o número de doentes perdidos para follow-up, enviesamentos de
selecção e a ausência de informação clara quanto aos campos de radioterapia
utilizados. Os críticos defendem que este estudo não deve mudar a prática
clínica e que mais estudos deverão ser realizados entretanto.
Já este ano, um outro grupo de autores, de diferentes instituições [27],
publicou um outro ensaio clínico randomizado [26], que comparou doentes com CM
e GS envolvido por micrometastases, de forma randomizada: um grupo foi
submetido a EA e o outro grupo não foi submetido a EA. Foram estudados 934
doentes cT1-2 pN1sn mi (células tumorais isoladas e metástases até 2 mm,
estudadas preferencialmente em H-E). Em 13% dos casos submetidos a EA foram
identificadas metástases em GNS. As curvas de sobrevivência global e livre de
doença são sobreponíveis, com ligeira vantagem para o grupo que não fez EA,
embora sem significância estatística. Os autores defendem que as doentes com CM
inicial e micrometastases no GS podem ser poupadas ao EA.
Aguarda-se, ainda, a publicação dos resultados do ensaio AMAROS (After Maping
of the Axilla: Radiotherapy or Surgery). Este ensaio, promovido pela EORTC
(European Organization for the Research and Treatment of Cancer), randomizou um
grupo de doentes com CM e GS metastizado para a realização de EA ou para a
realização de RT (radioterapia) axilar. Alguns resultados foram apresentados no
congresso da ASCO (American Society of Clinical Oncology), em maio de 2013, em
Chicago. Os autores observaram que a recorrência axilar, no grupo submetido a
EA foi de 0.54% e no grupo tratado com RT axilar foi de 1.03%; o aparecimento
de linfedema foi de 28% no grupo tratado com EA e de 14% no grupo da RT axilar;
a avaliação dos índices de qualidade de vida foi idêntica nos dois braços e
verificou-se uma maior tendência para dificuldades na mobilização do ombro no
grupo tratado com RT axilar. A mediana do período de acompanhamento foi de 5
anos [dados não publicados].
Estes ensaios, aqui sumariamente discutidos, parecem mostrar que a recorrência
ganglionar axilar é maior quando não se procede ao EA; no entanto, este facto
não parece ter impacto significativo na sobrevivência global.
Informação adicional para estadiamento
Nas últimas décadas, o EA tem sido mais um guia para o tratamento adjuvante do
que um tratamento por si só.
A existência de gânglios metastizados é um factor de prognóstico; o número de
gânglios metastizados tem um peso importante em índices de prognóstico, como
por exemplo o Índice de Prognóstico de Nottingham; a classificação TNM
classifica os casos em N1, N2 ou N3 em função do número de gânglios
metastizados. A indicação para tratamentos adjuvantes, sistémicos ou regionais,
baseia-se nesta organização.
No entanto, a biologia tumoral é hoje melhor entendida do que há alguns anos; o
reconhecimento da diversidade tumoral levou a alterações no tratamento, sendo
hoje mais vulgar o uso de tratamento sistémico, independentemente do estado dos
gânglios da axila. A nova classificação molecular, fundamentada em diferentes
características biológicas do tumor, dividindo os CM em luminais e não-
luminais, acaba por selecionar doentes para a realização de quimioterapia
independentemente do estadio ganglionar. Assim, questiona-se também a utilidade
do EA para fornecer informação necessária aos tratamentos complementares.
Straver e colaboradores [27], aproveitando os doentes randomizados para o
ensaio AMAROS (que compara o EA com a RT axilar, em doentes com GS
metastizado), analisaram o impacto da ausência da informação fornecida pelo EA
na decisão para a realização de tratamentos sistémicos adjuvantes. Concluíram
que a ausência da informação obtida com o EA não parece ter grande impacto na
administração de tratamentos adjuvantes.
No entanto, Montemurro e colaboradores [28] publicam um estudo onde verificaram
que cerca de 16% dos doentes podem ver a sua proposta de quimioterapia alterada
em função do número de gânglios metastizados, e que este risco é maior se os
tumores forem de tipo luminal.
Além disso, as linhas de orientação clínica da NCCN (National Comprehensive
Cancer Network) [24] continuam a apresentar como indicada a RT às áreas de
drenagem ganglionar se houver 4 ou mais gânglios metastizados (pN2) e a
considerar se houver apenas 1 a 3 gânglios metastizados (pN1), reforçando assim
a utilidade da informação que o EA pode proporcionar.
Verifica-se, então, que a informação revelada pelo EA vem a perder
progressivamente importância, sendo substituída pelo estudo de características
biológicas do tumor; todavia, em algumas situações continua a ser útil o
conhecimento do número de gânglios envolvidos por tumor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vivemos uma fase de mudança de paradigmas no que diz respeito ao EA em doentes
com CM.
O EA, que sempre foi entendido como parte integrante do tratamento e como
fundamental para o estadiamento, foi substituído pelo GS na sua função de
estadiamento quando este é negativo (pN0sn) e vem perdendo importância e
protagonismo quando o GS está metastizado.
Todavia, o EA mantém o seu papel nas situações em que o risco de metástases em
GNS é considerável e naquelas onde o número de gânglios metastizados é
determinante. A quantificação do risco de metástases em GNS pode ser
determinada pela utilização de ferramentas preditivas, disponíveis online, ou
pela definição de critérios institucionais, que se adaptem às práticas e à
realidade de cada Centro.
Se considerarmos a possibilidade de não realizar EA quando o GS está
metastizado, outros detalhes da actividade clínica devem ser ponderados. São
exemplos a utilidade da ecografia axilar e/ou da citologia de gânglios
ecograficamente suspeitos, ou a utilidade do exame extemporâneo do GS.
O estadiamento ganglionar de doentes com CM, e o que devemos fazer à axila,
devem ser individualizados e pensados para cada doente em particular.