Mecanismos não-verbais e paraverbais na construção do ethos em L’étranger de
Albert Camus
1. Introdução
O presente artigo baseia-se no trabalho de dissertação de mestrado intitulado
“A Construção do Ethos em L’étranger de Albert Camus”, apresentado em novembro
de 2013 à Universidade do Minho, no âmbito do curso de Mestrado em Linguística
Portuguesa e Comparada.[1]
Enquadrado no estudo de produções linguísticas autênticas, e uma vez que
engloba um complexo de mecanismos e estratégias discursivas rico e variado,
selecionámos o discurso literário como objeto de investigação.
Embora, no quadro teórico proposto pela Análise Linguística do Discurso, comece
a (re)surgir um interesse na articulação das Ciências da Linguagem e da
Literatura, estas duas áreas permanecem ainda demasiado autónomas, o que nos
motivou para o estudo do discurso literário, numa perspetiva linguística. Os
contributos da Linguística no domínio literário ultrapassam o simples
fornecimento de ferramentas de análise e, neste quadro de investigação, são
capazes de abarcar o discurso literário na sua multiplicidade e na sua
diversidade e, como tal, propor e fundamentar novas linhas de leitura/
investigação literárias.
O romance L’étranger[2] de Albert Camus, além de constituir um marco no
panorama literário do século XX, compreende mecanismos verbais, mas também
mecanismos não-verbais e paraverbais[3], que concorrem para a construção de uma
multiplicidade de imagens distintas do protagonista, Meursault, fundamentais
para a organização narrativa da obra.
Na investigação que está na base deste artigo, procedemos à análise
qualtitativa de excertos que abrangem a globalidade da obra, e cuja seleção
teve em conta a ocorrência de discurso relatado, enquanto estratégia global ao
serviço da construção do ethos. Partimos do pressuposto de que a elaboração do
ethos se encontra presente em qualquer interação (ethos discursivo)
(Maingueneau, 1999), mas, em particular, na história comum dos interlocutores e
no imaginário doxal vigente numa determinada sociedade (ethos pré-discursivo)
(Amosy, 1999, 2010).
A análise realizada foi estruturada em duas partes centrais que correspondem a
dois momentos nucleares da obra: o episódio do funeral e o episódio do
julgamento. Esta organização procura articular dois pontos de vista
relativamente aos eventos que sucedem à morte da mãe do protagonista,
designadamente, o ponto de vista de Meursault e o ponto de vista das restantes
personagens. Como tal, tivemos em consideração dois processos que participam na
elaboração das imagens do protagonista: a heteroconstrução e a autoconstrução.
Na análise das imagens das personagens construídas num texto literário, há que
considerar que todo o ethos é, necessariamente, discursivo. Contudo, no
universo ficcional da obra, estabelecemos algumas distinções, de forma a tornar
mais explícito o tipo de relação construída entre determinadas imagens e o
desenvolvimento da intriga. Desta forma, consideraremos, a nível global, que,
na primeira parte do romance, a imagem disfórica do protagonista construída
pelas outras personagens nos diálogos com Meursault vai constituir-se como um
ethos pré-discursivo desta personagem relativamente à segunda parte (o episódio
do julgamento), onde esta imagem é convocada e possui um papel determinante no
desfecho da intriga.
Para o presente artigo selecionámos os excertos que contribuem para a
heteroconstrução desta imagem pré-discursiva disfórica do protagonista.
Centrar-nos-emos nos mecanismos não linguísticos[4] (não verbais e paraverbais)
em correlação com os linguísticos enquanto marca da elaboração desta imagem.
Assim, analisaremos o modo como as interações do protagonista com as outras
personagens se encontram organizadas, o contexto sociocultural particular
destas interações na sua ligação com certos estereótipos invocados e,
especialmente, o recurso a determinados mecanismos não linguísticos,
nomeadamente, o contacto ocular, o silêncio, a intensidade articulatória e a
organização proxémica da interação. Pretendemos mostrar a influência que
exercem no curso da interação e o modo como contribuem para a elaboração de uma
imagem disfórica do protagonista.
2. Algumas questões teórico-metodológicas
2.1. O conceito de ethos – enquadramento teórico
O conceito de ethos, tal como é teorizado atualmente no quadro proposto pela
Análise Linguística do Discurso, decorre essencialmente dos contributos da
retórica aristotélica e da perspetiva interacionista goffmaniana.
Com efeito, é na sua obra dedicada à Retórica que Aristóteles vai apresentar o
conceito de ethos, inscrito na tríade de estratégias argumentativas (ethos,
logos e pathos) das quais o orador deve fazer uso de forma a alcançar a adesão
do auditório. O orador persuade, pois, através da sua argumentação no discurso
(logos), da sua capacidade de emocionar o auditório (pathos) e pelo caráter
“mostrado” (ethos). Embora a prova pelo ethos se encontre claramente ligada ao
orador, ethos refere-se, não ao ser empírico, mas à imagem que o orador
constrói de si no seu discurso, tal como afirma Aristóteles, “Persuade-se pelo
carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de
o orador ser digno de fé” (Ret. I: 1356a). O importante aqui é que a imagem
elaborada pelo orador no discurso revele os traços de caráter necessários para
persuadir o auditório num dado contexto.
O ethos constitui, então, uma noção essencialmente discursiva, ou seja,
encontra-se ligada ao uso da palavra em contexto, como afirma Eggs (1999: 33)
“Le lieu qui engendre l’ethos est donc le discours, le logos de l’orateur, et
il ne se montre qu’à travers les choix effectués par l’orateur”.
Para a tradição retórica romana, a prova pelo ethos centra-se, por outro lado,
no caráter do orador, ou seja, numa imagem anterior ao discurso, construída ao
longo da vida do orador, através dos seus comportamentos, da sua formação e das
suas atitudes. Esta problemática é retomada na Idade Clássica com o renovado
interesse na arte oratória[5].
No quadro da Análise do Discurso, esta questão será recuperada em termos de
ethos discursivo e ethos pré-discursivo, mas sempre na relação que o locutor
estabelece com o alocutário.
A problemática do ethos articula-se ainda, e na perspetiva do interacionismo
simbólico, com o conceito de imagem de si desenvolvido pelo sociólogo Erwing
Goffman (1967, 1973). Os seus trabalhos sobre os rituais de interação social
evidenciam a importância da construção da imagem de si nas interações verbais,
nomeadamente, através dos conceitos de face e de presentation of self que
estabelecem uma relação estreita com a noção de ethos.
Para Goffman, toda a interação social, como “the reciprocal influence of
individuals upon one another’s actions when in one another’s immediate physical
presence” (1973: 26), implica que os seus participantes efetuem, consciente ou
inconscientemente, uma apresentação de si, ou seja, “the individual will have
to act so that he intentionally or unintentionally expresses himself, and the
others will in turn have to be impressed in someway by him” (idem: 14). A
regulação da interação tem, entre outros objetivos, a preservação da face.
Goffman (1967:5) define face enquanto “the positive social value a person
effectively claims for himself by the line others assume he has taken during a
particular contact”. Face é, então, uma “image of self delineated in terms of
approved social attributes – albeit an image that others may share, as when a
person makes a good showing for his profession or religion by making a good
showing for himself” (ibidem).
Considerando a divergência dos conceitos, mas, sobretudo, a sua confluência,
Ruth Amossy (2010) propõe a assimilação da noção de ethos à de “présentation de
soi”, na sua conceção alargada, ou seja, estendida, além das interações reais
face a face, a todas as trocas verbais. Consideraremos, pois, o conceito de
ethos na proposta de Amossy (idem: 26):
Cette notion de présentation de soi, on le voit, est étonnamment
proche de la notion aristotélicienne d’ethos : il s’agit d’une
construction d’image qui s’effectue dans un échange social déterminé,
qu’elle contribue largement à réguler.
No domínio das Ciências da Linguagem, O. Ducrot (1984) introduz, no quadro da
sua teoria polifónica da enunciação, o termo ethos, embora sem grandes
desenvolvimentos posteriores[6]. De acordo com Ducrot, o ethos é perspetivado,
não como uma condição pré-existente ou extralinguística, mas como construção
inerente ao discurso, quer ao momento da sua produção, quer aos momentos
discursivos que o antecedem. Esta conceção de ethos encontra-se no
prolongamento da de Aristóteles, sublinhando a centralidade da enunciação na
construção da imagem de si.
No quadro teórico da Análise do Discurso[7], Dominique Maingueneau (1984, 1991,
1998, 1999) é o primeiro a elaborar e a desenvolver uma verdadeira “teoria do
ethos” num quadro linguístico. Maingueneau recupera o conceito de ethos
aristotélico, vinculando esta noção à de enunciação. É, essencialmente, a
conceção de ethos enquanto instância intrinsecamente enunciativa que
Maingueneau recupera da retórica aristotélica. Contudo, o investigador procura
distanciar-se do domínio da retórica, recentralizando o seu foco no quadro da
Análise Linguística do Discurso.
Assim, Maingueneau apresenta duas reformulações nucleares relativamente ao
conceito aristotélico de ethos: 1) o conceito de ethos não se encontra
circunscrito apenas à oralidade, estende-se igualmente à escrita e 2) a
presença do ethos não se restringe ao discurso argumentativo, pelo contrário,
está presente em todas as trocas verbais.
Ligado intimamente à noção de ethos discursivo, encontramos o conceito de ethos
pré-discursivo (“ethos préalable” na denominação de Ruth Amossy), enquanto
imagem que o auditório constrói/tem do locutor no momento em que este toma a
palavra: podendo ser um ethos “coletivo” (por exemplo, o que se espera da
intervenção de um médico ou de um político, etc.), ou um ethos individual, ou
seja, as imagens que circulam sobre o locutor, num determinado espaço e tempo,
imagens estas que os destinatários de um dado discurso atualizam.
A imagem individual pré-discursiva do locutor engloba, assim, segundo a mesma
investigadora: 1) o estatuto institucional do locutor, as funções ou a posição
social que ocupa e que conferem legitimidade ao seu discurso, 2) a imagem que o
auditório constrói da pessoa antes de esta tomar a palavra, que corresponde às
representações coletivas ou estereótipos que lhe estão associados. Assim, a
imagem pré-discursiva é entendida, segundo Amossy (2010:73), como
l’ensemble des données dont on dispose sur le locuteur au moment de
sa présentation du soi se compose donc d’aspects divers. Il comprend
la représentation sociale qui catégorise le locuteur, sa réputation
individuelle, l’image de sa personne qui dérive d’une histoire
conversationnelle ou textuelle, son statut institutionnel et social.
Esta representação do locutor encontra-se, como defende R. Amossy (1991,1994,
1997), em parte, assente em estereótipos. Amossy articula a análise
argumentativa e o conceito de ethos, desenvolvendo uma linha de investigação em
torno desta noção, em que propõe que a imagem pessoal se encontra ancorada em
estereótipos e que o processo de construção da imagem é central na construção
identitária.
Nesta perspetiva, a investigadora vai introduzir na análise da construção do
ethos o conceito de estereótipo, que define como “une représentation collective
figée, un modèle culturel qui circule dans le discours et dans les textes”
(Amossy, 2010: 46). Por outras palavras, estereótipo é um conjunto de
representações coletivas que pré-definem, em parte, a imagem do locutor numa
determinada cultura e numa determinada época.
Estas representações coletivas constituem uma parte integrante de um dado
“imaginaire sociodiscursif ” e, nesta medida, encontram-se inseridas numa doxa,
um “ensemble d’opinions, de croyances, de représentations propres à une
communauté et qui ont à ses yeux valeur d’évidence et force d’universalité”
(idem: 48). O conceito de estereótipo é, então, perspetivado como uma categoria
indispensável “aussi bien en termes de construction d’identité qu’en termes de
communication efficace” (idem: 44). O ethos constrói-se a partir destas
representações que pré-existem no imaginário coletivo. Nesta conceção, o
estereótipo é uma construção de “leitura”, na medida em que o alocutário
reconstrói, tendo por base elementos díspares contidos no discurso, a imagem do
locutor em função de um modelo cultural pré-existente e o seu próprio
conhecimento do mundo. Esta perspetiva salienta a dimensão dialógica do
discurso através da qual todo o enunciado retoma e responde necessariamente à
palavra do outro.
Nesta ótica, Amossy propõe que “l’ethos discursif est toujours une réaction à
l’éthos préalable – ma présentation de soi se fonde toujours sur l’idée que mon
interlocuteur se fait d’ores et déjà de ma personne” (idem:75). Ou seja, o
ethos que o locutor constrói no discurso inclui sempre a imagem que o
interlocutor poderá fazer dele, tendo como base a sua inserção numa
representação pré-existente ao discurso, mas que poderá não coincidir com a
imagem que o interlocutor efectivamente faz dele.
2.2. Mecanismos não-verbais e paraverbais
A construção do ethos é, pois, um processo complexo e que mobiliza dispositivos
linguísticos e discursivos de natureza diversa que contribuem para a sua
elaboração. Contudo, como as interações assentam fundamentalmente na
multicanalidade, quer dizer, além da atividade verbal dos interlocutores,
existem igualmente elementos não-verbais que integram o discurso, devemos
considerar também os mecanismos não-verbais e paraverbais que concorrem para a
construção da interação.
Em relação aos principais contributos para fomentar o interesse do estudo dos
mecanismos não-verbais e paraverbais nas interações sociais, encontramos como
nomes mais relevantes o antropólogo Edward Hall (1966) e a sua teoria da
proxémica. Hall propõe que a perceção humana do espaço, embora decorrente do
domínio sensório, é, em última instância, moldada pelo meio sociocultural. O
antropólogo propõe diferentes categorias de forma a concetualizar o espaço
pessoal, nomeadamente, o espaço intímo, o espaço social e o espaço público.
Segundo Hall, a distância ou proximidade física definida, pelas expectativas
culturais, para cada uma das categorias apresenta um elevado grau de variação,
tendo em conta a zona geográfica, o que pode originar falhas comunicativas em
ambientes multiculturais. Os trabalhos de Hall tiveram um impacto científico
considerável, nomeadamente, na área da Antropologia, Sociologia, Psicologia e
Geografia. Da mesma forma, as propostas de Hall contribuiram para o interesse
linguístico pelo papel de elementos não-verbais, não só proxémicos, mas também
paraverbais, nas interações sociais.
Também na investigação em Psicologia está presente o interesse por estas
dimensões não-verbais. J. Cosnier (1984, 1989, 1996), que dedicou diversos
trabalhos à comunicação não-verbal e aos gestos comunicativos, afirma que:
On sait aussi que, comme le “canal verbal”, le “canal kinésique” va être
impliqué dans l’expression d’un “contenu” autrement dit dans une activité
référentielle, mais peut-être plus encore dans la manifestation d’une
"relation", autrement dit dans une activité
"interactionnelle" (…) (1996 : 1)
Apresenta três funções principais dos gestos nas interações verbais, das quais
consideraremos apenas a terceira[8], que se relaciona com a empatia e com a
comunicação afetiva. A comunicação afetiva compreende a comunicação emocional,
referente a “manifestations spontanées des états internes”, (riso, choro,
tremores) e a comunicação emotiva que resulta de uma “elaboração secundária” e
permite a apresentação controlada dos afetos sejam estes reais ou não.
É precisamente a função afetiva dos gestos que, na nossa análise, constituirá
um dos mecanismos de construção do ethos. Como afirma Cosnier (1996:3), a
problemática da comunicação afetiva aponta para a quarta das “questions de
parleur”[9]: “Qu’est-ce qu’il en pense?”. Ou seja, o que é que o interlocutor
acha do que o locutor diz e do que faz, ou melhor, qual é a imagem que o
interlocutor cria do locutor através do seu discurso. Com efeito, elementos
não-verbais, como o olhar, mímicas faciais, a postura, entre outros, podem
constituir indícios, não só de uma relação, mas igualmente de um ethos.
Dado o papel sociocultural e afetivo dos elementos não-verbais e paraverbais
nas interações sociais, importa considerar a comunicação não-verbal inserida
num quadro teórico, que categorize e defina os seus constituintes e a sua
natureza.
Atualmente existe um número significativo de trabalhos consagrados à análise de
mecanismos não-verbais e paraverbais, enquanto constituintes por direito da
interação. Mencione-se os artigos de Gardner e Levy (2010) sobre a coordenação
de fala e ação, de Yu (2011), que, numa análise multimodal, abordam a
demonstração de frustração nos argumentos e os textos de Holler e Wilkin (2011)
que desenvolveram um trabalho experimental sobre o grau de quantidade de gestos
na comunicação em correlação com o feedback dos interlocutores.
De acordo com Ephratt (2011), diversos modelos[10] foram já propostos para
categorizar a comunicação não-verbal, sendo que todos estes sistemas assentam
na experiência corpórea (quer seja pelos diferentes sentidos, canais de
perceção ou orgãos físicos). Contudo, como afirma o investigador, os estudos
consagrados à comunicação não-verbal
[…] exclude ‘‘verbal’’ language, so their attempts to subcategorize
communication are made only in ‘‘nonverbal’’ communication. No matter
which criteria they use, the language component is not accounted for.
This results in non-exclusive criteria yielding a non-inclusive
picture.
Procurando contrariar esta tendência, Ephratt (2011) propõe um modelo que,
embora estruturado também nos cincos sentidos de perceção, inclui a comunicação
verbal. Este modelo assenta essencialmente em dois domínios: o domínio
exclusivamente relacionado com o corpo humano (Human body exclusively) e o
domínio do além do corpo humano (Beyond the human body).
Como referido, estas duas esferas encontram-se subordinadas aos cinco sentidos.
Assim, encontramos, ao nível da perceção visual, o olhar e as expressões
faciais inseridas no domínio exclusivamente ligado ao corpo humano e, por seu
turno, a aparência e o vestuário inseridos no domínio do além do corpo humano.
Nesta perspetiva, a comunicação verbal inscreve-se no domínio do corpo humano,
ao nível da perceção auditória, assim como elementos paraverbais (e.g.
intensidade articulatória). Já elementos como a proxémica (a distância entre
dois corpos) inserem-se nos dois campos, uma vez que, no caso da proxémica, a
distância ou proximidade é, simultanemante, física e sociocultural. Por seu
turno, o silêncio, enquanto elemento multifuncional, poderá decorrer de
qualquer um dos campos, tendo em consideração o tipo de silêncio em questão.
No quadro da Análise do Discurso, a dimensão do não-verbal e do paraverbal
constitui, por um lado, uma parte integrante do contexto[11], na medida em que
certos elementos participam do quadro espacio-temporal, tal como a organização
proxémica do espaço, enquanto outros, como a aparência e o vestuário, são
características próprias dos participantes. Por seu turno e de acordo com
Kerbrat-Orecchioni (1990), os elementos não-verbais e paraverbais fazem parte,
a par do verbal, do material semiótico indispensável às interações.
Tal remete-nos para questão da multicanalidade da interação. Como refere a
investigadora (idem:150) “La communication est multicanale: elle exploite un
matériel comportemental faits de mots, mais aussi d’inflexions, de regards, de
gestes, de mimiques (…)”. Assim, nas interações verbais, além da atividade
discursiva ou verbal dos interlocutores, existem igualmente elementos não-
verbais que integram a estruturação discursiva, o que significa que, no curso
da interação, há uma relação de complementariedade entre os diferentes canais:
“Les unités paraverbales et non verbales ne viennent pas s’ajouter
aux unités verbales, mais les différents modes de communication sont
intégrés les uns aux autres (…)” (idem:153).
Na sua reflexão sobre o funcionamento dos elementos não-verbais e paraverbais,
Kerbrat-Orecchioni elenca diferentes aspetos desta dimensão que se revelam
fundamentais para o desenvolvimento da interação, entre os quais sobressai a
necessidade de fornecer as condições necessárias para o início, o
desenvolvimento e o fim da interação. Os interlocutores têm que se encontrar a
uma determinada distância de forma a possibilitar a comunicação, no curso da
interação é necessária a manutenção sistemática do contacto ocular e, para que
esta possa terminar, os interlocutores têm que se distanciar uns dos outros,
uma vez que as fórmulas de despedida, por si, não são suficientes para marcar o
fim da interação. Ao nível da estrutura da interação, aponta como principais
usos a regulação do sistema de alternância de vez, através, sobretudo da
prosódia, e da organização da interação em unidades hierarquizadas, uma vez que
certos marcadores prosódicos e modificações de postura podem assinalar as
mudanças de sequência (idem: 145). Já, no que diz respeito ao conteúdo da
interação, a investigadora afirma que os elementos não-verbais e paraverbais
contribuem para a sua determinação, por exemplo, na deteção de conteúdos
implícitos ou na realização de certos atos verbais indiretos. A dimensão não-
verbal, de acordo com a investigadora, pode igualmente fornecer indícios de
contextualização, especialmente, no que concerne as características biológicas,
psicológicas e sociais dos participantes, como acima mencionámos. Os elementos
não-verbais podem ainda constituir marcas de uma determinada relação
interpessoal, seja esta de familiariedade, de distância ou de assimetria.
3. Análise: mecanismos não-verbais de construção do ethos
Analisaremos, então, os mecanismos não-verbais e paraverbais na sua correlação
com os elementos linguísticos, como parte integrante da organização discursiva
das interações sociais em questão. Assim, é importante considerar o tipo de
organização que caracteriza as interações em que o protagonista, Meursault,
participa, uma vez que apresentam uma estrutura particular.
O esquema abaixo mostra o lugar aí ocupado pelos participantes nas diversas
interações:
1. Interlocutor de Meursault: intervenção iniciativa
2. Meursault: intervenção reativa não preferencial [nova sequência
iniciativa/ reativa]
3. Interlocutor: intervenção avaliativa não-verbal, podendo ser
acompanhada por elementos verbais, que marcam o fim da interação
Pretendemos mostrar como o recurso a mecanismos não-verbais e paraverbais está
ao serviço da construção de uma imagem do protagonista e como estes elementos
desempenham um papel fucral no curso da interação. Em relação a esta questão, é
importante considerar também o tipo de intervenções que caracteriza os
enunciados do protagonista: intervenções reativas curtas, insuficientes para
favorecerem a gestão colaborativa e a manutenção da interação verbal, mas
também social. A incapacidade de manutenção e cogestão da interação, marcada
pelo caráter meramente reativo das intervenções de Meursault e pelas suas
respostas demasiado curtas que anulam a possibilidade de conversação,
contribuem para a construção de um ethos disfórico.
Consideraremos ainda os mecanismos não-verbais na dimensão social e afetiva,
acima verificada, tendo em conta o contexto sociocultural no qual se inserem os
excertos selecionados. Concretamente, analisaremos o episódio do funeral da mãe
do protagonista como um espaço social ritualizado[12] que, como tal, se
encontra regido por normas específicas e é objeto de determinadas expectativas
culturais. Enquanto espaço social, o funeral favorece, ou “impõe” mesmo, a
partir do imaginário doxal vigente na comunidade, uma determinada conduta[13].
Ora, no episódio do funeral, Meursault apresenta determinados comportamentos
verbais e não-verbais que vão contra as normas sociais deste ritual, como por
exemplo, tomar café, dormir, fumar durante o velório, desconhecer a idade da
mãe e recusar-se a ver o corpo da defunta. Há, a partir destes comportamentos,
uma derrogação do estereótipo de filho em luto, desencadeador de um “conflito”
social, na medida em que os laços familiares inserem o protagonista neste
estereótipo, mas a sua conduta, e, por conseguinte, a imagem que constrói de
si, não se coaduna com o esterótipo.
Como este espaço social particular acarreta, ao nível das expectativas doxais,
um determinado estado emocional (luto, sofrimento, angústia), teremos
igualmente em consideração o aspeto afetivo da comunicação. Dado o contexto
fúnebre e o grau de parentesco próximo que o protagonista partilha com o
defunto, existe a convocação de determinados valores sociais e afetivos, que
podem ser parafraseados por enunciados doxais do tipo “Mãe há só uma”, “Os
filhos amam as mães”, “A perda da mãe é um acontecimento trágico e marcante
para os filhos”.
Considerando estes valores, as transgressões de Meursault, relativamente às
expectativas sociais do que deve ser o comportamento de um filho em luto, serão
interpretadas pelos seus interlocutores como índices de ausência de
afetividade. Será, pois, esta divergência entre a imagem prevista nesta
situação, o estereótipo de “filho enlutado”, especialmente, no que diz respeito
ao estado emocional, e a imagem que Meursault constrói de si mesmo que dá
origem a um ethos disfórico.
3.1. Algumas funções do contacto ocular
O contacto ocular, nos seus diferentes tipos (olhar fixo, relance, ausência de
contacto ocular, entre outros), pode, acompanhando elementos linguísticos,
desempenhar um papel relevante na interação social.
Janney (1999) apresenta, como exemplo da interação entre gestos físicos e
enunciados, o caso do debate televisivo entre Geroge Bush, Bill Clinton e Ross
Perot, durante as eleições presidenciais de 1972, em que um relance de Bush em
direção a Clinton no momento em que este enuncia um comentário geral negativo é
entendido e recuperado pelos seus interlocutores como um ataque dirigido a
Clinton.
Mas a importância e a função do contacto ocular constituem uma problemática
controversa entre os investigadores da comunicação não-verbal. Segundo Kerbrat-
Orecchioni (1992:42), a teoria clássica (apresentada por Argyle & Dean,
1965) sustenta que quanto maior é o grau de proximidade dos interlocutores
maior será o número de contactos oculares; mas esta teoria é contestada por
investigadores, como Swain et al (1982), que defendem que quanto maior for a
distância entre os interlocutores, maior é a sua necessidade de se assegurarem
das reações do outro.
Assim, dependendo da teoria, o contacto ocular pode aumentar em relações de
proximidade ou aumentar em relações de distância, atendendo, claro, a funções
diferentes. Parece-nos que, quer num caso quer noutro, falta a consideração da
dimensão sociocultural que determina estes comportamentos. Deste modo, é
importante ter em consideração o contexto, de forma a interpretar e categorizar
o aumento ou a diminuição dos contactos oculares durante a interação, uma vez
que, na verdade, são sobretudo questões socioculturais que devem ser
consideradas.
Em L’ étranger, o primeiro contacto de Meursault com o cenário do funeral é
marcado por uma interação onde o contacto ocular tem papéis distintos, em
articulação com dados proxémicos e emocionais:
(1) À ce moment, le concierge est entré derrière mon dos. Il avait dû courir.
Il a bégayé un peu : "On l’a couverte, mais je dois dévisser la bière
pour que vous puissiez la voir". Il s’approchait de la bière quand je
l’ai arrêté. Il m’a dit: "Vous ne voulez pas?" J’ai répondu:
"Non." Il s’est interrompu et j’étais gêné parce que je sentais que
je n’aurais pas dû dire cela. Au bout d’un moment, il m’a regardéet il m’a
demandé : "Pourquoi ?" mais sans reproche, comme s’il s’informait.
J’ai dit : "Je ne sais pas." Alors tortillant sa moustache blanche,
il a déclaré sans me regarder: "Je comprends." [14] [pp.14][15]
O papel do contacto ocular nesta interação tem de ser enquadrado,
primeiramente, no “conflito” introduzido por um conjunto de trocas verbais (e
não verbais) entre o protagonista e o porteiro.
Assim, a interação é iniciada por um ato não-verbal[16] de oferecimento,
acompanhado da deslocação do porteiro em direção ao caixão, e um ato reativo,
também não-verbal, de recusa do protagonista. O ato de recusa encontra-se
marcado como não preferencial[17], especialmente, no contexto fúnebre, uma vez
que, o ato de ver o corpo de um familiar se encontra previsto nas expectativas
sociais do ritual lutuoso[18]. A ausência de qualquer ato secundário de
justificação acentua a disforia da resposta. O desenvolvimento da interação é
modelado por este facto. Com efeito, as sequências não preferenciais são,
segundo Kerbrat-Orecchioni (1990: 272), mais elaboradas que as dos
encadeamentos não marcados, porque
elle[s] s’accompagne[nt] généralement de certaines précautions rituelles
(“pré”, excuses, justifications, formulation indirecte, adoucisseurs divers),
c’est-à-dire que les enchaînements “non préférés” sont plus “coûteux”
linguistiquement (ils consomment davantage de matériel signifiant), mais aussi
sans doute cognitivement, et psychologiquement.
A primeira troca verbal encontra-se na sequência do conflito introduzido pela
recusa. Esta é composta por um pedido de confirmação da recusa[19]: (“Vous ne
voulez pas?”) e pelo ato de confirmação (“Non.”). Mais uma vez, a resposta do
protagonista não apresenta qualquer tipo de “précautions rituelles”: a ausência
de justificação aponta precisamente para uma falta de “esforço” psicológico que
sugere uma ausência afetiva. Com efeito, as respostas de Meursault são
demasiado curtas (geralmente constituídas por um ou dois lexemas),
insuficientes para assegurar a continuação da conversação.
Sendo a recusa um ato não preferencial, e como não existem marcas linguísticas
ou não linguísticas de atenuação, a segunda troca verbal é iniciada por um
pedido de explicação (“Pourquoi?”), introduzido pelo verbo introdutor de
discurso relatado “demander”, acompanhado por um elemento não-verbal (“il m’a
regardé”). Neste caso, o contacto ocular e o ato de pergunta estabelecem,
assim, uma relação de complementaridade.
Este conflito provoca um desvio face às possíveis reações expectáveis neste
tipo de interação, tornando-a menos previsível. O contacto ocular constitui uma
reação a este conflito, agravado pelo facto de o diálogo ocorrer entre dois
estranhos. Ora para Kerbrat-Orecchioni (1992:43) “Plus les locuteurs sont
étrangers l’un à l’autre, et plus ils ont besoin de s’assurer des réactions
d’autrui, pour en quelque sorte compenser l’incertitude que crée cette
méconnaissance”. Por outras palavras, a imprevisibilidade da recusa obriga o
interlocutor a um esforço acrescido na manutenção da interação, uma vez que o
curso previsto da interação não se concretiza.
A resposta de Meursault, modalizada epistemicamente por um valor de
“desconhecimento” (“J’ai dit: "Je ne sais pas." ”), no contexto
particular do funeral e na sequência dos pares adjacentes precedentes desloca
este valor epistémico de “desconhecimento” para um plano afetivo-axiológico.
Isto é, a recusa em cumprir as expectativas normativas do ritual, aliada à
ausência de uma explicação provoca a transferência do valor epistémico de
“desconhecimento” do contexto do par adjacente para uma dimensão afetiva: são
os sentimentos de Meursault em relação à sua mãe que se esvaziam de certeza.
Como tal, o valor do contacto ocular expresso no sintagma “sans me regarder”
difere daquele que apresentámos para a expressão “il m’a regardé”: a relação
entre o enunciado e o contacto ocular já não é de complementaridade. Embora o
enunciado “Je comprends” seja indicativo de uma relação de solidariedade, a
ausência (ou mesmo o evitamento) de contacto ocular constitui uma manifestação
de distância: o locutor distancia-se na relação interlocutiva. Neste movimento
de distanciação há uma recusa de adesão, no sentido que Maingueneau[20] (1999)
lhe confere, um “univers de sens” que difere do de Meursault.
No episódio do julgamento, o contacto ocular reforça os valores comunicacionais
que acabámos de apresentar. Embora confinado ao estatuto de participante não
ratificado (Goffman, 1981), a presença de Meursault enquanto ouvinte, o relato
das interações em que este participou no curso do funeral, mas sobretudo a
recuperação do ethos pré-discursivo disfórico do protagonista, aduzem, no
discurso das testemunhas, o mesmo valor negativo do contacto ocular, reforçando
a construção efetiva deste ethos disfórico.
O exemplo (2) mostra, mais uma vez, uma recusa em estabelecer contacto ocular
que, acima atribuímos a uma expressão de distanciamento, sobretudo de caráter
socio-afetivo.
(2) En arrivant, le concierge m’a regardé et il a détourné les
yeux.Il a répondu aux questions qu’on lui posait. Il a dit que je
n’avais pas voulu voir maman, que j’avais fumé, que j’avais dormi et
que j’avais pris du café au lait.[21] [pp.136]
Também em (3) existe esse movimento de distanciação através da referência à
direção do olhar da personagem.
(3) À une autre question, il a répondu qu’il avait été surpris de mon
calme le jour de l’enterrement. On lui a demandé ce qu’il entendait
par calme. Le directeur a regardé alors le bout de ses soulierset il
a dit que je n’avais pas voulu voir maman, je n’avais pas pleuré une
seule fois et j’étais parti aussitôt après l’enterrement sans me
recueillir sur sa tombe.[22] [pp.135]
Contudo, neste caso, a manifestação de distância não é a um nível físico, mas
é, principalmente, em relação ao objeto do discurso (os comportamentos anómalos
de Meursautl); aliás a referência ao olhar – desviado para “le bout des
souliers” acompanha o verbo “dire” introdutor do discurso relatado.
A transgressão das expectativas doxais relativamente à atitude de um filho em
estado de luto constitui um comportamento anómalo, cujas repercurssões sociais
(e na construção de uma imagem de si) se assemelham às de um estigma[23].
Assim, o contacto ocular, ou melhor, a ausência/ recusa de contacto ocular
constituem uma marca da heteroconstrução de um ethos disfórico do protagonista,
uma vez que manifestam um desejo de distanciamento das restantes personagens-
interlocutores, ao nível físico, emocional e social.
3.2. Aspetos prosódicos: intensidade articulatória
A intensidade articulatória, tal como o contacto ocular, constitui um elemento
importante no que diz respeito à manifestação do tipo de relação interpessoal
na qual os interlocutores participam. Kerbrat-Orecchioni (1992: 43) dá o
exemplo dos sussurros e de “ce que les phonéticiens appellent ‘la voix de la
proximité’” que se encontram associados a uma relação de intimidade. M.
Grosjean (1991), (apud Kerbrat-Orecchioni, ibidem) por seu turno, concluiu,
através das suas experiências, que a voz desempenha um papel fundamental na
marcação da distância psicológica e social:
Principal système de communication à distance […], la voix serait
ainsi un signe fondamental du lien, en ce qu’il apparaît être le
support idéal pour traduire par homologie notre distance
psychologique et sociale à l’autre.
Com efeito, a intensidade articulatória dos interlocutores é relevante na
definição das relações interpessoais, mas é-o também em diferentes e variados
aspetos da interação.
Os trabalhos experimentais de Prieto e Nadeu (2010) e Prieto et al. (2012)
mostram o papel da prosódia (entoação, intensidade articulatória, qualidade
vocal) em correlação com expressões faciais e gestos, na perceção da
incredulidade e na adoção de estratégias de cortesia, no curso da interação.
A variação articulatória[24] tem um lugar de destaque em (4), na sequência de
mais uma interação não colaborativa:
(4) Voulez-vous auparavant voir votre mère une dernière fois ?"
J’ai dit non. Il [le directeur] a ordonné dans le téléphone en
baissant la voix: "Figeac, dites aux hommes qu’ils peuvent
aller."[25] [pp.23]
A intensidade articulatória expressa pelo sintagma “en baissant la voix”, que
acompanha o verbo introdutor de discurso relatado “ordonner”, constitui uma
marca de distanciação social, bem como, psicológica: a recusa em ver o corpo da
mãe é tratada como um assunto interdito ou tabu.
A temática deste excerto prolonga a sequência que analisámos em (1). O tópico é
retomado, mas desta vez com um novo interlocutor. Por isso, (4) deve ser
analisado à luz do precedente, uma vez que a pergunta que inicia este excerto
vem no seguimento do ato de recusa anterior. E permite a possibilidade de
reconciliação com as normas, adquirindo um caráter de urgência mostrado no uso
do sintagma “une dernière fois”. Ou seja, existe ainda a oportunidade de
cumprir a expectativa doxal, de reparar os danos causados à imagem do
protagonista pela recusa inicial e, por conseguinte, reintegrar-se na imagem
estereotipada do filho enlutado. A nova recusa do protagonista vai consolidar a
imagem disfórica criada na interação precedente.
A redução do tom de voz por parte do interlocutor poderá também constituir uma
tentativa de colocar Meursault fora da interação verbal, como um mecanismo de
distanciação afetiva do conteúdo e das implicações do enunciado, isto é, a
recusa em ver o corpo da mãe que evoca valores paradoxais, como “O filho não
ama a mãe” ou “O filho não se quer despedir da mãe”. Ou seja, o movimento de
distanciamento ocorre em dois níveis diferentes: um distanciamento
relativamente ao objeto do discurso e um distanciamento relativamente a
Meursault.
Assim, o afastamento da postura e dos comportamentos estereotipicamente
expectáveis de um filho em estado de luto conduz à heteroconstrução de um ethos
de caráter claramente negativo, a partir do distanciamento, físico e emocional,
dos interlocutores relativamente a Meursault.
Retomando o contexto do julgamento, o exemplo (5) mostra também a intensidade
articulatória como marca de construção de um ethos disfórico.
(5) L’avocat général a dit qu’à suite des déclarations de Marie à
l’instruction, il avait consulté les programmes de cette date. Il a
ajouté que Marie elle-même dirait quel film on passait alors. D’une
voix presque blanche, en effet, elle a indiqué que c’était un film de
Fernandel.[26] [pp.142]
Neste excerto, o procurador pede a Marie, namorada de Meursault, para revelar o
nome do filme a que ambos assistiram, após uma tarde passada nas piscinas, no
dia seguinte ao funeral. Uma vez que o género do filme (uma comédia) se torna
inadequado relativamente ao estado emocional esperado de um filho enlutado, a
descrição do tom de voz de Marie como “d’une voix presque blanche”, isto é, uma
articulação sem timbre ou sem entoação, revela uma atitude de relutância em
realizar o ato que poderá equivaler a um ato de admissão de culpa por
associação. Com efeito, a relutância de Marie implica a consciência de que no
seio da comunidade há uma discrepância entre um estado emocional de tristeza
socialmente previsto de um filho em luto e uma disposição lúdica para a
visualização de um filme, o que reforça a construção do ethos disfórico do
protagonista.
3.3. Multifuncionalidade do silêncio
Em contexto interacional, o silêncio possui um papel preponderante e pode
desempenhar diferentes funções. Michal Ephratt (2008: 1911) afirma, a propósito
do trabalho de Bilmes (1994), que
Bilmes (1994) adheres to his view that ‘‘where the rule is ‘Speak’,
not speaking is communicative’’ (78), writing that ‘‘conversational
silence is the absence of talk (or of particular kinds of talk) where
talk might relevantly occur’’ (79).
Ou, por outras palavras, numa interação social, o silêncio pode desempenhar uma
função comunicativa, cuja importância interativa pretendemos comprovar na
análise do seguinte excerto:
(6) J’ai demandé deux jours de congé à mon patron et il ne pouvait pas me les
refuser avec une excuse pareille. Mais il n’avait pas l’air content. Je lui ai
même dit : "Ce n’est pas de ma faute." Il n’a pas répondu. J’ai
pensé alors que je n’aurais pas dû dire cela. En somme, je n’avais pas à
m’excuser. C’était plutôt à lui de me présenter ses condoléances.[27] [pp.9/10]
Em (6), o silêncio do destinatário é provocado, dado o tópico e o contexto,
pelo comentário reativo de Meursault “Ce n’est pas de ma faute” dirigido ao
patrão. Esta ausência de reação verbal é perspetivada como um ato avaliativo
por Meursault. O comentário metadiscursivo decorre da avaliação que Meursault
faz do silêncio do seu interlocutor: o marcador discursivo “alors” com valor
temporal e consecutivo estabelece uma relação de causalidade entre os dois
enunciados (“J’ai pensé alors que je n’aurais pas dû dire cela”).
Assim, o silêncio vai adquirir um papel central nesta interação, já que é
entendido como um ato avaliativo e, como tal, provoca a reinterpretação, por
parte do protagonista, do enunciado “Ce n’est pas de ma faute” como um faux
pas, isto é, um comentário que socialmente não é adequado ao contexto em
questão. Pois, embora este excerto não se encontre inserido no espaço do
funeral, o contexto da morte da mãe, com os valores doxais que acarreta, abarca
todas as interações sociais inscritas numa proximidade temporal do evento, quer
seja esta anterior ou posterior ao próprio funeral.
Johannesen[28] (1974: 29 apud Kurzon, 2007: 1674) apresenta um elenco de vinte
possíveis significados do silêncio, entre os quais, podemos considerar como
passíveis de categorizar o tipo de silêncio em análise “The person is avoiding
discussion of a controversial or sensitive issue out of fear”, “The silence
expresse[s] disagreement”, ou, até mesmo, “The person’s silence is a means of
punishing others, of annihilating others symbolically by excluding them from
verbal communication”. Seja qual for o grau de desacordo (da simples evasão até
à punição ativa), o valor avaliativo negativo do silêncio encontra-se
claramente presente.
No contexto particular do funeral, o silêncio ocorre nas interações também com
um valor marcadamente negativo, o que contribui para a construção progressiva
da imagem disfórica do protagonista.
Ainda a propósito dos tipos de silêncio, Dennis Kurzon[29] (2007: 1675)
recupera a distinção, desenvolvida em trabalhos anteriores (1998), entre
silêncio intencional (intentional silence) e silêncio não intencional
(unintentional silence) referindo-se ao trabalho supracitado de Johannesen
(1974). Partindo desta distinção, podemos observar em (7) a progressão e mesmo
dinamismo do silêncio na interação.
(7) Il s’approchait de la bière quand je l’ai arrêté. Il m’a dit:
"Vous ne voulez pas?" J’ai répondu: "Non." Il
s’est interrompuet j’étais gêné parce que je sentais que je n’aurais
pas dû dire cela. Au bout d’un moment, il m’a regardé et il m’a
demandé : "Pourquoi ?" mais sans reproche, comme s’il
s’informait.[30] [pp.14]
No que diz respeito a “il s’est interrompu”, podemos classificá-lo como um
silêncio não intencional, na medida em que constitui uma reação espontânea à
intervenção de Meursault. Segundo Kurzon (2007), Berger (2004) conclui, como
resultado de um trabalho experimental, que uma das principais causas do
silêncio se centra na tomada de conhecimento de “unexpected information/
deviant behaviour” (Kurzon, 2007: 1675). Como atrás observámos, a recusa de
Meursault em ver a mãe é, no contexto fúnebre, uma reação não preferencial que
se liga a índices de ausência de afetividade. A reação não preferencial de
Meursault introduz, pois, na interação um comportamento desviante do expectável
para o estereótipo de “filho enlutado”. Por conseguinte, o reação do porteiro
integra-se nas conclusões de Berger (2004).
Relativamente a “au bout d’un moment”, podemos inseri-lo na categoria dos
silêncios intencionais. A interrupção espontânea inicial dá agora lugar a um
silêncio prolongado e intencional. Retomando a lista de Johannesen (1974: 29
apud Kurzon, 2007: 1674) “The person is carefully pondering exactly what to say
next”. Visto que a imprevisibilidade da recusa de Meursault obriga, como vimos,
a um esforço adicional na manutenção da interação, o silêncio constitui, neste
caso, uma marca desse esforço acrescido.
Já, em (8), o silêncio marca o fim da interação e comporta um juízo axiológico
negativo.
(8) Un peu après, il m’a demandé : "C’est votre mère qui est là
?" J’ai encore dit: "Oui – Elle était vieille ?"
J’ai répondu : "Comme ça", parce que je ne savais pas le
chiffre exact. Ensuite, il s’est tu.[31] [pp.28]
Como a intervenção reativa de Meursault se encontra modalizada epistemicamente
com o juízo de “desconhecimento”, esta constitui uma reação não preferencial,
já que o desconhecimento de um dado pessoal, como a idade, de um familiar
próximo sugere um distanciamento ou uma ausência de afetividade.
Ainda de acordo com Johannessen, podemos concluir que, no caso do empregado de
cerimónias fúnebres, “The silence expresse(s) disagreement”. Entenderemos aqui
desacordo como uma recusa de adesão (Maingueneau, 1999), ou seja, existe um
movimento de distanciamento que determina o encerramento da interação.
No julgamento, o silêncio ocorre igualmente como reforço da construção do ethos
disfórico do protagonista:
(9) L’avocat général a dit qu’à la suite des déclarations de Marie à
l’instruction, il avait consulté les programmes de cette date. Il a
ajouté que Marie elle-même dirait quel film on passait alors D’une
voix presque blanche, en effet, elle a indiqué que c’était un film de
Fernandel. Le silence était completdans la salle quand elle a eu
fini.[32] [pp.142]
Em (9), o silêncio encontra-se na sequência da revelação de Marie de que o
filme a que assistiu com o protagonista no dia seguinte ao funeral era uma
comédia. Como acima referimos, o género cómico não se coaduna com o estado de
espírito de uma pessoa em luto. Esta divergência emocional invoca a negação dos
valores doxais ligados à figura da mãe, atrás mencionados, ou seja, “Este filho
não ama a mãe”, “A morte da mãe não afetou/ é indiferente ao filho”, “A mãe não
tem importância para este filho”. É esta esfera de valores desviantes que
concorre na construção do ethos disfórico do protagonista.
O silêncio que predomina após o testemunho de Marie, mais do que a simples
expressão de desacordo, invoca um estado de estupefação, ou mesmo de horror
perante a apresentação/construção da imagem marcadamente negativa de Meursault.
De acordo com o trabalho Johannesen (1974:29, apud Kurzon, 2007:1674),
poderimos afirmar que a audiência se encontra “in awe, or raptly attentive, or
emotionally overcome”.
Assim, o movimento de distanciamento, presente no silêncio, e igualmente nos
mecanismos não-verbais e paraverbais que temos vindo a analisar, constitui uma
marca/consequência da construção, por parte dos interlocutores do protagonista,
de um ethos disfórico de Meursault.
3.4. Marcas proxémicas de distanciação
Os indícios corporais, como os gestos, a postura ou a orientação do corpo e
distância entre os interlocutores, podem constituir igualmente um meio de
expressão de emoções, de juízos, de uma solidariedade entre os interlocutores
ou de um afastamento emocional.
O exemplo (10) mostra o dinamismo da organização proxémica no desenvolvimento
da interação. Contextualizando o excerto: a ação narrada ocorre no dia seguinte
ao funeral, quando o protagonista encontra Marie Cardona, uma antiga
funcionária da empresa em que trabalha, nas piscinas.
(10) Quand nous nous sommes rhabillés, elle a eu l’air très surprise
de me voir avec une cravate noire et elle m’a demandé si j’étais en
deuil. Je lui ai dit que maman était morte. Comme elle voulait savoir
depuis quand, j’ai répondu: "Depuis hier." Elle a eu un
petit recul, mais n’a fait aucune remarque.[33] [pp.33]
Em (10), o vestuário serve de instigador da troca verbal, dado que o vestuário
de cor preta é marca na sociedade ocidental de um estado de luto. Tal provoca
uma reação de surpresa em Marie, já que o contexto recreativo em que os
interlocutores se encontram inseridos diverge da disposição emocional que o
estado de luto pressupõe.
Desta forma, a reação de Marie conduz a um ato reativo/iniciativo de “pergunta”
(“elle m’a demandé si j’étais en deuil”). A resposta afirmativa de Meursault
desencadeia a segunda troca verbal que introduz o conflito na interação: a
proximidade temporal com a morte da mãe. Como já referimos, a proximidade
temporal relativamente à morte da mãe inscreve esta interação na mesma esfera
de valores doxais acima referidos.
O movimento de distanciação que observámos nos excertos anteriores adquire,
neste caso, uma corporalidade, uma manifestação física. O sintagma “petit
recul” circunscreve em si a expressão de uma reação corporal cujo caráter
espontâneo é indicativo de uma emoção primária: a surpresa, ou até mesmo, a
repulsa.
Mais uma vez, estamos perante o confronto de duas imagens divergentes. Com
efeito, na sociedade ocidental, uma pessoa em luto não se envolve em atividades
lúdicas, como ir à piscina, nem inicia relacionamentos amorosos no período de
luto, uma vez que o estado emocional previsto não se coaduna com o
empreendimento de atividades recreativas. O estado emocional estabelece-se,
então, como fator decisivo na construção deste ethos.
Considerando a proposta de Hall (1966), este afastamento constitui uma
tentativa de sair do espaço pessoal comum aos interlocutores, pela sua relação
de intimidade. Inserida neste espaço pessoal, Marie Cardona participa, por
associação, no comportamento desviante do protagonista.
4. Considerações Finais
Perspetivamos o nosso trabalho sobre o ethos ou imagem de si no quadro de
investigação da Análise Linguística do Discurso, revendo brevemente o percurso
histórico deste conceito. Além do complexo de estratégias linguísticas e
discursivas que envolve a construção das imagens, centrámos a nossa análise na
correlação entre mecanismos discursivos e mecanismos não-verbais e paraverbais
que participam na co-construção da imagem do protagonista.
Os elementos não-verbais e paraverabais podem desempenhar diferentes funções
sociais, e podem, em particular, constituir marcas de uma comunicação afetiva
entre os interlocutores. São mecanismos que fazem parte integrante do material
semiótico da interação, marcando dimensões comunicativas que apontam a
centralidade do contexto e a natureza multicanal da interação.
Na construção do universo discursivo de L’ étranger, o contexto sociocultural
no qual se insere a ação dos excertos selecionados, nomeadamente, o contexto
fúnebre, molda de forma inegável o curso das interações. Tal verifica-se no
confronto de duas imagens: a imagem prevista no imaginário doxal das
personagens que interagem com o protagonista, isto é, o estereótipo de filho
enlutado e a imagem que as personagens constroem de Meursault, em reação ao seu
discurso e à sua conduta (num processo de heteroconstrução do ethos). É, pois,
deste confronto que surge o ethos disfórico de Meursault, construído pelas
demais personagens
A presença de elementos não-verbais e paraverbais variados nas interações
analisadas, tais como, o contacto ocular, a prosódia, o silêncio e a
organização proxémica da interação reforçam a esfera da negatividade, e, por
consequência, implicam um juízo axiológico: evitamento ocular, diminuição do
tom de voz, silêncio são marcas do fim da interação e de distância física. Tal
sugere um movimento de distanciação social, física e emocional das personagens
que participam em interações sociais com o protagonista. Este movimento
recorrente de distanciação das personagens aparece como reação à postura e
comportamentos anómalos do protagonista e consequente construção de um ethos
“disfórico”.