Saúde Mental em Grupos Étnicos Minoritários: Representações sobre Saúde Mental
em Adultos e Crianças de Comunidades Ciganas Residentes na Região Centro de
Portugal
Saúde Mental em Grupos Étnicos Minoritários: Representações sobre Saúde Mental
em Adultos e Crianças de Comunidades Ciganas Residentes na Região Centro de
Portugal
INTRODUÇÃO
Os Ciganos estão em Portugal há 500 anos. Oriundos do Nordeste da Índia,
iniciaram os seus movimentos migratórios por volta do séc. III. A discriminação
e marginalização de que cedo foram alvo, obrigaram a um grande isolamento,
tendo criado à sua volta uma barreira que, se por um lado lhes permitiu
conservar a sua identidade e cultura, por outro remeteu-os/as ao esquecimento,
à desconfiança da sociedade maioritária e à sua própria exclusão (Portugal,
2011).
Embora não existam dados demográficos rigorosos, estima-se que residam em
Portugal cerca de 30 000 a 90 000 cidadãos portugueses de etnia cigana,
dispersos em grupos de maior ou menor dimensão pelo país, na sua grande maioria
sedentarizados numa organização social estruturada em torno da família,
encontrando-se as comunidades concentradas no litoral e zonas de fronteiras
(Silva, 2005; Fundação Secretariado Gitano, 2007). Em Portugal e, de um modo
geral, na Europa (de Ocidente e de Leste) os ciganos têm sido impedidos de se
integrar na sociedade global com o fundamento das particularidades de vida
nómada, de resistência à escolarização e à profissionalização e da forte
solidariedade interna (Silva, 2005: 15).
Na perspetiva identitária mais comum, o "outro" é o nosso "contrário", e, em
Portugal, "os ciganos", tomados de forma estereotipada como uma globalidade,
competem com os "pretos" na ocupação da posição de máxima distância social,
"tendo sido empurrados para o lugar de outsiders de referência, tolerados
apenas, por muitos, na medida em que possibilitam aos identitariamente
dominantes ganhos identitários relevantes" (Bastos, Correia & Rodrigues,
2007).
À vivência concreta da exclusão social identitária, acrescem situações de
pobreza e exclusão social. Face a essa exclusão efetiva, que integra elementos
de autoexclusão por parte dos ciganos (quer como afirmação de cultura própria
que não se pretende diluir na cultura dominante, quer como reação à exclusão de
que são alvo), a sociedade portuguesa auto-justifica, ativa ou passivamente,
atitudes de discriminação que constituem outros tantos fatores de exclusão. Em
Portugal, as comunidades ciganas são um dos grupos mais afetados por fenómenos
de pobreza e de exclusão social. As condições precárias de habitação, as baixas
qualificações académicas e profissionais, com níveis elevados de desemprego ou
trabalho nas raias da marginalidade, a dificuldade no acesso a prestações
sociais bens e serviços de saúde, marcam a vida nestas comunidades (Silva,
2005; Fundação Secretariado Gitano, 2007).
Um estudo recente, realizado pela Agência dos Direitos Fundamentais da União
Europeia (FRA, 2012), que entrevistou mais de 22.200 pessoas ciganas e não
ciganas a residir em vários países europeus, (Bulgária, Eslováquia, Espanha,
França, Grécia, Hungria, Itália, Polónia, Portugal, República Checa e Roménia)
conclui que, no espaço europeu, a situação de pobreza extrema e os processos de
discriminação são os elementos prevalentes nas comunidades ciganas, atingindo
níveis dramáticos. Esta pesquisa revela que, em média, cerca de 90% dos Ciganos
entrevistados vive em agregados familiares com um rendimento equivalente abaixo
do limiar de pobreza nacional; em média, cerca de 40% dos Ciganos entrevistados
vive em agregados familiares onde alguém foi para a cama com fome pelo menos
uma vez no último mês por não ter dinheiro para comprar alimentos (FRA '
Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2012).
A pobreza extrema, o desemprego, o racismo, a discriminação e estigmatização
constituem fatores extremos de vulnerabilidade e estão associados a um elevado
risco de doença mental e morte prematura (OMS, 2001; Wilkinson & Marmot,
2010). No entanto, em Portugal não existem pesquisas epidemiológicas nem
indicadores de saúde mental sobre as efetivas condições de saúde mental destas
populações.
Algumas intervenções pontuais com esta população, realizadas em escolas do
Ensino Básico na cidade de Coimbra, num contexto de promoção de Saúde Mental
Comunitária, permitiram identificar algumas questões fulcrais: a inexistência
de um diagnóstico aprofundado de necessidades específicas de grupos étnicos
minoritários, a fragilidade de modelos de intervenção construídos sem ter em
conta as especificidades multiculturais, a falta de sensibilidade cultural das
equipas de saúde que intervêm em contextos comunitários, o fraco envolvimento
dos atores-chave destes processos na construção de modelos e alternativas.
Por outro lado, diversas investigações realçam a importância do contexto
cultural na emergência e manifestação da doença mental enquanto fenómeno
socialmente circunscrito. De acordo com este modelo, são as dimensões
socioculturais, numa perspetiva sistémica, que explicam as variações de padrões
de saúde e morbilidade psiquiátrica em grupos étnicos minoritários ou
populações imigrantes. As especificidades culturais são determinantes na forma
como estas variações se manifestam ou são percecionadas e interpretadas pelos
próprios sujeitos que as vivenciam (Devereux, 1970). Ou seja, a experiência
subjetiva e social da doença mental expressa-se num diálogo incessante entre o
corpo e a cultura, em que os "idiomas culturais de sofrimento" podem originar
desencontros entre utentes e técnicos de saúde (Helman, 2001, 2003;
Kleinmam,1980, 1988). Os próprios itinerários de busca de ajuda para o
sofrimento emocional ou para a disfunção, estão imbrincados de metáforas
culturais que é preciso compreender "a partir de dentro" (Quartilho, 2001;
Kirmayer et al, 2003, Monteiro, 2011).
Conhecer as representações sociais compartilhadas pelos participantes de um
grupo é uma forma de penetrar nos significados elaborados por eles, sobre o
mundo e sobre eles próprios e de compreender este mundo a partir das
perspetivas dos que o elaboram. De facto, a elaboração de programas de promoção
de saúde mental em grupos étnicos minoritários, implica um conhecimento prévio
dos conceitos e representações socialmente dominantes nestes grupos
específicos, sobre saúde mental e bem-estar subjetivo.
O estudo das representações sociais consiste na análise dos processos pelos
quais os indivíduos, em interação social, constroem teorias sobre os objetos
sociais, que tornam viável a comunicação e organização dos comportamentos. A
teoria das representações sociais apresenta-se, portanto, como um enquadramento
teórico adequado para estudar discursos simbólicos, mentalidades, ideias e/ou
imagens coletivas (Moscovici, 1978; Vala, 1993). As representações sociais ou
"imagens de referência'" coletivas sobre o que é saúde ou o que é doença
e sobre a medicina, refletem a cultura específica de um determinado grupo, com
os seus valores, os seus ideais e as suas crenças (Silva, 2005). Apesar de
serem uma modalidade de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, as
representações sociais não são meros enunciados cognitivos sobre a realidade,
mas teorias sociais práticas sobre objetos relevantes na vida dos grupos,
enquanto organizadoras de comportamentos (Jodelet,1989). Por outro lado, as
representações sociais balizam a construção de categorias identitárias,
permitindo a produção de sentido(s) decorrentes das interações no interior de
grupos e da lógica das relações intergrupais (Vala, 1997). Daí que a sua
análise seja particularmente relevante em populações que constituem grupos
minoritários.
MÉTODOS E PROCEDIMENTOS
Esta investigação teve como objetivo identificar e compreender as
representações sociais sobre saúde mental em indivíduos de etnia cigana, de
nacionalidade portuguesa, a residir na região centro de Portugal (Coimbra).
As intervenções de campo realizadas e a acessibilidade à população foram
precedidas por contactos institucionais e pedidos de autorizações no âmbito de
projetos de intervenção em saúde mental comunitária em meio escolar em curso,
em articulação com o Centro de Saúde Fernão de Magalhães, agrupamento de
escolas e Câmara Municipal de Coimbra. Foram salvaguardados os princípios
éticos inerentes à investigação, nomeadamente o respeito pela privacidade e
identidade dos participantes e o consentimento informado.
O estudo exploratório, de natureza qualitativa, decorreu entre 30 de Abril e 30
de Junho de 2012 e foi desenvolvido num contexto de ensino clínico de
Enfermagem de Saúde Mental Comunitária e de Reabilitação, envolvendo estudantes
do 4º ano da licenciatura em Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem de
Coimbra. Foram utilizadas metodologias qualitativas variadas de recolha de
dados: pesquisa bibliográfica e documental para a compreensão do contexto,
entrevistas a informantes privilegiados e técnicas de Focus Group. Quer o Focus
Group quer as entrevistas foram estruturados tendo como eixo questões centrais,
com um guião semiestruturado, focando a exploração de conceitos como
felicidade, bem-estar, autorrealização e saúde, numa tentativa de compreender
representações sociais do conceito de saúde mental na comunidade cigana.
Relativamente às representações sociais sobre saúde mental em crianças de etnia
cigana, os dados foram colhidos no âmbito de uma atividade de Focus Group com a
duração de 45-60 minutos, que envolveu a visualização de curtos filmes de
desenhos animados, jogos em grupo, exploração de conceitos/palavras incidindo
sobre as mesmas questões centrais e análise de desenhos temáticos desenvolvidos
pelas crianças. O Focus Group, integrado em atividades de promoção da saúde em
curso como projeto escolar, foi orientado por três membros da equipa de
investigação e contou com a colaboração e presença dos professores das
crianças, como agentes facilitadores, tendo em conta a salvaguarda da
confidencialidade dos dados. A metodologia de Focus Group tem sido amplamente
utilizada em jovens e adolescentes e a sua utilização em crianças a partir e
sete anos é eticamente aceitável (Morgan et al, 2002), revelando-se o meio mais
adequado para colher dados neste contexto.
Foram ainda realizadas reuniões e contactos informais com professores da Escola
Básica do 1º Ciclo alvo do estudo, com a equipa técnica multidisciplinar do
Parque Habitacional Nómada e uma entrevista estruturada a um mediador
sociocultural de etnia cigana. Os dados colhidos foram analisados recorrendo a
análise de conteúdo num processo de busca e de organização sistemática
analítica de transcrições de entrevistas, notas de campo e outros materiais que
foram sendo acumulados". (Bardin,1995; Gabriel, 2007:184).
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Este estudo abrangeu cerca de trinta crianças entre os 6-11 anos,
predominantemente de etnia cigana numa escola de Ensino Básico situado num
bairro residencial problemático e um grupo de adultos e famílias de etnia
cigana residentes em Coimbra (5 indivíduos de etnia cigana, 3 do sexo feminino
e 2 do sexo masculino com idades de 19 e 30 anos).
No grupo das crianças, o conceito de saúde mental surgiu fortemente associado à
ideia de felicidade e bem-estar, relacionados com vivências concretas do
quotidiano, interações grupais positivas, contactos familiares e atividade
física:
"Andar de bicicleta", "jogar futebol", "andar de trotinete", "andar de mota com
o tio", "andar de skate", "o professor a dizer piadas", "brincar", "amigos",
"família".
A afetividade e as manifestações de envolvimento emocional surgiram como
relevantes neste contexto:
"Estar apaixonado faz-nos felizes", "felicidade é receber prendas", "dar
beijinhos",
De igual forma, emergiram neste grupo relatos de vivências concretas do
quotidiano percecionadas como tristeza e sofrimento emocional, expresso em
experiências de exclusão social, solidão ou a presença mais ou menos indelével
do estigma e discriminação.
"A minha mãe está presa", "Não consigo fazer como os outros", "Não tenho
ninguém para brincar", "Os meus pais estão presos", "Eu às vezes sinto-me
sozinha", "Ninguém quer brincar comigo, ando de bicicleta sozinho", "Quando
estou triste vou para o quarto e fico sozinho".
Por outro lado, em termos comportamentais e de expressão de emoções, os dados
da atividade de Focus Group com crianças em idade escolar indiciam que o modelo
de resolução e conflitos entre pares passa mais pelo confronto físico do que
pelo diálogo ou busca de mediadores adultos. Algumas expressões apontam mesmo a
violência como uma "normalidade existencial":
"Isto aqui, a gente chega lá e pum pum pum ' murros", "Se nos baterem temos que
nos defender", "Apetece bater quando estamos irritados", "Se bater sinto-me
melhor", "Estão dois a bater-se, depois vêm os amigos, família e fica muita
gente".
Da análise de dados do Focus Group com adultos e famílias de etnia cigana
emergiu a noção de que a saúde mental surge como uma noção de ausência de
doença mas numa perspetiva holística e global,
"Não é só físico, são também os problemas".
Parece existir uma diferenciação entre a saúde física e a saúde mental,
associada a sintomatologia de tristeza ou ansiedade:
" fui operada e fiquei melhor a nível físico, mas não me sinto com saúde porque
estou triste, é a cabeça".
A tristeza é o principal referente como sintomatologia de ausência de saúde
mental, havendo implícita, recorrentemente, a ideia que os aspetos psicológicos
e emocionais têm repercussões no "corpo":
"Sempre ouvi dizer que a tristeza mata" ; "Já a minha avó dizia que estar bem é
alegria e saúde".
A ideia de bem-estar emocional e saúde mental surgiu sempre associada a um
conceito mais alargada e integrador - não apenas o bem-estar subjetivo ou auto-
referencial mas um bem-estar emocional alargado ao grupo de pertença, às
constelações familiares e comunitárias. A principal fonte de autorrealização,
energia vital e apoio emocional radica na família mais próxima, com uma grande
centralidade na vinculação e no cuidado às crianças. Ouvir música constitui
outra atividade que proporciona felicidade, assim como cantar.
Um dos principais fatores referidos como fonte de sofrimento emocional e/ou
doença ou perturbação surgiu associado a lutos e perdas ou conflitos
familiares:
"Morrer alguém da nossa família" ; "Perder alguém"; "os filhos estarem
doentes",
"No dia-a-dia, sinto-me mal disposta (triste) porque penso nos meus filhos.
Queria estar bem com os meus filhos e não posso estar"
Quanto à procura de recursos e/ou, cuidados de saúde mental e respetiva
acessibilidade por parte da comunidade cigana, parece não existir a perceção
dessa necessidade ou a crença de que os cuidados médicos convencionais possam
resolver perturbações de foro mental. Também no Focus Group com grupo de
crianças em idade escolar este dado foi evidente:
"O médico não controla os nossos sentimentos".
CONCLUSÕES
Os resultados do trabalho de campo junto de população de etnia cigana
residentes em Coimbra (crianças em idade escolar e famílias) sugerem que, nos
participantes do estudo, a conceção culturalmente demarcada de saúde mental e
bem-estar emocional tem uma componente holística, sem existir uma clivagem
demarcada entre o conceito de "saúde física" e "saúde mental". No entanto,
enquanto que para a "saúde física", a noção de saúde remete quase sempre para a
noção de não-doença (nesta visão da doença, ou se está doente, com sintomas, ou
não se tem sintomas e se está não-doente), o conceito de saúde mental surge
associado à noção de bem-estar global, integrador das relações familiares e
identitárias.
Neste estudo, a noção de saúde mental e bem-estar emocional aparecem fortemente
associados ao bem-estar da família, incluindo família alargada. Também os
motivos de tristeza ou sofrimento emocional aparecem relacionados com questões
familiares, como processos de morte ou de luto, separação ou problemas com
pessoas significativas.
As relações familiares de parentesco parecem constituir um elemento organizador
e aglutinador dos aspetos psicológicos e emocionais essenciais do quotidiano,
com um forte sentimento comunitário e de identidade ao grupo de pertença. É
também na família que se busca apoio e suporte social em situações de tristeza,
dificuldades do quotidiano ou nos processos de luto. Estes achados vão ao
encontro de outros estudos sobre alguns marcadores culturais específicos das
comunidades ciganas, fortemente estruturadas em volta da família e valores
familiares (Cunha, 2001; Silva, 2005;Fonseca et al, 2005; Bastos, Correia
& Rodrigues, 2007).
Os dados colhidos permitiram também identificar o impacto negativo de alguns
contextos de exclusão social, violência ou criminalidade no bem-estar
psicológico, sobretudo das crianças. Nas crianças, a situação de ter familiares
diretos a cumprirem penas de prisão como resultado de comportamentos criminais,
parece ter um forte impacto emocional. Fatores socioeconómicos como baixo poder
de compra, dificuldades habitacionais, poucas perspetivas de futuro, surgiram
como elementos associados a experiencia subjetiva de sofrimento psicológico. Os
projetos de inclusão social em curso junto da comunidade cigana desenvolvidos
pela autarquia de Coimbra parecem estar a ter impactos muito positivos, quer na
integração social destas comunidades, quer na acessibilidade aos cuidados de
saúde.
Os dados deste estudo exploratório podem ser aprofundados em investigações
posteriores e servir de partida à construção de abordagens mais estruturadas e
promoção de saúde mental neste grupo específico.