Igreja Católica, Estado e Sociedade, 1968-1975: o Caso Rádio Renascença
Paula Borges Santos, Igreja Católica, Estado e Sociedade, 1968-1975: o Caso
Rádio Renascença, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2005, 269 páginas.
No seu livro Igreja Católica, Estado e Sociedade: O Caso Rádio Renascença,
Paula Borges Santos narra o desenrolar e explica os antecedentes de um dos mais
interessantes confrontos laborais e ideológicos surgidos no seio de uma empresa
durante o período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. A luta
pelo controlo da emissora católica, que se arrastou por todo o ano de 1975,
ameaçou abrir velhas feridas entre a Igreja e o Estado e funcionou como um
estímulo para todos os agentes que quiseram encaminhar Portugal para uma
solução política democrática ocidental, entre os quais se contava a hierarquia
católica.
A escolha da Rádio Renascença, uma peça-chave da difusão da doutrina católica
na sociedade portuguesa, para um microestudo da transição para a democracia em
Portugal é acertadíssima, pois permite à autora transcender um simples (embora
importante) conflito laboral, que rapidamente adquiriu contornos ideológicos, e
examinar outras questões de maior alcance: qual foi o papel da Igreja católica
nessa mesma transição? Porquê a aposta num regime democrático, no qual a
liberdade de expressão é um valor essencial? E como foi essa aposta recebida
pelos vários sectores da sociedade portuguesa, católicos ou não, dada a longa
associação entre a Igreja e o Estado Novo?
O conflito nascido em torno da posse e direcção da Rádio Renascença foi
dramático e por vezes mesmo apaixonante e a descrição detalhada e metódica
feita por Paula Borges Santos em nada reduz a tensão e a urgência suscitadas,
na altura, pelo caso. A narração e explicação dos factos — a segunda metade do
volume — é, sem dúvida, o ponto forte da obra. De um lado estava a gerência da
emissora, cujo papel se foi apagando durante 1975 em virtude do maior
protagonismo assumido pelo cardeal-patriarca, D. António Ribeiro. Do outro
lado, uma minoria dos funcionários da Rádio Renascença (aqueles que estavam
directamente ligados à radiodifusão), cujas acções contra a gerência se foram
radicalizando ao longo do processo revolucionário, culminando na ocupação dos
estúdios e de outros pontos estratégicos na estrutura da emissora. Mas o
conflito não se resumiu a estes intervenientes: directamente envolvidos estavam
ainda os vários governos provisórios, o Conselho da Revolução, o Comando
Operacional do Continente (COPCON) e todos os partidos políticos e outros
agrupamentos ideológicos, desde as inúmeras formações de extrema-esquerda que
declararam o total apoio à causa dos trabalhadores da Rádio Renascença,
explorando a sua causa em proveito próprio, aos partidos moderados (entre os
quais o Partido Socialista, que não escondia o desejo de nacionalizar a Rádio
Renascença, crendo que competia ao Estado garantir, através de um controlo
directo, a imparcialidade da informação), passando pelo Partido Comunista
Português, claramente apanhado de surpresa por uma contenda que considerava
indesejável e que o distraía do caminho traçado para a conquista do poder.
Poucos destes protagonistas vêem a sua reputação enaltecida pela descrição dos
acontecimentos, que se desenrolaram num clima de hesitação, dúvida e mentira.
Escreve Paula Borges Santos, na conclusão, que "os únicos intervenientes
que possuíram uma rigidez táctica nas suas opções estratégicas foram, desde o
início do processo, as autoridades eclesiásticas". Com base nos dados
apresentados pela autora podemos ir mais longe. Sob a liderança firme de D.
António Ribeiro, a hierarquia católica soube identificar qual o fim desejado do
processo político desencadeado pelo 25 de Abril (contrariar as forças de
extrema-esquerda e seus apoiantes, de forma a fazer respeitar o desejo
maioritário de uma implantação rápida de um novo regime constitucional,
democrático e pluralista) e qual deveria ser o papel da Igreja nesse processo:
a defesa da sua liberdade de expressão e de intervenção, mesmo tendo este
espaço sido conquistado durante o Estado Novo (se bem que tenha sido por ele
condicionado). Por outras palavras, os prelados portugueses não intervieram
directamente na vida político-partidária de Portugal, apontando um ou outro
partido como sendo merecedor do voto católico, ou encorajando os seus
seguidores a formarem um partido católico. O que fizeram, porém, foi adoptar um
posicionamento que serviu como uma lição prática do que é a democracia,
demonstrando, ao mesmo tempo, com uma subtileza variável, consoante a agudez da
crise, a força da Igreja na sociedade da época e a sua vontade de não ser
atropelada por aqueles que, sem mandato eleitoral, e por isso mesmo condenados
a desaparecerem num Portugal democrático, procuravam revisitar os conflitos
anticlericais do início do século.
Nunca, apesar do agravamento do clima político em 1975, especialmente durante o
chamado "Verão quente", os bispos portugueses deixaram de exigir o
cumprimento da lei e a resultante devolução da Rádio Renascença, entretanto
transformada na voz dos movimentos revolucionários — e isto ao mesmo tempo que
denunciavam perseguições e saneamentos. Estas exigências da Igreja,
apresentadas a sucessivos governos e ao Conselho da Revolução, encontraram
sempre uma receptividade inicial, seguida de total inacção, já que os meios
militares operacionais se recusaram a tomar o partido da gerência da Rádio
Renascença contra os trabalhadores. Promessas governamentais de apoio e
intervenção caíam por terra em face da atitude não só dos funcionários da
emissora, como também de certos grupos militares hostis aos interesses da
Igreja. A inoperância dos governantes e do Conselho da Revolução falou por si,
demonstrando a todos os portugueses que existia um perigoso vácuo de autoridade
que não poderia, por razões óbvias, subsistir por muito tempo, pondo-se com
urgência a questão de quem o preencheria: os partidos moderados, que haviam
triunfado nas eleições de Abril de 1975, ou os defensores da democracia
popular, directa, cujo discurso se tornava mais violento de dia para dia? É
quase impossível não concluir, lendo esta obra, que todos os que
verdadeiramente prezam a democracia em Portugal, sejam eles católicos ou não,
muito devem à acção esclarecida e corajosa de D. António Ribeiro no ano de
1975: tendo a lei — embora enfraquecida — do seu lado, o cardeal-patriarca
soube quando e como empregar os enormes recursos nacionais e internacionais de
que dispunha para, numa primeira fase, promover o respeito pelos desejos da
maioria dos portugueses e, ao mesmo tempo, reaver intacta (com a excepção do
centro emissor de Benfica, destruído à bomba em Novembro de 1975 por ordem do
Conselho da Revolução, única e bizarra forma encontrada por aquela entidade de
calar definitivamente os ocupantes da Rádio Renascença) a emissora católica.
Manteve-se firme o patriarca mesmo durante o pior momento da crise — as cenas
de violência no Campo Santana na noite de 18 para 19 de Junho de 1975, de que
resultaram quase 40 feridos, recolhidos dentro da sede do Patriarcado, perante
a passividade das forças do COPCON.
Pode, elevando a fasquia qualitativa a um nível excepcionalmente alto (algo a
que nos obriga a qualidade da análise do caso da Rádio Renascença em si),
apontar-se uma falta de equilíbrio no livro de Paula Borges Santos. A primeira
metade do livro, composta em parte por uma breve história da Rádio Renascença,
mas sobretudo por uma análise detalhada da evolução do posicionamento político
da Igreja em Portugal a partir dos anos 60, poderia ser abreviada, já que pouco
influiu sobre o desenrolar da crise. A liderança oferecida pelo Patriarcado na
questão da Rádio Renascença foi suficientemente firme e esclarecida para
acalmar as divisões entre a maioria dos católicos portugueses, dispersos por
várias formações políticas; assim sendo, as muitas páginas dedicadas ao
deteriorar das relações entre a Igreja e o Estado Novo, à sucessão do cardeal-
patriarca Cerejeira e ao desaparecimento do consenso entre católicos quanto a
questões políticas e ao papel da Igreja na sociedade parecem ser um
investimento de tempo e espaço mal calculado. E talvez a autora devesse, com o
espaço assim poupado, explorar a sobrevivência do anticlericalismo português
após a queda da I República, as correntes anticlericais após o 25 de Abril e,
finalmente, os receios de perseguição da Igreja católica e a forma como estes
receios, fundados ou não, foram empregues para reunir a população católica em
torno das causas apontadas pela hierarquia. Foi lembrado aos portugueses, em
1975, o conflito religioso durante a I República e, mais significativamente, a
perseguição aos religiosos durante a guerra civil de Espanha, ou conseguiu a
Igreja mobilizar os seus apoiantes exclusivamente através da denúncia do caso
Renascença e outras situações contemporâneas semelhantes?
FILIPE RIBEIRO DE MENESES