Memória, história e narrativa: Os desafios da escrita biográfica no contexto da
luta nacionalista em Moçambique
Introdução
Com a problematização da produção e reprodução das ciências, os finais do
século xx e as primeiras décadas do século xxi marcam um período de debates de
carácter epistemológico, trazendo inúmeros e importantes desafios aos estudos
de ciências sociais. Neste quadro, as últimas quase três décadas do século xx
distinguem-se pela existência de um processo novo de desconstrução/construção
histórica, a que Pacheco Borges chamou "uma ampla renovação
historiográfica" (Borges, 2006: 1).
No processo de "renovação historiográfica", é possível constatar
que depois da crise dos grandes paradigmas e da afirmação de uma história
totalizante, a problematização de temáticas como a narrativa histórica e a
construção biográfica, bem como a memória e sua relação com a História,
produziram novas interrogações e aprofundaram outras discussões. Neste
contexto, evidencia-se a revalorização da narrativa e o papel de destaque que a
memória passou a desempenhar no campo das ciências sociais, contribuições para
as novas formas de olhar a própria História.
Uma vez que a narrativa e a memória podem ser abordadas através de múltiplos
olhares, os grandes debates de carácter epistemológico em redor destas
temáticas levantaram polémicas novas inseridas na procura de respostas aos
também novos problemas, processos estes envolvendo académicos de várias
disciplinas e escolas. Sem ignorar as múltiplas abordagens1 que se têm
realizado, a nossa contribuição pretende centrar-se nas discussões que tratam
da História, independentemente da sua origem disciplinar. Deste modo, retomando
alguns questionamentos nascidos em redor da inter-relação entre a História, a
memória e a narrativa como parte das preocupações dos cientistas sociais, e o
significado particular que a narrativa assume na história de África, com este
texto trazemos para discussão questões e interrogações de carácter
metodológico. As nossas reflexões partem de uma experiência de pesquisa
acumulada no trabalho com histórias de vida e biografias, e os nossos exemplos
são tomados de estudos de caso associados ao movimento nacionalista no sul de
Moçambique.
1. O lugar da história em África e o papel da narrativa histórica
No processo mais global ligado ao pensamento crítico que se desenvolveu na
segunda metade do século xx, a História, enquanto disciplina, assumiu um papel
de destaque face aos debates que então tomaram lugar no seio dos intelectuais
africanos (Zeleza, 2006). A ideia principal que presidiu a estes processos que
ocorreram no âmago das ciências sociais e das humanidades prendia-se com a
necessidade de renegociar os termos epistémicos da produção do conhecimento
(ibidem), onde, para tomar de empréstimo as ideias defendidas por Sousa Santos
ou Aníbal Quijano sobre esta mesma problemática, se colocava na mesa de debate
a diversidade epistemológica contra um saber subalternizado (Santos, 2009;
Quijano, 2009), e a necessidade de encontrar outras alternativas ao padrão
"eurocentrado" e, como diria Hountondji, a partir de uma
"reapropriação crítica dos próprios conhecimentos endógenos de África
[...] com uma apropriação crítica do próprio processo de produção e
capitalização do conhecimento" (Hountondji, 2009: 129).
No continente africano, a História de África como disciplina académica começa a
ter relevância apenas nas décadas de 1950 e 1960, com o desenvolvimento dos
processos de descolonização e das independências nacionais. Um revisitar da
instituição e desenvolvimento desta disciplina no continente mostra-nos a
produção de uma História de África onde o foco das problemáticas desenvolvidas
se concentra em redor de temas que procuram rebater a ideia de um continente
sem história, onde o africano passa de objecto a sujeito da história e onde
ainda a narrativa nacionalista assume um lugar privilegiado. Trata-se de um
período de revalorização da história do continente, que caminha a par e passo
com o crescimento das chamadas "universidades desenvolvimentistas"
(Mamdani, 2007; Silva, 2010). Este período de intensa produção historiográfica
é conhecido como a Idade de Ouro da historiografia africana.
História oral, narrativa e biografia
A escassez de documentos escritos para períodos mais remotos e a necessidade de
comparar e testar a veracidade das fontes contribuíram para o desenvolvimento
da história oral, num processo que contou com a colaboração de historiadores,
antropólogos e linguistas, onde não podemos esquecer a destacada contribuição
de Jan Vasina (Jewsiewicki e Mudimbe, 1993). Vista como uma fonte alternativa
e/ou complementar à existência de outros documentos para além da escrita, já
que em muitas sociedades a oralidade e a escrita coexistem e o recurso a outras
provas documentais é variado, a história oral foi também desenvolvida para
sobrelevar uma visão colonial do passado e para "dar voz" e
visibilidade aos protagonistas da História em África. Referimos aqui, não só os
"esquecidos" pela historiografia colonial, mas também, os
retratados, interpretados, e reinterpretados, à luz dos detentores da palavra
escrita.
Embora o uso de fontes orais não constitua uma especificidade de África, elas
passaram a fazer parte dos recursos metodológicos da sua historiografia
particularmente depois das décadas 1950 e 1960 e, no geral, nos períodos que se
seguiram às independências nacionais dos seus países. No contexto que acabámos
de mencionar, com a contribuição dada pelos relatos orais, a historiografia
africana iniciou um processo de resgate da memória histórica do continente.
Em África, a partir da década de 1970, a historiografia ganha um interesse
específico pela história social e pela história intelectual (ibidem), onde a
narrativa histórica passou a assumir um papel de relevo. As novas correntes da
história que se desenvolvem a partir da década de 1980 no "mundo
ocidental" reforçam a importância que a narrativa histórica já vinha
desempenhando e as perspectivas da sua análise e "renovação".
Não podemos entretanto ignorar, tal como argumentam Jewsiewicki e Mudimbe
(1993), que o percurso da historiografia africana, ao transitar por um processo
de rejeição de uma concepção colonial de análise, tentando produzir um
conhecimento a partir de si,também caiu, contraditoriamente e repetidamente, na
armadilha da visão cristã e ocidentalizada da interpretação da História. No
desafio apresentado por estes dois autores para uma nova leitura da História
foi necessário não só lidar com problemas como memória individual e colectiva,
como quebrar a concepção dualista da "África da tradição" e da
"África de hoje", a favor da articulação entre ambas (ibidem: 10).
É igualmente importante não perder de vista o pressuposto que a narrativa
histórica deve ser situada dentro de um contexto, não podendo por isso ser
utilizada como instrumento neutro de interpretação. Construída com fins
específicos, ela não pode ser vista de forma independente, quer do seu narrador
quer das circunstâncias que levaram à sua produção (Wertsch, 2000). Coloca-se
assim em debate a objectividade do historiador, onde "a não inocência do
documento" levanta inúmeras discussões sobre processos de manipulação (Le
Goff, 2010), retomando a questão do uso e validação das fontes. Na sua
conhecida alocução intitulada "Towards a Usable African Past",
Terence Ranger (1976) tratou com profundidade a problemática da objectividade
histórica ao debater a questão da cultura dos heróis da Idade do Ouro, um tema
que ainda se mantém actual se tomarmos em linha de conta a necessidade de
revisitar e reavaliar a história do nacionalismo em África e as repercussões
que esses movimentos e suas lideranças têm ainda na história mais recente dos
seus países.
A biografia histórica, por sua vez, pelo seu carácter e natureza
multifacetados, permite reunir uma combinação complexa de elementos que contêm
não só a descrição da vida pessoal do biografado e a leitura do meio em que o
mesmo se insere, como outras componentes novas. Porque feita a partir de
diferentes recursos documentais dos quais a narração do próprio sujeito ou de
terceiros se situam entre tantas outras fontes, escritas ou não, a biografia
passa também a ser objecto de estudo e debate nas várias disciplinas de
ciências sociais, possibilitando a compreensão do comportamento humano e da
sociedade num sentido mais amplo, permitindo assim fazer considerações críticas
aos paradigmas e objectos da história social. O desenvolvimento da biografia
insere-se a partir de agora na função narrativa do discurso histórico,
expressando-se através de várias heterogeneidades e múltiplas formas de
identidade, e passa a ocupar um lugar de destaque que lhe é dado pela abertura
que caracteriza este período.
2. Memória, História e narrativa
Ao longo dos tempos, a História enquanto disciplina foi vista com vários
sentidos. No dizer de Le Goff (2010) ela tem também o sentido de narração.
Nesse processo, História e memória confundiram-se muitas vezes, mas também se
afastaram simultaneamente. A constituição das ciências sociais e o
desenvolvimento dos estudos multidisciplinares reservaram no entanto à memória
um papel especial no campo das ciências sociais. Hoje, ela é vista e tratada
como um instrumento essencial na criação e preservação de identidades, sejam
individuais ou colectivas, mas também como um poderoso instrumento de poder
(ibidem). Os "usos e abusos da memória" (Ricoeur, 2010) envolvem,
entre outros aspectos, o esquecimento e suas estratégias, o perdão e a
manipulação, cuja compreensão é fundamental para a narrativa histórica
(ibidem).
Na narrativa histórica a memória desempenha um papel essencial, na medida em
que, como nos diz Florès, citado por Le Goff, permite transmitir a outrem
"uma informação, na ausência do acontecimento ou de um objeto" (Le
Goff, 2010: 421), através do uso da linguagem. No processo de configuração e
reconfiguração narrativa, o historiador tem que enfrentar diversos obstáculos,
onde as armadilhas da memória podem envolver estratégias de esquecimento e
processos de manipulação, dos quais os mais perigosos são, no dizer de Paul
Ricoeur, frequentemente associados à ideologização da informação e a
manifestações de poder (Ricoeur, 2010).
Usando exemplos particularizados em experiências colhidas na realidade da
pesquisa, passarei a discutir a relação entre a memória e a narrativa
histórica, e os desafios que esta relação coloca à escrita da História.
A narrativa biográfica como História: Zedequias Manganhela e Eduardo Mondlane
Para analisar as particularidades de uma realidade empírica situada, centramos
a nossa escolha na história de vida de Zedequias Manganhela, complementada pela
de Eduardo Mondlane.
As motivações que me levaram a trabalhar com as histórias de vida de Manganhela
e Mondlane, mesmo aproximando-se, são diferentes. Mondlane surgiu nos meus
trabalhos como uma figura difícil de contornar, quando estudava o papel das
igrejas protestantes na formação de uma consciência política no sul de
Moçambique, onde a Missão Suíça (Igreja Presbiteriana de Moçambique) era o
estudo de caso (Silva, 2001a; 2001b). No entanto, dado o tema específico do
referido trabalho, mais do que meu objecto específico de estudo, a sua história
de vida acabou por se limitar a um exemplo mais aprofundado, com fins de
ilustração de uma realidade que pretendia transmitir. Revisitando o estudo que
fiz sobre a vida de Eduardo Mondlane, fica claro que a minha opção pelo período
que cobre a constituição da sua identidade na infância e juventude até à sua
eleição como Presidente da FRELIMO - Frente de Libertação de Moçambique,
reflecte a minha tentativa de "fugir" às armadilhas da
ideologização da memória e das celebrações das histórias únicas e oficiais.2
O meu encontro com Zedequias Manganhela tem em comum com o meu estudo sobre a
vida de Eduardo Mondlane apenas o facto da sua história de vida ter surgido
como uma ilustração dos argumentos que desenvolvi no estudo acima referido
(Silva, 1993a; 1993b; 2001a; 2001b). Nesse trabalho, a sua trajectória de vida
foi sobretudo utilizada para exemplificar a relação entre colonizador e
colonizado e a violência da repressão colonial nos anos de 1970. Mais de 27
anos depois, voltei a revisitar Manganhela, mas desta vez tendo o indivíduo
como objecto de estudo e não como uma simples ilustração, o que me levou a
fazer face a outros obstáculos de carácter metodológico que se prendem com a
escrita biográfica,3 e que constituirão o cerne de algumas das questões que
abordarei. Assim, para ilustrar os desafios da escrita biográfica como
história, concentrar-me-ei na história de vida de Manganhela. Recorrerei ao
percurso de vida de Mondlane, mais uma vez, apenas como ilustração. Para melhor
situar o desenvolvimento dos meus argumentos, farei uma brevíssima incursão
pela história de vida de Zedequias Manganhela, já que a história e a
interpretação do seu percurso constituirão o maior suporte desta discussão.
Zedequias Manganhela
Zedequias Manganhela nasceu na região de Matutuine, no sul de Moçambique, a 25
de Outubro de 1912. Originário de uma modesta família de camponeses, ainda
muito jovem perdeu o pai tendo a sua educação ficado à responsabilidade de um
tio, professor primário formado para o ensino de indígenas (numa escola da
Missão Suíça) e a única pessoa escolarizada da família, na época.4 Como outras
crianças do campo, da mesma idade, foi pastor de gado.
Em 1926, já com 14 anos, teve o seu primeiro contacto com a Missão Suíça e com
uma escola na sua região de nascimento, estudando depois em Lourenço Marques e
em Ricatla (Marracuene), sempre em escolas da Missão Suíça, até finalizar os
estudos primários em 1933.
Entre 1934-37 frequentou a Escola de Formação de Professores Indígenas em Alvor
(1934-37). Casou em 1940 e cursou o Pastorado entre 1945 e 1947. Em 1948 foi
investido como Pastor.
Tendo trabalhado em várias localidades do sul de Moçambique, como evangelista,
professor e Pastor, ocupou na então Missão Suíça posições de liderança, das
quais se destaca o lugar de presidente do Conselho Sinodal da Igreja
Presbiteriana de Moçambique (Missão Suíça), que assumiu em 1963. Tendo sido
posteriormente reconduzido ao mesmo cargo, desempenhou esta função até ao
momento da sua prisão pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), em
Lourenço Marques, em 1972, quando exercia também, por acumulação, a função de
pároco na pequena igreja da Missão, em Chamanculo.5 Em Dezembro do mesmo ano
faleceu na cadeia da Machava, havendo fortes indicações de assassinato, embora
os documentos oficiais tivessem declarado a sua morte por suicídio.
A sua actividade como Pastor realizou-se no contexto da chamada
"africanização"6 da Missão Suíça, que a partir de 1948 viveu uma
fase de transição, com a passagem de uma igreja suíça (Missão Suíça) a uma
igreja moçambicana, a Igreja Presbiteriana de Moçambique (IPM). O final desta
longa transição ocorreu apenas em 1970, quando foi assinada uma convenção entre
a Missão Suíça e a igreja moçambicana (IPM), acto em que a primeira concedeu a
autonomia total à segunda. Em vários passos deste processo Zedequias Manganhela
teve também protagonismo, como líder da igreja.7
Como Pastor e, mais tarde, estando já no topo da liderança da sua igreja,
Zedequias Manganhela viajou por vários países e continentes como representante
da igreja de Moçambique. Neste quadro, visitou alguns países da Europa, da
América Latina, e do continente africano. Em Moçambique, Manganhela realizava
visitas não só às paróquias do sul do Save, mas, em plena Guerra Colonial,
visitava o centro do país, no então distrito de Manica e Sofala, e o norte, no
distrito de Nampula, no exercício das suas actividades de carácter
profissional. Nessa qualidade, visitou também as actuais províncias do Niassa,
Zambézia e Cabo Delgado (Silva, 2001a; 2001b; Chamango, 2005).
Tendo-se tornado amigo de Eduardo Mondlane durante a sua juventude, reforçou
essa ligação através de contactos mútuos realizados em 1961 durante a visita
privada do primeiro a Moçambique (que era então funcionário das Nações Unidas),
e teve ocasião de o reencontrar pelo menos duas vezes na Suíça, quando Mondlane
era presidente da FRELIMO (Silva, 2014).
Manganhela era um homem prezado no seio da sua comunidade e bastante respeitado
como mentor da juventude. A sua morte em Dezembro de 1972 causou um choque
indescritível em vários círculos nacionais e teve repercussões profundas a
nível internacional, que levaram à intervenção junto do Governo português não
só dos missionários suíços como de várias instituições internacionais, media e
representantes diplomáticos de alguns países com governos progressistas.
Num artigo em duas partes, publicado por Gita Honwana em 1982 e 1983, que
trataremos de seguida, a autora refere que depois de vários meses de prisão e
apenas 3 interrogatórios, a 11 de Dezembro de 1972, a PIDE/DGS em Moçambique
comunica à sua sede em Lisboa o suicídio de Zedequias Manganhela. Os cenários
que se seguiram levam a crer que se tratou de um assassinato por suspeita do
seu envolvimento com a FRELIMO, com a acusação de enviar regularmente fundos
para a Tanzânia, sua ligação com Eduardo Mondlane, e de ter facilitado a fuga
de jovens para se juntarem à FRELIMO (Honwana, 1982 e 1983; Silva, 2014).
Muito pouco foi escrito por, e sobre Manganhela. Existe uma autobiografia,
arquivada no "Departamento Missionário das Igrejas Protestantes da Suíça
Romande" (DM), em Lausanne, hoje "DM Échange et Mission", que
parece ter sido escrita em 1959, originalmente em xirhonga e posteriormente
traduzida para as línguas portuguesa e alemã, e algumas pequenas notas
biográficas em francês.8 O mesmo arquivo conservou algumas fotografias,
documentos pessoais relativos à sua actividade profissional, maioritariamente
escritos em xirhonga e, sobretudo um volume considerável de recortes de
jornais, artigos de revistas, correspondência diversa, depoimentos e um
conjunto de informações dispersas que se prendem, sobretudo, com o período da
sua prisão e morte.
Gita Honwana publicou um artigo, acima referido, intitulado "Um episódio
de justiça colonial: O caso de Zedequias Manganhela",9 em dois números,
da extinta revista Justiça Popular, com as datas de Outubro de 1982 (1.ª parte)
e Janeiro/Maio de 1983 (2.ª parte).
Em 2005, com a chancela da IPM, foi publicada uma pequena biografia intitulada
Zedequias Manganhela: Pastor e mártir, da autoria de Simão Chamango, traduzida
mais tarde para francês e publicada em 2010 por uma editora suíça.
Em 2010, Georges Andrié10 publicou igualmente um pequeno ensaio, sob a chancela
do "DM Échange et Mission", traduzido para português com o título
Moçambique no cúmulo do sofrimento (1972-1974): Lutos e luta da Igreja
Presbiteriana de Moçambique e do departamento missionário das igrejas
protestantes da Suíça de língua francesa, onde o autor relata de uma forma
extraordinariamente clara e dramática o período que precedeu a prisão de
Manganhela, a sua permanência na cadeia da Machava juntamente com outros
membros da IPM, a sua morte, e o período subsequente, até 1974.
Chamango conheceu e privou com Manganhela, e Andrié partilhou com ele os
momentos mais críticos da relação entre o Estado colonial e as igrejas
protestantes, onde a vigilância da polícia política condicionava as suas
acções, constrangia os seus gestos e obrigava-os a controlar as suas palavras.
Se Honwana (1982 e 1983) trata a prisão e morte de Manganhela do ponto de vista
jurídico, quer em Chamango (2005) quer em Andrié (2010) Manganhela é retratado
como um mártir da igreja, assassinado pela PIDE, a polícia política do governo
colonial. Dos três textos publicados, dois giram essencialmente em redor da sua
prisão e morte. Assim, no artigo de Honwana (1982 e 1983) e no ensaio de Andrié
(2010), o percurso de vida de Manganhela até 1972, fica praticamente
"esquecido". Os relatos de Georges Andrié deixam-nos perceber, umas
vezes de forma indirecta outras de forma incisiva, a repressão do regime e a
violência do sistema, retratados na prisão de Manganhela e seus colegas, e nas
mortes violentas de Manganhela e do evangelista Sidumo.11 O discurso racista do
regime, relativamente à população indígena, é representado de forma incisiva
por Andrié, ao reproduzir as palavras grosseiras de um ministro do regime
colonial português, a propósito das reacções de várias organizações
internacionais pela morte de Manganhela: "Mas afinal, porquê tanto
barulho por causa de um negro?" (Andrié, 2010: 26). O artigo de Honwana
(1982 e 1983), que junta aos autos de acusação e outros documentos algumas
entrevistas como base de análise, permite-nos igualmente perceber a violência
do regime colonial na sua fase derradeira.
O ensaio de Andrié (2010), ao centrar a sua trama no período que precede a
prisão de Manganhela e sua morte, dá-nos uma imagem extremamente dramática e
carregada de emoção dos acontecimentos, através dos relatos sobre a prisão e
morte de Zedequias Manganhela e José Sidumo, e a prisão de outros membros da
Igreja Presbiteriana de Moçambique. O título da sua obra, No cúmulo do
sofrimento, revela por si o peso dos relatos nela contidos.
As informações mais completas que obtive sobre a bárbara morte de Manganhela
foram-me gentilmente transmitidas por Andrié, numa série de entrevistas
realizadas em Lausanne, entre os finais de 1980 e inícios da década de 1990. No
seu ensaio publicado em 2010, estes mesmos acontecimentos são retomados. No
prefácio a este livro, assinado por Jacques Küng (2010), há referências à
"resistência" do autor em publicar as suas memórias já que, e nas
palavras de Küng, "Ele era muito mais um homem da palavra do que da
escrita" (ibidem: 5). Depois de comparar as entrevistas que realizei em
Lausanne com Andrié e referidas mais acima, com o discurso desenvolvido pelo
mesmo testemunho na sua publicação de 2010, encontrei a mesma hierarquização na
selecção de acontecimentos, a mesma narrativa dramática e o mesmo espírito
crítico do seu autor, que o passar dos anos não apagou nem diminuiu. Isto leva-
me a ir para lá do que Küng considera em Andrié como sendo uma pessoa mais dada
a falar que a escrever, para situar essa inconsciente "resistência"
em escrever as suas memórias na dor não superada das lembranças. Uma vez que
colocamos o documento no estatuto de "não-inocente", e se
associarmos estes aspectos à tensão que sempre marcou as relações entre a
Missão Suíça/Igreja Presbiteriana de Moçambique, e o Estado colonial português,
a hierarquização dos acontecimentos acima referidos é também reveladora do
contexto que o autor viveu.
O trabalho de Chamango (2005), embora apareça muito "colado" à
autobiografia de Manganhela que referi mais acima, sobretudo para o período da
sua infância e juventude, tem no entanto o grande mérito de conter pequenos
depoimentos da sua filha mais velha, Margarida; seu filho já falecido, Ernesto;
seu genro e colaborador por longos anos, João Cuambe, e de outros colegas de
Manganhela, que nos oferecem informações importantes e nos retratam a figura do
pai e do educador, mas também a de um líder religioso carismático e muito
humano, que acreditava no futuro de um Moçambique independente. Chamango (2005)
traz-nos também informações sobre um misto de tristeza, revolta e medo que se
abateu sobre a comunidade religiosa depois da prisão e morte de Manganhela. A
imagem que o autor nos transmite do seu funeral confirma a violência do regime
colonial.
As publicações de Chamango (2005) e, em parte, de Andrié (2010), somadas às
memórias que me foram transmitidas pelos colegas e amigos ou discípulos do
biografado, no seio da Igreja Presbiteriana de Moçambique, retratam a figura de
Manganhela centrada na igreja, pretendendo ao mesmo tempo marcar os feitos de
um líder religioso, mártir. Embora feito de forma indirecta, é bastante óbvio
que há uma administração da imagem que se pretende transmitir, o que se
aproxima muitas vezes de uma hagiografia. Quer na escrita de Chamango quer na
de Andrié, a forma como os acontecimentos são encadeados é reveladora dos laços
identitários comunitários e o sentido de pertença dos seus autores, em redor
dos quais se desenrola a composição da intriga e se configura a acção dos seus
actores, o que é particularmente visível no ensaio de Andrié.
Há ainda a documentação colonial, da qual destaco particularmente os documentos
da PIDE/DGS de 1972 a 1974,12 contendo vários processos dos prisioneiros de
1972, entre os quais Zedequias Manganhela, onde se inclui a sua suposta
confissão e a nota também supostamente assinada por ele antes de se
"suicidar".13 No conjunto destes documentos, há ainda
correspondência trocada entre Lourenço Marques e Lisboa a propósito das prisões
realizadas na época, e recortes de jornais, entre outros documentos, que nos
ajudam a reconstituir a biografia de Zedequias Manganhela, à qual voltaremos
mais adiante.
Memória, esquecimento e manipulação de fontes
No trabalho que tenho vindo a realizar, e para tomar de empréstimo as palavras
de Georges Duby nos seus Diálogos sobre a nova história (Duby e Lardreau,
1989), deparo-me com uma História construída sobre farrapos da memória, onde os
vestígios com os quais trabalho, para além de não serem uniformemente
repartidos, não foram inocentemente preservados e/ou esquecidos. No processo da
narrativa estamos perante situações onde a memória se aproxima e afasta,
criando espaços para desenhar mitos e para cultivar o imaginário. Para discutir
memória, esquecimento e perdão, retomo a minha pesquisa sobre Zedequias
Manganhela.
A minha incursão pela história de vida de Manganhela realizou-se em duas fases
diferentes, como já referido. Na segunda fase da pesquisa, com um foco
diferente e mais direccionado, entre outros testemunhos colectados realizei
entrevistas em Moçambique com alguns dos mesmos informadores que havia
contactado na primeira fase (neste espaço de tempo, alguns tinham já falecido).
A estes, coloquei perguntas novas e retomei algumas questões colocadas na
primeira fase, quer para reconfirmar depoimentos ou clarificar algumas ideias,
quer para testar se mantinham as mesmas opiniões e postura sobre determinados
assuntos abordados nas primeiras entrevistas. Não voltei a contactar os
missionários suíços, já que todos os entrevistados haviam falecido durante este
interregno de mais de vinte anos. Destas duas rondas de entrevistas gostaria de
registar e comentar os seguintes acontecimentos: a morte de Manganhela e o
protagonismo dos entrevistados.
Na primeira série de entrevistas que realizei, mesmo não sendo estas
especificamente direccionadas à vida de Manganhela, a alusão ao seu nome e obra
foram sistematicamente mencionados. Destacam-se nestes depoimentos as
referências à sua ligação com Eduardo Mondlane e ao seu trabalho como líder da
IPM, num complicado processo de transformação da Missão Suíça em IPM, onde a
cerrada vigilância da polícia política criava sérios obstáculos às suas
actividades. As informações sobre a sua prisão e morte, embora aparentemente
reveladas com abertura foram também marcadas por vários silêncios, sobretudo no
que se refere à sua morte e à suspeita da existência de alguns delatores entre
os membros da sua igreja. Uma das pessoas que entrevistei confessou-me na
altura que a "fuga" relativa às discussões sobre a sua morte e
prisões de membros da comunidade religiosa se devia ao facto de este assunto
ter sido praticamente "silenciado" por decisão tomada pela igreja,
para proteger as famílias dos antigos prisioneiros e evitar divisões no seio da
IPM. Mais de duas dezenas de anos depois, e na posse de alguns documentos
fotocopiados dos arquivos da PIDE/DGS em Lisboa, que incluíam
"denúncias" de vários membros da igreja (entre os quais Manganhela)
contra os seus colegas, acusados de serem simpatizantes e colaboradores da
FRELIMO,14 abordei alguns dos meus informadores da primeira série de
entrevistas para novas entrevistas. Confrontados com a lista de nomes
mencionados nos diversos processos da PIDE/DGS como colaboradores da FRELIMO,
incluindo os seus próprios nomes, discutiram abertamente a impossibilidade de
os factos relatados poderem ser verdadeiros, até porque eram contraditórios,
mas mencionaram quer a eventualidade de as confissões terem sido feitas sob
coação, quer a possibilidade de terem sido forjadas. Não recusaram entretanto a
confirmação de que também havia no seu seio membros da comunidade religiosa
infiltrados pela PIDE, alguns dos quais pediram perdão depois de terem saído da
cadeia em 1972/3, justificando que haviam sido coagidos a aceitar falsas
declarações e a assinar documentos. A maior parte dos nomes listados nos
processos de acusação a que tive acesso tinham já falecido.
Na segunda série de entrevistas verifiquei também haver referências mais
vincadas à proximidade entre Manganhela e os meus entrevistados, destacando-se
o facto de um significativo número dos meus informantes sublinhar ter sido
perseguido ou admoestado pela PIDE/DGS na altura da prisão de Manganhela, ou
depois da sua morte.
Nas palavras de Ricoeur, "Pode-se sempre narrar de outro modo,
suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diferentemente os protagonistas
da acção assim como os contornos dela" (2010: 455). Muitos dos meus
entrevistados, a quem revisitei vários anos depois, reconfiguraram os seus
discursos. Nos episódios acabados de narrar, está também patente a estratégia
de esquecimento, que talvez possa ser vista como um "esquecimento de
fuga" (ibidem), inerente ao processo de configuração e reconfiguração do
discurso. Do mesmo modo, foi possível encontrar processos de reinterpretação e
reapropriação da história, e a construção e reconstrução da imagem de si
(entrevistado), bem como a projecção do principal protagonista desta história,
Zedequias Manganhela. A meu ver, com este processo tenta-se resgatar a imagem
de alguém que lhes é próximo e com quem partilham pertenças, cuja imagem em
determinados momentos foi transmitida de forma menos positiva, enquanto: i) a
hipótese de suicídio num contexto cristão; ii) as histórias de
"traição" e "denúncias" feitas por vários membros da
IPM contra outros membros da comunidade, e sobretudo contra Manganhela; iii) as
"denúncias" supostamente feitas por Manganhela contra os seus
companheiros e membros da comunidade religiosa, mencionados na sua suposta
"confissão de culpa", como apoiantes e simpatizantes da FRELIMO. Há
também nestes casos, depois do referido "esquecimento de fuga",
prenúncios de uma reconciliação com um passado, marcado pela dor.
No trabalho de configuração da narrativa é necessário tomar consciência das
armadilhas criadas não só pelo esquecimento, mas sobretudo pela forma como as
fontes escritas ou orais podem ser manipuladas. Para além dos casos acima
referidos, outros três exemplos podem ser utilizados para ilustrar esta
situação: i) os autos de acusação e o processo que inculpa Manganhela e seus
companheiros de colaboração com a FRELIMO; ii) a declaração supostamente
escrita e assinada por Manganhela e encontrada junto ao seu corpo na prisão da
Machava; iii) a declaração de Hans Theodore Thonsen,15 encarcerado numa cela
próxima daquela em que se encontrava Manganhela.
Os processos da PIDE/DGS referentes aos prisioneiros de 1972, maioritariamente
da IPM, contêm, entre outros documentos, autos de acusação, onde constam
"confissões" dos presos políticos com denúncias contra seus
companheiros como colaboradores da FRELIMO, mas sobretudo contra Manganhela,
para além de alguma correspondência. No processo de Zedequias Manganhela,16 por
sua vez, há um dossier de 58 folhas, sua presumível "confissão",
contendo listas de nomes de membros da sua igreja, de outras confissões
religiosas, e até de alguns missionários suíços com quem o acusado mantinha
ligações, organizava reuniões ditas de carácter "subversivo", e
através dos quais se recolhiam fundos para a FRELIMO.
Uma leitura cuidada destes documentos mostra-nos uma série de contradições
internas que colocam em dúvida se estaríamos mediante uma confissão forjada, e
coercivamente assinada, ou, para outros casos, se a assinatura seria
verdadeira.
No "processo Manganhela", é também possível encontrar uma nota
imputada à sua autoria e, com a sua assinatura, que teria sido escrita antes da
sua morte, encontrada junto ao seu corpo no pavilhão 7, cela 6, cujos extractos
são como se segue:
Compreendido e sentido este arrependimento, só tenho única e exclusivamente uma
alternativa: peço PERDÃO que espero me será concedido pela minha Pátria -
Portugal [...] Não podendo suportar mais o peso das falsas acusações e injusta
responsabilidade de que me levaram a mentir desmedidamente, suicidei-me na cela
6 do Pavilhão 7 da Cadeia Central da Machava em 10 de Dezembro de 1972. ADEUS
ZEDEQUIAS MANGANHELA17
Com esta nota, "assinada" por Manganhela, a polícia tentou provar o
seu suicídio.
No artigo de Honwana (1982/1983), a autora refere que em declarações ao
processo de inquérito, sua viúva, seu colega Matié ou a missionária Arminda
Cruz, para mencionar apenas alguns testemunhos, aceitaram a possibilidade de a
assinatura deste documento ser de Manganhela, mas não a escrita contida nas 58
folhas manuscritas da "confissão" de Manganhela, embora
contestassem a hipótese de suicídio.
Hans Theodore Thonsen, num depoimento recolhido depois da morte de Manganhela,
testemunha que o mesmo foi assassinado pelos guardas prisionais quando se
recusou a assinar o "auto de culpa". Estando numa cela muito
próxima à do acusado, ele pôde ouvir as conversas trocadas entre os guarda
prisionais (que identificou pelos nomes) e Manganhela (de quem reconheceu a
voz), tendo referido que este se recusava a assinar um documento, mesmo sob
ameaça de morte (Silva, 2014). Este depoimento contradiz as informações
contidas nos documentos que fazem parte do acervo da PIDE/DGS em Lisboa, sobre
o "processo Manganhela" e a Missão Suíça, e a hipótese de suicídio.
Estes exemplos acabados de mencionar alertam-nos para o perigo da manipulação
da narrativa feita provavelmente sob intimidação, ou sedução de libertação da
prisão depois da "confissão". Independentemente de estarmos a
tratar de documentos forjados ou escritos sob coação, estamos perante mais uma
armadilha da narrativa que direcciona a "composição da intriga e impõem
uma narrativa canônica" (Ricoeur, 2010: 455).
Reinterpretação e reapropriação
Na configuração da narrativa feita pelo seu protagonista ou por terceiros, é
comum termos que lidar com a reapropriação da história face a novos contextos
sócio-políticos, ao desenvolvimento de mitos e à mistificação de uma figura,
aspectos que se prendem também com a manipulação da memória, o esquecimento e o
apelo às identidades, sobretudo colectivas. Para ilustrar esta situação, parto
da história de vida de Eduardo Mondlane.
Trabalhar com a história de vida de Eduardo Mondlane, destacado herói nacional,
implica ter que tomar como primeiro obstáculo a existência de "histórias
oficiais"18 e ideologizantes, desconstruir mitos e distinguir a produção
resultante do imaginário popular da história real. Ao contrário do sucedido com
o meu estudo sobre Manganhela, antes da escrita deste texto não tive
oportunidade de revisitar a trajectória de vida de Mondlane por via dos
entrevistados que foram testemunhos da sua vida e obra na primeira fase da
minha pesquisa, já que a maioria deles tinha já falecido.
As minhas entrevistas com os missionários suíços, muitas das quais na altura
especificamente voltadas para o tema Eduardo Mondlane, são no entanto a melhor
ilustração das formas de configuração e reconfiguração, onde os protagonistas
da acção e os seus contornos podem ser deslocados para outros lugares e
posições, de acordo com os contextos da produção da narrativa (Ricoeur, 2010).
Nestas entrevistas foi possível constatar que, vários anos passados depois da
morte de Mondlane e da independência de Moçambique, quer a vitória da FRELIMO
contra o colonialismo português quer os feitos de Mondlane eram reinterpretados
à luz da história presente, dando também protagonismo à Missão Suíça e a alguns
dos seus missionários.
No imaginário popular, a figura de Eduardo Mondlane também deu azo a várias
interpretações e reinterpretações sobre a sua vida, envolta em mitos. Em 1961,
quase 11 anos depois de ter partido do seu país para estudar em Lisboa por um
curtíssimo período, seguido dos seus anos nos Estados Unidos da América,
Mondlane volta a Moçambique. Como nos dizia o missionário André-Daniel Clerc em
1985,19 Eduardo tinha saído um rapaz pobre, para estudar, e regressava agora
como funcionário das Nações Unidas e professor universitário. Era um dos
raríssimos negros moçambicanos com doutoramento, e voltava casado com uma
esposa branca e americana.
Durante a sua estadia em Moçambique, Eduardo Mondlane visitou amigos e
familiares em Lourenço Marques, em Gaza (sua terra natal) e em Inhambane.
Participou em cultos religiosos, e falou aos crentes da sua igreja na pequena
paróquia de Chamanculo em Lourenço Marques. A sua viagem para Gaza e Inhambane
foi contada e recontada em diversas versões (Silva, 1993a), das quais o nosso
registo gravou uma nota comum: por um lado, o receio que os moçambicanos e os
missionários suíços tinham que as autoridades coloniais intentassem qualquer
acção que colocasse em risco de vida Mondlane e a família; por outro lado, e
contraditoriamente com a primeira questão, a grande preocupação das autoridades
coloniais em garantir a segurança de Mondlane, tentando deste modo evitar
possíveis conflitos diplomáticos, numa altura em que a colonização de Portugal
era alvo de críticas severas nos círculos políticos internacionais.
Na história dos movimentos de libertação em África é comum encontrarmos a
parábola da águia contada e recontada em diversas versões, mas sempre com um
objectivo similar, ou seja, despertar na sociedade a ideia de que a liberdade é
sempre alcançável, mesmo não sendo um processo fácil. A parábola trata de uma
águia que cresceu e viveu em cativeiro, juntamente com aves domésticas. Na
primeira ocasião em que o seu dono abriu as portas e lhe deu a liberdade para
voar, a águia fê-lo mas voltou à capoeira onde crescera. Nas vezes seguintes,
ela voou para mais longe e regressou várias vezes, até que um dia não voltou.
Na sua intervenção em Chamanculo, durante o culto de domingo, falando aos
crentes, Mondlane trouxe a parábola da águia. Nas muitas versões que ouvi sobre
este episódio encontrei mais uma vez a configuração e a reconfiguração da
narrativa, celebrando de diversas formas a figura de Mondlane como
"profeta da liberdade".
Nos dois exemplos acabados de referir as narrativas revelam os vínculos de
pertença que ligavam Mondlane aos meus entrevistados. As diversas narrativas
permitiram fazer uma leitura da sua configuração na base, quer da constituição
de identidades pessoais, que ligavam Mondlane aos missionários suíços ou aos
seus amigos, quer das identidades comunitárias, construídas na base da religião
e da nacionalidade.
3. Complexidades metodológicas da escrita biográfica
As diversas leituras feitas a posteriori,sobre Manganhela ou Mondlane, não
podem ser dissociadas do contexto da "recuperação" de uma história
nacional que havia sido preterida para segundo plano durante o período
colonial, sem esquecer que, por sua vez, ela também mergulha no seio da
construção de figuras de heróis nacionais. Tudo isto se situa, ainda, quer no
quadro de uma história oficial de Moçambique, quer no quadro da própria
história institucional da IPM/ Missão Suíça à qual ambos se encontravam
intrinsecamente ligados, alertando-nos para a identificação dos vários desafios
a enfrentar quando tomamos a narrativa biográfica como possibilidade de escrita
da História.
Os contextos em que as narrativas biográficas de Manganhela e Mondlane se foram
construindo e reconstruindo, são também exemplos da importância da relação
entre memória, história e identidade, e da forma como a pertença e a memória
são fundamentais na formação identitária de grupos e no estabelecimento do
sentido de coerência, permitindo a regulação do seu comportamento social.
A relação entre a História e o tempo marcou as diversas escolas e épocas. Na
narrativa histórica, a reflexão faz-se a partir da relação entre tempo vivido e
narração, levantando a problemática da História Imediata e da História do Tempo
Presente, onde podemos situar as narrativas biográficas. As interrogações que
hoje se colocam sobre os desafios metodológicos da narrativa biográfica são o
resultado de uma visão não linear dos fenómenos onde a relação entre história,
memória, identidade e sua conjugação com o tempo presente trazem novos
questionamentos (Fiúza, 2007), que levaram a adequar o arsenal teórico-
metodológico da ciência histórica para poder captar a actualidade.