Torre Bela e a "utopia louca de uma vida melhor": dois estudos transculturais
Um dos aspetos mais interessantes, e talvez menos realçados, do 25 de Abril foi
a sua capacidade de gerar encontros de pessoas das mais diversas classes
sociais e nacionalidades. Foi um momento de libertação de energia cívica, de
consciencialização política e de mobilização e, tambem, de diálogo
transcultural. A ocupação da herdade da Torre Bela, propriedade dos duques de
Lafões, constituiu um desses momentos; mas foi mais do que isso – foi a utopia
da construção de uma vida melhor. Daí o lugar quase icónico que ocupa no
contexto da reforma agrária portuguesa.
A Torre Bela é uma propriedade localizada na freguesia de Manique do
Intendente, no concelho de Azambuja, cuja dimensão – 1.700 hectares – é quase
inédita no Ribatejo. As imagens iniciais do filme do realizador alemão Thomas
Harlan, dedicado à Torre Bela, deixam adivinhar a imensidão da propriedade.
Embora a legalização tenha ocorrido apenas em 1976, a Torre Bela constituiu-se
em cooperativa agrícola no dia 23 de Abril de 1975, dia da sua ocupação. O
número inicial de cooperadores era de quarenta e cinco, residentes nas aldeias
vizinhas de Maçussa e Manique do Intendente. De acordo com os estatutos, a sua
denominação oficial era Cooperativa Agrícola Popular da Torre Bela.
Pode dizer-se que as condições específicas da ocupação da Torre Bela cedo a
transformaram num case study. Voluntários de várias nacionalidades estiveram
lá, e alguns deixaram o seu testemunho escrito ou filmado. Testemunhos que
representam perceções diversas, como é o caso da escritora alemã Helga M. Novak
(1935-2013) e do jornalista francês e professor universitário Francis Pisani
(1942-).
Novak e Pisani viveram alguns meses na Torre Bela, em 1975. Helga Novak,
pseudónimo de Maria Karlsdottir, publicou em 1976 a obra Die Landnahme von
Torre Bela[A Ocupação da Torre Bela], um texto de 63 páginas. Francis Pisani
publicou em 1977 um texto bastante mais extenso, com cerca de 330 páginas,
intitulado Torre Bela. On a Tous le Droit d’Avoir une Vie[Torre Bela Todos
Temos Direito a Ter uma Vida], editado em português em 1978. O título deste
artigo – "Torre Bela e a ‘Utopia Louca de uma Vida Melhor’" – é devedor da obra
de Pisani.
A narrativa de Novak apresenta um olhar feminino no meio de uma revolução
essencialmente masculina, como realça Sofia Baptista (2008) no seu estudo sobre
a obra de Novak dedicada à Torre Bela. Novak vem claramente à procura de uma
experiência revolucionária, mas também de paz interior e, enquanto registo das
suas experiências quotidianas, esta obra está formalmente próxima do diário
como sub-género literário. Nesse sentido, além de narradora, Novak é
protagonista.
A obra de Pisani, por seu lado, tem um cariz marcadamente jornalístico. No
entanto, certos trechos revelam uma inesperada qualidade literária, do mesmo
modo que diversas passagens da obra de Novak assumem claramente um teor
documental. Embora apresentem olhares diferentes, une-os o sonho da construção
da justiça social e da igualdade. No entanto, "o quinhão de esperança" ["der
Klumpen Hoffnung"] a que Novak se refere num poema de 1966 intitulado
"Bekenntnis" ["Confissão"] (Ulmer, 2014), e que a trouxe a Portugal em 1975,
acabou por se desvanecer e se transformar numa visão mais desencatada da
ocupação da Torre Bela do que a de Pisani.
Pode mesmo dizer-se que a experiência portuguesa de Novak representou a sua
despedida da crença na possibilidade da construção de um sistema sócio-político
justo. Inicialmente fascinada pela possibilidade da construção do socialismo na
jovem República Democrática Alemã (RDA), cedo assumiu uma atitude crítica face
ao regime comunista. A sua expulsão do país em 1966 leva-a a iniciar uma vida
errante por vários países da Europa à procura do socialismo perdido, chegando a
Portugal em 1975. Na coletânea de contos, Palisaden, publicada em 1980, e que
em grande parte reflete a sua experiência pessoal entre os anos de 1967 e 1975,
já se encontram sinais do desencanto futuro. A título de exemplo, considere-se
o seu micro conto "Arbeitnehmer – Arbeitgeber" ["Empregado – Patrão"], em que
propõe uma inversão original do significado deste binómio, mas ao mesmo tempo
pressente-se uma atitude pessimista: "Aquele a quem pertence a fábrica de
congelados, recebe o meu trabalho (...). Eu, que nada tenho, dou-lhe o meu
trabalho. Ele é quem recebe tabalho. Quem dá trabalho, sou eu." ["Dem das
Gefrierhaus gehört, der nimmt meine Arbeit. (...) Ich, da mir nichts gehört,
gebe ihm meine Arbeit. Er ist der Arbeitnehmer. Der Arbeitgeber bin ich."]
(Novak, 1980: 7) Por outras palavras: quem dá trabalho é o trabalhador, não o
patrão. Sinal praticamente inequívoco do progressivo desencanto político de
Novak é o facto de, a partir dos anos 80, se refugiar quase por completo na
relação com a natureza.
A obra de Novak sobre a ocupação da Torre Bela é composta por 54 pequenos
capítulos de diferentes tipologias textuais, que vão desde notícias de jornais,
entrevistas, cartas, contos, até uma receita de bacalhau. No seu conjunto,
compõem cenas, instantâneos da experiência portuguesa da autora em geral, dado
que alguns textos se referem a acontecimentos políticos não diretamente ligados
à cooperativa. A estrutura narrativa, fragmentada e não linear, realça a forte
subjetividade que marca toda a obra. No entanto, o caráter impressionista e
fragmentário da narração não afeta a coesão geral do texto, apelando antes à
capacidade de montagem do próprio leitor, como observa Sofia Baptista (2008:
99). O apelo à participação ativa do leitor, não só na interpretação, mas
também na construção do próprio texto, constitui uma das originalidades desta
obra.
Na primeira parte, são descritos os espaços e as etapas da ocupação. Logo no
início, Novak faz uma breve descrição da propriedade e do edifício principal,
com mais de vinte quartos, sem esquecer a referência ao muro de cerca de 20 km
de extensão que circunda a propriedade. Nos comportamentos tímidos e deferentes
dos cooperadores no seu contacto com os espaços do palácio, anteriormente
pertencente aos duques – "para quem cuidam as mulheres desta sala [a antiga
sala do duque], como se não fosse delas?" ["Für wen pfl gen die Frauen dieses
Zimmer, als wåre es nicht ihr eigenes?"] (Novak, 1976: 8) –, Novak vê o refl o
do antigo domínio feudal, da opressão antiga, mas também a difi uldade de as
mentalidades assumirem a mudança, porque "as leis não escritas fi am gravadas
mais fundo" ["ungeschriebene Gesetze prågen sich tiefer ein"] (idem: 13).
Reconhece, no entanto, que, aos poucos, as mentalidades estão a mudar: "E
lentamente se quebra a tábua que lhes tapa os olhos e onde estão as leis que
não são escritas." ["Und langsam zersplittert das Brett vom Kopf, auf dem die
ungeshriebenen Gesetze stehen."] (Idem: 13) Com estes comentários, a autora
leva o leitor a refl ir sobre a possibilidade da coexistência, quase paradoxal,
mas real, entre atitudes de grande ousadia (ato de ocupação) e de hesitação em
assumir, no período subsequente, a alteração das relações sociais e políticas.
O corte com o passado é dificultado pelo modo como foram produzidas, e
reproduzidas, as estratégias de dominação ao longo do tempo. Um dos exemplos
dessas estratégias de exploração e, principalmente, de submissão dos
trabalhadores, levadas a cabo pelo antigo patrão, é dado na referência à forma
de pagamento pelo trabalho, a qual incluía a distribuição ao dia de cinco
litros de vinho por cada trabalhador: "Todos os dias cinco litros de vinho, e
quem quisesse podia receber mais." ["Jeden Tag fünf Liter Wein, wer mehr haben
wollte, konnte es kriegen."] (Idem: 12) Para Novak, tratava-se de ação
deliberada: "Era planeado. Uma pessoa perturbada não se revolta, nem ergue
barricadas." ["Es war geplant. Ein zerstörter Mensch rebelliert nicht und
klettert auf keine Barrikade mehr."] (Idem: 12) A distibuição de vinho é, pois,
vista como um exemplo de dominação ideológica.
Desde o início, o empenhamento político de Novak é, pois, notório – ela é
inequivocamente a favor da ocupação das terras porque, como afi ma, "por um
lado, na Torre Bela as terras estavam ao abandono, por outro, nas aldeias à
volta, a percentagem de trabalhadores desempregados subia para cerca de
sessenta por cento." ["Einerseits lagen in Torrebela (sic) die Låndereien brach
und verwilderten, anderseits stieg in den umliegenden Dörfern der Anteil der
arbeitslosen Landbevölkerung auf ungefåhr sechzig Prozent." (Idem: 9) O quase
abandono da produção agrícola por parte dos antigos proprietários é referido
como um fator a favor da ocupação. Exemplifi ando, Novak compara a produção de
azeite em 1954 (trinta e três mil litros) com a do ano de 1973 (1.500 litros)
para concluir que as terras estavam a produzir muito abaixo das suas
possibilidades, o que seria um argumento a favor da sua ocupação.
Novak descreve o trabalho árduo no campo, no qual se envolve, e que lhe suscita
a seguinte dúvida, aliás partilhada por Pisani, sobre o futuro do projeto:
"Quem os colherá [os frutos]? Os antigos proprietários, ou os novos?" ["Wer
bringt sie ein? Die vormaligen Herren oder die neuen?"] (Idem: 11) A figura da
pergunta retórica é recorrente nesta obra e está muitas vezes relacionada com
as incertezas, não só em relação ao futuro do projeto particular da Torre Bela,
mas também em relação a todo o processo revolucionário em curso no país.
A dúvida, mesmo pessimismo, quanto ao futuro da Torre Bela exprime-se sobretudo
através de uma atitude crítica em relação à realidade concreta da vida na
cooperativa. Essa visão mais cética pode ter raízes culturais. As críticas à
falta de método e de organização do trabalho, ao alcoolismo, conservadorismo,
mesmo machismo, dos homens, mas também ao conformismo das mulheres (idem: 46,
60), traduzem a diferença cultural, intelectual e mental entre o mundo
(germânico) da autora e o mundo rural português. Esse abismo cultural
desempenhou um papel importante e foi agravado pela barreira linguística. Novak
tem consciência do choque cultural no seu todo. Referindo-se aos cooperadores,
diz: "Eles não nos conhecem. Nós não compreendemos a língua deles." ["Sie
kennen uns nicht. Wir verstehen ihre Sprache nicht."] (Idem: 28) De facto,
Novak raras vezes se refere aos cooperadores pelos seus nomes; quase sempre é
usada a terceira pessoa do plural "eles" ["sie"]. Por vezes, também recorre a
pronomes indefi como "um" ["einer"], ou locuções pronominais indefi as, como
"um outro", "um terceiro" ["ein anderer", "ein Dritter"] (idem: 20). No
entanto, quando se refere ao trabalho realizado em conjunto, Novak usa a
primeira pessoa do plural "nós" ["wir"] (idem: 20). Vontade de pertença, apesar
de tudo?
Este distanciamento e incompreensão, de índole linguística e cultural, parecem
ter afetado a sua avaliação política. Novak pressentia que o "quinhão de
esperança" que esperava encontrar em Portugal se estava a esfumar. Observa-se
uma discrepância entre as suas expectativas em relação à revolução portuguesa
(e aos revolucionários) e a realidade que descreve. Wilson Faustino, por
exemplo, lider da ocupação e personagem polémica, mas popular, no texto de
Pisani, é aqui descrito negativamente; é o "camarada W.", muito criticado pelas
atitudes "burguesas" como, por exemplo, fumar um charuto após o jantar num
restaurante de Lisboa:
A seguir o camarada W. assobia ao empregado de mesa para lhe trazer
uma caixa de charutos. Pega neste e naquele e apalpa-os até que,
piscando o olho, leva um à boca. Os camponeses olham admirados e
tossicam em sinal de aprovação. [Anschließend pfeift der Genosse W.
dem Kellner und låßt sich ein Kåstchen Zigarren bringen. Er nimmt
diese und jene und tastet sie ab, bis er sich zwinkernd eine in den
Mund steckt. Die Bauern machen Stielaugen und hüsteln anerkennend.]
(Idem: 44)
Apesar da desilusão revolucionária, Novak vê Portugal como um lugar de
liberdade, em oposição ao autoritarismo controlador da RDA: "Conheci muitas
casas destas [ocupadas], mas em nenhuma me detive e encontrei a minha paz como
nesta, mesmo que por pouco tempo." ["Ich habe viele solcher Håuser gekannt,
doch in keinem habe ich wie hier, wenn auch kurzfristig, innegehalten und
meinen Frieden gemacht."] (Idem: 34)
A alusão nesta frase às suas viagens em busca de paz sugere que a experiência
portuguesa de Novak pode ser vista como tendo sido indelevelmente influenciada
pelo que Izabella Surynt, no seu estudo "Leben als Exil. Zum Schaffen von Helga
M. Novak" ["A vida como exílio. A propósito da obra de Helga M. Novak"], chama
"problemática da ‘Heimat’" [pátria] na obra de Novak. O exílio forçado ou auto-
imposto da autora e a perda da nacionalidade alemã oriental estão presentes na
sua obra na ideia da perda, negação da pátria, e a sua busca versus encontro.
Este sentimento de não pertença cria uma dinâmica de inquietação que é um ponto
de partida para uma luta com o mundo e consigo própria. Essa experiência de
exílio está patente na forma insubmissa e até angustiada como Novak faz a
recomposição literária da sua experiência portuguesa.
Debrucemo-nos de seguida sobre o outro livro que relata igualmente, embora de
modo bastante diferente, a experiência da ocupação da herdade de Torre Bela
vivida in locopor um estrangeiro, designadamente o volume Torre Bela. Todos
Temos Direito a Ter uma Vida(1977), da autoria do jornalista francês Francis
Pisani.[1]
Pouco tempo antes da sua chegada a Portugal em 1975, o autor tinha viajado pela
América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Cuba, Venezuela), tendo sido
correspondente do jornal Le Monde Diplomatique, entre outros. É, porventura,
esse contacto prévio com gentes e culturas (com forte componente campesina) da
América do Sul que lhe proporciona a disponibilidade intelectual para
interpretar a experiência vivida na Torre Bela como algo de positivo,
independentemente do desfecho final. O facto de falar português fluentemente
(além de outras línguas) pode, também, ter facilitado a ligação afetiva ao
projeto e às pessoas, o que não se observa em Novak.
Ao mesmo tempo, porém, perpassa a sua obra sobre a Torre Bela o interesse pela
aplicação do critério jornalístico de pluralidade de pontos de vista. Essa
preocupação é visível no estilo quase fílmico de alguns trechos mas também, por
exemplo, na tentativa – frustrada – de ouvir os "senhores da Torre Bela":
"Teria gostado de lhes dar a palavra neste livro. Paciência." (Pisani, 1977:
93)
O subtítulo da obra – Todos Temos Direito a Ter uma Vida– traduz a
interpretação do autor acerca do significado mais profundo da ocupação daquelas
terras: a Torre Bela representa a busca de dignidade humana, a afirmação de
como os mais pobres podem aspirar ao respeito e à dignidade. Logo no início da
obra, Pisani descreve assim os cooperadores:
As caras estão inexpressivas, após uma noite de sono. Não barbeadas,
marcadas pela miséria, estragadas pelo álcool, a sua beleza vem da
energia que se lê nos seus traços como nos seus olhares. Sente-se uma
tensão extrema nestes trabalhadores agrícolas: ontem era para se
defenderem dos golpes do patrão; hoje para vencer e criar novas
condições de vida. (Idem: 27)
O autor realça uma das opções do projeto: o facto de desde o início terem sido
escolhidos para integrarem a nova cooperativa "os mais pobres de entre nós",
como conta Wilson Faustino, "aqueles que eram apenas trabalhadores rurais, que
não tinham tido nunca outro trabalho na vida. Aqueles que tinham mais
dificuldade em arranjar trabalho, que não tinham emprego há muito tempo."
(Idem: 83)
Outra opção, a opção pelo poder popular, significava que a produção e a
repartição do produto deviam estar nas mãos dos trabalhadores, eles mesmos
(idem: 130), conforme salienta o autor, e ela implicava a autonomia em relação
a todas as forças políticas organizadas, incluindo os partidos políticos de
esquerda. Para o autor, estas opções constituem a originalidade e a força do
projeto da Torre Bela – a oportunidade de verificar se era possível transformar
a vida dos mais deserdados, dar-lhe um sentido de libertação que também, numa
espécie de efeito sinédoque, abrangesse todos os que de algum modo vivessem o
projeto.
Mas estas escolhas são também fonte de incertezas e dificuldades. Talvez por
isso, Pisani se refira à Torre Bela várias vezes como uma "experiência" (idem:
117). A opção pelos mais desfavorecidos – juntamente com a sua miséria afetiva,
fraqueza física, analfabetismo e alcoolismo – implicou a consciência de que
eram também os que tinham menos consciência política, capacidade técnica e de
organização.
A opção pelo poder popular traduziu-se na falta de apoio político e num certo
isolamento, que é simbolizado pelo muro que circunda a quinta e a que o autor
dedica um capítulo inteiro: até à ocupação, o muro fazia perfeito sentido, dado
que a Torre Bela era essencialmente uma reserva de caça. Após a ocupação,
tornou-se o símbolo da separação entre os cooperantes e as populações vizinhas.
Era também uma metáfora da realidade inescapável, das dificuldades enfrentadas
pelos cooperadores para vencerem as batalhas que tinham assumido.
Os vários problemas – alcoolismo, desorganização, baixa capacidade técnica –
são descritos sem rodeios, mas a tónica é posta nas vitórias alcançadas. A
forma como Pisani descreve a primeira reunião da comissão de trabalhadores a
que assitiu (18 de Agosto) é ilustrativa da sua atitude positiva. Ao mesmo
tempo que nota a falta de produtividade: "serão necessárias duas manhãs
inteiras de reuniões desta comissão de trabalhadores para que a ideia de que é
preciso e possível planifi ar os trabalhos agrícolas seja de facto aceite",
realça as pequenas vitórias: apesar de lenta, a discussão progride e ela
constitui a "prática quotidiana do poder popular." (Idem: 235)
Conforme referido acima, um dos aspetos distintivos da ocupação da Torre Bela
foi o interesse e a solidariedade que suscitou. Pisani refere o apelo ao
trabalho voluntário dos operários de Lisboa, a ligação com as comissões de
trabalhadores ou de bairro, com os regimentos revolucionários da capital
[Polícia Militar], o recurso ao dinheiro vindo do estrangeiro [Alemanha, França
e Itália], e a vinda em número importante de "turistas revolucionários." (Idem:
116; 218-23)
De entre as pessoas vindas do exterior, Pisani destaca a figura de Camilo
Mortágua. Ele é claramente um dos protagonistas desta narrativa, daí a
recorrência de expressões como "Camilo diz", "Camilo fala frequentemente de
...", "Camilo reconhecia ...". Ex-dirigente da LUAR [Liga de União e Acção
Revolucionária], Camilo foi, para Pisani, quem deu "coerência ao projeto". Ele
é apresentado como alguém que defende convictamente a ideia de poder popular
como cerne do projeto e que percebe que a organização do poder popular também
passa pela criação de estruturas de vida comunitária. Daí, a batalha pelo
refeitório que, simbolicamente, foi a forma encontrada para "recriar o espírito
colectivo, dar nova alma ao nosso combate." (Idem: 125)
Pisani entrevista-o longamente em Agosto de 1975 (idem: 123-32), entrevista que
Novak também transcreve, embora de forma mais sintética (Novak, 1976: 14-8). Os
problemas iniciais da Torre Bela são expostos de forma clara e incisiva:
Na noite da minha chegada (princípio de Julho), quase que me fui
embora outra vez, encontrei uma situação ainda pior do que aquela que
eu esperava. (...) A comissão de trabalhadores nunca se reunia,
nenhuma regra de trabalho tinha sido fi a, (...) não havia limites
para o vinho. A chave da adega estava ao alcance de toda a gente.
Cada um trazia a sua côdea e comia-a no seu canto. (...) No fim do
dia estavam todos bêbados porque podiam beber à vontade. (Idem: 124)
Camilo é apresentado como um "quadro revolucionário" que tem consciência da sua
posição privilegiada na cooperativa porque tem tempo para pensar e porque tem
influência, talvez maior do que desejaria. Na entrevista reconhece: "Durante
todo este período, pressionado pelas circunstâncias, eu usei a minha
influência, mais do que aquilo que eu queria." (Idem: 125) É através do retrato
feito por Camilo da "experiência" da Torre Bela que a ligação afetiva de Pisani
ao projeto se torna mais evidente. A capacidade de dar um sentido ao projeto,
de defi as suas linhas gerais, que marcam o papel de Camilo na Torre Bela
cunham, também, a visão de Pisani. Para Camilo, a Torre Bela não é uma "ilha de
socialismo", uma comunidade fechada sobre si mesma, como acontece em várias
cooperativas espalhadas pela Europa. A Torre Bela é outra coisa. Daí, a
importância da relação com o exterior para o sucesso do projeto. Ele afi ma
mesmo que se eles não conseguirem "passar os muros que cercam a Torre Bela
(...) esta experiência está condenada." (Idem: 131)
No final da entrevista, as palavras de Camilo – "eu acho que o coração deve
empenhar-se para que as coisas tenham um sentido" (idem: 132) – fazem lembrar a
própria relação de Pisani com a Torre Bela. É essa relação que lhe permite, no
final, fazer um balanço positivo. Para o jornalista estrangeiro, foi a
capacidade de sonhar e de unir o sonho à realidade, que deu sentido e força
àquela comunidade para lutar por uma vida melhor. Exemplifica: sem a ambição de
construir a barragem para irrigar metade da cooperativa, sem a construção do
refeitório, sem o desenvolvimento da criação de gado, sem esta utopia
quotidiana, "sem a utopia louca de uma vida melhor" (idem: 343), como, onde e
por quê haveriam os cooperadores de encontrar motivação para a luta? A
revolução da Torre Bela foi, portanto, a luta pela criação de um espírito de
comunidade; foi a criação de um personagem coletivo – a cooperativa.
Sem ilusões acerca da capacidade do sistema capitalista de assimilar este tipo
de experiências, é ainda Camilo quem diz as palavras decisivas: "A Torre Bela
pode ser recuperável, mas o que conta é que os homens que participam nesta
experiência não o sejam. Julgo que em grande parte conseguimos isso." (Idem:
344) Pisani concretiza: "Mesmo que a cooperativa desapareça, nunca mais
aceitarão fazer o que um deles conta: curvar a espinha para que os filhos do
duque subam para o cavalo servindo-se das costas como de um escadote!" (Idem:
344)
Se para a comunidade local a experiência da Torre Bela significou a
concretização de um passo importante rumo à emancipação política e social do
indivíduo num país em vias de se democratizar, para os de fora, como a cidadã
alemã Helga Novak e o cidadão francês Francis Pisani, a Torre Bela, para além
de representar um fenómeno de índole essencialmente sociopolítica, confi ou-se
também como uma espécie de libertação metafísica. Assim, não obstante comungar
intensamente dos ideais subjacentes ao projeto coletivo, Pisani denota ter a
clara consciência de ser um viajante, um forasteiro a quem é dada a
possibilidade de viver por momentos uma harmonia catártica:
Na minha opinião, esta esperança [a "utopia louca de uma vida
melhor"] encontrava-se concretizada na Torre Bela. Sempre que aí
voltava, qualquer que fosse a hora do dia ou da noite, a passagem
pela floresta, entre o primeiro portão que marcava a entrada nessas
terras libertadas e o segundo que marcava a entrada na zona de
habitação, produzia em mim uma espécie de filtragem. Durante cerca de
quatro kilómetros (...), todo o peso, todas as precipitações da
cidade caíam de um golpe. Como poderiam elas resistir à vista das
corças e dos esquilos que quase sempre o viajante tem possibilidade
de cruzar? À medida que entrava, começava a respirar. Torre Bela era
a vida. (Idem: 214)
Conforme já foi exposto atrás, também Helga Novak, ainda que num tom menos
otimista do que o de Pisani, revela estar bem consciente da sua condição de
viajante. Ao contrário do viandante francês, que experiencia nas florestas da
herdade uma espécie de epifania libertadora, a narradora alemã mostra-se mais
sóbria e cética. Ela autoconfigura-se, subliminarmente, como uma errante eterna
em busca duma paz consigo e com o mundo que teve oportunidade de experienciar,
mas apenas de modo efémero, nesta sua breve passagem por um país em vias de
transição para a democracia, transição essa que se consubstanciaria de forma
simbólica no projeto coletivo da Torre Bela.
A modo de epílogo, refira-se que a própria Cooperativa Agrícola Popular da
Torre Bela teve, também ela, uma vida muito efémera, pois foi entregue aos
duques de Lafões em 1982, no âmbito da chamada Lei Barreto.