Galo amanheceu em Lourenço Marques: O 7 de Setembro e o verso da descolonização
de Moçambique
Introdução
No dia 7 de Setembro de 1974 o novo Governo português saído do golpe de 25 de
Abril reconheceu oficialmente a FRELIMO como única e legítima representante do
povo de Moçambique (Bragança, 1986). O acordo assinado na cidade zambiana de
Lusaka estabeleceu um governo de transição que devia preparar as condições para
a declaração da independência total a 25 de Junho de 1975. O acordo ignorou as
mais de duas dezenas de formações políticas (partidos e movimentos) que
reclamavam um lugar nas negociações sobre a independência e o futuro do país
(Souto, 2011). Enquanto a esmagadora maioria africana e a ala liberal da
comunidade europeia celebrava efusivamente os acordos de Lusaka, os colonos
conservadores consideraram-no uma traição do Governo português (Mesquitela,
1977: 79). Numa tentativa desesperada de deslegitimar o acordo, os colonos
conservadores enfurecidos ocuparam o Rádio Clube de Moçambique (estação
radiofónica nacional) e o aeroporto na capital Lourenço Marques,
autoproclamando-se Movimento de Moçambique Livre (MML). Durante os quatro dias
que se seguiram à tomada do Rádio Clube, de 7 a 10 de Setembro, Lourenço
Marques foi assomada por uma onda de violência que reclamou "largas
centenas de mortos" (Cardoso, 2014: 303).
Embora muito tenha sido escrito sobre os acontecimentos de 7 de Setembro,
sabemos ainda muito pouco sobre a forma como a população africana de Lourenço
Marques reagiu à insurreição colona.1 Grande parte dos estudos que se debruçam
sobre o período de transição para a independência de Moçambique, entre memórias
autobiográficas, monografias e artigos, oferecem quatro perspectivas sobre o 7
de Setembro. Uma é a perspectiva dos insurrectos que, em reacção aos Acordos de
Lusaka, decidiram tomar de assalto o Rádio Clube (Saavedra, 1975; Mesquitela,
1977; Passos, 1977; Bernardo, 2003). A segunda é a perspectiva da liderança da
FRELIMO que, estando ainda em Lusaka, sentiu-se traída perante os
acontecimentos de Lourenço Marques e as suas possíveis implicações para os
termos de transferência de poderes então assinados na capital zambiana (Couto,
2011). A terceira perspectiva é a do Exército colonial português que, estando
dividido entre a oposição e o apoio aos insurrectos, acabou chamando para si a
responsabilidade de pôr termo à insurreição (Cardoso, 2014). Por fim, a quarta
perspectiva diz respeito ao sector colonial progressista, que desde princípios
da década de 70 vinha assumindo uma posição cada vez mais anticolonial e,
depois do 25 de Abril, passou para uma posição claramente independentista e
pró-FRELIMO (Santos, 2006a e 2006b; Souto, 2011).
O objectivo deste artigo é oferecer uma quinta dimensão, a dos protagonistas
africanos de Lourenço Marques durante os tumultos de 7 de Setembro. O artigo
examina e descreve a emergência de um grupo de contra-insurreição liderado por
elites africanas urbanas de Lourenço Marques, sedeado no bairro suburbano da
Mafalala, que desempenhou um papel importante na supressão da insurreição
colona entre 7 e 10 de Setembro de 1974. Galo, galo amanheceu surgiu como uma
senha que devia ser usada pelos membros da contra-insurreição, cuja sede
encontrava-se na casa de Nuno e Teresa Caliano, na Mafalala. Um exame das
dinâmicas sociopolíticas que levaram ao surgimento do Galo, galo amanheceu
(daqui em diante Galo) permite reler os vários alinhamentos que dominaram a
cena política em Moçambique no período conturbado da transição para a
independência.
Alguns membros do grupo Galo eram militantes clandestinos da FRELIMO desde a
criação do movimento nacionalista em 1962. Outros eram soldados no Exército
colonial português, alguns na reserva e outros ainda em serviço. Mas a grande
maioria parece ter aderido a partir das várias células de esclarecimento e
mobilização postas a funcionar pelos grupos pró-FRELIMO logo após o 25 de
Abril. A posição anti-FRELIMO do sector colonial mais radical, integrando
grupos extremistas e paramilitares, bem como do movimento Frente Independente
de Convergência Ocidental - FICO (todos integrantes do MML), também teve
um efeito na popularidade da FRELIMO entre a população africana de Lourenço
Marques e arredores. Tudo leva a crer que a euforia da liberdade, a esperança
do fim do regime colonial, a confrontação aberta entre os grupos contra e pró-
FRELIMO tenham reavivado a memória das humilhações coloniais entre a população
africana de Lourenço Marques. É neste quadro que se pode situar a grande onda
de violência que os africanos levaram a cabo entre 7 e 10 de Setembro, e mais
tarde a 21 de Outubro, em resposta à ainda mais brutal actuação dos grupos
coloniais extremistas paramilitares. Mas a violência do 7 de Setembro foi, em
geral, um efeito "natural" do fim de um regime colonial que sempre
assentou na violência. Como sublinhou Frantz Fanon, a descolonização é sempre
um fenómeno violento (2004: 35).
Com a crescente popularidade da FRELIMO, especialmente na cidade capital, a
actuação dos colonos conservadores passou do radicalismo político ao terrorismo
urbano e inconsequente, provocando a ira da população africana. Esta, por sua
vez, respondeu com o mesmo nível de violência. Munidos de catanas, machetes e
paus, as populações suburbanas procuraram marchar em direcção à cidade
'branca', deixando uma névoa de destruição e morte por onde
passavam. Porém, o nível de violência teria sido muito maior se as populações
em fúria tivessem chegado ao centro da cidade. Milhares de colonos se haviam
aglomerado nas ruas, sobretudo em frente ao Rádio Clube. O encontro entre as
populações e os colonos (munidos de armas convencionais) teria resultado num
verdadeiro mar de sangue. Foi a retomada da Rádio e o silenciamento dos
locutores insurrectos que preveniu tal catástrofe.
No entanto, a forma como os militantes clandestinos da FRELIMO se organizaram
para retomar a rádio a partir da Mafalala e a rede de contactos que se estendia
a vários bairros do chamado "caniço" ainda não foram objecto de
análise. Tomando como ponto de partida a resistência organizada a partir da
Mafalala, este artigo explora o imaginário político que animou as elites
africanas da cidade capital e as impeliu a formar um movimento de contra-
insurreição. Defendo que a militância clandestina a favor da FRELIMO em
Lourenço Marques não significa que tivesse havido uma comunhão no imaginário
político entre os revolucionários da Frente de Libertação e as elites africanas
da capital. Nas condições especificamente distintas do meio urbano da capital
colonial moçambicana floresceu entre estas elites um imaginário político
marcado por um nacionalismo moderado. Embora muitos militantes clandestinos da
FRELIMO em Lourenço Marques vissem o seu trabalho político como parte da luta
de libertação encabeçada pela Frente de Libertação, quase todos desconheciam os
alicerces ideológicos que se vinham consolidando na Frente, que desde 1969-70
passara de um movimento puramente nacionalista para uma verdadeira frente
revolucionária de orientação marxista (Brito, 1991: 138-153). Nos últimos anos
da guerra, a FRELIMO passou a assumir posições cada vez mais exclusivistas e
vanguardistas, que haviam de se confirmar e consolidar a partir dos primeiros
anos da independência (Darch e Hedges, 1998; Machava, 2011). Parte da tensão
que veio a existir entre a FRELIMO e algumas elites africanas de Lourenço
Marques logo após a tomada de posse do governo de transição deveu-se ao
descompasso ideológico que a distância e muitas outras barreiras criaram entre
os que lutavam de armas no norte do país e os que mobilizavam militantes e
fundos de forma clandestina no Sul. A heterogénea composição do grupo Galo da
Mafalala é um claro indicador de que, por inerência das circunstâncias,
desenvolveram-se entre as elites africanas de Lourenço Marques formas de ver e
pensar o futuro de Moçambique distintas da FRELIMO.
Este artigo combina a leitura de fontes arquivísticas, impressas (sobretudo
jornais), biografias e uma série de entrevistas e depoimentos de antigos
militantes clandestinos e alguns protagonistas da Operação Galo. Em 2011
entrevistei, juntamente com Maria Paula Meneses, alguns antigos soldados
africanos ao serviço do Exército colonial em Moçambique e militantes
clandestinos da FRELIMO.2 Em Agosto de 2014 Aurélio Le Bon, um dos líderes do
grupo Galo, convidou-me a ajudá-lo na organização do livro sobre a Operação
Galo. Isto me permitiu acesso a uma série de depoimentos de antigos militantes
do Galo, por si recolhidos nas instalações da Rádio Moçambique.3
Luta clandestina e o imaginário político da elite africana de Lourenço Marques
O nível de desenvolvimento de Lourenço Marques em relação ao resto do país
possibilitou a existência de uma pequena elite africana urbana. A bifurcada
cidade capital era dividida entre o moderno e ordenado cimento (ou xilunguine),
exclusivamente reservado à população europeia, e o "caniço",
labiríntico, sem saneamento, e de construções precárias onde se apinhava a
maioria africana como reserva de mão-de-obra barata para o cimento (Penvenne,
1995). Entre 1960 e 1970 o número de habitantes nos subúrbios de Lourenço
Marques passou de cerca de 123 000 para 360 000 (Sopa, 2013: 36). Era aqui que
morava a pequena elite africana. De facto, o que os distinguia da maioria era
um certo nível escolar e uma formação profissional que lhes garantia posições
subalternas nos serviços da administração colonial, como professores nas
escolas indígenas, intérpretes, enfermeiros, escriturários, guarda-livros,
entre outros (Honwana, 2010). Uma parte deles havia adquirido o estatuto de
assimilado como uma estratégia para escapar dos impedimentos de promoção social
a que estava voltada a maioria da população considerada indígena, sobretudo o
acesso à educação (Hedges e Rocha, 1999: 108-109). Foi entre esta pequena elite
africana (assimilados e não assimilados, negros e mestiços), que emergiu e
cristalizou-se o sentimento anticolonial e nacionalista entre finais da década
50 e princípios da década 60. E seria desta elite que sairia grande parte dos
jovens nacionalistas que se juntaram à FRELIMO em Dar-es-Salaam em sucessivas
vagas de fugas clandestinas a partir de 1962-63 (Tembe e Gaspar, 2014: 57).
Embora Lourenço Marques tenha sido palco de intensa actividade e contestação
política desde a geração de O Brado Africanodos Albasini até aos jovens do
Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique, a visita de Eduardo
Mondlane em 1961 galvanizou grande parte da elite africana, sobretudo a
juventude estudantil da cintura Lourenço Marques-Gaza.4 Pode argumentar-se que
grande parte da actividade clandestina de cariz marcadamente nacionalista
começou nessa altura, e intensificou-se depois da fundação da FRELIMO um ano
depois. No bairro da Mafalala e arredores, Amaral Matos e Nuno Caliano da Silva
foram alguns dos primeiros militantes clandestinos da FRELIMO. Quando a FRELIMO
decidiu criar a IV Região Militar, a fim de lançar as bases para o
desencadeamento da luta armada no sul de Moçambique, Amaral Matos e Nuno
Caliano, juntamente com José Craveirinha, Malangatana Valente, Luís Bernardo
Honwana, Abner Sansão Muthemba, entre outros, desempenharam um importante
trabalho de mobilização e propaganda a fim de angariar fundos, conquistar
simpatizantes e potenciais militantes. Matias Mboa refere nas suas memórias que
quando foi enviado a Lourenço Marques em 1964 como chefe do Comando Operacional
da IV Região Militar, em coordenação com Joel Maduna Xinana, comissário
político da IV Região, o seu trabalho consistia em consciencialização política,
distribuição de panfletos sobre a FRELIMO e formação de núcleos políticos
(Mboa, 2009: 22-24).
No entanto, num depoimento de 1991, Amaral Matos reconhecia que os chefes das
células clandestinas na cidade não se encontravam com frequência, podendo ter
intervalos de meses entre esporádicos encontros (Matos, 1991: 130). De facto,
um dos primeiros aspectos que salta à vista nos depoimentos dos combatentes da
clandestinidade é a dificuldade que havia em manter as linhas de comunicação
com Dar-es-Salaam. O cerco montado pela PIDE fazia do trabalho de mobilização
na capital e em toda a região sul da colónia um verdadeiro calvário. A situação
ficou ainda mais difícil depois das massivas prisões de finais de 1964 e
princípios de 1965, das quais resultou o desmantelamento da IV Região (Cruz e
Silva, 1990). As prisões continuaram a verificar-se regularmente até 1970-72, o
que deixou uma grande fissura entre a frente nacionalista sedeada na Tanzânia e
os militantes clandestinos de Lourenço Marques (Brito, 1991: 84). Depois das
prisões em Lourenço Marques e do "sequestro" dos 75
"refugiados moçambicanos" na Suazilândia, todos recambiados para as
várias cadeias da PIDE (em particular a penitenciária da Machava), houve um
grande refreamento na fuga de jovens para se juntarem à FRELIMO. Estes golpes,
que resultaram na quebra parcial dos contactos entre o sul de Moçambique e a
FRELIMO, aconteceram numa altura em que a Frente de Libertação ainda não tinha
amadurecido ideologicamente e se encontrava a braços com a conflituante
coexistência de várias tendências ideológicas e nacionalistas, que culminaram
com a grande crise interna de 1968. Os líderes da luta clandestina em Lourenço
Marques, quase na sua totalidade presos entre 1964 e 1965, e em sucessivas
vagas até 1970-72, não acompanharam as lutas ideológicas dentro da FRELIMO.
Muito menos o crucial processo de "radicalização do movimento a partir de
1968, da qual nasceu o projecto de construção do socialismo em Moçambique
independente" (ibidem: 90-91).
Enquanto a FRELIMO se consolidava como uma frente de orientação marxista de
cariz revolucionário, em Lourenço Marques o imaginário político dos
nacionalistas clandestinos e das elites africanas que continuavam a ganhar
consciência política foi tomando características próprias. A distância entre
Dar-es-Salaam e Lourenço Marques, ferozmente imposta e guarnecida pela PIDE,
era muito grande. Duas importantes arenas condicionaram e enformaram o
imaginário político das elites africanas da capital: a cadeia da Machava e a
interacção cada vez maior entre as elites africanas e o grupo progressista de
intelectuais europeus antifascistas, designados Democratas de Moçambique.
Muitos antigos presos políticos que passaram pela penitenciária da Machava
consideram a cadeia a sua "escola nacionalista." Do contacto com
outros presos politicamente mais maduros e militantes de primeira linha da
Frente de Libertação, muitos presos vieram a conhecer a FRELIMO e os objectivos
da sua luta. O exemplo do enfermeiro Gonçalves Chachuaio é um caso ilustrativo.
Condenado a 6 anos de prisão na penitenciária da Machava em Dezembro de 1965,
Chachuaio envolveu-se ali com questões políticas pela primeira vez. Partilhou a
cela com vários nacionalistas presos. Foi a partir desses contactos que
Chachuaio conheceu os estatutos e o programa da FRELIMO, viu pela primeira vez
as cores da bandeira do partido e ouviu os hinos da luta.5 De facto, a
penitenciária, enquanto espaço de violência por excelência, era também uma
importante arena de consciencialização e actividade política.6 Nas palavras de
um outro preso político, Amós Mahanjane, foi grande a actividade de
consciencialização política entre os prisioneiros: "aqueles que entraram
e que não tinham nada a ver com política, incluindo religiosos, se tornaram
políticos" (Mussanhane, 2012: 137).
Durante o período de cárcere, com raras excepções, os prisioneiros perderam o
rasto da evolução da luta armada e as transformações por que passou a Frente de
Libertação. Todos os antigos presos políticos da Machava que entrevistei foram
unânimes em afirmar que durante a sua prisão não tinham meios de saber notícias
sobre a evolução da FRELIMO.7 Os presos que foram soltos antes de 1974 não
voltaram a desempenhar qualquer actividade política até ao golpe de 25 de
Abril. Como afirmou Rui Nogar, solto em 1968, "outra actividade não
tivemos, até porque não havia orientações muito claras em relação à luta. A
Frelimo que lutava estava ainda muito distante" (Chabal, 1994: 177).
Abner Sansão Muthemba, solto em 1969, reforça: "durante os três anos
passados sob vigilância fora da cadeia não podíamos sair da cidade sem
autorização da polícia nem sequer chegar, por exemplo, ao Bairro da Machava.
Todas as quartas-feiras eu devia apresentar-me à PIDE" (Mussanhane, 2012:
204). Muitos eram evitados pelos amigos e vizinhos, por medo de serem
implicados e importunados pela PIDE, como conta Albino Magaia: "depois de
sairmos da cadeia, houve pais que aconselharam os filhos a não contactar comigo
porque era perigoso. Os vizinhos também afastaram-se, tinham medo de mim"
(ibidem: 97). Os que conseguiram singrar nos empregos ou nos estudos (alguns
com a ajuda da própria PIDE) descobriram que embora a situação fosse difícil,
começavam a abrir-se algumas brechas no sistema colonial que davam algumas
possibilidades materiais e sociais nunca antes sonhadas para os africanos.8
Quase ninguém que havia sido preso e solto depois de 1965 conseguiu fugir para
se juntar à FRELIMO.
Muitos dos primeiros panfletos que continham o programa e estatutos da FRELIMO
com os quais os combatentes da clandestinidade em Lourenço Marques trabalhavam
eram da época do I Congresso. Uma comparação com o programa e estatutos
revistos depois do II Congresso de 1968 revela uma profunda transformação da
FRELIMO em resultado do avanço e desafios da luta armada.9 Como acima referi, a
liderança da FRELIMO que saiu reforçada depois do II Congresso tinha uma
inclinação marcadamente marxista e revolucionária. Era revolucionária no
sentido em que já não via a luta como um simples passo para a liquidação do
colonialismo, mas como um processo para a transformação radical da estrutura
socioeconómica de Moçambique. A partir de 1970, toda a análise política da
FRELIMO sobre a situação de Moçambique assentava numa ideologia marxista, em
que todos os aspectos sociais, políticos e económicos eram analisados em termos
de contradição de classes e em vocabulário revolucionário (Brito, 1991: 148).
Nem na prisão, nem nos limitados espaços de actuação política que ainda
restavam em Lourenço Marques, a maturação política dos africanos ganhou
tendências revolucionárias. Para muitos, o grande objectivo da luta continuava
a ser a liquidação do regime colonial e o ascender à independência. A cada vez
maior interacção entre a ala progressista da comunidade europeia e as elites
africanas da capital reforçou e enformou esse imaginário político moderado.
A interacção entre os Democratas de Moçambique e as elites africanas de
Lourenço Marques intensificou-se durante o período da repressão da PIDE. Um dos
momentos mais importantes dessa aliança foi o julgamento em Março de 1966 dos
militantes da FRELIMO que haviam sido presos entre 1964 e 1965, no âmbito da
frustrada tentativa de montar a IV Região. Apesar de a maioria ter sido
condenada pelo tribunal militar, a actuação dos advogados que se bateram pela
sua defesa constituiu um ato notável de desafio à ordem colonial (Souto, 2007:
372). Os Democratas viam na defesa daqueles militantes um ato de afirmação da
sua posição política antifascista. Para as elites africanas, a aliança com os
europeus liberais era um importante escape às limitações impostas pela PIDE e
pela subjugação racial própria da sociedade colonial, não apenas para
actividades políticas mas também para a criatividade cultural e artística.
Nos momentos conturbados, mas também excitantes da actividade política entre
finais dos anos 50 e princípios de 60, houve grandes amizades entre algumas
elites africanas e europeus progressistas, com profundas implicações na
formação do pensamento político em ambas as partes. Por exemplo, pessoas como
Luís Bernardo Honwana, Albino Magaia e Malangatana Valente mantiveram fortes
laços de amizade com progressistas como Pancho Guedes, Bertina Lopes, Virgílio
de Lemos, Rui Nogar, entre outros. Este constituía, em grande parte, o mesmo
ciclo de amizades que se estendia até ao bairro da Mafalala onde residiam
Amaral Matos e Nuno Caliano (líderes do grupo Galo).
É preciso enfatizar que, do ponto de vista formal, não houve uma aliança
política entre os Democratas enquanto grupo de oposição e os nacionalistas da
clandestinidade enquanto militantes da FRELIMO. Como alerta Amélia Souto, a
repressão da PIDE e a sua infiltração nas células clandestinas tinha
"tornado extremamente difícil qualquer contacto político directo com eles
por membros fora do grupo" (ibidem: 367). Rui Baltazar, membro dos
Democratas, foi um dos únicos que conseguiu participar no primeiro encontro com
os elementos da FRELIMO aquando da sua tentativa de penetração no Sul, devido à
grande amizade com alguns elementos nacionalistas, nomeadamente Rui Nogar
(ibidem: 368). A aliança entre europeus progressistas e as elites africanas
deu-se mais ao nível das relações e contactos pessoais, bem como na percepção
mútua de que todos estavam no mesmo lado da trincheira contra o regime
colonial-fascista. Foi esta aliança que definiu a natureza do imaginário
político que inspirou e sustentou o grupo Galo em Setembro de 1974. A liderança
do Galo vislumbrava um Moçambique independente no qual africanos e europeus
haviam de juntar forças na construção de um país novo. E essa independência não
significava um corte radical com Portugal, mas a reconfiguração das relações
entre o novo país e o antigo poder colonial. Para melhor entendermos este
posicionamento, é importante examinar detalhadamente o imaginário político dos
Democratas e a forma como ele influenciou o pensamento político das elites
africanas logo depois do 25 de Abril, altura em que todos os grupos começaram a
expor publicamente os seus ideais políticos.
O 25 de Abril e a efervescência política em Lourenço Marques
Muitos colonos celebraram efusivamente a queda de Marcelo Caetano, pois o fim
do fascismo significava o fim de meio século de ditadura em que boa parte das
liberdades civis se encontravam suprimidas. Mas era uma celebração ambígua,
pois a grande maioria dos colonos devia a sua posição social e os privilégios
da sua condição de cidadãos de primeira ao regime colonial.10 Mas o que mais
aterrorizava a maioria dos colonos, em particular os conservadores, era a ideia
de um "preto" vir a governar Moçambique. A ideia de que a FRELIMO
era um bando de terroristas estava enraizada na consciência de muitos,
resultado de uma sistemática propaganda colonial e do silêncio sobre a natureza
da guerra. O suposto "comunismo" dos "turras" era outra
causa de grande assombração (Rita-Ferreira, 1988; Thomaz e Nascimento, 2012).
Para a maioria africana o significado do golpe era pouco claro.11 Foi preciso
uma intensa actividade de mobilização e esclarecimento levada a cabo por
simpatizantes da FRELIMO para a maioria africana compreender a real dimensão da
situação política da colónia (Mboa, 2009: 52). Para as elites africanas o golpe
era uma clara oportunidade para se lançarem na luta pela autonomia de
Moçambique. Foram justamente as elites africanas que criaram os primeiros
movimentos políticos e assumiram publicamente um posicionamento em relação ao
futuro do país, como o caso do Grupo Unido de Moçambique (GUMO), liderado por
Máximo Dias e Joana Simeão.12 Da leitura dos jornais da época ressalta a
emergência de múltiplos grupos e movimentos políticos pelo país, a partir de
Maio de 1974, especialmente em Lourenço Marques, na Beira e em Nampula.
No fervor das exaltações políticas do pós-25 de Abril que passaram a dominar
Lourenço Marques e Beira, e à medida que iam decorrendo as conversações entre o
Governo português e a FRELIMO, a aliança entre os Democratas e os vários
nacionalistas, militantes e simpatizantes da FRELIMO tornou-se formal e aberta.
Milagre Mazuze, ex-preso político, lembra que com a abertura política pós-25 de
Abril, "reuníamos em casa dos militantes com os democratas de Moçambique;
eles diziam que democrata é Frelimo" (Mussanhane, 2012: 615).
Estrategicamente, o Movimento dos Democratas de Moçambique (MDM) assumiu o
controlo de quase toda a imprensa, incluindo o Rádio Clube.
A 16 de Maio, uma delegação do grupo dos ex-presos políticos, líderes da luta
clandestina em Lourenço Marques, fez uma importante viagem a Dar-es-Salaam para
se encontrar com a direcção da FRELIMO. Segundo Fernando Couto, a viagem teria
sido feita a pedido do general Costa Gomes que queria que aquele grupo
convencesse a FRELIMO a aceitar a paz e o cessar-fogo imediato. A delegação
incluía Rui Nogar, José Craveirinha, Matias Mboa, Josefate Machel, Malangatana
Valente e Rogério Djawana. Porém, a viagem não correu sem dissabores. Em Dar-
es-Salaam
A delegação foi recebida por Joaquim Chissano no aeroporto de Dar-es-
Salam, sendo "efusivamente abraçados". Já na sede da
FRELIMO a recepção será bem mais fria. Eram vistos como mensageiros
do novo poder em Portugal, vindos da "zona ocupada" e
portadores de mensagens e intenções pouco claras. Logo a` chegada, na
capital tanzaniana, um representante da FRELIMO revelou a` imprensa
que a sua organização estava preparada para "ouvir o que os
antigos prisioneiros políticos tinham para dizer, mas que eles não se
poderiam considerar como representantes da FRELIMO. (Couto, 2011:
311)
As declarações do representante da FRELIMO em Dar-es-Salaam são uma clara
indicação de que a Frente de Libertação que os ex-presos políticos haviam
conhecido em princípios dos anos 60 já não era a mesma. As intensas batalhas
internas pelo poder, as dissidências e os desafios da luta armada haviam
endurecido a liderança da Frente. Mas mais importante ainda, o facto de a
Frente não ter o controlo directo dos espaços urbanos, onde a luta armada nunca
havia chegado, reforçou ainda mais a desconfiança em relação a todos os
movimentos políticos oriundos das cidades (Borges Coelho, 1998). Na verdade, a
FRELIMO assumiu até recentemente uma posição exclusivista de que apenas os que
lutaram de armas contra o regime colonial são os verdadeiros nacionalistas e
legítimos representantes do povo de Moçambique (Souto, 2014: 282). Matias Mboa
sublinha a ansiedade e a incerteza que assomou os ex-presos políticos na
véspera do encontro com a FRELIMO em Dar-es-Salaam. E lamenta o fim da amizade
que um dia o ligou a Samora Machel, com quem fugira em 1963 para a Tanzânia
(Mboa, 2009: 54-57).
A 5 de Junho, um segundo grupo seguiu para Dar-es-Salaam. O grupo regressou a
Moçambique com instruções sobre a necessidade de realizar campanhas de
esclarecimento às populações e divulgar o programa da FRELIMO. Matias Mboa
propôs e dirigiu a criação da primeira sede nacional do Partido FRELIMO, que
foi construída no antigo bar Vasco da Gama, na Avenida Angola (ibidem: 58). Foi
através destes grupos de esclarecimento que jovens como Aurélio Le Bon, Pedro
Bule, Betinho Chissano, Joel Libombo, Chico Seita, Miguel da Mata, Quina Lima,
entre outros, passaram a conhecer a FRELIMO e engajaram-se na sua
popularização. Apesar de terem trajectórias diferentes - uns estudantes
do liceu, outros militares no Exército colonial - todos vieram a assumir
um importante papel na formação do Galo.
No entanto, um exame dos discursos dos Democratas e das elites africanas
permite captar um pensamento político moderado. Um pensamento em que se
imaginava um Moçambique independente que mantivesse fortes ligações económicas,
culturais, e até políticas com Portugal. Imaginava-se a FRELIMO no poder, mas
em estreita cooperação com os elementos mais progressistas da comunidade
europeia. A mais clara visão política de um Moçambique independente formulada
pelos Democratas veio da pena de António de Almeida Santos, proeminente líder
do grupo dos Democratas de Moçambique. Numa longa "Carta aberta aos
Moçambicanos", Almeida Santos dirigiu-se aos seus compatriotas "de
origem europeia" com o intuito de esclarecê-los sobre a situação política
de Moçambique e indicar as possíveis alternativas que a comunidade branca
tinha: "coexistir na base do estatuto de convivência multirracial que
tiver sido negociado, partir, ou deixar-se cair na tentação de um movimento de
resistência tipo rodesiano.13" A primeira alternativa era a sua favorita,
sendo que as duas últimas eram, na sua opinião, uma "rematada
loucura." Desacreditando as várias formações políticas que emergiam em
Moçambique, às quais considerava "embriões de partidos que carecem de
sentido", Almeida Santos urgia os seus compatriotas a aceitarem um
governo de maioria dirigido pela FRELIMO. Para ele era totalmente inútil fazer
um plano de autodeterminação que não visasse a transferência de poderes à
FRELIMO. Mas seria um poder partilhado. Lê-se nas entrelinhas da carta que
haveria espaço para uma participação da comunidade branca (certamente os
liberais) na constituição desse novo governo, e a preservação dos
"equilíbrios" culturais, económicos, e governativos do regime
anterior. Desconhecedor do projecto de transformação social que a FRELIMO já
vinha experimentando nas chamadas "zonas libertadas" e que seria
uma das bases da sua política exclusivista e vanguardista,14 Almeida Santos
dizia, com convicção, que "não me parece que o primeiro governo negro
possa vir a estar interessado em desmantelar os equilíbrios étnicos, económicos
e directivos da época precedente. Se o fizesse, ele, que tivera o consenso do
mundo, num ápice colheria o seu repúdio (ibidem).
Esta mensagem, que resfriava os anseios da comunidade colona em relação à
natureza do governo independente de Moçambique, era também um alerta à
liderança da FRELIMO sobre as consequências que haviam de advir da
possibilidade de um governo exclusivista que não integrasse outras forças
políticas e económicas. Alguns Democratas partilhavam a esperança de uma
solução federativa, que melhor possibilitasse a "preservação dos
equilíbrios da época precedente" (ibidem), ou como diziam os
conservadores "um Moçambique que se mantenha fiel às raízes portuguesas,
na alma e na cultura" (Mesquitela, 1977: 116).
Na altura em que escreveu a carta Almeida Santos ainda não estava a cargo da
comissão de descolonização, que poucos meses depois havia de assinar os termos
de transferência de poder à FRELIMO. Em Lusaka não houve sequer espaço para
colocar a possibilidade de federação. Nem sequer o longo período de transição,
o qual se esperava que fosse de 3 a 5 anos. Na carta, Almeida Santos dizia que
"só por impensável inabilidade se cogitaria de uma passagem do testemunho
político dissociada da necessária gradação e adaptação aos novos equilíbrios
sucedâneos." E concluía que "tudo se há-de fazer com a urgência
possível, mas também com a demora necessária" (ibidem). Ao fim, fez-se
tudo com a necessária urgência e com a possível rapidez, pois a transição durou
apenas 9 meses. Victor Crespo, o almirante que assumiu o cargo de alto-
comissário no governo de transição, também confessou com amargura anos mais
tarde que a transição durou muito pouco tempo (Crespo, 1984: 329).
Embora Almeida Santos não representasse a diversidade de posições dentro do
MDM, a sua palavra era carregada de muito peso dado o grande capital social que
ele tinha entre europeus progressistas e elites africanas. Pedro Bule,
militante do Galo no bairro do Infulene, lembra a grande influência que Almeida
Santos tinha entre os jovens da sua geração nos subúrbios da capital:
Almeida Santos teve um papel preponderante na própria pacificação, um
papel fundamental. [...] Nós tínhamos um conceito de FRELIMO, que o
Almeida Santos incutiu-nos, que afinal de contas muitos brancos
também estavam do nosso lado. [...] A gente via a postura dos
Democratas, sobretudo quando se agudizou o movimento da formação dos
partidos políticos reaccionários.15
A carta de Almeida Santos teve ressonância entre as elites africanas que também
partilhavam a visão de um Moçambique plurirracial que mantivesse os
"equilíbrios da época precedente", ao mesmo tempo que abria mais as
oportunidades sociais para a maioria empobrecida. Domingos Arouca, o primeiro
africano de Moçambique a graduar-se em Direito, ex-preso político e um dos mais
respeitados intelectuais africanos entre a elite africana de Lourenço Marques,
também publicou uma série de artigos nos jornais para acalmar os ânimos
políticos que agitavam o país.16 A mensagem dos seus artigos, entre apelos à
sociedade em geral assim como para a liderança da FRELIMO, não fugia muito da
de Almeida Santos. Defendia a entrega do poder à FRELIMO sem delongas, porque
esta representava a vontade do povo. Mas também apelava à FRELIMO para que
fosse paciente para com aqueles que ainda não estavam seguros com a ideia de um
governo de maioria africana. No dia 7 de Setembro, antes do início dos
tumultos, Domingos Arouca afirmava:
Agora é a própria Frelimo que entre nós tem a palavra, a ela cabe
aconselhar e dirigir. Neste momento em que nos sentimos todos irmãos
é altura exacta de fazermos promessas pelo futuro. Evitar a violência
a todo o transe, tentar compreender as ideias dos que se encontram
ainda desajustados e não alcançaram ainda totalmente o que significa
viver num país em que muitas ordens e valores se modificaram por
completo e tendem ainda a modificar-se mais. Não podemos impor a
eles, de rajada, os nossos credos políticos, porque isso seria negar
o significado mais intrínseco do conceito de democracia. Mas podemos
tentar o diálogo franco e aberto em que todas as dúvidas e
desconfianças encontrem respostas honestas e capazes.17
Domingos Arouca queria certamente instar os colonos, sobretudo os conservadores
que já abandonavam o país, a confiar na FRELIMO. Mas ao mesmo tempo queria
assegurar que a FRELIMO em que ele acreditava havia de conduzir o país pelos
caminhos projectados pelos ideais de convivência multirracial, inclusão
participativa, tolerância, e progresso para todos. Afinal eram estes os ideais
que tanto popularizaram a FRELIMO entre as elites africanas e europeus
progressistas. Os primeiros nacionalistas urbanos que cedo se aperceberam da
radicalização da FRELIMO e da sua tendência marxista tiveram que conter a sua
decepção. No regresso da sua última visita a Dar-es-Salaam, o líder do trabalho
de esclarecimento político e criação de células da FRELIMO na região sul do
país, Matias Mboa, teve uma delicada conversa com o seu colega Ângelo Chichava
sobre a escolha do socialismo como modelo político e económico. Estava
assustado com o socialismo, que para si era "o mesmo que dizer
comunismo" (Mboa, 2009: 63).
Os temores de Matias Mboa viriam a confirmar-se logo depois da proclamação da
independência. Mas naquele momento, nas vésperas do Acordo de Lusaka, ainda não
se vislumbrava a colisão entre a visão moderada das elites africanas urbanas e
dos Democratas com o exclusivismo da Frente de Libertação. Trabalhando ombro a
ombro, as elites africanas e os europeus progressistas criaram as condições
para a implantação da FRELIMO no sul de Moçambique. E travaram uma intensa
batalha contra o reduto colonial extremista, do qual foram vítimas de
perseguição e atentados de morte.
A 23 de Junho, o advogado Pereira Leite, do MDM, saiu ileso num atentado
bombista ao seu carro.18 Cinco dias depois, o Self (a cantina dos estudantes
universitários) foi vandalizado pelos extremistas da Associação Moçambicana
Armada, que tentava destruir a bandeira da FRELIMO ali hasteada). Os jornais
Tribuna,Notíciase Tempotambém foram vítimas de uma série de ataques bombistas.
O terrorismo urbano dos extremistas paramilitares, sobretudo a perseguição dos
membros do MDM, da LEMA e dos líderes do trabalho de esclarecimento,
recrudesceu depois da realização, a 4 de Agosto, de um comício em apoio à
FRELIMO na Praça de Touros.19 E foi neste clima tenso que se iniciou a última
etapa das negociações entre o Governo português e a FRELIMO, em inícios de
Setembro em Lusaka. Procurando apoiar a FRELIMO, um segundo comício foi
organizado no Estádio Salazar (hoje Estádio da Machava).
Ao saberem do grande comício, os Dragões da Morte dirigiram-se ao estádio.
Certamente pretendiam abrir fogo contra a multidão, como viriam a fazer nos
subúrbios horas depois. Os manifestantes dispersaram-se ao saber que os
"reaccionários" estavam a caminho.20 Alguns dos principais líderes
do MDM e da LEMA não mais puderam voltar para as suas casas no cimento. Muitos
refugiaram-se no "caniço", em particular na Mafalala. António
Sumbana, Ângelo Chichava, Albino Magaia, entre outros ex-presos políticos que
mantinham uma ligação directa com a FRELIMO, também foram ameaçados de morte e
tiveram que fugir.21 A casa de Sumbana, que servia de sede aos militantes da
FRELIMO, foi vandalizada e muito material de propaganda destruído.22 Matias
Mboa encontrava-se já em Lusaka.23 Os militantes que mantinham directa
comunicação com a FRELIMO e recebiam orientações a partir de Dar-es-Salaam
haviam abandonado Lourenço Marques nas vésperas do 7 de Setembro. Embora Amaral
Matos e Nuno Caliano fizessem parte da liderança dos militantes da FRELIMO, não
comunicavam directamente com a FRELIMO. Mas por terem permanecido na cidade em
ebulição, acabaram assumindo a responsabilidade de acolher os europeus que
fugiam dos terroristas e dirigiram as estratégias de defesa dos subúrbios
contra as investidas chacinadoras dos extremistas paramilitares. Foi nesse
contexto que emergiu o grupo Galo da Mafalala.
A Base Galo da Mafalala
Revoltada com a tomada do Rádio Clube, que cheirava a golpe contra a FRELIMO,
Gabriela Valério foi ter com o namorado, Aurélio Le Bon, nas primeiras horas do
dia 8, trazendo duas facas. Entregou uma ao Le Bon, instando-o a "fazer
alguma coisa." Ambos decidiram ir ter com os líderes dos grupos de
esclarecimento, Matias Mboa (na Matola) e António Sumbana (no Xipamanine). Não
os encontrando, resolveram ir a Mafalala, onde haviam participado de algumas
reuniões na casa de Nuno Caliano. Aqui encontraram um grupo de cerca de 10
pessoas a discutir sobre os recentes acontecimentos. Entre os presentes,
Aurélio Le Bon e Teresa Caliano recordam-se de Amaral Matos, Orlando Machel
(irmão de Samora Machel), Alberto (Betinho) Chissano (irmão de Joaquim
Chissano), Quina Lima e Miguel da Mata. Todos lamentavam a falta de orientações
da FRELIMO perante a situação e a ausência dos principais líderes. Preocupava-
os acima de tudo a necessidade de proteger os subúrbios dos ataques dos colonos
extremistas, bem como a necessidade de conter a possível ira da população
africana. Para Gabriela, Le Bon, na qualidade de Comando, podia ajudar o grupo
"a pensar estratégias de reacção com alguma perspectiva militar, algo
como protecção e vigilância sobretudo dos bairros."24
Assim nasceu o grupo Galo da Mafalala, que transformou a casa do casal Caliano
em Base Galo. No entanto, importa fazer uma análise dos condicionalismos que
deram ao grupo Galo a composição que ele teve. Acima examinei o contexto da
emergência do imaginário político das elites africanas, que no grupo Galo eram
representadas sobretudo por Amaral Matos (que assumiu a liderança do grupo),
por Nuno Caliano, e por uma série de jovens estudantes (africanos e europeus)
que assumiram papéis importantes no grupo. Contudo, uma componente importante
do grupo Galo foi a participação de jovens militares do Exército português.
Foram eles que, sob coordenação de Aurélio Le Bon, ajudaram a organizar os
aspectos militares do grupo Galo.
Le Bon havia regressado a Lourenço Marques logo após o 25 de Abril, vindo de
Tete, onde havia servido como Comando no Exército colonial de 1971 a 1974. Foi
na guerra que Le Bon, um mestiço de Marracuene, soube pela primeira vez da
existência da FRELIMO e do significado da sua luta.25 O seu caso é muito comum
entre os milhares de africanos recrutados para o Exército colonial. Muitos
foram à guerra sem sequer saber quem era o inimigo. No máximo sabiam que iam
combater uns "turras" que estavam a destabilizar o norte da
província ultramarina.26 Mas isso não os fez simples colaboradores do sistema
colonial, do qual eles eram também vítimas. Foi no Exército colonial, no campo
de batalha, que jovens como Le Bon, Pedro Bombe e Vasco Sono despertaram para a
natureza política do conflito. Foi na guerra que eles viram pela primeira vez a
bandeira e os símbolos da FRELIMO. Alguns chegaram a furtivamente ouvir em
onda-curta a Voz da Revolução emitida pela guerrilha a partir da Tanzânia.
Para a compreensão do contexto do surgimento e a composição do Galo, há dois
elementos da contra-insurgência portuguesa que importa explicar. Primeiro, a
contra-insurgência portuguesa resultou numa massiva militarização da sociedade,
sobretudo através do grande recrutamento para o serviço militar e a existência
de uma significante parcela da população de Moçambique (europeia e africana)
com posse e capacidade de manejar armas de fogo (Borges Coelho, 2002 e 2003).
Embora as principais cidades no centro-sul de Moçambique tenham estado para
além do alcance da guerrilha, muitos citadinos, incluindo africanos, foram
mobilizados a servir na Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil
(OPVDC), uma espécie de milícia colonial. Nestas unidades paramilitares as
pessoas eram instruídas a manejar armas de fogo e a fazer operações de caça ao
homem e vigilância contra supostos terroristas.27 Nos tumultuosos dias que se
seguiram ao 25 de Abril, as cidades de Moçambique conheciam um elevado nível de
militarização, pois muitos civis tinham em sua posse armas de fogo. A situação
piorou com o retorno, sobretudo para Lourenço Marques e Beira, das várias
unidades militares vindas dos palcos de guerra. E a posse de armamento, quer
por parte dos membros da OPVDC, quer dos soldados, não definia claramente a sua
posição política. Muitos dos que simpatizavam e apoiavam a FRELIMO juntaram-se
ao grupo Galo, levando as próprias armas consigo. Os que viam os Acordos de
Lusaka como uma traição juntaram-se aos insurrectos do Rádio Clube.
Segundo, a contra-insurgência exacerbou a segregação dos subúrbios, em
particular na capital. Os subúrbios de Lourenço Marques eram tidos pela PIDE
como sendo as maiores fontes de apoio à FRELIMO, em termos de capital humano e
financeiro. Para além do policiamento cerrado instalado nestas áreas, onde a
PIDE tinha milhares de informadores secretos e onde havia constantes rusgas
policiais, a mobilidade dos africanos na cidade de cimento tornou-se cada vez
mais difícil. Por exemplo, em 1968 o comandante-chefe do Exército sugeriu a
instalação de um arame farpado para separar os subúrbios da cidade de cimento
com o propósito de defender a cidade da subversão política que crescia na
chamada "cintura negra."28 A PIDE se opôs à sugestão, pois
acreditava que ela punha em risco outras estratégias em curso naquelas áreas
que visavam recuperar as mentes e os corações dos nativos. Não obstante, a
alienação do "caniço" em relação ao impressionante desenvolvimento
do cimento piorou consideravelmente até princípios da década de 1970, ao mesmo
tempo que aumentava a consciencialização política (Souto, 2007: 282). Depois de
servir o Exército colonial, muitos africanos recrutados em Lourenço Marques
regressavam para os mesmos bairros suburbanos empobrecidos. A diferença é que
eles regressavam transformados pela experiência da guerra. Os rumores que
alguns teriam ouvido antes de rumar ao norte eram agora realidade. Em certos
casos, alguns soldados regressavam para os mesmos bairros onde figuras
proeminentes da FRELIMO haviam vivido e ainda tinham lá família, como é o caso
do bairro da Mafalala onde os parentes de Samora Machel, de Joaquim Chissano e
de Armando Guebuza viviam. Isto facilitou a integração destes elementos
desmobilizados da tropa colonial no movimento do Galo que se bateu contra as
investidas chacinadoras que as unidades paramilitares dos Dragões da Morte e da
AMA (Amigos de Moçambique Armados) fizeram nos subúrbios durante os tumultos do
7 de Setembro. Foi justamente a sua experiência militar que conferiu ao Galo a
capacidade de organização e resistência dos bairros suburbanos contra as
investidas dos grupos extremistas.
O grupo Galo e a resistência dos subúrbios
Aurélio Le Bon lembra que depois de ser apresentado como Comando por Gabriela
Ventura, o grupo gizou a estratégia de protecção dos bairros suburbanos, que
consistia em formar unidades de protecção em cada bairro e controlar as
principais entradas.29 Juntaram os muitos jovens que se encontravam agrupados
na principal ruela de entrada ao bairro da Mafalala, entre eles o musculado e
famoso Isaías Tembe, que se preparavam para uma acção contra os insurrectos do
Rádio Clube. Através daqueles jovens foi possível passar a palavra a outros
bairros, que rapidamente organizaram os respectivos grupos de patrulha. Muitos
dos jovens que faziam parte dos grupos de esclarecimentos nos respectivos
bairros assumiram a liderança das unidades de protecção. Por exemplo, Pedro
Bule e Chico Seita dirigiram as unidades de Infuleni. Dinis Muhai trabalhou em
Xipamanine. Uma das principais prioridades destas unidades era conter os ânimos
populares e evitar o saque às cantinas que pertenciam a europeus e asiáticos
nas zonas suburbanas. Pretendiam também evitar que a população africana
respondesse com violência aos altos de provocação dos colonos extremistas. As
unidades também deviam estar atentas a qualquer movimentação dos extremistas,
mantendo a Base Galo informada. Betinho Chissano, a quem coube a tarefa de
coordenar e recolher as informações sobre os vários bairros e unidades de
protecção, recorda:
Eu não saía muito. Era o homem da informação. Trabalhava com o Luís
Soares. O Luís Soares é que saía com a Gabriela. Como eles eram todos
brancos, iam para todos os lados e não eram desconfiados. E eu é que
era o centro de informação. Foi na base desse trabalho de
disseminação de informação e de mobilização que nós conseguimos
entrar nos Quartéis. Em Boane tínhamos o capitão Aurélio Jeremias.
Era o nosso homem no Quartel de Boane. Portanto, tínhamos o Quartel
connosco. Os soldados negros em Boane estavam prontos, com armas para
entrar a nosso favor caso fosse necessário. Na carreira de Tiro nós
tínhamos um focal point cujo nome já não me lembro. De tal modo que
começamos a receber armamento mais moderno, como bazucas, morteiros,
G5, FN. Tudo isso ia para o Manuel Falcão. Essa era a nossa
organização. Esse era o nosso trabalho.30
Como ilustra o depoimento de Betinho Chissano, que é corroborado por outras
fontes, o grupo Galo conseguiu angariar uma considerável quantidade de
armamento vindo dos quartéis da cidade. Na caótica situação em que se
encontrava o Exército colonial, muitos soldados e recrutas que apoiavam a
FRELIMO facilitaram a saída de armamento para a Base Galo. Apesar do grande
aparato de protecção que cobria a Base Galo, o armamento chegava à base sem
dificuldades porque muitos dos militares que a levavam eram conhecidos nos
bairros suburbanos, onde moravam. Joel Libombo, na altura ao serviço do
Exército colonial como Comando, lembra:
Todas aquelas zonas ficaram a saber que haveria um grupo de militares
da Tropa Especial. E citavam os nomes de uns de nós que éramos filhos
de lá do bairro, que eventualmente passaríamos por lá e que nos
deixassem passar. O outro aspecto em que contribuímos sobremaneira
foi na captura de armamento desses grupos a quem desarmávamos e
levávamos para a base da Mafalala. Levamos muito material.31
Para evitarem a infiltração de agentes do inimigo, sobretudo a entrada das
caravanas dos colonos extremistas nos subúrbios, o grupo Galo criou senhas e
contra-senhas de entrada e saída dos bairros. De acordo com vários depoimentos,
as senhas mudavam constantemente.32 No final do dia 8, uma importante decisão
foi tomada pela Base Galo, e transmitida a todas as unidades de protecção dos
bairros. Todos os bairros deviam observar uma "greve silenciosa."
Os trabalhadores estavam proibidos de rumar ao trabalho no dia seguinte.
Segundo Le Bon, a decisão visava evitar qualquer contacto entre africanos e
brancos, bem como retirar dos colonos a força de trabalho da qual tanto
dependiam.33 Na manhã do dia 9 (segunda-feira), muitos trabalhadores africanos
foram obrigados a regressar a casa pelas brigadas do movimento Galo. A ausência
da habitual força de trabalho deve ter alertado os colonos de que algo maior
devia estar a ser organizado no interior do "caniço." O resultado
foi catastrófico. Foi justamente nesse dia, 9 de Setembro, que os Dragões da
Morte e colonos civis armados de caçadeiras empreenderam um dos mais
inconsequentes e brutais ataques aos chamados subúrbios, habitados
essencialmente por africanos. Entraram nos subúrbios de táxis e abriram fogo
indiscriminadamente contra africanos indefesos. É incerto o número de vítimas
deste ataque e incertas as suas reais motivações. É provável que tenha sido uma
demonstração de poder para compelir as pessoas a voltarem ao trabalho. Na sua
narrativa, Clotilde Mesquitela avança que a direcção do MML não sabia da origem
do ataque nem dos seus actores (1977: 109). A ser verdade, isto sugere que os
líderes políticos da insurreição no Rádio Clube não tinham controlo das suas
facções armadas. O MML era, como escreve Ribeiro Cardoso, "tudo ao sabor
do momento, sem qualquer organização ou liderança visíveis." (2014: 236).
Os Dragões da Morte, que apoiavam e protegiam os que estavam na estação da
rádio, assumiram sempre uma atitude anti-FRELIMO muito mais radical, e exibiam
um racismo mais cru. Pedro Bule relata a forma como viu os ataques dos Dragões
da Morte e de colonos civis nos subúrbios:
Eles começaram com tiroteios. Foi no bairro do Jardim onde vi os
primeiros tiros, quando ia para casa, no Infulene. Nessa altura as
coisas estavam tão complicadas que a gente já não ia à escola. [...]
Repara no conceito que os colonos tinham de nós: um povo pacífico,
seus empregados, seus moleques, obedientes, pacatos, patetas. Então
eles achavam que podiam fazer de nós o que quisessem. Agora, não sei
se eles vieram aos bairros aos tiros porque nós, nos nossos bairros,
erguemos as bandeiras da FRELIMO e isso lhes causava irritação. Eles
não enfrentavam grupos concentrados. Apanhavam um cidadão qualquer e
mandavam tiros de pressão de ar, caçadeiras, e feriram muitas
pessoas.34
Nos subúrbios, onde muitas casas eram feitas de caniço e "madeira e
zinco", as balas perfuravam as paredes com facilidade e vitimavam
mortalmente gente indefesa que procurava abrigar-se dos ataques. O caos estava
instalado. O grupo de coordenação na Base Galo emitiu uma segunda ordem. Era
preciso barricar todas as entradas dos subúrbios, incluindo a ligação Lourenço
Marques-Matola. Nenhum carro devia entrar nos bairros sem ser revistado.35
Pedro Bule recorda o efeito imediato desta decisão:
Bloqueamos a Avenida de Angola. Bloqueamos a Maquinag. Quando se sai
da auto-estrada, ali era o nosso limite. No Infulene tem aquela
estrada que vem do Estádio da Machava e aquilo tem entradas. Então
fizemos barricadas ali. […] A ordem era não deixar portugueses
entrarem nos bairros. Até aí estava tudo tranquilo. Mas a agressão
continuou.36
De facto, os ataques dos extremistas continuaram, tornando o trabalho do grupo
Galo de conter a ira popular ainda mais difícil. Para além dos ataques, os
membros do MML continuavam a incitar ao ataque os elementos da FRELIMO, a
partir dos microfones do Rádio Clube. Ché Mafuiane, que se encontrava entre a
população enraivecida de Chamanculo, recorda que começaram a ouvir-se vozes
entre as multidões de que deviam marchar para a cidade e silenciar os
"reaccionários."37 Segundo Pedro Bule, "com a continuação da
agressão dos colonos reaccionários, perdemos o controle da população. A ira
popular fez saltar a tampa. Ficamos na rua com catanas, paus, pedras, ferros e
matámos muitos. Parece sanguinário dizer isto hoje, mas estou aqui a retratar
um momento real."38 À medida que a "massa de gente"
enraivecida pelos ataques dos extremistas foi crescendo nos subúrbios,
progredindo em direcção à cidade de cimento, foi deixando um manto de
destruição à sua passagem. As descrições de como alguns colonos foram mortos,
em casa, nas cantinas, ou tentando fugir para a África do Sul não deixam de ser
chocantes. Pedro Bule lembra um desses actos de revolta:
Vinha um carro e, como a gente tinha aquelas barricadas ali, não
passava. Para ser queimado não demorava 30 segundos. Mas não era
queimado em pé. Quando o carro chegava rodeávamo-lo, depois
levantávamos, virávamos para o ar com os seus passageiros.
Queimávamos e toda a gente carbonizava lá dentro. Era muita fúria.
Esta estrada para o aeroporto aqui na Avenida de Angola, eram
cadáveres, não eram brinquedos, eram cadáveres mesmo. Eu vi uma
senhora que estava a andar e, de repente, vi um indivíduo com uma
catana a cortá-la. Em pouco tempo a branca havia ficado sem seios. Vi
gente a ser queimada. Não foi pouca gente. De repente ficou clara a
relação entre nós e os brancos. Os brancos que estavam connosco não
sofreram isso porque a gente os conhecia.39
A retomada do Rádio Clube e o fim da insurreição colona
Inicialmente o grupo Galo considerou uma operação militar desenhada por Le Bon
que consistia em assaltar a estação da rádio com morteiros e cortar a fonte de
electricidade de todo o prédio. Segundo Le Bon, esta operação teve que ser
cancelada porque os insurrectos tomaram conhecimento e reforçaram a guarda.40
Miguel da Mata, indicado para sabotar a linha de fornecimento da electricidade,
ouviu o seu nome pela rádio, em casa da irmã, por onde passara a caminho do
local da acção. Através de agentes infiltrados no grupo Galo, os insurrectos
haviam sido alertados sobre a operação,41 o que obrigou Le Bon a esconder
Miguel da Mata.42
Na manhã do dia 10, quarto dia da insurreição, ficou claro para o grupo Galo,
para o Exército português, bem como para o MML que era eminente a chegada da
população africana na zona baixa da cidade. O então comandante do AB-8
(aeródromo-base 8 anexo ao aeroporto de Lourenço Marques), Tenente-Coronel
Jorge Ribeiro Cardoso, recorda o terror que teve quando sobrevoou a cidade
capital nessa manhã:
No dia 10 sobrevoei os negros a avançar para a cidade do cimento. Foi
de arrepiar: o que se via era milhares de negros a caminhar por todas
as estradas que levavam às entradas da Lourenço Marques dos brancos.
Pareciam multidões de formigas, aos milhares, a avançar em direcção à
cidade. Não se via o chão. Assustador. De lá de cima é que se tinha
uma ideia de conjunto do que estava prestes a acontecer. (Cardoso
apud Cardoso, 2014: 288)
Embora já tivesse recebido indicações de Lisboa para repor a ordem na cidade, o
Comando do Exército português em Lourenço Marques não sabia como tomar a rádio.
A delicada decisão de invadir a rádio estava nas mãos do Coronel Melo Egídio,
Chefe do Estado-Maior do Comando Territorial Sul e do Comando Operacional de
Lourenço Marques. Segundo Ribeiro Cardoso, reinava incerteza e indecisão no
quartel-general da capital. De facto, "a prioridade da chefia militar era
encontrar maneira de silenciar o RCM [Rádio Clube], mas estava-se num beco sem
saída porque se queria a todo o custo evitar o que chamavam banho de
sangue" (ibidem: 247). Nessa mesma manhã do dia 10, de Nampula, onde se
encontrava o Comandante-Geral do Exército, General Orlando Barbosa, duas
companhias de Comandos haviam sido despachadas para a capital para repor a
ordem. A caminho estava também o primeiro grupo de guerrilheiros da FRELIMO que
vinha fazer parte da comissão militar conjunta. As duas companhias de Comandos
chegaram no mesmo dia à capital. Os guerrilheiros da FRELIMO só chegariam no
dia seguinte.
Desconhecendo o impasse do Exército português, Quina Lima, um dos membros da
liderança do Galo, decidiu ir ao quartel-general, que fica a alguns minutos de
caminhada a partir de Mafalala. Queria falar com o comandante do Exército para
o convencer a falar com o grupo da Mafalala. Só com muita insistência é que
Quina Lima foi recebido pelo Coronel Melo Egídio. Lima revelou ao chefe militar
a existência de uma organização de resistência baseada no bairro da Mafalala
que possuía uma senha capaz de parar a multidão e evitar que ela chegasse ao
Rádio Clube. Mas apenas a recuperação da rádio permitiria o anúncio da senha e
faria com que a multidão recuasse. Lima revelou ainda a capacidade militar do
grupo da Mafalala, e alertou que o grupo já estava a equacionar um ataque à
rádio com recurso a armas pesadas em sua posse (como morteiros). Preocupado com
um possível ataque vindo da Mafalala, para além da eminente chegada das
populações à baixa, Melo Egídio pediu a Lima que chamasse os seus
companheiros.43
Na Base Galo, Lima teve primeiro que desculpar-se por ter quebrado o protocolo
e ter ido ao quartel-general por iniciativa própria sem ter discutido com o
grupo. Sob chefia de Amaral Matos, a liderança do Galo seguiu para o quartel-
general. Aurélio Le Bon recorda como foi criada a senha que havia de ser levada
à rádio caso a operação desse certo:
Dentro da viatura e prontos para partir, o Betinho Chissano sugeriu
que deixássemos orientações para que o comité passasse nas próximas
reuniões às outras células. "Pelo menos uma senha que todos
fiquem a saber caso tudo corra bem e haja a oportunidade de se
difundir pela Rádio." Amaral Matos concordou e decidimos criar
uma senha. "Galo, Galo", respondeu o Betinho. [...]
"Amanheceu!" Sugeri. "Agora sim, faz sentido. A
senha a ser enviada a todos os comités de coordenação e resistência
está aprovada: GALO. GALO. AMANHECEU. Vamos embora e desejem-nos
sorte e bom trabalho a todos. Sentenciou o chefe Amaral.44
Assim surgiu a senha que deu o nome ao grupo da Mafalala. Chegados ao quartel-
general, os líderes do Galo foram ouvidos por Melo Egídio. Entre os presentes,
Melo Egídio reconheceu Aurélio Le Bon, que fora seu "tropa" quando
era comandante da Zona Operacional de Tete (ZOT). Le Bon confirmou a existência
da organização sedeada na Mafalala e acrescentou que muitos dos seus colegas
africanos do batalhão de Comandos faziam parte da resistência. Ainda fez menção
à posse de armamento pesado e que alguns dos seus antigos colegas de tropa
estavam dispostos a apoiar as populações africanas em caso de fogo aberto vindo
dos colonos conservadores.45 Convencido, Melo Egídio decidiu lançar o assalto à
rádio. Nessa altura já tinha o aval do General Orlando Barbosa, que entretanto
havia chegado a Lourenço Marques com duas companhias de pára-quedistas. Melo
Egídio apontou Le Bon para dirigir a operação e ordenou que lhe dessem um
fardamento de alferes. A ideia era que Le Bon seguisse para o Rádio Clube
acompanhado por uma brigada de pára-quedistas, e assim que fosse tomada a rádio
assumisse os microfones. Entretanto, os seus companheiros da Mafalala deviam
permanecer no quartel.46
Entretanto, o desgaste que o MML sofria, e a não-adesão do Exército e do
Governo de Portugal à sua causa eram um sinal claro que a sua
"revolução" havia chegado ao fim. Através do coronel Cunha Tavares
(comandante da PSP), Gonçalo Mesquitela, um dos líderes da insurreição,
mantinha conversações com o quartel-general. Entretanto os aeroportos já haviam
sido recuperados pelo Exército. Dentro da cabine da rádio os líderes do MML já
viviam o medo da eminente invasão, e preparavam-se para entregar a rádio,
enquanto lá fora as vozes embargadas dos milhares de colonos desesperados
entoavam canções da pátria amada e içavam a bandeira das cinco quinas. Passavam
já quatro dias e a "revolução" não tinha mais força. Com alguma
dificuldade, a brigada de pára-quedistas que acompanhava Le Bon conseguiu abrir
caminho até à cabine da rádio, no segundo andar, sem resistência. Dentro da
cabine já se estava à espera de um tal representante da FRELIMO que havia de
acalmar as populações. Esta entrada no Rádio Clube é descrita por Mesquitela
nos seguintes termos:
O coronel Tavares regressa, entretanto, e traz consigo um
representante da Frelimo que fora buscar ao Quartel-General, e que
vem fardado de alferes do Exército Português (se o não era)… Explica
aos presentes na cabine que esse representante da Frelimo vai falar
aos camaradas porque, assim, terminarão imediatamente os massacres
que se estão a dar em muitos pontos da cidade. Segundo diz o alferes,
utilizará uma senha previamente combinada com todos os elementos da
Frelimo, que será o sinal para pararem. Confirma assim o que o comité
da Revolução tinha suspeitado. Tudo estava combinado entre a Frelimo
e as Forças Armadas. (1977: 148)
A clandestinidade da actuação do grupo Galo cimentou a ideia, entre os
insurrectos do Rádio Clube, de que era a FRELIMO quem estava a orquestrar a
resistência nos subúrbios. Mas a FRELIMO ainda não tinha chegado à cidade
capital. Apenas no dia seguinte, a 11 de Setembro, é que os primeiros
guerrilheiros da FRELIMO, chefiados por Alberto Chipande, haviam de chegar a
Lourenço Marques. Até então o grupo Galo actuou por iniciativa própria, sem
orientação directa da FRELIMO. Como refere Chico Seita,
havia uma série de grupos. A FRELIMO um dia vai ter que reconhecer
que de fato houve gente anónima que fez uma mobilização terrível.
Quer dizer, é diferente ter alguém da FRELIMO que veio de Dar-es-
Saalam. Nós não tínhamos nada disso. Ali no Infulene não conheci
ninguém da FRELIMO. Éramos nós apenas.47
A entrada de Le Bon no Rádio Clube foi muito facilitada pela sua camuflagem,
como militar português, que lhe garantiu as necessárias credenciais. Mas tal
disfarce não havia de durar muito tempo. A situação dentro da cabine era
bastante tensa e podia explodir a qualquer momento. Como Le Bon recorda,
"coloquei-me junto de uma G-5 que estava encostada na parede para me
defender caso algo corresse mal."48 Ricardo Saavedra (1975: 67) e
Clotilde Mesquitela (1977: 148-149) oferecem com detalhe o discurso,
interrompido de música de quando em vez, que Le Bon proferiu quando assumiu os
microfones:
O alferes, com uma voz perfeitamente controlada, começa a sua
alocução. "Galo, galo, galo amanheceu. Peço a todos os
camaradas que se dirijam ordeiramente e com a maior calma possível
para todos os pontos da cidade, a fim de controlarem as massas que se
dirigem para o centro da cidade… Galo, galo, galo amanheceu. Galo
amanheceu. [...] Calma, honraria, um desejo intenso de construir
Moçambique, de acordo com o programa assinado no dia sete de Setembro
em Lusaka, passa a ser a palavra de ordem para o povo todo de
Moçambique, a partir deste momento…O Rádio Clube de Moçambique foi
entregue às forças policiais que o colocaram sob controlo das Forças
Armadas, a quem compete garantir a paz ao povo de Moçambique, até à
entrada em exercício, em breve, do novo governo para Moçambique, cuja
constituição ficou estabelecida em Lusaka. Viva o Presidente de
Portugal. Viva António Spínola. Viva Samora Machel. Atenção,
camaradas. Galo, galo amanheceu. Foi esta a senha combinada por todos
os camaradas. Dêem a vossa ajuda. Viva o Presidente Samora Machel.
Viva o Presidente António Spínola.
Os vivas a Samora Machel e a credibilização dos acordos de Lusaka acabaram com
o disfarce de Le Bon. O Coronel Cunha Tavares regressou à cabine da rádio aos
gritos, "fomos traídos! Fomos traídos! A senha do Galo, galo amanheceu é
a ordem de ataque. Nos sítios indicados nestas mensagens já estão a ser
massacradas todas as pessoas. Será impossível detê-los" (Mesquitela,
1977: 149). De imediato, um dos jovens insurrectos, "ao ouvir isto,
dispara o seu revólver, mas tão nervoso estava que não acertou no
frelimo" (ibidem). Le Bon recorda que conseguiu escapar pulando pela
janela e correndo para a sede da polícia que fica a um bloco da estação da
rádio.49 No entanto, a essa altura, a operação não podia ser mais interrompida.
Na verdade, o que alarmara o Coronel Tavares eram as notícias que chegavam
dando conta de que as populações enfurecidas se aproximavam da estação da rádio
e que tinham deixado um manto de destruição e morte pelo caminho. O quartel-
general reforçou as ordens e um grupo de pára-quedistas foi enviado para tomar
a rádio à força, enquanto Le Bon regressava pela segunda vez ao Rádio Clube,
para repetir o apelo.50
De novo na cabine Le Bon assumiu o comando dos microfones e anunciou que o
"golpe" tinha acabado. Nessa altura toda a liderança do MML já
havia abandonado a Rádio. Fora da estação da rádio as tropas dispersaram as
largas centenas de manifestantes pró-MML que ainda se mantinham no local. Le
Bon continuou ao comando dos microfones enquanto esperava que locutores
profissionais chegassem à estação. "Depois de acalmar as populações, não
sabia o que fazer com o microfone. Tentei dizer mensagens de paz e
independência, mas não conhecia as palavras de mobilização e canções da
FRELIMO. Entretive as pessoas lendo o Acordo de Lusaka que tinha sido publicado
no Diário de Notícias."51
Um dos aspectos importantes desta história é a forma como o discurso de Le Bon
conseguiu parar a marcha da população africana em direcção ao Rádio Clube. Há
poucos dados sobre este ponto em concreto. Certamente a senha Galo, galo
amanheceuque os líderes do grupo de resistência da Mafalala deixaram com o
responsável pela informação, Betinho Chissano, foi rapidamente espalhada entre
os vários núcleos de protecção dos bairros, que também se encontravam com a
massa popular que se dirigia à baixa da cidade. Algumas pessoas tinham
aparelhos de rádio portáteis entre a multidão, e assim que ouviram a senha e o
discurso de Le Bon aperceberam-se de que o "golpe" tinha acabado,
como afirma um dos dirigentes dos núcleos de protecção dos bairros, Dinis
Muhai:
Avançamos com o grupo para a Praça 21 de Outubro, que antes era Praça
João Albasini. Foi onde parámos quando o Aurélio Le Bon grita o Galo
Amanheceu na Rádio Clube. Tínhamos os nossos rádios a escutar. Nós
tínhamos o Fernando Sumbana e o António Sumbana que faziam a conexão
com a Base Galo na Mafalala. Então pronto, terminou.52
Quando o primeiro contingente da FRELIMO chegou à cidade, no dia 11 de
Setembro, Le Bon ainda estava de uniforme e a situação tinha começado a voltar
à normalidade, embora muito tenuemente. Foram justamente os líderes do grupo
Galo que receberam Alberto Chipande e Bonifácio Gruveta, os responsáveis do
primeiro contingente de guerrilheiros da FRELIMO que vinha integrar a Comissão
Militar Mista preconizada no Acordo de Lusaka.
Conclusão
Este artigo parte da assunção de que o processo histórico que culminou com a
descolonização e independência de Moçambique foi mais complexo e multifacetado
e envolveu muito mais atores cujas posições políticas não cabem na simples
oposição binária imposta pela "narrativa de libertação" que domina
a historiografia de Moçambique contemporâneo (Borges Coelho, 2014: 23). No
período conturbado da transição marcado pelos tumultos de 7 de Setembro, as
fronteiras entre nacionalista e colonialista, revolucionário e reaccionário,
militar e civil, herói e traidor (que definem e animam a narrativa de
libertação) eram muito porosas. Os mecanismos de mobilização e a actuação do
grupo Galo da Mafalala devem ser vistos não como simples extensão do
nacionalismo revolucionário da FRELIMO, mas como resultado do agenciamento das
elites africanas de Lourenço Marques, animadas por um imaginário político
próprio e mais moderado. As tensões entre este imaginário político e o
exclusivismo revolucionário da liderança da FRELIMO vieram à superfície logo
depois da proclamação da independência nacional. Por terem actuado sempre na
"zona do inimigo" (o espaço urbano), as elites africanas que
militaram na clandestinidade foram vistas pela FRELIMO com desconfiança. A sua
integração nas fileiras do partido de vanguarda só seria permissível depois de
uma triagem (corajosos vs. vacilantes, heróis vs. traidores, militantes vs.
comprometidos) e de um processo de purificação através da reeducação política e
moral. O próximo projecto, continuação deste, procurará examinar as dinâmicas
da tensa (e muitas vezes violenta) colisão entre a visão política moderada das
elites africanas urbanas e o exclusivismo revolucionário da FRELIMO no processo
de construção do Estado-nação em Moçambique independente.