Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios dos trabalhadores
convidados às migrações globais
Stephen Castles, Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios dos
trabalhadores convidados às migrações globais, Lisboa, Fim de Século, 2005.
Marzia Grassi
O livro recolhe seis artigos já publicados em inglês por Stephen Castles entre
2001 e 2003 em revistas internacionais, no caso dos dois primeiros, e em obras
colectivas sobre o tema das migrações e do multiculturalismo, nos outros casos.
O sugestivo subtítulo desta recolha enuncia desde logo que a tónica do autor
recai sobre as relações de poder que atravessam os países do globo e que
definem o tecido social no qual as pessoas se movimentam.
Os temas das migrações e do multiculturalismo na Europa, Austrália e Ásia
acompanham toda a carreira de Stephen Castles, sociólogo, docente na
Universidade de Oxford, em Londres, director do Centro de Estudos dos
Refugiados e membro da Rede de Excelência Europeia. As reflexões apresentadas
baseiam-se, portanto, numa longa experiência de trabalho empírico sobre aquela
a que o próprio autor chama a «era das migrações», uma era cheia de desafios,
de complexidades sociais emergentes e de mudança da referência espacial o
estado-nação , cuja construção parece ser cada vez mais suplantada por uma
consciência transnacional, multicultural e global.
O incipit da p. 7 situa as migrações internacionais como um factor de mudança
social no mundo contemporâneo e sublinha que esta não é uma novidade, uma vez
que ao longo da história da humanidade este factor esteve presente e foi
determinante em vários momentos, como a partir do século xvi, quando a
emigração para as colónias se tornou um elemento fundamental para a construção
dos impérios europeus, ou a emigração laboral para os EUA do século XIX. É logo
na introdução que o autor fala de Portugal, país de emigração, e das mudanças
recentes que tornaram este país um país de acolhimento. E ele explica que o que
acontece a partir dos anos 80 do século XX é a inversão dos fluxos migratórios
históricos, que faz com que a maioria dos países seja hoje em dia quer um país
de emigração, quer um país de acolhimento. A rapidez do fluxo também constitui
uma novidade, cuja responsabilidade é atribuída ao modelo económico globalizado
e à governação à escala global, que provocam o aumento das desigualdades
sociais entre países e continentes (p. 8).
O objectivo deste livro é explicado pelo autor (p. 12) e prende-se com a
necessidade de oferecer aos leitores uma síntese dos assuntos actuais relativos
às migrações internacionais.
O capítulo 1, «As migrações internacionais no limiar do século XXI: questões e
tendências globais», foi publicado pela UNESCO num número especial do
International Social Science Journal. Discutem-se aqui as principais definições
e conceitos que são usados para definir os vários tipos de movimentos
migratórios. O autor alerta para a falta de objectividade que as definições
apresentam, uma vez que a maioria das vezes resultam de políticas estatais que
visam objectivos políticos e económicos ou obedecem à necessidade de controlar
reacções públicas num contexto internacional ainda dividido em Estados-nações,
«em que permanecer no país de nascimento é ainda visto como norma e mudar-se
para outro como um desvio» (p. 18). É esta a razão, segundo Castles, pela qual
o tema das migrações é tratado quase sempre como «problema», como algo que tem
de ser controlado e limitado. Os Estados exercem este controlo dividindo os
migrantes internacionais em categorias cada vez mais diferenciadas. Se, por um
lado, estas categorias tendem a abandonar critérios raciais ou étnicos, por
outro lado, as políticas de selecção assentam cada vez mais em critérios
económicos, sociais e humanitários «que incorporam enviesamentos raciais e
étnicos inconscientes [ ] como nos casos em que se utilizam «as qualificações,
o conhecimento da língua, a posse de capital ou as previsões acerca da
capacidade de adaptação» (p. 21).
O autor considera as migrações internacionais uma parte integrante da
globalização e expõe as causas do movimento migratório no contexto da
disparidade dos níveis de rendimentos, emprego e bem-estar social à escala
global e lembra aqui que a literatura económica sobre esta questão difere em
relação ao tipo de abordagem teórico que se utiliza, o que faz com que a
relação entre migrações e desenvolvimento assuma, por exemplo, contornos
complexos difíceis de se categorizarem fora da análise de casos específicos.
Contudo, o autor afirma, com base num estudo das NU de 1998, que os países em
desenvolvimento têm maiores probabilidades de originarem fluxos de emigração,
sendo que estes têm tendência a diminuir quando os rendimentos aumentam (p.
23). O capítulo fornece ainda informações sobre as tendências históricas das
migrações internacionais e sobre o volume do stockde imigrantes nas principais
regiões do globo. Tudo isso com base nos dados corroborados pelas NU, que
sustentam a discussão sobre a importância do fluxo migratório em termos do
desenvolvimento dos países de origem dos migrantes, quer de um ponto de vista
estritamente económico (remessas e integração no sistema económico mundial),
quer de um ponto de vista do aumento do capital social capitalizado nas redes
sociais que garantem a cooperação entre países emissores e países receptores de
migrantes. A parte final do capítulo aborda as questões identidárias que
acompanham as migrações internacionais e que poderão estar na base da
construção de uma sociedade verdadeiramente multicultural onde exista o
respeito e o aproveitamento das diferenças entre as culturas. Uma sociedade
que, segundo Stephen Castles, põe em causa a forma como o Estado-nação se
desenvolveu a partir do século xviii, noção esta que a maioria das vezes é
fictícia e resulta de uma construção da elite dominante (p. 40). O capítulo
conclui apontando a necessidade de ligar as migrações a estratégias de
desenvolvimento sustentável, uma vez que a globalização conduz inevitavelmente
à cidadania multicultural.
No capítulo 2, «Migração e formação de comunidades no contexto da
globalização», já publicado na revista International Migration Review do Centre
for Migration Studies, de Nova Iorque, o autor propõe-se repensar as dinâmicas
do processo migratório à luz dos diversos modelos de integração social dos
imigrantes. O assunto central deste capítulo é a emergência de comunidades
transnacionais que desafiam as abordagens tradicionais sobre o tema migratório,
assunto retomado em detalhe no capítulo 3, «Comunidades transnacionais: uma
nova forma de relações sociais no contexto da globalização». O autor indica a
existência de «factores poderosos inerentes à globalização que têm vindo a
enfraquecer os modos tradicionais de controlo dos fluxos migratórios e das
mudanças sócio-culturais associadas» (p. 45). A falta de novidade histórica
apontada no primeiro ensaio, ao entender as migrações como «factor sistémico da
globalização», é aqui reiterada e o autor aponta que a partir dos anos 90 o que
há de novo é simplesmente uma mudança de percepção, «uma expressão renovada do
papel sistémico» que elas sempre tiveram desde o século XVI, data que indica
como o início do mercado mundial. A novidade, segundo Stephen Castles, prende-
se sobretudo com a emergência de uma sociedade multicultural que nem políticos
nem académicos tinham previsto, no caso destes últimos devido ao fechamento
disciplinar e paradigmático das abordagens utilizadas e à influência
generalizada de modelos nacionais fechados. Quanto aos políticos (pp. 47-48), o
autor acha que estes têm encarado as migrações com uma abordagem que vê o
controlo transfronteiriço como um elemento central da ideia de soberania, «algo
que se poderia fechar e abrir como uma torneira» de acordo com os interesses
nacionais. O autor apresenta ainda nos dois capítulos alguma perspectiva sobre
o volume e o significado das migrações no mundo actual, as suas causas e
tipologias, com vista a questionar a formação de comunidades no contexto da
globalização, o que dependerá em grande parte dos modelos de incorporação
adoptados pelos países de acolhimento. E conclui apontando a necessidade de
pensar politicamente acerca da forma transnacional de participação democrática
«não só para os membros das comunidades transnacionais, mas para todos os
cidadãos afectados pela rápida mudança dos espaços onde se exerce o poder
político» (p. 92).
Nos capítulos 4, 5 e 6 são discutidos casos específicos regionais. O capítulo
4, «Migração laboral, comunidades transnacionais e estratégias estatais no
extremo oriente», apresenta o tema do aumento do fluxo migratório laboral entre
países menos desenvolvidos com reservas de mão-de-obra e os NIC (news
industrialized countries) asiáticos. Nestas regiões os países de acolhimento
dos migrantes continuam a considerar este tipo de migrações uma situação
temporária e não têm acompanhado o aumento dos fluxos migratórios com o
enquadramento legal dos direitos dos imigrantes. O enfraquecimento do Estado-
nação e a emergência do multiculturalismo à escala planetária faz com que
Stephen Castles se pergunte sobre a sustentabilidade deste vazio legal no
futuro próximo e sobre a necessidade de reconhecimento dos direitos de
cidadania às comunidades transnacionais que o aumento do fluxo migratório
origina. O autor acha que isto não será para breve, uma vez que «as elites da
região Ásia-Pacífico recusam aceitar que a migração da mão-de-obra conduzirá a
alguma fixação e à formação de comunidades» (p. 129), e prevê, por isso, a
emergência de movimentos separatistas, de conflitos e de custos humanos
elevados.
O capítulo 5, «O multiculturalismo na Austrália», aborda o caso específico
deste continente, actualmente com 40% de população imigrante ou filhos de
imigrantes, que desde 1945 «tem vindo a transformar-se de uma sociedade
monocultural que excluía os imigrantes não europeus para uma das sociedades com
a maior diversidade cultural em todo o mundo» (pp. 131-132). O
multiculturalismo neste continente tem sido um factor político muito importante
e recentemente alvo de controvérsia perante a concretização de medidas de
rejeição a curto prazo das políticas multiculturais. Neste capítulo o autor faz
a história da emergência da sociedade multicultural na Austrália e continua a
colocar questões de identidade e poder relacionadas com o multiculturalismo e
conclui sublinhando a necessidade de redefinição das políticas públicas e do
debate sobre o multiculturalismo.
O sexto e último capítulo do livro, «Transformações ambientais e migrações
forçadas», discute as questões das migrações forçadas e a medida em que o seu
aumento tem sido influenciado pelos desastres naturais e pelas catástrofes
provocadas pelo homem. Esta relação entre ambiente e migrações, que tem gerado
muita literatura, parece não ter para este autor uma relação directa, e Stephen
Castles apresenta aqui algumas críticas a esta interpretação, apontando para as
estratégias de adaptação que se instauram logo que o desastre ambiental se
verifique. Considera que os problemas ambientais não determinam directamente o
aumento do fluxo migratório, sendo, pelo contrário, um fenómeno estratégico
estrutural dos países que originam os fluxos ligados à sua estrutura económica
e social. E, a sustentar a sua opinião, fornece números que comprovam a
temporariedade de migrações em massa originadas por desastres ambientais
naturais. é dedicado um parágrafo inteiro ao programa indonésio
transmigrasi,como exemplo das complexas ligações existentes entre ambiente,
conflito e deslocamentos.
Ao longo de todos os capítulos, o autor admite que o actual movimento
migratório internacional pode provocar efeitos irreversíveis quanto à
articulação entre a sociedade civil e o Estado e é da opinião de que as
migrações forçadas são indissociáveis das relações de poder global e das
clivagens entre hemisférios, tornando-se necessário que sejam desvendadas as
suas causas profundas e complexas, de maneira a esclarecerem a dimensão da
crise que força as pessoas a abandonarem as suas terras (p. 179).
É assim que se pode concluir dizendo que, embora o público estritamente
académico a trabalhar nesta área supostamente já conhecesse os artigos na sua
versão original, o objectivo do livro foi amplamente atingido, uma vez que a
tradução apresenta uma linguagem simples e acessível a um público vasto e
diferenciado. Uma síntese importante, às vezes repetitiva, sobre uma temática
de extremo interesse no actual mundo global que necessita de aprofundamento na
sociedade portuguesa.