Construção da paz: A interface entre abordagens nacionais e internacionais
Introdução
Desde a sua entrada no léxico da política internacional em 1992, com o muito
citado relatório Uma agenda para a paz (United Nations, 1992), do, na altura,
Secretário-Geral da ONU Boutros-Boutros Ghali, o termo construção da paz tem
vindo a ser adotado nos mais diversos círculos, das agências internacionais de
desenvolvimento às organizações não governamentais locais. Ao mesmo tempo, tem
sido produzido um corpo impressionante de bibliografia, suscitando debates
importantes sobre as características fundamentais e as principais realizações e
limitações da construção da paz.1 Curiosamente, ainda não existe uma definição
comummente aceite de construção da paz, o que levou à expansão constante do
conceito, que inclui um leque de atividades que vai da prevenção de conflitos à
reconstrução pós-conflito (Barnett et al., 2007). Após o 11 de Setembro de
2001, o conceito foi ainda mais ampliado, uma vez que passou a confundir-se com
construção do Estado, construção da nação, mudança de regime e intervenção
humanitária. É agora usado indiscriminadamente no contexto dos combates no
Afeganistão, das operações de paz no Darfur, bem como da criação de
instituições a longo prazo na Serra Leoa e em Timor-Leste, o que afeta
seriamente a utilidade e a credibilidade do conceito. No entanto, a construção
da paz continua a ser uma área estimulante ' embora controversa ' para
decisores políticos, profissionais e académicos.
Este artigo concentra-se num problema que continua a preocupar quer a teoria,
quer a prática da construção da paz ' o fosso entre entendimentos e abordagens
nacionais e internacionais relativamente à construção da paz e osresultados
mistos que caracterizam os atuais esforços para ajudar os países que saem de
conflitos violentos. O artigo baseia-se na premissa de que a construção da paz
no pós-Guerra Fria se distingue pela sua forte dependência do envolvimento da
comunidade internacional.2É cada vez mais difícil falar da construção da paz na
atualidade sem fazer referência à grande variedade de atores internacionais que
têm vindo a desempenhar um papel importante nos países afetados pela guerra.
Estes atores normalmente têm valores, interesses e mandatos diversos (e, por
vezes, conflituantes) que não estão necessariamente em linha com as realidades,
necessidades ou os objetivos locais. Muito se tem escrito sobre as
consequências intencionais ou não do envolvimento de atores externos em zonas
de conflito (Anderson, 1999; Uvin, 1999). Com base nessa bibliografia, o foco
deste artigo incide mais concretamente na interface entre atores nacionais e
internacionais através da lente do conceito de hibridismo e de dois novos
mecanismos com o objetivo de nivelar o campo de atuação entre os países
afetados por conflitos e os seus parceiros internacionais.
O artigo divide-se em quatro secções. A primeira fornece uma breve visão geral
sobre as aspirações e limitações da construção da paz internacional a fim de
situar a problemática subjacente ao artigo no âmbito da prática e da
investigação. A segunda secção revê os debates atuais sobre hibridismo como uma
oportunidade para repensar as dicotomias enganadoras de externo e interno, e de
cima para baixo e de baixo para cima que caracterizam o discurso de construção
da paz contemporâneo. Tomando o hibridismo como uma lente útil para investigar
o encontro complexo e assimétrico entre as agendas nacionais e as
internacionais, a terceira secção analisa dois novos mecanismos que visam
fortalecer as vozes dos países afetados por conflitos na conceção e prestação
de assistência internacional para a construção da paz. A última secção
apresenta alguns comentários finais sobre o futuro da construção da paz.
I. O projeto internacional de construção da paz: uma visão geral
A agenda de construção da paz no pós-Guerra Fria foi desenhada mais por
necessidade do que por um projeto intencional. Ao longo da década de 1990, à
medida que os conflitos duradouros da Guerra Fria chegavam ao fim e novas
guerras, emergências complexas e conflitos intraestatais eram catapultados
para o centro do palco no que respeita aos assuntos internacionais, verificou-
se um aumento significativo na reivindicação de que as Nações Unidas e outros
atores internacionais deveriam assumir um papel concertado no auxílio a países
afetados por conflitos. Inicialmente, não era evidente que forma iria esse
auxílio tomar e como se iria enquadrar nas ferramentas e nos instrumentos de
política e de programação existentes. No entanto, as Nações Unidas, outras
organizações internacionais e regionais, agências de doadores, organizações
não-governamentais e profissionais da linha da frente do desenvolvimento, dos
direitos humanos e de organizações humanitárias envolveram-se numa série de
atividades, projetos e programas que iam além do sistema compartimentado de
assistência internacional que esteve em vigor desde o final da Segunda Guerra
Mundial. A construção da paz surgiu neste contexto altamente fluido e provou
ser um conceito particularmente útil na medida em que superou os limites das
ortodoxias da Guerra Fria.
Inicialmente, a construção da paz foi apresentada em Uma agenda para a paz no
âmbito de uma progressão de intervenções discretas que iam do restabelecimento
e da manutenção da paz à construção da paz no pós-conflito. No entanto, na
prática, os atores internacionais depressa se confrontaram com o facto de os
conflitos pós-Guerra Fria não serem unilineares na sua natureza; nem poderem
ser abordados sequencialmente. Reconhecendo as limitações de mandatos
fragmentados e das departamentalizações institucionais, os primeiros
construtores da paz começaram a trabalhar no nexo ainda inexplorado entre a
ajuda humanitária, o desenvolvimento e a segurança (Jenkins, 2013; Tschirgi,
2004). Indo além das perspetivas centradas no Estado, um número crescente de
atores internacionais procurou lidar com os conflitos intraestatais através de
novas abordagens multissetoriais, incluindo operações de paz multidimensionais.
A nova agenda de construção da paz oferecia uma oportunidade invulgar para a
ação multilateral inovadora num momento em que as políticas e os instrumentos
da Guerra Fria há muito estabelecidos eram claramente insuficientes para
resolver os conflitos intraestatais e as guerras civis. Assim, na década
posterior à Guerra Fria, a construção da paz anunciou uma nova era na
cooperação internacional e na assistência multilateral. À medida que diversos
atores a trabalhar em direitos humanos, assuntos humanitários, resolução de
conflitos, manutenção da paz ou desenvolvimento se envolveram em países
afetados por conflitos, verificou-se uma proliferação de atividades, projetos,
programas e políticas na interseção da segurança e do desenvolvimento que, no
seu conjunto, veio a ser conhecida como construção da paz.3
Não obstante a sua forte retórica internacionalista, a construção da paz era
essencialmente um projeto ocidental e foi implementada principalmente através
do sistema existente de organizações internacionais, agências de doadores e
várias organizações governamentais e não governamentais. Embora extremamente
fragmentado, ad hoc e experimental na natureza, a agenda internacionalmente
orientada de construção da paz foi em larga medida influenciada pelo conceito
de paz liberal e encontrou ressonância no etos liberalizador dos assuntos
internacionais do pós-Guerra Fria (Baranyi, 2008; Richmond, 2009; Tadjbakhsh,
2011). De Moçambique e do Camboja a El Salvador, os atores internacionais
apoiaram políticas e programas que refletiam um forte compromisso com os
valores liberais, incluindo a boa governação, o Estado de direito, direitos
humanos, participação política, eleições livres e justas, igualdade de género,
mercado livre, transparência e prestação de contas.
Não é de estranhar que as aspirações liberais da construção da paz
internacional não tenham encontrado terreno fértil em países com ordens
políticas altamente conflituantes e problemas socioeconómicos profundamente
enraizados. À medida que os ensinamentos dos países afetados por conflitos
começaram a surgir, o otimismo da década de 1990 deu lugar a sérias
preocupações sobre a adequação e a sustentabilidade do projeto de construção da
paz liberal impulsionado a partir do exterior. Entretanto, um número crescente
de estudos de avaliação foi determinante na revelação dos fracos resultados
alcançados pelos esforços de construção da paz (Goodhand, 2001; Smith, 2004;
Sørbø et al., 1998; Waller, 2000). Assim, à medida que a necessidade de
assistência internacional para a construção da paz continuou a aumentar, foram
surgindo sérias dúvidas sobre a sua eficácia e o seu impacto.
Face às origens práticas da construção da paz, a comunidade académica acabou
por chegar mais tarde ao terreno. No entanto, à medida que os testemunhos
provenientes do terreno se iam acumulando, verificou-se uma rápida proliferação
da bibliografia académica na interseção da teoria, das políticas e da prática.
Bibliografia esta que é tão rica como diversificada. No entanto, existem duas
correntes distintas que representam perspetivas divergentes sobre a construção
da paz: a abordagem convencional da resolução de problemas e a abordagem
crítica (Newman et al., 2009). A abordagem convencional aceita a construção da
paz como uma parte essencial da agenda internacional liberal da era pós-Guerra
Fria e concentra-se principalmente nas deficiências existentes na sua
aplicação. Os investigadores têm documentado de forma convincente as limitações
da construção da paz internacional, que vão desde a ausência de uma estratégia
coerente e de recursos adequados à falta de coordenação entre os atores
externos que desempenham papéis de destaque em países afetados por conflitos.
Este corpo bibliográfico veio a ser conhecido como a abordagem convencional da
resolução de problemas, uma vez que defende a perspetiva de que as limitações
da construção da paz podem ser aliviadas através de políticas, práticas e
instituições mais eficazes (Newman et al., 2009; Tadjbakhsh, 2011).
A bibliografia sobre a resolução de problemas tem sido extremamente influente.
Na conceção e execução das sucessivas intervenções de consolidação da paz, os
decisores políticos e os profissionais têm tirado partido das perspetivas de um
corpo cada vez maior de estudos académicos operacionais e de avaliação.
Simultaneamente, tem havido importantes iniciativas de reforma, incluindo a
criação de uma nova arquitetura de construção da paz da ONU (que integra a
Comissão de Consolidação da Paz, o Fundo para a Consolidação da Paz e o
Gabinete de Apoio à Consolidação da Paz), a adoção de novas orientações para as
políticas de manutenção e construção da paz, e uma maior atenção às questões
relacionadas com a sua aplicação (Cutillo, 2006; Tschirgi, 2004). Enquanto
isso, dados de contextos nacionais concretos permitiram aos investigadores e
académicos levar a cabo análises comparativas entre o que funciona e o que não
funciona em diferentes ambientes. Em resultado disso, tem havido uma
considerável sinergia e influência mútua entre políticas, prática e
investigação, o que deu origem a uma comunidade epistémica distinta em torno da
construção da paz convencional.
Uma das questões que ganharam uma maior atenção entre os decisores políticos,
bem como entre a comunidade de investigação associada à resolução de problemas,
foi a separação entre as abordagens internacionais e locais para a construção
da paz. Embora tenha sido repetidamente afirmado que a construção da paz é um
processo de origem interna, as estratégias de construção da paz foram
frequentemente concebidas e executadas por atores externos apenas com uma
consulta limitada ou superficial aos seus homólogos nacionais. Embora não fosse
claro o que envolvia a apropriação local, os mantras da apropriação e da
parceria, da coordenação e da coerência, da harmonização e do alinhamento
tornaram-se rapidamente os princípios indispensáveis para o discurso e a
prática dominantes da construção da paz (Chesterman, 2007; Donais, 2009). A
questão da apropriação local era particularmente relevante para a Comissão de
Consolidação da Paz da ONU, uma vez que passou a estar envolvida na Serra Leoa
e no Burundi, que foram os primeiros países na sua agenda.
No entanto, as reformas em curso não se traduziram prontamente em resultados
mais eficazes na construção da paz. Uma vez que a distância entre as ambições e
o desempenho real da construção da paz internacional se manteve apesar de
importantes inovações, surgiu um corpo paralelo de bibliografia que veio
questionar os principais pressupostos da construção da paz internacional.
Operando inicialmente à margem do discurso dominante, esta abordagem crítica à
construção da paz tem vindo a conquistar terreno de forma constante. A nova
bibliografia crítica desafia a própria base da agenda liberal de construção da
paz ao levantar questões sobre o tipo de paz que está a ser construído e ao
questionar a sustentabilidade do modelo promovido pela comunidade internacional
(Richmond, 2006; Tadjbakhsh, 2011). Após o 11 de Setembro, este debate foi
ainda mais afetado pela combinação da construção da paz com as preocupações
internacionais relativamente à segurança, com o início do combate global contra
o terrorismo (Tschirgi, 2013). À medida que a construção da paz começou a
exigir um aumento da dependência do uso da força, os analistas começaram a
questionar as motivações e os objetivos da agenda internacional de construção
da paz e a viabilidade do modelo liberal de construção da paz nas sociedades
não ocidentais afetadas por conflitos (Baranyi, 2008; Tschirgi, 2013). Houve
mesmo quem defendesse que as estratégias dominantes de construção da paz não
eram apenas inadequadas para resolver os multifacetados e estruturais problemas
com que os países saídos de conflitos se confrontavam, como poderiam
inclusivamente contribuir para a sua perpetuação.
Assim, as atenções dos investigadores críticos voltaram-se para as questões
normativas e estruturais subjacentes ' e não para os desafios operacionais '
que afligiam a construção da paz internacional. Entre outras, essas questões
incluíam as assimetrias de poder, quer ao nível global, quer interno, as
motivações económicas dos conflitos e os impactos das políticas dos principais
Estados e organizações internacionais sobre os conflitos nas regiões
periféricas. Ao contrário da abordagem pragmática convencional, que procurava
soluções para melhorar a eficácia da construção da paz, a abordagem crítica
defendia que as estratégias promovidas pela construção da paz liberal estavam
erradas uma vez que não se encontravam em sintonia com as realidades,
necessidades e aspirações locais e não tinham em conta a questão central da
legitimidade (Newman et al., 2009; Pugh, 2013; Tadjbakhsh, 2011).
As perspetivas quer da abordagem convencional, quer da crítica inspiraram
importantes debates e controvérsias não resolvidas sobre o que constitui uma
paz sustentável e como pode esta ser alcançada. Na verdade, ambas as abordagens
são consideravelmente mais diversas e heterogéneas do que aquilo que se sugere
na breve revisão que se acabou de fazer. No entanto, elas convergem na
preocupação que partilham pelas consequências, intencionais ou não, da
construção da paz internacional nas sociedades afetadas por conflitos e na
necessidade de a construção da paz se basear nas realidades locais. Ao promover
uma agenda liberal de construção da paz, a abordagem dominante tem apelado a
estratégias internacionais diferenciadas, com base em esforços determinados
pelo contexto, com sustentação local e sensíveis ao conflito, em colaboração
com parceiros locais. Por seu lado, académicos críticos têm progressivamente
vindo a argumentar que, na melhor das hipóteses, a construção da paz pode
produzir resultados híbridos em resultado do encontro entre a agenda liberal
ambicionada e as dinâmicas políticas complexas em países afetados por
conflitos. Em suma, não obstante a retórica estereotipada de muitos documentos
sobre políticas, existe um crescente entendimento de que a construção da paz
não é uma empresa monolítica mas, sim, um processo confuso com resultados
imprevisíveis (Newman, 2009: 46). A essa luz, o conceito de hibridismo oferece
um interessante prisma para reexaminar a viabilidade da agenda de construção da
paz duas décadas após ter obtido aceitação generalizada.
Especificamente, o hibridismo fornece uma nova perspetiva para compreender as
relações assimétricas, mas interdependentes entre a gama variada de atores
externos e internos envolvidos na construção da paz, ao mesmo tempo que levanta
a questão central da legitimidade que se verifica nessa mesma construção
(Aguirre e van der Borgh, 2010; Boege et al., 2009). Com origem nas ciências
naturais, há muito tempo que o hibridismo é usado nas ciências humanas e
sociais para desafiar os discursos e as práticas hegemónicas. Não existe uma
definição comummente aceite de hibridismo na sua aplicação à construção da paz.
Na verdade, o conceito e a sua utilidade são bastante contestados.No entanto, o
hibridismo na construção da paz pode ser descrito como o processo e o resultado
da contestação entre os diferentes sistemas normativos e sociopolíticos que
levou à criação de um novo sistema que é suficientemente distinto dos seus
progenitores. Por outras palavras, o hibridismo ocorre na interação disputada
entre as agendas internas e internacionais de construção da paz.
II. Reenquadrar a construção da paz: da paz liberal ao hibridismo
Há duas razões principais pelas quais o conceito de hibridismo tem encontrado
cada vez mais terreno fértil na construção da paz. Primeiro, capta a
heterogeneidade e diversidade no seio das sociedades à medida que estas entram
em contacto com o projeto internacional de construção da paz. Em contraste com
a suposição implícita de que as sociedades afetadas por conflitos são tabula
rasa que estão abertas a modelos de paz externamente induzidos, o conceito de
hibridismo reconhece a existência de ordens políticas internas com regras e
reivindicações rivais de autoridade, poder e legitimidade que interagem e
coexistem com várias misturas de tradições modernas, indígenas, formais e
informais. Em segundo lugar, o hibridismo admite que os esforços para construir
a paz liberal coexistam com atores nacionais e sejam mediados por estes,
através de uma mistura complexa de resistência local, cooptação, cumprimento e
rejeição (Liden et al., 2009: 588).
Assim, o hibridismo é um ponto de partida útil para novas formas de
conceptualizar a construção da paz. Desloca o foco da construção da paz da
eficácia para a legitimidade, ligando-a mais diretamente ao interesse crescente
na construção do Estado, ao mesmo tempo que desafia a perspetiva da construção
do Estado limitada às suas instituições formais. Como já foi observado, o
desafio consiste em
procurar formas e meios de criar a adaptação mútua positiva do Estado
e dos mecanismos e instituições consuetudinárias não-estatais ou da
sociedade civil ' que, na prática, não são de todo domínios isolados,
mas elementos de um contexto sociopolítico local particularmente
confuso ' para que possam emergir novas formas de comunidade política
que sejam mais capazes, eficazes e legítimas do que aquelas geradas
por modelos ocidentais de Estado concebidos de forma restrita. (Boege
et al., 2009: 608)
Igualmente importante é o facto de que permitir o hibridismo tem implicações na
adaptação da ajuda externa para a construção da paz. O hibridismo não se limita
a implicar a necessidade de uma maior colaboração, alinhamento, harmonização e
sincronização de esforços entre os atores externos e internos ' embora estes
possam servir para resolver algumas das falhas atuais das estratégias
dominantes de construção da paz. Em vez disso, o hibridismo sugere que as
relações de construção da paz não podem ser reduzidas às de doadores vs.
destinatários ou nacionaisvs. atores internacionais, mas que devem ser vistas
como parte de um processo altamente político de negociação de múltiplas agendas
' muitas vezes concorrentes ' no amplo espectro de atores internos e externos
(Barnett e Zurcher, 2009). Como Boege et al. referem:
As possibilidades de influenciar externamente estruturas de
governação podem ser reexaminadas, deslocando o foco dos modelos
restritos de construção do Estado para o entendimento e envolvimento
com atores e instituições não-estatais em ordens políticas híbridas,
numa tentativa de formar comunidades políticas não na ignorância dos
mundos da vida locais ' ou mesmo em oposição a eles ', mas
integrando-se neles. Atualmente, no entanto, os doadores e outros
atores externos tendem a assumir o papel de ensinar aos políticos e
às pessoas dos chamados Estados frágeis a forma de adotar as
instituições estatais ocidentais de forma eficaz. Fala-se muito de
apropriação, mas frequentemente isso não passa de mera retórica. Na
verdade, a população local deve apropriar-se daquilo que quem vem
de fora lhes diz ' a apropriação local significa claramente a sua'
apropriação das nossas ideias'. (Boege et al., 2009: 611)
Por outras palavras, o hibridismo diz respeito quer aos processos, quer aos
resultados da construção da paz e requer uma mudança de foco, passando dos
modelos liderados externamente para processos políticos abertos, continuamente
negociados e conduzidos a partir de dentro com resultados incertos e
imprevisíveis. Uma mudança de foco deste tipo tem de ser dinâmica, sensível ao
conflito e com base local, caso pretenda evitar ser dominada pelos interesses
instalados, assim como mudar as realidades nos países saídos de conflitos.
No entanto, o conceito de hibridismo, como o da própria construção da paz, tem
até agora encontrado pouca adesão entre os analistas e profissionais nos países
afetados por conflitos ' particularmente no Sul ' refletindo a enraizada
assimetria Norte-Sul na construção da paz. De facto, as perspetivas analíticas
que até à data têm informado as políticas e práticas da construção da paz têm
sido largamente dominadas por académicos do Norte/ocidentais. Com poucas
exceções, a construção da paz não existe como campo de estudo específico nas
universidades e instituições de investigação do Sul. Isto deve-se em grande
medida ' embora não exclusivamente ' à fraqueza geral das ciências sociais e à
ausência de um lar académico natural para um campo transdisciplinar como é a
construção da paz. Os investigadores e os profissionais do Sul que trabalham em
problemas como a reforma agrária, gestão de recursos naturais, recuperação com
base na comunidade, mecanismos de justiça tradicional ou governação democrática
não rotulam necessariamente o seu trabalho genericamente como construção da
paz. Como resultado, existe apenas um corpo limitado de estudos académicos
locais sobre a construção da paz que serve de contrapeso aos discursos
dominantes de construção da paz no Ocidente. Ao invés, os académicos do Sul '
especialmente de países afetados por conflitos ' têm-se envolvido amplamente em
debates com origem no Ocidente. Embora as políticas e práticas ocidentais
tenham sido fortemente criticadas pelos académicos do Sul, há um défice de
esforços sistemáticos que articulem quadros analíticos que permitam fazer um
contrabalanço. A inexistência de um corpo robusto de literatura empírica ou
teórica por parte de analistas, investigadores e académicos do Sul tem
contribuído para perpetuar o viés ocidental na construção da paz contemporânea
(IDRC, 2008). Como foi observado por Liden et al.:
Um dos aspetos notáveis dos estudos académicos sobre a construção da
paz internacional contemporânea é que as vozes dos pacificados, ou
dos destinatários da paz liberal, estão com frequência ausentes. Cada
vez mais há um desacordo entre aqueles que apoiam a paz liberal nas
suas formas mais coercivas e aqueles que procuram dar um maior peso
às questões de consentimento local, autodeterminação, identidade e
sustentabilidade. (2009: 593)
Perante o facto de que os académicos ocidentais (e especialmente os proponentes
da abordagem da resolução de problemas) têm vindo a exercer uma influência
crescente nos círculos políticos, as perspetivas dominantes externamente
enquadradas têm dominado nos estudos, políticas e práticas da construção da
paz. Alguns académicos identificaram isso como um défice grave do campo,
observando que levanta
questões sérias sobre o papel da academia na assistência ou
reciclagem dos mantras associados das políticas através de
investigação pragmática orientada para as políticas, que reproduz
versões conservadoras da paz liberal/neoliberal, em vez de se focar
em inovações teóricas, empíricas, éticas e metodológicas que visam
produzir dinâmicas emancipatórias da construção da paz. (Liden et
al., 2009: 588)
É neste contexto que o hibridismo pode ajudar a reenquadrar os discursos e
práticas que moldaram a construção da paz nas duas últimas décadas. A questão-
chave na construção da paz não se refere à validade de perspetivas e agendas
internas face às externas, mas à sua interação, que tem consequências
importantes. Assim, o hibridismo não é uma abstração, mas uma realidade que
precisa de ser investigada empiricamente. Ao desafiar as dicotomias enganadoras
de externo vs. interno, formal vs. informal e moderno vs. tradicional que até
agora têm caracterizado o discurso, a política e a prática da construção da
paz, o hibridismo força uma análise rigorosa da dimensão em que os objetivos,
agendas e estratégias desenvolvidas por vários atores contribuem para processos
e resultados sustentáveis no terreno.
A escassez de investigação, análise e estudos sobre a construção da paz
localmente produzidos em países afetados por conflitos continua a ser um sério
impedimento para transformar a agenda internacional de consolidação da paz. Mas
se os construtores da paz internacionais são culpados de ignorar ou subestimar
as dinâmicas e os contributos locais, os construtores da paz locais são
igualmente negligentes, ao fazerem uma leitura errada e confundindo as agendas
e os contributos internacionais por causa da sua própria falta de conhecimentos
sobre a evolução das políticas e práticas internacionais nos últimos vinte
anos. Em resultado disso, o encontro do local e do internacional assenta muitas
vezes em premissas falsas. Em demasiados casos, a construção da paz é reduzida
a modelos técnicos com base em listas de verificação e modelos para evitar a
política. Noutros casos, a construção da paz torna-se extremamente politizada,
ao mesmo tempo que lhe falta um enquadramento comum em torno do qual se possam
mobilizar interesses e agendas concorrentes. Para superar essas limitações, o
hibridismo na construção da paz exige uma análise e uma cartografia mais
sistemáticas da dinâmica do conflito por parte dos atores locais e
internacionais. Mas também exige plataformas, instituições e mecanismos
credíveis que possam reunir os atores locais e internacionais em torno de um
quadro comum ' tanto a nível do país como a nível global. Na secção seguinte,
procede-se a uma breve análise de dois desses mecanismos a nível global. Ainda
que seja apenas ilustrativa, essa análise pretende estimular uma reflexão
crítica sobre as formas de superar o fosso existente entre os discursos,
políticas e práticas locais e os internacionais.
III. Superar o fosso a nível global
Como se referiu anteriormente, a gestão das interações entre os diversos atores
externos e internos é uma das principais preocupações na construção da paz. A
forma como estas relações são percebidas, definidas e alinhadas é um aspeto
essencial da construção da paz. Grande parte da literatura dominante define o
envolvimento entre os atores locais e internacionais enquanto um processo de
apropriação local e não como um processo complexo de negociação e contestação.
Assim, considera-se que o principal mecanismo para esse envolvimento reside
numa melhor coordenação através da utilização de numerosas ferramentas e
estratégias. Isso pressupõe um maior grau de unidade e coerência entre os
atores nacionais e os internacionais, o que acontece raramente. As discussões
sobre a coordenação têm de ser precedidas por uma compreensão mais precisa de
quem e o que deve ser coordenado e dos seus respetivos interesses e agendas.
Uma vez que não se pode assumir que os atores nacionais ou internacionais
partilham agendas similares ou uma visão comum sobre a construção da paz, as
suas interações têm que ser intermediadas a partir do ponto de vista da
construção da paz. A próxima secção analisa dois mecanismos concebidos para
juntar os países afetados por conflitos com os atores internacionais de forma a
identificar estratégias mais eficazes de construção da paz. Ambos constituem
esforços experimentais e o seu impacto na construção da paz continua em aberto.
Na verdade, existem sérias preocupações de que estas sejam iniciativas
centradas nos Estados que não levam devidamente em conta os interesses e as
agendas concorrentes, quer a nível local como internacional. No entanto,
constituem inovações importantes que merecem mais atenção.
A arquitetura de construção da paz da ONU
Uma das principais reformas institucionais destinadas a gerir as relações entre
os países afetados por conflitos e o sistema multilateral sob os auspícios da
Organização das Nações Unidas foi a criação, na Cimeira Mundial de 2005, da
chamada arquitetura de consolidação da paz das Nações Unidas. Esta arquitetura
consistiu na Comissão de Consolidação da Paz (Peacebuilding Commission - PBC),
no Fundo para a Consolidação da Paz (Peacebuilding Fund - PBF) e no Gabinete de
Apoio à Consolidação da Paz (Peacebuilding Support Office - PBSO). Enquanto
órgão intergovernamental da ONU, a PBC foi concebida como mecanismo catalisador
para reparar a natureza fragmentada, dispersa e errática do apoio internacional
à construção da paz, através da criação de um conjunto de novas instituições
com o mandato explícito de superar essas fragilidades e responder melhor às
necessidades e realidades locais (United Nations, 2000, 2004). Resumindo, a PBC
(e, por extensão, o PBF e o PBSO) tinha como objetivo i) chamar a atenção para
as necessidades prementes dos países saídos de conflitos; ii) promover uma
melhor coordenação e coerência entre a miríade de atores envolvidos na
construção da paz; iii) reunir recursos para a construção da paz; e iv)
aumentar a base de conhecimentos para uma política e uma prática mais eficaz de
construção da paz. A expectativa era de que a nova arquitetura iria servir de
interlocutor, assim como de advogado, aos países afetados por conflitos na
procura de apoio internacional. Além disso, estava subjacente a presunção de
que, ao contrário de outros órgãos da ONU, a PBC não ficaria refém de
interesses nacionais limitados, mas que lhe seria permitido guiar-se pelas
necessidades dos países na sua agenda.
Infelizmente, essas expectativas foram reduzidas como consequência das
resoluções fundadoras da PBC, que refletiam as profundas clivagens políticas
nas Nações Unidas na altura. A PBC foi criada como órgão consultivo, quer para
o Conselho de Segurança, quer para a Assembleia-Geral. Em resultado disso, a
Comissão não tinha qualquer autoridade independente ou poder de tomada de
decisão sobre outros organismos (Ponzio, 2007). Além disso, embora a intenção
fosse que a Comissão constituísse uma plataforma ágil em que todos os atores
envolvidos na construção da paz num determinado contexto pudessem discutir e
chegar a acordo sobre a estratégia e as prioridades comuns, durante as
negociações a participação na PBC tornou-se significativamente mais fixa e
formalizada (Hearn et al., 2014: 4). Estas decisões iniciais tiveram
consequências de grande alcance para as operações da PBC nos países que vieram
a fazer parte da sua agenda.
Os dois primeiros países a fazer parte da agenda da Comissão foram o Burundi e
a Serra Leoa. Não obstante as suas limitações intrínsecas e o significativo
processo de aprendizagem, a PBC deu início a um extenso (e complicado) processo
de envolvimento com os atores nacionais e outros intervenientes relevantes
nesses países através do que se designou por estratégia integrada de
construção da paz (Integrated Peacebuilding Strategy - IPBS). O processo IPBS
específico de cada país destinava-se a fazer com que os diversos atores
chegassem a um entendimento comum da dinâmica do conflito em cada contexto e
fossem guiados pelas necessidades e prioridades identificadas em conjunto para
que isso servisse de base a respostas internacionais mais eficazes. No entanto,
o processo IPBS veio a interligar-se inevitavelmente com uma miríade de outros
processos e mecanismos, acrescentando mais uma camada de complexidade ao
envolvimento internacional com atores nacionais e locais. Talvez igualmente
importante, dada a participação de 31 Estados com múltiplas agendas cruzadas
que iam para além das necessidades dos países afetados por conflitos, a PBC
nunca se conseguiu tornar o órgão consultivo consensual que dela se esperava
(Ponzio, 2007). Além disso, dado o seu caráter intergovernamental, a PBC viu
nos governos o seu principal interlocutor, não se envolvendo de forma eficaz
com outros atores nacionais e locais importantes, em particular o setor não
governamental.
No entanto, o processo IPBS tornou-se o principal instrumento de envolvimento
da PBC, à medida que novos países vieram a integrar a sua agenda, refletindo
mais uma tendência para uma trajetória de dependência do que uma vontade de
compreender melhor a dinâmica política e os desafios da construção da paz,
sempre diferentes em cada contexto de conflito (Heemskerk, 2007; McCandless e
Tschirgi, 2010). Na verdade, com cada adesão sucessiva à PBC ' Guiné-Bissau
(2007), República Centro-Africana (2008), Libéria (2010) e, finalmente, Guiné-
Conacri (2011) ', a necessidade de abordagens diferenciadas tornou-se bastante
óbvia. No entanto, cada novo país também expôs as deficiências da Comissão de
Consolidação da Paz, sobretudo a sua incapacidade de responder adequadamente às
dinâmicas políticas em mudança em diversos cenários de conflito.
Em 2010, na primeira revisão quinquenal da PBC foram sublinhadas muitas das
suas limitações (United Nations, 2012). No entanto, os observadores também
apontaram algumas conquistas iniciais, em especial no que respeita à adequação
da ajuda e a uma maior coerência entre os atores internacionais. Relativamente
ao Burundi, por exemplo, a PBC foi objeto de uma apreciação positiva
relativamente ao envolvimento dos doadores bilaterais e das agências
multilaterais para uma melhor coordenação entre a ajuda dos doadores e o
governo e à obtenção de mais de 680 milhões dólares através dos seus esforços
de sensibilização (Smith, 2013 apud Hearn et al., 2014). Da mesma forma, em
relação à Serra Leoa, foi enaltecido o papel da PBC no apoio político prestado
a Von der Schulenburg, Representante Executivo do Secretário-Geral, nos seus
esforços para coordenar uma estratégia mais coerente no país (ibidem). No
entanto, os resultados contrastantes dos países que integram a agenda da PBC em
2014 são reveladores: embora nenhum dos seis países esteja livre do risco de
novos conflitos, houve retrocessos graves na Guiné-Bissau e na República
Centro-Africana. Na Guiné-Bissau deu-se um golpe militar em 2012, enquanto a
República Centro-Africana continua a viver uma crise prolongada. Talvez ainda
mais revelador seja o facto de a PBC, enquanto instrumento eficaz de
envolvimento internacional, ser regularmente ignorada relativamente a muitos
outros países afetados por conflitos, como o Afeganistão, a Costa do Marfim e o
Sudão do Sul.
Vai para além do âmbito deste artigo proceder a uma avaliação da eficácia e do
impacto da PBC. À medida que se aproxima o 10.º aniversário da criação da
Comissão de Consolidação da Paz, surgirão sem dúvida muitos estudos que avaliem
o contributo da Comissão para os processos e resultados da construção da paz.4
No entanto, é importante reconhecer que o processo de IPBS tinha por objetivo
gerar modalidades diferenciadas de envolvimento que permitissem uma maior
capacidade de resposta às dinâmicas locais. Igualmente importante é o facto de
que a PBC tem proporcionado uma plataforma em que os diversos atores
governamentais e intergovernamentais podem harmonizar as suas intervenções de
construção da paz de modo a que melhor se adequem às condições políticas no
terreno. Em suma, a PBC reflete um entendimento crescente da necessidade de um
mecanismo que proporcione o apoio atempado a processos políticos cruciais entre
os principais intervenientes, ainda que a política institucional da ONU tenha
até agora estado contra a atribuição à PBC de um papel de maior relevância
(Berdal, 2009; Jenkins, 2013).
No entanto, uma vez que o mandato da PBC está atualmente limitado a apenas seis
países na sua agenda, é evidente que continua a existir necessidade de outros
mecanismos formais e informais que possam facilitar o alcance e a amplitude do
envolvimento entre atores locais e internacionais. Além da PBC, os mecanismos
atuais de envolvimento entre estes atores continuam em grande parte a revelar-
se ad hoc, inadequados e, muitas vezes, impulsionados pelos Estados mais
poderosos. Curiosamente, o interesse crescente pela segurança manifestado pelas
grandes potências relativamente à fragilidade do Estado e à construção deste,
levou à criação de um mecanismo inovador que promete contornar a política da
ONU através do Novo Acordo.
O Novo Acordo para o Envolvimento em Estados Frágeis
O Novo Acordo para o Envolvimento em Estados Frágeis (doravante, Novo Acordo) é
um compromisso entre um grupo de 18 países, designado por g7+, e os seus
parceiros internacionais para o desenvolvimento, que foi adotado em Busan, na
Coreia do Sul, em novembro de 2011, durante o 4.º Fórum de Alto Nível sobre a
Eficácia da Ajuda. Ao contrário da PBC, que é um órgão político, o Novo Acordo
concentra-se na relação entre países doadores e beneficiários no que se refere
à ajuda. Constituído em 2010, o g7+ é um coletivo de países ' identificados
como frágeis e/ou em situações afetadas por conflito ' comprometidos com a
partilha de experiências, estratégias de desenvolvimento e a defesa e promoção
da construção da paz e de Estados de uma forma mais eficaz. Em virtude do papel
ativo assumido pelo g7+, que tem o seu secretariado em Díli, em Timor-Leste, o
Novo Acordo promete reforçar a nível internacional a voz dos países frágeis e
afetados por conflitos.
O Novo Acordo assenta na premissa de que a ajuda ao desenvolvimento só pode
apoiar a construção da paz de forma eficaz se deslocar o foco da anterior
transferência de doador a recetor de modelos, políticas e práticas ' ou
através de abordagens planificadas à reforma institucional ' para uma parceria
equitativa entre governos e parceiros de desenvolvimento com base no diálogo e
na colaboração (IDPS, 2014: 8). Assim, neste Acordo afirma-se que a ajuda deve
concentrar-se nas prioridades corretas, em processos de transição promovidos e
liderados pelos próprios países e em recursos que são direcionados para o
reforço das capacidades e dos sistemas locais.
No Novo Acordo, identificaram-se cinco Objetivos para a Construção da Paz e
para a Construção do Estado (Peacebuilding and Statebuilding Goals ' PSG) como
base para possibilitar o progresso em direção aos Objetivos de Desenvolvimento
do Milénio (ODM) e para orientar os esforços e os recursos nacionais e
internacionais. Os PSG consistem em políticas legítimas que visam promover a
resolução de conflitos e acordos inclusivos; segurança, para estabelecer e
reforçar a segurança dos cidadãos; justiça, para resolver injustiças e aumentar
o acesso à justiça; bases económicas, para criar emprego e melhorar os meios de
subsistência; e receitas e serviços, para gerir e reforçar a capacidade para
prestar serviços responsáveis e justos.[5]
No Novo Acordo estabeleceram-se novos termos de envolvimento para apoiar as
transições promovidas e lideradas pelos próprios países para a saída de
situações de conflito e fragilidade, que ficaram conhecidos pelo acrónimo
FOCUS. O FOCUS inclui avaliações de fragilidade, uma visão/um plano, acordos
entre os principais intervenientes, recurso aos PSG para monitorização do
progresso e apoio ao diálogo político e à liderança. O Novo Acordo também
descreve uma série de compromissos que visam alcançar melhores resultados, que
designa por TRUST (transparência, risco partilhado, utilização e reforço dos
sistemas do país, reforço das capacidades e ajuda atempada e previsível
[transparency, risk sharing, use and strengthening of country systems,
strengthening capacities, and timely and predictable aid]).
Desde o seu lançamento, em 2011, tem havido uma intensa atividade para
operacionalizar os objetivos consagrados no Novo Acordo em sete países-piloto:
Afeganistão, República Centro-Africana, República Democrática do Congo,
Libéria, Serra Leoa, Sudão do Sul e Timor-Leste. Este processo tem sido
acompanhado de esforços concertados para desenvolver novas ferramentas
metodológicas e analíticas com vista à monitorização do progresso registado com
o Novo Acordo. Reconhecendo que muitas das estratégias de construção da paz se
baseiam em ferramentas de análise de conflitos que foram preparadas por
analistas e especialistas externos, o Novo Acordo requer estudos, designados
por avaliações de fragilidade, liderados pelos próprios países sobre as
causas e características das fragilidades e as fontes de resiliência. Estes
devem servir como base para a estratégia uma visão/um plano dos objetivos
FOCUS. Estas avaliações periódicas devem ser preparadas pelos intervenientes
nacionais principais e por atores não-estatais com base numa metodologia
harmonizada, incluindo um espectro de fragilidade, para serem desenvolvidas
pelo g7+ e apoiadas pelos parceiros internacionais.
Como preparação para um encontro do Grupo de Trabalho de Implementação, na
Serra Leoa, em junho de 2014, com o objetivo de monitorizar o progresso em
direção aos PSG, foi elaborado um relatório para avaliar as principais
realizações do Novo Acordo com base em dois inquéritos e em informações
provenientes de outras fontes. O relatório identifica as principais realizações
do Novo Acordo da seguinte forma:
Primeiro, o diálogo entre governos, doadores e sociedade civil revela
progressos, tendo-se tornado mais inclusivo ao longo dos últimos três
anos em alguns países. Isto levou a que se prestasse mais atenção à
construção da paz e à construção do Estado. [...] Segundo, a ajuda
está a tornar-se mais transparente. Os resultados do inquérito
demonstram que os doadores estão a levar este aspeto a sério,
melhorando os seus sistemas e padrões globais para a elaboração de
relatórios sobre a ajuda ao desenvolvimento. [ ] Terceiro, o
financiamento dos doadores está a tornar-se mais integrado. (IDPS,
2014: 9-10)
No entanto, o relatório também refere que, embora estes resultados apontem para
uma maior liderança nacional e algumas mudanças no comportamento dos doadores,
estas ficam significativamente aquém da mudança de paradigma' que se espera
do Novo Acordo. A mudança é lenta e não sistémica (IDPS, 2014: 10).
No papel, o Novo Acordo parece ser um passo em frente no sentido de dar mais
voz ao g7+ na definição da agenda, assim como no planeamento estratégico,
corrigindo as atuais relações assimétricas entre países afetados por conflitos
e países frágeis e os seus parceiros de desenvolvimento. O Novo Acordo tem um
potencial considerável para o conseguir, desde que traga para o debate uma
análise politicamente informada e com origem local e uma avaliação das
necessidades com base em consultas sérias junto dos principais intervenientes a
nível nacional. Como referido no relatório do IDPS:
A importância específica do Novo Acordo é o facto de estabelecer um
enquadramento que visa assegurar que a procura de uma solução
política aceitável é inclusiva e tem por base um entendimento
partilhado, quer dos vetores de fragilidade profundamente enraizados
e dos atuais, quer das fontes de resiliência. Este tipo de abordagem
garante que o diálogo não se limita a um pacto entre a elite para pôr
termo ao conflito. O Novo Acordo procura manter um diálogo dinâmico e
num patamar elevado, indo para além de um mero acordo de paz,
direcionando os esforços nacionais e internacionais para a
reconstrução do país de uma forma mais resiliente. (2014: 21-22)
Atualmente, não é claro que seja isso que está realmente a acontecer. Muitas
das ferramentas e dos quadros analíticos que estão a ser utilizados parecem
imitar os seus homólogos internacionais. Além disso, apesar de se reforçar
constantemente que as análises determinadas pelo contexto específico de cada
país eram uma forma de prevenir conflitos e fragilidades, dois países do g7+, a
República Centro-Africana e o Sudão do Sul, estão envolvidos em violentos
conflitos civis e partes da Somália continuam a apresentar elevados níveis de
insegurança e conflito. Assim, o Relatório de Monitorização de 2014 afirma
francamente:
[...] o Novo Acordo não foi capaz de desempenhar um papel fundamental
na antecipação de riscos e no apoio a potenciais estratégias de
mitigação na República Centro-Africana e no Sudão do Sul. Nem
proporciona atualmente um enquadramento para o diálogo entre os
parceiros, ou para a identificação de caminhos futuros como forma de
sair do conflito. Em vez disso, a implementação do Novo Acordo parece
principalmente focada na realização de processos técnicos e em apoiar
o diálogo técnico sobre questões como a eficácia e os resultados da
ajuda. Aa avaliações de fragilidade, quando realizadas, têm-se
debatido para ganhar espaço político para as suas conclusões, como
mostra a adoção limitada dos PSG na programação nacional e a ausência
de uma abordagem ao nível de toda a administração pública. Em segundo
lugar, as abordagens dos doadores ao risco continuam a centrar-se no
risco fiduciário e no risco ao nível dos projetos, com pouca atenção
prestada relativamente à utilização dos seus programas para apoiar as
estratégias de mitigação do risco contextual e político. Isto apesar
de se terem verificado mudanças relevantes nas políticas de risco nas
sedes dos doadores. (IDPS, 2014: 22)
O relatório adverte ainda que a
abordagem atual à implementação do Novo Acordo apresenta uma série de
riscos, tal como: ausência de apropriação local exceto nas
instituições centrais do Novo Acordo; desenvolvimento de processos e
instrumentos centrados nos doadores em vez de serem liderados pelos
próprios países; proliferação de processos paralelos em ambientes já
altamente fragmentados; e falta de adaptação aos vários contextos com
que se confrontam os países do g7+, incluindo situações de conflito e
de extrema fragilidade. (IDPS, 2014: 24)
Apesar das suas limitações, e tal como a Comissão de Consolidação da Paz, o g7+
e o Novo Acordo abriram um novo processo que merece uma monitorização mais
próxima. Curiosamente, no entanto, constata-se que a partir de 2011 surgiu uma
clivagem entre a PBC e o IDPS em grande parte sobre a influência e a
autoridade na política global de construção da paz (Hearn et al., 2014: 7).
Alguns Estados-Membros da PBC têm expressado preocupações relativamente a uma
agenda dominada pelo Ocidente e levada a cabo pelos doadores da OCDE no IDPS,
que subordinam o desenvolvimento a preocupações de segurança (ibidem). No
entanto, a PBC não tem conseguido uma resposta institucional para trabalhar com
os países do g7+ e com o IDPS. Como referem Hearn et al.: O resultado
potencial é uma rede cada vez maior, dominada pelos doadores, de acordos' de
construção da paz e de ajuda atribuída no terreno sem a concordância de todos
os poderes relevantes; e uma PBC que corre o risco de ser marginalizada
relativamente a grande parte da ação no terreno (2014: 7). A realidade é que
os mecanismos intergovernamentais como a PBC e o IDPS estão inevitavelmente
limitados pelos seus mandatos institucionais, que se lutam contra uma
transformação mais radical das relações assimétricas entre os atores locais e
os internacionais, muito menos irão dar origem a um paradigma completamente
novo de construção da paz. No entanto, é também importante reconhecer que a
própria agenda de construção da paz já está toda ela sob uma pressão
considerável, tendo em conta um contexto da paz e da segurança internacionais
que se encontra em mudança desde o 11 de Setembro de 2001 (Tschirgi, 2013).
Conclusão
Como as secções anteriores demonstraram, existem desfasamentos nítidos entre
uma quantidade inumerável de atores locais e internacionais no que respeita aos
seus entendimentos e abordagens à construção da paz, o que, por sua vez,
contribui para os resultados diversos e contrastantes da construção da paz.
Aceitar o hibridismo como uma realidade requer uma melhor compreensão dos
interesses, capacidades, necessidades e prioridades de todos os atores
envolvidos na construção da paz. Até à data, a teoria, a política e a prática
da construção da paz têm sido atrasadas pela ausência de perspetivas sólidas de
dentro para fora sobre a construção da paz. Na última década, produziu-se um
corpo considerável de estudos de caso sobre a construção da paz, que
proporcionou análises aprofundadas de conflitos em diversos contextos e
examinou as realizações e limitações da construção da paz internacional ' ainda
que principalmente a partir das perspetivas de analistas e atores externos.
Neste artigo, procurou-se apresentar uma breve visão geral do projeto de
construção da paz internacional e debates importantes na literatura sobre a
construção da paz relativamente às principais características e limitações
desse projeto; introduziu-se o conceito de hibridismo como forma de alicerçar
os esforços internacionais em dinâmicas locais, a fim de garantir processos e
resultados mais sustentáveis; e analisaram-se dois mecanismos principais que
procuram superar o fosso entre as abordagens locais e internacionais para a
construção da paz. Nele, defendeu-se que a construção da paz envolve a
interação complexa entre múltiplos atores internos e externos que contribuem
para resultados diversificados. A premissa subjacente tem sido a de que a
incorporação de perspetivas locais não só contribuiria para o reforço da
investigação, da política e da prática da construção da paz, mas que serviria
também como corretivo para os atuais discursos estilizados e estereotipados
sobre a construção da paz.
Como se mencionou atrás, a construção da paz liberal dominante centrou-se de
forma restrita na reforma das práticas atuais. Liden et al. defendem que
talvez seja preciso investigar formas não apenas de ampliar a sua
responsabilidade moral em relação ao cidadão ou sujeito ou o outro
não liberal, mas de se envolver com outras ontologias e
epistemologias, provavelmente não-ocidentais/modernas. É preciso
encontrar formas de construir este confronto ou envolvimento no
próprio processo de construção da paz, a fim de reconstruir uma forma
de construção da paz politicamente mais hibridizada e, seguramente,
uma que melhor represente e respeite os direitos e necessidades das
sociedades e comunidades pós-conflito. Também é necessária uma
reflexão sobre a necessidade de um contrato social internacional
entre os construtores da paz, funcionários internacionais, soldados,
trabalhadores humanitários, pessoal das ONG, especialistas em
desenvolvimento e uma série de outros especialistas e administrações,
e todos os destinatários da construção da paz (e não apenas as
poderosas elites locais), na ausência de qualquer contrato social
nacional. (2009: 594)
A criação de novos mecanismos, como a Comissão de Consolidação da Paz e o Novo
Acordo, não envolve certamente uma transformação radical do atual paradigma de
construção da paz. No entanto, eles oferecem novas plataformas que permitem a
chegada de vozes e abordagens diversas ao debate. Se se encontrarem
suficientemente ancorados em realidades politicamente informadas e localmente
fundamentadas, tais mecanismos podem ajudar a superar os enviesamentos atuais
da investigação, políticas e práticas sobre a construção da paz externamente
orientadas. Um remédio importante para uma construção da paz mais eficaz reside
na incorporação significativa e sistemática de perspetivas, realidades,
necessidades e aspirações locais na análise, na política e na prática da
construção da paz, uma vez que os modelos e os processos atuais não conseguem
captar a complexidade da construção da paz tal como ela é vivida em diferentes
contextos. Como se defendeu ao longo deste artigo, a questão não é privilegiar
um conjunto de analistas ou de atores em detrimento de outro. Pelo contrário, é
plenamente reconhecido que a construção da paz contemporânea é ' e
provavelmente continuará a ser ' um empreendimento comum. A verdadeira questão
é como melhorar esse empreendimento através da investigação, desenvolvimento de
políticas e práticas que apoiem a definição de uma agenda comum, o planeamento
estratégico e a sua implementação.