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EuPTHUHu0807-89672014000200013

EuPTHUHu0807-89672014000200013

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0807-8967
ano2014
Issue0002
Article number00013

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A Confissão de Régio

Neste diário [] Régio lega-nos [] a certeza de um saco de segredos para sempre sepultados.

Eugénio Lisboa O nome de José Régio sugere não uma reflexão sobre a chamada geração da presença como também sobre uma obra polifacetada onde todos os géneros literários têm assento. Contudo, esta diversidade não obsta a que seja mantida uma intransigente coerência, a nível de temas e motivos, expressa por uma estilizada retórica do eu que acentua a conflitualidade, sua marca distintiva.

Desde jovem, Régio, na Coimbra de antanho, onde desembocou vindo de Vila do Conde para se formar em letras, manifestou inclinação para a coisa literária defendendo de forma intransigente os seus ideários. Colaborador habitual de revistas (e.g. Bysâncio), funda, com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, a presença (1927-1940) onde cooperam jovens de diferentes faculdades da Universidade, ligados pelo gosto da boémia, e amantes da tertúlia literária que, à data, acalorava o ambiente de cafés, pastelarias neste caso a Central e outros microcosmos congéneres. Um pouco na senda da Bande à Gide da Nouvelle Revue Française, passando à margem das vanguardas do início do século sem as ignorar, surge, nesta Folha de Arte e Crítica subtítulo da presença uma interessante proposta de equilíbrio que é uma bandeira, um grito de revolta, uma risada na paspalhona da cara da nossa literatura nacional (Régio, 1993a: 19). Tal como Schlumberger proclama, logo no primeiro número da NRF, a independência de espírito e a procura de verdade e sinceridade em arte, apenas condicionada pelo génio individual, também Régio, no número um da presença, em 1927, escreve:

Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de uma personalidade artística. [] Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria.(Régio,1993d: 1)

Reitera esta ideia posteriormente, assegurando: Reduzir a literatura a uma espécie de produto coletivo, monótono e uniforme de uma sociedade [] eis, precisamente o que mais detesto (Idem, 1965: 143), defendendo assim o individualismo pois, na Obra de Arte, o mundo existe através da individualidade do artista”(Idem, 1993c: 2). A afirmação da originalidade e do individualismo como base da criação é reiterada em Lance de Vista (Idem, 1993b: 5), artigo provocatório como provocatória é toda a obra regiana em que afirma ser a arte o resultado da seguinte fórmula: o HOMEM + o ARTISTA + a REALIDADE = a ARTE; admite, no entanto, que o valor da parcela homem deverá ser superior ao da parcela artista.

Enquanto principal mentor do chamado 2.º Modernismo, o autor de A Velha Casa não defende intransigentemente os princípios acima referidos, como convoca uma visão ecuménica da Arte, albergadora da literatura todas as formas de literatura , das artes plásticas, da música, da 7.ª arte... Neste sentido, privilegia a receção e divulgação do pensamento e das artes estrangeiras, a fim de disseminar um espírito novo que reivindique uma necessidade urgente de renovar não a literatura como tudo aquilo a que chama Arte e cujas técnicas, ainda que diversificadas, convergem para um mesmo fim.

Mas a arte, enquanto criação, necessita de uma reflexão, surgindo assim a crítica que, com ela, forma um binómio indissociável. Esta explica, afinal, o porquê e para quê da criação artística, e procede, em última análise, à sua avaliação de forma apartidária e incomplacente. A crítica presencista, para além de apregoadamente individualista, é também espiritualista (Ponce de Leão, 1996: 75). A obra é o produto da elaboração de algo, acessível à inteligência por um ser transcendental, distinto do vulgus, sociologicamente inexplicável. Segundo Régio (1993e: 2), num artigo sobre Proust, a obra de arte eleva-se do particular ao universal, do efémero ao permanente, por virtude da sua intuitiva complexidade, originalidade e autenticidade. Esta dupla atividade da presença, desde logo anunciada no seu subtítulo Folha de arte e Crítica, revela-se eficaz em textos críticos que, se individualistas e espiritualistas, representantes de todo o ideário, não se apresentam, por isso, escassos em isenção e em idoneidade, conferidas estas, também, pelo facto de os críticos serem simultaneamente artistas.

A passagem de Régio pela presença não se pode dissociar do conjunto da sua obra posto que a revista tenha sido génese de princípios e preceitos posteriormente continuados. Assim, uma panorâmica da obra do autor da Confissão de um Homem Religioso é por demais demonstrativa da originalidade, individualismo e provocação anunciados na revista. Também o confessionalismo e a essência do eu, quase sempre expressos em clima de grande conflitualidade, são manifestos. A isto acresce a diversidade de géneros que a enformam, onde o ensaio crítico tem similarmente papel relevante, bem como o culto do desenho e da pintura. Tendo sido um dos principais mentores do 2.º Modernismo, toda a obra mantém um clima de intransigente coerência que também se aplica à vida.

Quando, em 1994, foi publicada postumamente a obra Páginas do Diário Íntimo, e apesar de haver uma forte argumentação justificativa de José Alberto dos Reis Pereira em Notas à Primeira Edição do Diário de José Régio, que ainda assim mostrava a sua apreensão sobre como situar este inédito no conjunto de uma obra exemplar (Pereira, 1994: I), quando isto aconteceu, dizia, insurgi- me, mormente pela publicação ser truncada por critérios de subjetividade extrínsecos ao autor e por uma certa devassa da intimidade. Mesmo a afirmação do seu herdeiro: Régio sabia que estas páginas íntimas acabariam, um dia, por vir a ser publicadas (Idem, 1994: III), não me sossegou de imediato.

Nada garante, apesar da opinião do herdeiro de Régio, que as Páginas do Diário Íntimo almejassem publicação. Assim se levanta o problema da publicação póstuma; se, ao não ser feita, se arrisca a remeter ao silêncio verdadeiras obras de arte, também prenuncia, como cumpre, o respeito que ao seu autor é devido. No caso de autores com vasta obra publicada, como José Régio, poder-se- á tornar despiciendo e, porventura, temerária a publicação de um diário aparentemente íntimo.

Contudo mudo propositadamente de parágrafo apesar da adversativa vários são os motivos que me foram obrigando a aceitar esta publicação. Desde logo o testemunho de Eugénio Lisboa

Quando, em 1954, conheci pessoalmente José Régio, em Portalegre, foi- me dito pelo poeta, logo nos primeiros tempos do nosso convívio, que mantinha, com notável irregularidade, um diário. E logo advertiu, a explicar o seu errático arquivar de desabafos, ideias, emoções, que o diário lhe não era um género literário muito próprio (Lisboa, 1994: V).

é demonstrativo de que não havia, por parte de Régio uma intenção de ocultação; ainda porque o próprio autor amite, ao longo da obra, uma hipotética publicação por alguém que porventura encontre estes cadernos, se eu morrer antes de me afirmar... (Régio, 1994: 29); depois, porque sendo Régio um homem de teatro, muito naturalmente gostaria de subir a um plateau ascendendo a protagonista da sua própria história; finalmente porque se trata de um repositório variado de temas, preocupações, ideias, sondagens, emoções, confissões, e reações que o vão tornar referência obrigatória para qualquer futuro estudante de José Régio e da sua obra (Lisboa, 1994: XIII). E apesar do autor de Benilde se questionar sobre a valia do seu Diário e sobre o porquê da sua elaboração, pondo em causa a sua prossecução Para deixar mais um livro? Para deixar qualquer coisa inédita depois da minha morte? Mas isto presta, este diário cobarde? (Régio, 1994: 352) , a verdade é que ele configura um imprescindível documento para todos os que se interessem pelo homem e pela obra.

O Diário de Régio[1] não é tão fruto de um isolamento, outrossim uma capitalização de vivências, um exercício intelectual, um armazém epistolográfico que assume uma função terapêutica, sobretudo no que diz respeito à postura da crítica na receção às obras do autor. Logo, se torna num lugar de interiorização e, concomitantemente, exteriorização, uma vez que não é rejeitada a publicação, e o seu conteúdo acaba por ser divulgado, quebrando-se assim a intimidade que parecia caracterizá-lo (Ponce de Leão, 2003: 573). Por outro lado, não obedece a uma determinada periocidade, apresentando-se descontínuo e fragmentado.

Interessantemente, o tempo que o autor passou em Coimbra constitui um hiato nesta escrita diarista. Entre 25 de Julho de 1925 e 17 de Abril de 1937 tempo mais ou menos coincidente com a época da publicação da presença (1927-1940) não qualquer registo (pelo menos publicado), assim declinando obrigatoriedades temporais e estruturais.

Seguro é que Páginas do Diário Íntimo abrem portas para toda a obra regiana.

Quando Régio diz este pobre diário, se algum interesse ainda pode oferecer, é o de, sobretudo, ser o Diário dum escritor. (Idem 1994: 376), põe, modestamente embora, em evidência o contributo que este microtexto à destrinça do seu macro texto. É que a obra regiana, enforma um continuum de temas e motivos aqui também sobrelevados. Acresce que este diário é um precioso documento caracterizador de tendências estéticas, literárias e culturais de uma época, de onde sobressai o papel da crítica, sobretudo a literária, e também a postura e a dignidade do autor ao analisá-la.

Fazendo em Montherlant, todo o homem grandioso atua, e escreve em torno de duas ou três ideias. Tal se passa com as intransigentes coerências e fidelidades do autor de O vestido cor de fogo que faz da sua obra um exercício de autoconhecimento, uma procura de solução para um problema que aqui denominarei conflitualidade. O conflito é o seu, amargamente assimilado, que gere o jeito confessionalista em que o pudor se converte num exibicionismo à Cristo (Idem, 1970: 85). A profunda consciência de si, a demanda de uma auto resolução gera uma relação conflituosa consigo e com o(s) outro(s) que propaga através das suas angústias amorosas, existenciais e religiosas.

As contradições amorosas / sexuais, convertidas em permanente conflito, são as mesmas que perpassam a sua poesia, o seu teatro, a sua ficção, o seu desenho.

[2] Homem místico por natureza, nele se instala a oposição carne / espírito para a qual nunca alcançará um projeto conciliatório. Tragado por um desejo de absoluto, luta contra a escravização da carne, denegrindo as práticas amorosas, e vendo no amor terreno uma insatisfação permanente e uma colossal limitação do género humano. Contudo, o arrebatamento carnal nunca o abandona e, por tal, surge o conflito irresolúvel: a entrega com inocência é utópica; o desejo carnal é condenável. Ocupando a mulher em toda a sua obra um lugar de destaque, debate-se numa impossibilidade de posse total que exacerba o desejo, fomentando procuras arbitrárias e até, por vezes, pouco seletivas. Por tal, depois de anunciar nas Páginas do Diário Íntimo que a castidade faz parte do seu ideal de vida A sexualidade continua em mim poderosa e violenta. Por isso é meritória a castidade em que vivo (Idem, 1994: 260) , recorrentemente refere a sua potência sexual (Idem, 1994: 336), advinda, sobretudo, em crises de dores alérgicas, ou mesmo a sua perversão sexual (Idem, 1994: 369) chegando a admitir: Ontem, domingo, estive numa casa de raparigas. (Idem, 1994: 12).

Todavia, sistematicamente se penaliza tornando a contenda insolúvel: Em Lisboa, recaí na sexualidade que procuro vencer (Idem, 1994: 296), afirma; tal como o faz em Carta de Amor: Querida!,/ Porque te chamo. / Mas amar-te?! / Não!, minha vida (Idem, 1970: 86).

Também o seu problema existencial se põe com acuidade ao longo destas páginas.

Existência e coexistência, vivência em isolamento, e o ser necessariamente intramundanal dividem-no entre a facticidade e a trivialidade ou a autenticidade, onde, fruto de uma aturada introspeção, se encontra consigo próprio ensaiando irresolúveis conflitos. O confronto eu individual / eu social, a não aceitação do mundo, a recusa do convencional, o absurdo da existência e a questão da liberdade são problemas sistematicamente levantados, que reclamam um poder decisório, o que arrasta Régio a um temerário confronto consigo próprio, muitas vezes na figura de um duplo que o espelho projeta.

Reconhecendo a necessidade de comunicação com o mundo, deixa que se sobrepuje o seu individualismo e a sua independência, geradores de automarginalizarão, ainda que, concomitantemente, propiciadores de autoanálise que o levam a afirmar:

Eles têm a força da violência, eu tenho a força da insinuação; eles têm os privilégios da saúde, eu tenho os privilégios da doença; eles são desejados pela sensualidade das mulheres, eu sou desejado pela sensibilidade das mulheres; eles, quando vencem, deixam atrás de si revoltados eu, quando venço, deixo atrás de mim agradecidos; eles são fortes, eu sou delicado; eles podem ter a beleza, eu, tenho a graça; eles são alma feita corpo, eu sou corpo feito alma. (Idem, 1994: 29)

Não lega, de facto, Régio, esperança nem otimismo, que, ao questionar-se e questionando os outros sobre o enigma da existência, não obtém soluções capazmente satisfatórias mas, paradoxalmente, e paradoxal e antinómica é toda a arte regiana, gera expectativas de indefinidas e infinitas respostas. Assim se reconhece nas Páginas do Diário Íntimo um doido que por acaso nasceu com juízo (Idem, 1994: 18), confessando: Bem cedo me resignei a ser e a amar seja quem for nos seus momentos de humanidade dolorosa e alta... ou mesquinha e lastimável. O que sou, afinal, é um pobre ser essencialmente humano, conscientemente humano... (Idem, 1994: 34).

Por demais conhecido é o conflito religioso de Régio sublimemente sintetizado no verso Nascido do amor que entre Deus e o Diabo (Idem, 1965: 52), prenunciador da tão dilemática metáfora da encruzilhada. Tentando interpretar o sentido e o alcance da vida, muitas vezes se resigna face ao criador, numa atitude de impossança e desespero de quem não encontra outras soluções. Vendo- se sistematicamente dividido entre duas forças antagónicas configuradoras do bem e do mal Deus / Diabo, Céu / Inferno, Ascese / Queda remete-se, assazmente, para posturas de um titanismo religioso humanizador do divino e divinizador do humano. Esta ambiguidade traduz-se no conformismo com que a criatura, presa à terra, aceita a supremacia divina, questionando-se, todavia, com alguma inquietude, sobre a quota-parte de deidade que lhe parece ser devida. Aceitando a divindade, não raro se revolta contra o que nela de recôndito que lhe confere uma serena supremacia, sendo justamente esse recôndito gerador de conflitualidade. Daqui nasce a explicação de uma obra dual, prenhe de teatralidade, em que as máscaras ocultam as tensões internas, cujos polos são Deus e o Diabo, justificadoras de adesões e recusas que configuram as personae que nele coexistem e que deixam antever o homem de teatro. A busca da totalidade, feita de ausências e presenças da entidade divina, ilustradoras de uma vocação teatral, é, então, base do místico conflito regiano. Por tudo contesto Luiz Piva quando afirma que Na luta com Deus, sai vencido o Poeta (Piva, 1977: 49). Não sai, de facto, vencido mas convencido.

Convicção baseada em lutas íntimas, em agressivas obstinações, em oposições e dúvidas sofridas, mas, por isso mesmo, mais fortalecido, convicto e, porque não, quase convertido como o confirma nas Páginas do Diário Íntimo : Continuo sempre a verificá-lo: Creia ou não creia, não posso viver sem Deus. Deus é a minha força, o meu refúgio, a minha companhia. E nada sei sobre Deus, nem mesmo se existe. (Régio, 1994: 394). Escreve no primeiro aniversário da morte de sua mãe: Mandei dizer uma missa pela Sua alma. Pude chorar e rezar na Igreja (Idem, 1994: 87).

Para além da conflitualidade regiana, este Diário é, como atrás referi, uma porta aberta para a obra e respetiva receção em que a crítica não o poupa nem é poupada.

O seu carácter rebelde e autêntico, a sua natureza independente e original, tal como sempre se afirmou na presença, afastam consensos e fazem dele e, concomitantemente, da sua obra, uma figura que extrema posições de amor e ódio.

Sentindo-se ignorado e injustiçado pelos críticos, são recorrentes multímodos desabafos que o distanciam da crítica com quem mantém uma relação de desconfiança e, não raro, de desprezo. Assim afirma: A maior parte das críticas que me fazem os popularizados críticos não estão ao nível das minhas obras. (Idem, 1994: 105), e mais adiante: Que sofro, humanamente, por não ser compreendido, é um facto. Mas também é um facto o meu profundo sentimento de desprezo (porventura também ainda humano) pela superficialidade da maioria dos críticos (Idem, 1994: 136). O sofrimento a que alude é um sofrimento real por não ser compreendido, pela mediocridade de que se crê cercado, mas também por aquele misto de complexo de inferioridade / superioridade, visível na sua produção literária.

A revolta perante a crítica assume posturas dolorosas quando se trata do seu teatro. Régio foi, como atrás referi, antes de mais, um homem de teatro. A necessidade de interlocutor, a retórica do eu, o tutear sistemático, põem-no em cima de um palco onde exibe todas as suas antinomias. Tudo isto transparece ao longo das obras poética e ficcional afirmando-o claramente o próprio autor em carta a Adolfo Casais Monteiro: sei que nasci para fazer teatro, e que devo lutar pelo meu teatro, até com armas que, propriamente não sendo minhas, o teatro exige (Idem, 1994: 165); reafirma-o, posteriormente, numa outra carta a Robles Monteiro: o teatro continua no primeiro plano dos meus sonhos (Idem, 1994: 169). A sua obra dramática merece-lhe, se possível, maior acuidade, logo, se incompreendida, a insurreição é maior. Na senda de Wagner, concebe o teatro enquanto arte autónoma (Idem, 1994: 119) porque através dela se procura uma expressão integral lançando mão de vários recursos vindos de vários ramos de arte (Idem, 1994: 119). Assim, considerando embora que a literatura é o seu componente primordial nega o teatro enquanto género literário, porque prefere olhá-lo como uma conciliação de todas as artes em movimento:

A verdade é que o meu teatro até hoje realizado tenta conjugar elementos diversos como a poesia ou a literatura e a música, a mímica, a oratória ou declamação, o bailado rudimentar, o cenário, os efeitos de luz, a indumentária, etc.; embora, está claro, fique sendo ou continue sendo o poeta dramático o mestre da orquestra: o mantenedor da unidade da obra. (Idem, 1994: 119)

São multímodos os passos de Páginas do Diário Íntimo que demonstram o traço quase obsessivo com que Régio se refere à sua obra e às críticas de que é alvo.

As referências à poesia são confessamente escassas Dantes vinham-me os versos às catadupas. Agora, de longe em longe. (Idem, 1994: 361) não deixando, contudo, de referir quer problemas com as editoras,[3] quer com a incompreensão dos críticos: Continuam a louvar a minha poesia pelo seu aspeto dramático, violento, gesticulante, por vezes declamatório, (porventura esquecendo o que nela haja de mais rico e secreto) (Idem, 1994: 117).

Quanto à ficção, ombreia com o teatro Estou na fase do romance e do teatro (Idem, 1994: 117) chegando, em entrada datada de 5 de Outubro de 1952, a fazer o seguinte levantamento:

Sou autor de seis volumes de ficcão, não falando de quaisquer inéditos: Jogo da Cabra Cega, romance; O Príncipe com Orelhas de Burro, história para crianças grandes; Davam Grandes Passeios aos Domingos, novela; Uma Gota de Sangue e Raízes do Futuro, primeira e segunda partes do romance A Velha Casa ; Histórias de Mulheres, novelas e contos. [] Ora parece que todas estas obras são medíocres, ou não interessam o público contemporâneo (Idem, 1994: 117)

Ao longo do Diário, lamenta a apreensão do Jogo da Cabra Cega[4] mesmo considerando-o um livro cheio de defeitos técnicos (Idem, 1994: 48);[5] queixa-se da crítica feita por Gaspar Simões a Histórias de Mulheres; [6] exulta, cautamente, com a génese da Confissão dum Homem Religioso Terei coragem de escrever este livro como o sonhei? (Idem, 1994: 374). É, todavia, A Velha Casa que merece referências quase obsessivas, quer queixando-se da crítica, acusado que foi, por Guibour de Vasconcelos, de plagiar Les Thibault de Martin du Gard, obra que desconhece por completo (Idem, 1994) 101), quer mostrando a sua predileção por esta autoficção, segredada em carta a Adolfo Casais Monteiro, a propósito de Os Avisos do Destino :

Decerto, além do estilo do analista [] também n A Velha Casa o estilo do poeta, do narrador, do realista Mas como renunciar na minha obra capital, A Velha Casa !! Grande romance em 7 partes, ou sejam 7 volumes,[7] cada um dos quais pertence ao todo e forma um livro à parte!! como renunciar nela a qualquer das tendências fundamentais que são parte integrante da minha originalidade (Idem, 1994: 344)

Trata-se, de facto, de uma obra-prima, do chamado romance longo, na senda de Balzac, Tolstoi ou Eliot, uma espécie de testamento, como log-book de uma longa viagem de aprendizagem (Lisboa, 2010: 36), que configura, como escrevi noutro local,[8] um não menos longo processo de autognose, para o qual são convocados elementos e personagens que, pertencendo ao mundo real, entram, por direito próprio, no ficcional, sem qua sua identidade seja desvirtuada. Casa que nem o tempo envelhece, uma casa intemporal, porque albergadora de multímodas gerações, alheias a modas ou costumes da ribalta, mas profundamente conscientes de uma ampla missão / dimensão estética e humana indiciadora da coerência da obra regiana.

Interessantemente, não referências à sua obra plástica, ainda que atravesse o Diário a paixão pelas antiguidades (Régio, 1994: 67) e um interesse por todas as artes manifesto não na maiusculação sistemática da palavra Arte, na senda dos postulados da presença, como nas recorrentes tentativas de definição de Arte para quem esta é a intimidade simpática de tudo (Idem, 1994: 24).

Considerando-se embora um desenhista de domingo reconhece que poderia ser um artista plástico original se a isso se dedicasse (Idem, 2001: 36); mesmo não se dedicando, como afirma, quero crer que a sua obra plástica tem, para além de outras, a virtude da coerência com a sua obra literária como facilmente é verificável em muitos desenhos com que ilustrou alguns dos seus livros.[9]

Ainda que a escrita diarista, seja por Régio considerada um género secundário, pelas características remáticas descontinuidade discursiva e fragmentarismo , pelo registo de um dia-a-dia trivial, pelo próprio nível de língua usado e pela

dificuldade quase invencível que tenho em manter um diário é que, gostando muito de falar de mim, gostando demasiado, me não interessa, todavia, falar diretamente de mim senão através duma obra literária.

Mas um Diário não é uma obra literária; ou os Diários que o são deixam de ser Diários. (Idem, 1994: 385),

a verdade é que Páginas do Diário Íntimo longe de corresponder a uma fase de menos inspiração do autor, acompanha toda a sua criação literária ao longo de 43 anos, tornando-se num precioso apoio para a sua compreensão e para a descoberta do seu eu profundo; não lhe será, pois, alheio um certo egotismo, uns veios narcísicos e o desejo de autoconhecimento anteriormente anunciados:

Sim, foi por mim que gritei. Declamei,

Atirei frases em volta.

Cego de angústia e de revolta.

[]

Sofro, assim, pelo que sou,

[]

Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

[] (Régio, 1970: 107-108)

Apesar de tudo, súmula e síntese de toda a produção regiana, estas Páginas do Diário Íntimo configuram as preocupações latentes na obra do escritor e enunciam a intransigência, o rigor, a autenticidade, a coerência e a quase autopunição que sempre reclamou e que veiculou em toda a sua produção artística.

Quanto à componente humana, o próprio autor afirma que ele está cheio de insinceridades, ou, pelo menos, semi-sinceridades (Idem, 1994: 254) acrescentando: particularidades da minha natureza e recantos da minha biografia que prefiro fiquem desconhecidos de todos (Idem, 1994: 258). Ganha assim consistência a afirmação de Eugénio Lisboa que tomei como epígrafe acicatando-se o desejo de continuar a estudar as confissões de Régio.


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