A intervenção psicoterapêutica em enfermagem de saúde mental: Conceitos e
desafios
Introdução
A intervenção psicoterapêutica pode ser definida, de acordo com aquela que é,
para a American Psychological Association, a mais consistente definição do
conceito, como the informed and intentional aplication of clinical methods and
interpersonal stances derived from established psychological principles for the
purpose of assisting people to modify their behaviors, cognitions, emotions,
and/or other personal characteristics in directions that the participants deem
desirable" (Norcross in Zeig & Munion, 1990, p. 218-220). Apesar desta
definição parecer apontar, sobretudo, para a Psicologia, dada a referência
realizada aos psychological principles, existe em Portugal um Regulamento que
refere, tacitamente, que o enfermeiro especialista em Enfermagem de Saúde
Mental tem a competência de prestar cuidados de âmbito psicoterapêutico,
socioterapêutico, psicossocial e psicoeducacional (Regulamento n. º 129/2011,
p. 8672).
É precisamente a partir deste facto que foi sentida a necessidade de elaborar o
presente artigo, sendo que este procura oferecer uma análise teórica acerca da
realização de intervenções psicoterapêuticas por parte dos enfermeiros
especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria (ESMP). Portanto,
procurar-se-á apresentar alguns dados relativos a esta temática e compreender
os desafios que ainda subsistem, em Portugal, para a realização efetiva de
intervenções psicoterapêuticas por parte dos enfermeiros especialistas em ESMP,
visando dar resposta à seguinte questão de partida: o que pode ser feito, em
Portugal, para promover e advogar pela realização efetiva de intervenções
psicoterapêuticas, enquanto intervenção autónoma de Enfermagem, por parte dos
enfermeiros especialistas em ESMP?
Analisando a situação atual, verifica-se que apesar de o Regulamento acima
citado, publicado em Diário da República, referir a possibilidade de os
enfermeiros prestarem cuidados de âmbito psicoterapêutico, podendo daí
depreender-se que têm a competência de realizar intervenções psicoterapêuticas
junto das pessoas que apresentem essa necessidade (mediante avaliação prévia),
não foi encontrado na literatura consultada qualquer modelo de intervenção
psicoterapêutica desenvolvido por enfermeiros e para enfermeiros, embora fosse
possível verificar a existência de dois modelos de cuidados criados por
enfermeiros (Barker & Buchanan-Barker, 2005; Wheeler, 2011). No entanto,
estes parecem tratar-se mais de modelos orientadores do cuidar em ESMP do
que, propriamente, de modelos de operacionalização da realização de
intervenções psicoterapêuticas.
Na base da elaboração deste artigo foi assumida a concetualização de Enfermagem
a partir da conjugação de três diferentes definições: como o study of caring
in the human health experience (Newman, Sime, & Corcoran-Perry, 1991, p.
3); como facilitating transitions to enhance a sense of well-being (Meleis
& Trangenstein, 1994, p. 257); e como a health care discipline and healing
profession, both an art and science, which facilitates and empowers human
beings in envisioning and fulfilling health and healing in living and dying
through the development, refinement and aplication of nursing knowledge for
practice (Roy, 1984, p. E33), sendo definido facilitating humanization,
meaning, choice, quality of life and healing in living and dying (Roy, 1984,
p. E33) como o foco central unificador da disciplina de Enfermagem. Dentro
desta concetualização de Enfermagem, o papel do enfermeiro especialista em ESMP
parece estar, de acordo com Peplau (1991), centrado na qualidade da relação
interpessoal entre o enfermeiro e o cliente, sendo que essa mesma relação
atravessa quatro estádios de desenvolvimento: fase de orientação; fase de
identificação; fase de exploração; fase de resolução.
A interligação entre os conceitos acima definidos parece essencial para se
compreender a pertinência e a importância da realização de intervenções
psicoterapêuticas por parte dos enfermeiros especialistas em ESMP. Assim, e
tendo por base a definição concetual apresentada, o capítulo seguinte será
dedicado a apresentar uma contextualização teórica para a(s) possível/possíveis
resposta(s) a dar à questão de partida apresentada.
Revisão da Literatura
Em Portugal, considera-se que as intervenções autónomas de Enfermagem são as
acções realizadas pelos enfermeiros, sob a sua única e exclusiva iniciativa e
responsabilidade, de acordo com as respectivas qualificações profissionais,
seja na prestação de cuidados, na gestão, no ensino, na formação ou na
assessoria, com os contributos na investigação em enfermagem (Decreto-Lei n.º
161/96, p. 2961). Analisando esta frase, presente em Diário da República, pode
considerar-se que uma intervenção de Enfermagem apenas se assume
verdadeiramente como autónoma quando, na sua base, está a realização de
investigação em Enfermagem.
No caso das intervenções psicoterapêuticas potencialmente realizáveis por
enfermeiros, descritas na Classificação das Intervenções de Enfermagem, como
são exemplos a reestruturação cognitiva e a modificação do comportamento
(Bulechek, Butcher, & Dochterman, 2010), verificam-se dois aspetos
importantes: a) não foi encontrado na literatura qualquer modelo de intervenção
que permita operacionalizar, de forma sistematizada, estas intervenções
psicoterapêuticas; b) em ambos os casos, os conhecimentos que estão na base da
realização deste tipo de intervenções são do âmbito da Psicologia e/ou da
Psiquiatria, não tendo sido encontrada na literatura qualquer investigação em
Enfermagem que suporte as intervenções psicoterapêuticas supracitadas. Apesar
disso, foi possível encontrar alguma investigação em Enfermagem (e.g., Newbold,
1996) em que foram utilizadas as técnicas de reestruturação cognitiva e/ou de
modificação do comportamento, porém, sempre numa lógica de avaliação da sua
efetividade em casos concretos e utilizando a reestruturação cognitiva e a
modificação do comportamento sem evidência concreta da sua metodologia de
operacionalização e tendo como base, sobretudo, os princípios gerais da Terapia
Cognitiva (Beck & Alford, 2009) e da Terapia Comportamental (Skinner,
Solomon, & Lindsley, 1953).
Na prática clínica, em Portugal, verifica-se que a realização de intervenções
psicoterapêuticas por parte dos enfermeiros especialistas em ESMP se apresenta
algo aquém do que seria expectável e daquelas que são as reais necessidades em
cuidados das pessoas, embora esta afirmação careça de evidência científica que
possibilite a sua exploração. Ainda assim, parece haver alguma relação entre
este aparente défice e o facto de os enfermeiros não se sentirem seguros na
realização de intervenções psicoterapêuticas, dada a ausência de modelos que
permitam a sua clara operacionalização, à exceção de alguns casos, como as
técnicas de relaxamento, cujas metodologias de operacionalização estão
claramente definidas (Payne, 2002).
A somar a esta realidade, verifica-se que os enfermeiros que procurem
incrementar os seus conhecimentos e competências para a realização de
intervenções psicoterapêuticas, por exemplo, através da realização de formação
em Psicoterapia numa sociedade científica com oferta formativa na área, nem
sempre conseguem aceder ao curso que desejariam realizar ou, noutros casos,
conseguem aceder aos cursos mas não nas mesmas condições disponibilizadas a
profissionais de saúde de áreas afins. Assim, a título de exemplo, na Sociedade
Portuguesa de Psicoterapias Breves (2012), o acesso ao Curso de Psicoterapeutas
está apenas disponível, de forma direta, a quem tiver realizado uma
Licenciatura de cinco anos ou Mestrado Integrado em Psicologia com área de
Curso e estágio na área de Psicologia Clínica (portanto, a psicólogos
clínicos), e a licenciados em Medicina com especialidade em Psiquiatria ou
Pedopsiquiatria (portanto, a médicos psiquiatras ou pedopsiquiatras). No caso
dos enfermeiros especialistas em ESMP que queiram realizar o Curso de
Psicoterapeutas, estes necessitam, previamente, de realizar o Curso de Técnicos
de Aconselhamento (com uma duração de dois anos) e, posteriormente, ingressar
no Curso de Psicoterapeutas (com uma duração de cinco anos), totalizando sete
anos de formação na área de estudo.
Internacionalmente, as perspetivas apontam para a importância da realização de
intervenções psicoterapêuticas por parte dos enfermeiros. Assim, de acordo com
um position document da Horatio: European Psychiatric Nurses (2012), assinado
por Martin Ward, devem ser evitados os monopólios profissionais no que concerne
à prestação de cuidados de âmbito psicoterapêutico, sendo que: a) os
enfermeiros especialistas em ESMP, devidamente formados, devem ser incorporados
nos serviços de Saúde Mental, especialmente naqueles em que existam patologias
mentais significativas e complexas que requeiram uma abordagem combinada de
âmbito psicoterapêutico e psicofarmacológico; b) os enfermeiros que não
realizem Psicoterapias mas que apoiem as pessoas que são alvo das mesmas, devem
ser formados de modo a complementar o trabalho do psicoterapeuta.
Para dar resposta às dificuldades supracitadas, parece essencial a criação de
um modelo de intervenção psicoterapêutica em Enfermagem. Na pesquisa realizada
foi possível encontrar dois modelos, The Tidal Model (Barker & Buchanan-
Barker, 2005) e The Relationship-Based Model for Psychiatric Nursing Practice
(Wheeler, 2011) que, ainda assim, parecem assumir-se mais como modelos
orientadores do cuidar em ESMP do que como modelos de operacionalização da
intervenção psicoterapêutica em Enfermagem. No primeiro caso, trata-se de uma
abordagem filosófica à descoberta da Saúde Mental e de uma abordagem ao
recovery não se tratando, contudo, de um sistema rígido, facto que lhe retira
alguma facilidade de operacionalização. Quanto ao segundo modelo referido, este
trata-se de uma síntese de investigação e de teoria nas áreas da neurobiologia,
ligação, desenvolvimento infantil e trauma tratando-se, portanto de um modelo
que, com base nos metaparadigmas da Enfermagem e na assunção da importância da
relação terapêutica, assenta numa interpretação psicodinâmica e biopsicológica
da patologia mental e norteia as opções psicoterapêuticas que podem ser tomadas
para dar resposta à situação da pessoa doente. No entanto, trata-se de um
modelo que orienta o cuidar mas não a intervenção psicoterapêutica, visto que
sugere estratégias de intervenção de acordo com o contexto patológico, mas não
operacionaliza essas mesmas estratégias de intervenção.
Com base na contextualização teórica (e empírica) apresentada, parece existir a
necessidade de desenvolver e avaliar um modelo de intervenção psicoterapêutica
em Enfermagem, como forma de permitir a realização efetiva de intervenções
psicoterapêuticas, enquanto intervenção autónoma de Enfermagem, por parte dos
enfermeiros especialistas em ESMP. Assim, o capítulo seguinte destinar-se-á a
aprofundar esta possível solução para dar resposta à questão de partida
inicialmente formulada.
Análise
Tendo em linha de conta os factos apresentados no capítulo anterior, o
desenvolvimento e avaliação de um modelo de intervenção psicoterapêutica em
Enfermagem parece ser uma possível solução para permitir que os enfermeiros
especialistas em ESMP realizem, efetivamente, intervenções psicoterapêuticas
enquanto intervenção autónoma de Enfermagem. Na base deste modelo de
intervenção terá, necessariamente, que estar presente conhecimento de
Enfermagem (desenvolvido por enfermeiros), como forma de consolidar a vertente
autónoma do modelo de intervenção a criar. Assim, considera-se que como pilar
do modelo deverá estar a relação de ajuda profissional em Enfermagem, matéria
amplamente trabalhada por teóricos da disciplina (Chalifour, 2008; Lazure,
1994; Phaneuf, 2005). Porém, e seguindo a perspetiva de Chalifour (2008), a
relação de ajuda profissional deve ser considerada como uma atitude subjacente
à realização de qualquer intervenção de âmbito psicoterapêutico, e não como uma
estratégia terapêutica per si.
Considerando que, ao longo do tempo, tem havido uma tendência para a
convergência das abordagens psicoterapêuticas (e.g., atualmente a Terapia
Cognitiva e a Terapia Comportamental têm vindo a ser substituídas por uma
abordagem mais inclusiva ' a Terapia Cognitivo-Comportamental), o modelo de
intervenção psicoterapêutica a desenvolver deverá ser tão inclusivo quanto
possível, tanto ao nível da intervenção como ao nível dos contextos, sendo
crucial a sua aplicabilidade nos contextos tradicionais da prática clínica. Ao
nível do potencial terapêutico, não se espera que o modelo permita dar resposta
direta a diagnósticos médicos, mas sim a diagnósticos de Enfermagem a definir
(elaborados de acordo com a linguagem classificada da Classificação
Internacional para a Prática de Enfermagem®), embora seja possível que,
consequentemente, haja também ganhos ao nível dos diagnósticos médicos. Desta
forma, poderá tornar-se possível obter indicadores de resultado em Enfermagem
mais positivos, em particular ao nível das Modificações positivas no estado
dos diagnósticos de enfermagem (reais) (Ordem dos Enfermeiros, 2007), sendo
este facto de extrema importância considerando o momento atual, em que o
Ministério da Saúde do Governo de Portugal tem vindo a considerar os
indicadores em Saúde como uma prioridade estratégica para o futuro do Serviço
Nacional de Saúde.
Os principais objetivos do desenvolvimento de um modelo de intervenção
psicoterapêutica em Enfermagem são, portanto, os seguintes: estabelecer a
operacionalização de uma metodologia de intervenção comum, assente na relação
de ajuda profissional; uniformizar a linguagem a utilizar nas diferentes
intervenções psicoterapêuticas; clarificar a especificidade da intervenção
psicoterapêutica em Enfermagem; estimular o desenvolvimento de modelos de
intervenção psicoterapêutica em Enfermagem; contribuir para a melhoria das
respostas de âmbito psicoterapêutico em Saúde. Assim, o modelo de intervenção
psicoterapêutica em Enfermagem a desenvolver deverá obedecer aos seguintes
critérios: a) ser suficientemente abrangente para ser aplicado em diferentes
settings; b) ser consistente com os modelos já existentes, mas não dependente
de nenhum modelo em específico; c) ser sensível às diferentes necessidades das
pessoas, ou seja, dar resposta a um número considerável de diagnósticos de
Enfermagem; d) ter como matriz a relação de ajuda profissional, e por veículo
de ação a relação terapêutica.
Finalmente, importa clarificar que o modelo de intervenção psicoterapêutica a
desenvolver deve comportar dois níveis. O primeiro nível deverá consistir numa
árvore de decisão que permita aos enfermeiros especialistas em ESMP decidir, de
acordo com as necessidades apresentadas pelo cliente, sobre qual a melhor
abordagem psicoterapêutica a adotar, devendo haver duas opções de intervenção
possíveis: a) baseada na Psicoterapia Psicodinâmica, caso o problema da pessoa
esteja nos processos mentais inconscientes; b) baseada na Terapia Cognitivo-
Comportamental, caso o problema da pessoa resida na disfuncionalidade dos seus
pensamentos, emoções e/ou comportamentos. O segundo nível deverá consistir numa
forma clara de operacionalização destas duas tipologias de intervenção
psicoterapêutica em Enfermagem.
Conclusão
Em Portugal, urge criar condições para que os enfermeiros especialistas em ESMP
possam realizar, efetivamente, intervenções psicoterapêuticas, assumindo-se
estas como intervenções autónomas de Enfermagem, com um corpo de conhecimento
próprio (ainda que apoiado noutras disciplinas científicas), e com uma
metodologia de operacionalização bem sistematizada. Nesse sentido, uma possível
solução parece residir no desenvolvimento de um modelo de intervenção
psicoterapêutica em Enfermagem que tenha na sua base estrutural a relação de
ajuda profissional em Enfermagem, atitude consistentemente trabalhada por
alguns teóricos de Enfermagem.
Apesar de a solução proposta estar fundamentada em factos e evidências que a
suportam, importa ressalvar que não foram encontradas na literatura
experiências similares realizadas, quer nacional quer internacionalmente, pelo
que existe alguma imprevisibilidade nos resultados que poderão ser obtidos.
Portanto, após o desenvolvimento do modelo, torna-se essencial avaliá-lo de
forma rigorosa, tanto ao nível dos resultados como dos processos (de modo a ser
possível clarificar os mecanismos causais e identificar os fatores contextuais
associados com as variações nos resultados).
A proposta apresentada assenta naquele que é assumido como o foco da ação do
enfermeiro especialista em ESMP: a qualidade da relação interpessoal
estabelecida entre o enfermeiro e o cliente (Peplau, 1991). Para além disso,
caso o modelo de intervenção psicoterapêutico a desenvolver apresente
resultados positivos, pode afirmar-se que este auxiliará significativamente o
enfermeiro especialista em ESMP a cumprir uma das principais missões da
Enfermagem: facilitating transitions to enhance a sense of well-being (Meleis
& Trangenstein, 1994, p. 257).