Motivos de consulta em Medicina Geral e Familiar no distrito de Coimbra no ano
de 2010
Introdução
Os Cuidados de Saúde Primários (CSP) e em particular a Medicina Geral e
Familiar (MGF) são a porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde e o que
acontece neles deve ser estudado. Há pouco conhecimento sobre os motivos que
levam as pessoas a procurar o seu médico de família (MF), o que pode conduzir a
uma má abordagem e compreensão dos conceitos de prevenção, promoção e risco.1
Em muitos países há falta de informação sobre os motivos que levam os utentes a
dirigir-se aos CSP e em Portugal verifica-se o mesmo desconhecimento. Os
registos informáticos são fundamentais em qualquer sistema de saúde2 e em MGF
podem ser utilizados não só para avaliar o trabalho dos clínicos, como também
para estudo de um extenso conjunto de informação disponível e de fácil acesso
para investigação, fornecendo importantes dados epidemiológicos. O estudo do
motivo de consulta e expetativas do doente permite o desenvolvimento da Saúde
Pública e de programas de prevenção e o fornecimento adequado de cuidados
diretos ao utente.2,3
O motivo de consulta é definido como "um termo acordado que transmite as
razões pelas quais um paciente entra no sistema de saúde e representa o motivo
desta pessoa".4 Os motivos pelos quais os pacientes procuram o seu MF
podem ser extremamente variáveis, passando por pedido de procedimentos
administrativos, de rastreio, de seguimento de doenças crónicas e de avaliação
de sinais e sintomas, entre outros.4,5,6
Assim, o conhecimento da distribuição da frequência dos motivos de consulta
poderá ter impacto na dinâmica da consulta e na rapidez e eficiência da atuação
médica, em particular em MGF, quando são utilizados instrumentos normalizados
para conhecimento do que se pretende medir.7
A International Classification for Primary Care (ICPC) foi publicada em 1987
pelo Comité de Classificação Internacional da WONCA (World Organization of
Family Physicians).A versão atual (ICPC-2) resulta da revisão da primeira
versão (ICPC-1).5 A ICPC baseia-se numa estrutura simples bi-axial: 17
capítulos num dos eixos, cada um com um código alfa, e, no outro eixo, 7
componentes com rubricas numeradas com códigos de dois dígitos. No fim de cada
secção e subsecção, podem encontrar-se rubricas residuais, cuja descrição
inclui a palavra "outros" ou "não especificado de outra
forma". A ICPC-2 permite a classificação padronizada dos motivos de
consulta, podendo ser utilizada juntamente com o método de Weed. Assim, a ICPC-
2 reflete elementos essenciais de cada encontro entre médico e utente,
permitindo a anotação e posterior análise de vários dados decorrentes do
encontro. Por um lado, a ICPC-2 é uma ferramenta útil e adequada na prática
clínica, sendo proveitosa para o conhecimento psicossocial e posterior
avaliação diagnóstica, tendo sido aceite pela Organização Mundial de Saúde como
a melhor ferramenta de classificação nos CSP.6;8-11 No entanto, apesar de ser
uma ferramenta útil para a codificação, é pouco adequada para a prática clinica
diária não protegida, caracterizada por grande pressão assistencial, pelo que
classificar usando a ICPC é adequado sobretudo em ambientes protegidos:
investigação, internatos e ensino, entre outros.12-13
Este estudo tem como objetivo verificar quais os motivos de consulta registados
pelos MF do distrito de Coimbra, no ano de 2010, utilizando a ICPC-2, avaliando
a frequência por capítulo e pelos diferentes componentes do capítulo.
Materiais e Métodos
Foi realizado um estudo observacional, transversal contabilizando os motivos de
consulta codificados utilizando a ICPC-2 pelos MF do distrito de Coimbra
durante o ano de 2010. Os ficheiros informáticos foram disponibilizados, em
formato Excel®, pela Administração Regional de Saúde do Centro, após pedido da
respetiva autorização, mediante aprovação do protocolo pela Comissão de Ética
da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Os centros de saúde
estudados utilizam a aplicação de registos médicos electrónicos SAM®.
O distrito de Coimbra tem uma área de 3.947 km² e uma população residente de
429.714 habitantes (Instituto Nacional de Estatística, 2009), integrando 17
municípios (Arganil, Cantanhede, Coimbra, Condeixa-a-Nova, Figueira da Foz,
Góis, Lousã, Mira, Miranda do Corvo, Montemor-o-Velho, Oliveira do Hospital,
Pampilhosa da Serra, Penacova, Penela, Soure, Tábua e Vila Nova de Poiares). O
estudo decorreu sobre uma amostra de conveniência dos MF de 16 CS localizados
em 12 destes 17 municípios. Não foram incluídos os utentes dos CS dos
municípios de Cantanhede, Figueira da Foz, Lousã, Soure e Penela devido à não
disponibilização atempada dos dados.
Foi utilizada estatística descritiva e utilizado o programa PAWS vs 19.
Resultados
Foram estudados 453.388 motivos de consulta codificados nos 16 CS do distrito
de Coimbra estudados, resultantes de 945.348 encontros no ano 2010,
correspondendo a 0,48 motivos por encontro.
No quadro_I estão representados os motivos de consulta estudados, segundo o
capítulo e o componente da ICPC-2. Os motivos de consulta mais frequentemente
codificados pertenciam ao capítulo A "geral e inespecífico"
(39,8%). A estes seguiram-se os motivos do capítulo L "sistema músculo-
esquelético" (9,9%), do capítulo K "aparelho circulatório"
(8,7%) e do capítulo W "gravidez e planeamento familiar" (7,8%).
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Mais de um terço dos motivos de consulta (30,8%) foram codificados no
componente "sinais e sintomas" (Quadro_I). Seguiram-se os motivos
dos componentes "procedimentos diagnósticos e preventivos" (20,0%),
"resultados de exames" (19,3%) e "medicações, tratamentos e
procedimentos terapêuticos" (16,6%).
Globalmente, o motivo de consulta mais frequente foi "resultados de
análises/procedimentos" do capítulo "geral e inespecífico"
(13,2%), seguido de "consulta de seguimento não especificada" do
mesmo capítulo (4,6%) e de "exame médico/avaliação de saúde/
parcial" do "gravidez e planeamento familiar" (4,4%) (Quadro
II).
Dos motivos de consulta do capítulo "geral e inespecífico", 30,0%
corresponderam ao componente "resultados de exames" e 26,0% a
"procedimentos diagnósticos e preventivos". "Sinais e
sintomas" foram responsáveis por 6,5% dos motivos de consulta deste
capítulo, sendo, destes, "febre" (40,5%), "debilidade/cansaço
geral" (26,4%) e "sentir-se doente" (7,0%) as codificações
mais utilizadas.
O capítulo "aparelho circulatório" foi responsável por 8,7% dos
motivos de consulta, sendo, destes, 27,6% para o componente "medicações,
tratamentos e procedimentos terapêuticos", 21,3% para "resultados
de exames" e 18,1% por "sinais e sintomas" (28,2% dos quais
"outros sinais/sintomas", 13,3% "fatores de risco de doença
cardiovascular", 12,3% "tornozelos inchados/edema" e 10,0%
"palpitações/perceção dos batimentos cardíacos").
O "sistema músculo-esquelético" correspondeu a 9,9% dos motivos de
consulta, sendo, destes, 67,3% do componente "sinais e sintomas",
11,7% de "resultados de exames" e 10,1% de "medicações,
tratamentos e procedimentos terapêuticos". Dos sinais e sintomas deste
sistema apresentados como motivo de consulta, 19,6% eram da região lombar e
11,3% do joelho.
Pertenciam ao capítulo "gravidez e planeamento familiar" 7,8% dos
motivos de consulta estudados. Destes, 67,3% eram do componente
"procedimentos diagnósticos e preventivos" e 21,8% de
"diagnóstico e doenças". No componente "sinais e
sintomas" (apenas 2,7% dos motivos deste capítulo) foram mais
frequentemente assinalados "contraceção oral" (27,7%),
"questões sobre a gravidez" (22,1%) e "medo de estar
grávida" (14,5%).
Considerando os capítulos em conjunto, o componente "sinais e
sintomas" foi o mais codificado, correspondendo a um total de 139.748
motivos de consulta (30,8%). De entre estes (Quadro_III), os mais
frequentemente codificados foram "tosse" (5,6%), "sinais/
sintomas da região lombar" (4,2%), "sinais/sintomas da
garganta" (3,5%) e febre (3,5%).
Discussão
Este estudo, debruçando-se sobre codificações, é o primeiro a fornecer
informação detalhada sobre os motivos que, na ótica do paciente, levam a
população do distrito de Coimbra à consulta com o MF.
Assumiu-se que os MF do distrito de Coimbra codificavam regularmente na sua
consulta. No entanto, verificam-se apenas 0,48 motivos por encontro, sugerindo
que esta prática não está, de facto, implantada. Pode-se incentivar a
codificação investindo na consciencialização de que através da codificação se
podem retirar dados importantes para estudos de investigação.
A diversidade dos capítulos encontrados nos motivos de consulta está de acordo
com o facto de a MGF ser a porta de entrada no Sistema Nacional de
Saúde.7,12,13,19,20
Quase 40% dos motivos de consulta codificados inserem-se no capítulo
"geral e inespecífico", sendo cerca de um terço do componente
"resultados de exames". A importância dos diferentes componentes
varia entre capítulos. O componente "sinais e sintomas" foi
globalmente o mais frequentemente codificado (30,8% de todos os motivos de
consulta), assim como na maioria dos vários capítulos, à exceção dos
"geral e inespecífico", "sangue, órgãos hematopoiéticos e
linfáticos", "aparelho circulatório" e "gravidez e
planeamento familiar". Estes resultados sugerem que os utentes procuram
frequentemente os cuidados primários de saúde por sinais e sintomas e não só
por padecerem de uma doença bem definida, o que vai de encontro aos resultados
de outros estudos.15
Os 30 sinais e sintomas mais frequentemente (57,1%) apresentados como motivo de
consulta por parte dos doentes distribuem-se heterogeneamente. Deste conjunto
de sinais e sintomas mais frequentes estão excluídos 7 capítulos:
"sangue, órgãos hematopoiéticos e linfáticos", "olhos",
"endócrino, metabólico e nutricional", "gravidez e
planeamento familiar", "aparelho genital feminino",
"aparelho genital masculino" e "problemas sociais".
No estudo publicado em 1984, Lamberts et al.15 chegaram à conclusão de que a
população holandesa recorria mais frequente à consulta de MGF por motivos do
"sistema músculo-esquelético", dos aparelhos circulatório e
respiratório e, apenas em quarto lugar, por motivos de tipo geral e
inespecífico, revelando alguma sobreposição com os capítulos mais comuns no
presente estudo. Em relação aos sinais e sintomas mais frequentes no estudo
holandês, a grande maioria corresponde aos encontrados no nosso estudo, à
exceção da contraceção que representou naquele 2,4% das codificações. É ainda
de realçar a inclusão nas mais frequentemente utilizadas de 2 codificações do
capítulo "problemas sociais" (problema conjugal e problema
ocupacional), sendo este um capítulo que em Coimbra é pouco usado.
Em 1995, José Guilherme Jordão,16 na sua tese de doutoramento "A medicina
geral e familiar: caracterização prática e sua influência no ensino pré-
graduado", descreve que os três motivos de consulta mais frequentemente
codificados são dos mesmos capítulos que os encontrados o nosso estudo, mas por
diferente ordem: "sistema músculo-esquelético" (16,3%),
"aparelho circulatório" (14,1) e "geral e inespecífico"
(13,3%). Por componentes, os dois mais usados foram, como no nosso estudo,
"sinais e sintomas" (55%) e "procedimentos diagnósticos e
preventivos" (18%), sendo "medicações, tratamentos e procedimentos
terapêuticos" o terceiro (13,2%) no estudo de Jordão (e quarto no nosso).
Os resultados do nosso estudo por capítulos e por componentes também foram
semelhantes aos encontrados no trabalho de Gabriel Rodrigues, de 2010,17
realizado no CS de Cascais, mas diferem quanto aos motivos de consulta mais
frequentes, que em Cascais foram, por ordem decrescente: "exame médico/
avaliação de saúde/parcial – circulatório", "renovação de
prescrição – geral e inespecífico" e "renovação de prescrição –
circulatório" (enquanto no nosso estudo foram, também por ordem
decrescente, "resultados de análises/procedimentos – geral e
inespecífico", "consulta de seguimento não especificada – geral e
inespecífico" e "exame médico/avaliação de saúde/parcial – gravidez
e planeamento familiar").
No trabalho de Gustavo Gusso, em 2009, no Brasil,18 os motivos de consulta mais
frequentes também foram os relativos ao capítulo "geral e
inespecífico", seguindo-se o "sistema músculo-esquelético",
"aparelho circulatório", "aparelho respiratório",
"aparelho digestivo" e "gravidez e planeamento
familiar". Estes dados também coincidem com os nossos nos três primeiros
capítulos, diferindo nos seguintes. Quanto aos sinais e sintomas mais
frequentes, verificou-se uma grande semelhança com os agora encontrados em
Coimbra, à exceção de muitos motivos por "secreção vaginal",
"contraceção oral" e "prurido". Os motivos de consulta
mais frequentes foram "Medicina preventiva/manutenção da saúde",
seguido de "medicação/prescrição/renovação/injeção – circulatório"
e de "febre", também diferentes dos do nosso estudo.
Se, quando considerados por capítulos e componentes, os resultados do nosso não
diferem muito dos de outros estudos, quando considerados os motivos de consulta
globalmente mais frequentes, existem diferenças entre todos os estudos
realizados. Tal pode refletir diferenças reais nos motivos de consulta
(decorrentes de diferentes sistemas de organização de cuidados ou de diferentes
realidades epidemiológicas), ou diferenças na prática da codificação em si.
Como limitações deste estudo podem apontar-se: o desconhecimento sobre a
proporção de MF que codifica motivos de consulta na sua prática diária; o
desconhecimento sobre se os MF codificam todos os motivos de consulta de cada
encontro com o utente; a eventual dificuldade dos clínicos em interpretarem
alguns termos e conceitos apresentados pelo utente; e a possível utilização
incorreta da ICPC-2 (apesar da existência de livro explicativo e de cursos para
os médicos, quer especialistas, quer internos), resultando em certa
probabilidade de a codificação não ser homogénea. Foi utilizada esta
metodologia porque se assumiu que muitos médicos fazem codificação na sua
prática diária e que, existindo já nesta região uma experiência de utilização
das ferramentas de codificação de, em média, quatro anos, está no momento de se
iniciar estudos sobre esta prática. Os dados criados pela generalização da
prática de codificação devem ser estudados, no mínimo com objetivos formativos.
O estudo dos dados resultantes da prática clínica diária assume-se assim como
uma mais-valia adicional ao estudo das codificações de médicos especialmente
treinados em contexto de investigação.
Concluindo, os motivos de consulta mais frequentes no distrito de Coimbra, no
ano de 2010, utilizando a ICPC-2, foram, por ordem decrescente, do capítulo
"geral e inespecífico", do "sistema músculo-
esquelético" e do "aparelho circulatório". Por componentes,
os motivos de consulta mais registados foram, por ordem decrescente,
"sinais e sintomas", "procedimentos diagnósticos e
preventivos" e "resultados de exames". Os sinais e sintomas
que mais frequentemente motivaram consultas foram "tosse",
"sinais/sintomas da região lombar" e "sinais/sintomas da
garganta".
Os autores consideram importante o investimento na formação dos MF e internos
de especialidade quanto ao uso da ICPC-2, para minimizar os erros de
codificação. Consideram ainda que existe vantagem na codificação sistemática
dos motivos de consulta de todos os encontros entre utente e médico. Devido à
atual situação económica do país teria interesse repetir o estudo com dados
mais recentes para averiguar uma possível alteração na codificação no capítulo
"problemas sociais".