Na cinqüentenária Luuanda: o doloroso retrato de dois jovens
Como se fora uma epígrafe, pergunto: é possível ainda falar de uma obra que nos
acompanha por tanto tempo e na qual sempre acabamos por descobrir algo que
ainda nos surpreende, por sua atualidade e pertinência?
Respondendo a mim mesma, eu diria que, em meu caso pessoal, gostaria de deixá-
la quieta, sem interferir em seu infinito jogo de sedução, embaçando-a com meu
próprio texto de escrevente. Assim, sem compromisso, seria possível mergulhar,
outra vez, no puro prazer do texto de que fala Roland Barthes (1975). Mesmo
sabendo disso, porém, tentarei, aqui e agora, retomá-la, pois essa ‘senhora’,
embora cinqüentenária, não perdeu seu viçoso brilho de juventude e continua a
nos seduzir, sem remissão, pelo que se torna uma cobra esperta, sempre a nos
olhar com aquele seu jogo de mostra-esconde, pelo qual nunca a conseguimos
capturar.
Para dar início, pois, a essas breves reflexões sobre tal obra, começo por
dizer que o não menos esperto autor de Luuanda sempre gostou de nos apresentar
retratos do povo que habitava e / ou habita sua amada cidade, daí, por seu
pacto fundante com ela, fazer-se José LuandinoVieira. Mais que produzir as
fotos, ele também sempre se esforçou por pendurá-las em nosso imaginário
leitor, dele fazendo uma galeria a que sempre voltamos com o mesmo
deslumbramento do primeiro dia. Repare-se que, ainda nos anos 50, Luandino já
desejava falar de Luanda, daí o poema que a retrata como sendo uma "–
QUITANDEIRA NEGRA A QUEM VESTIRAM PANOS AMERICANOS DE VÁRIAS CORES" (Vieira,
1958).
A abertura do texto, estiletada pelo uso da ‘caixa alta’, já meio que
desconcerta o leitor aficionado por poesia, sobretudo quando ele se preparou
para ouvir uma "Canção para Luanda", o que o faz perguntar-se: "Como assim? Uma
cidade negro-africana vestida de panos americanos?". Não resistindo, este
leitor imerge, já aflito, no texto, para tentar encontrar uma resposta
apaziguadora e, desse modo, fazer frente ao desafio da decifração.
No poema, aqui citado a partir do Boletim Mensagem, da Casa dos Estudantes do
Império (Vieira, 1958) é lançada uma pergunta, "– Luanda onde está?", pergunta
esta que esbarra no
Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
(Idem, 27)
O sujeito lírico, de partida, demonstra sua dificuldade em encontrar a
resposta, pois todos aqueles a quem a interrogação se dirige são trabalhadores
muito ocupados. Assim, ele, um quase flâneur, continua a indagar, chamando tais
trabalhadores por seus nomes e profissões, pelo que indica conhecê-los bem de
perto. Ficamos sabendo, a seguir, o motivo de sua aflição, ou seja, que ela
deriva do fato de não mais encontrar
As casas antigas
O barro vermelho
As nossas cantigas [...]
Meninos nas ruas [...]
(Idem, 28)
elementos afetivos e composicionais da paisagem física, cultural e humana da
cidade antiga. Ao final do poema, ele recebe a resposta das três mulheres,
Rosa, Maria e Zefa, que, com "A esperança nos olhos / A certeza nas mãos", os
panos a cobrirem seus corpos gastos e apontando para o coração lhe respondem:
"– Luanda está aqui!" (Idem, 29; negrito meu).
Já em Luuanda, escrita em 1963 e publicada em 1964, não mais se encontram a
"Mana Rosa peixeira", a "Mana Maria quitandeira" e/ou a prostituta "Zefa mulata
/ O corpo cubata / Os brincos de lata" (Vieira, 1958: 28), ou, ainda, o "Mano
dos jornais", mas um novo tipo de gente que tem de suportar a fome; a privação;
a guerra; as prisões; a espoliação; etc.. Fazem-se outros, pois, os retratos
pintados na obra e que se penduram na parede de nosso próprio imaginário
leitor.
Em especial e, para comprovação dessa mudança no modo de sentir e pensar
Luanda, por parte do seu arquiteto de palavras, escolho dois desses retratos,
ou seja, o de dois jovens habitantes dos musseques da cidade, jovens que são
vítimas de todo um processo histórico, político e social que os esmaga,
impedindo que os sonhos, tão importantes nessa época da vida, sejam postos de
pé. Trata-se de Zeca Santos e de Garrido Kam’tuta, respectivamente personagens
do primeiro e segundo contos, e que, apesar de criados há 50 anos atrás, nos
remetem a muitos outros rapazes que, até hoje, subsistem em desesperança nos
nossos países, considerados por muitos como pertencentes a um ‘terceiro mundo’,
portanto, como algo ‘fora do lugar’.
Os que assim nos nomeiam não lembram, ou não querem lembrar, que nossos países
são a resultante da mesma ação imperialista, que só poucos de nós acreditam ter
deixado de existir no novo mundo em que vivemos. O manto do neocolonialismo, há
tempos, ocupou o espaço do colonialismo clássico, como previsto por Amílcar
Cabral (1980), dentre outros, e continua a exercer a mesma força predadora.
É importante notar que os narradores dos dois contos – "Vavó Xíxi e seu neto
Zeca Santos" e "A estória do ladrão e do papagaio" –, máscaras sob as quais se
esconde o rosto do autor, apresentam esses jovens com características físicas e
sociais muito próximas. Ambos são desvalidos, sendo que o segundo o é
fisicamente, pois atingido pela poliomielite. Também se fazem sujeitos amantes
que não conseguem concretizar seus desejos amorosos, justamente por não terem o
que oferecer aos objetos de seu amor, Delfina e Inácia, mulheres muito
diferentes entre si. Desse modo, os dois são retratados como vítimas do
desemprego e da discriminação de uma sociedade ainda presa nas fortes teias
coloniais.
Não vou aqui recontar as histórias de vida de Zeca e Garrido, já tão nossas
conhecidas, mas tão somente tentar mostrar a ternura que o autor de Luuanda
demonstra sentir por esses dois quase-meninos, moradores de velhas cubatas e
disseminados pelos espaços habitados pela população desvalida da cidade,
outrora sede do poder colonial e que, depois de 1961, quer tornar-se apenas
angolana e sediar uma nova nação, daí a razão de sua luta.
Começo, portanto, ressaltando as semelhanças entre os dois personagens, como
nos mostram, por exemplo, as cenas em que ambos quase conseguem realizar
fisicamente seus desejos amorosos, momentos estes em que eles como que se
animalizam, ora um rastejando pelo chão, ora o outro a andar, como um símio,
com as mãos sobre a terra. Resgato fragmentos das duas cenas, lembrando que a
de Garrido é muito mais dramática, em todos os sentidos que a de Zeca, e chega
a beirar mesmo o trágico:
Zeca Santos ficou um tempo deitado de barriga a chupar um capim, sem
falar nada, e depois começou rastejar parecia era sardão [...].
(Vieira, 1964: 29)
Com as lágrimas quase a chover, [Garrido] baixou a cabeça, estendeu
os braços magros e pôs as largas mãos no chão. Nem precisou dar
balanço nem nada, o corpo ficou pendurado para baixo, uma perna no
ar, a outra fina, aleijada, enrolou logo no pescoço. (Idem, 61)
É interessante que Inácia se comova e reaja, com histeria e por raiva de si
própria, insultando Garrido, enquanto Delfina, mesmo agredindo o rosto do outro
rapaz e apesar de também insultá-lo, profere uma frase que acaba por revelar
seu carinho por ele, ao contrário da outra.
Do mesmo modo os jovens se aproximam pela "foto" de seus rostos. O de Zeca é
mostrado, em primeiro plano, como sendo uma face marcada pelos "riscos teimosos
as fomes já tinham posto na cara dele, de criança ainda" (Idem, 35). Já o
narrador do segundo conto, ecoando o primeiro e dizendo, ao contrário deste,
que conta o que lhe já tinha sido contado, vai ressaltar, ao focalizar o rosto
de Garrido, sua "pele lisa [...] cheia de riscos em todos os lados, a fome não
enchia as peles e a tristeza punha-lhe velhice, mesmo que era um mais novo."
(Idem, 56). A fome, assim iluminada, como navalha fina e afiada, escarifica
ambas as faces, envelhecendo-as precocemente.
As diferenças entre Zeca e Garrido, chamados de "monandengues" pelos dois
contadores da letra, são igualmente significativas. Basta que se veja, por
exemplo, a questão do choro e das lágrimas. Garrido é mostrado, naquela cena
com Inácia, como alguém que "quase chora", enquanto Zeca desfaz-se em pranto
desde sua primeira entrada na cubata, quando ele diz à avó não ser ladrão e,
depois, já mais calmo, dá-se conta de que a esperta mais-velha confunde, pela
fome, raízes de dália com "mandioca pequena" (Vieira, 1964: 16). Essas lágrimas
dolorosas retornam, por fim, na cena final em que o narrador, seu cúmplice na
dor, diz que ele "[...] nada mesmo que [...] podia fazer já, encostou a cabeça
grande no ombro baixo de vavó Xíxi Hengele e desatou chorar um choro de grandes
soluços parecia era monandengue [...]" (Idem, 35).
Outras duas diferenças se fazem, também, elementos fundamentais para demarcar a
fronteira da personalidade dos dois jovens. Trata-se da forma como seus corpos
se vestem, por assim dizer. Para Zeca, o que importa é a sua bonita e cara
camisa, embora seu sapato, que ninguém vê, esteja roto e o incomode
profundamente. Isto demonstra seu desejo de ser identificado pelo que, na
verdade, não é e, assim, fazer-se um jovem de sua época.
Enquanto isso, pouco sabemos sobre o modo como Garrido se veste, o que
demonstra que ele é construído como alguém que se volta mais para dentro de si
mesmo, vivendo sua luta diária contra seu próprio corpo que, pela deficiência
física, não tem como esconder. Faz-se, por isso, vítima do escárnio até de um
velho e sujo papagaio, cuja dona é Inácia, também ela sempre a chamá-lo, aos
gritos, de aleijado.
A segunda distinção é que Zeca acaba por aceitar sua derrota, daí concordar,
embora a contragosto e envergonhado, com o trabalho escravo que lhe é oferecido
pelo "feitor", negro como ele, a lembrar os brancos dos velhos tempos. Já
Garrido, mesmo que, pela atitude aviltante de Inácia, deixe escorrer
rapidamente pelo rosto o "cacimbo das lágrimas" (Vieira, 1964: 62), decide não
fazê-lo mais e enfrentar a vida e as humilhações de frente e sem medo. É o que
nos mostra a cena em que ele desafia a força de João Miguel, pedindo para que
este o espanque; sua decisão de roubar o papagaio, sempre a insultá-lo, para,
em seguida matá-lo, o que não faz, e, por fim, o rebelar-se contra o quase pai,
Dosreis, quando este o acusa injusta e mentirosamente de ter participado do
roubo dos patos, daí ser preso também.
Não é por acaso que, no retrato de Garrido, sobressaiam seus olhos azuis que,
de doces, se tornam metálicos, passando a amedrontar seus oponentes. Também
suas ações, por sua vez, sempre marcadas pelo amor respeitoso dedicado ao
outro, inclusive à Inácia, ganham força e deliberação. A meu ver, um novo
sujeito se levanta em Garrido Kam’tuta, ao contrário daquele que se entrega em
Zeca Santos e precisa do apoio da avó para sustentá-lo.
Talvez o autor, mascarado de narrador de segundo grau, queira que vejamos, no
quadro por ele pintado em "A estória do ladrão e do papagaio" – em que o
coletivo se faz maior que as relações individuais –, ser possível que um corpo
físico em desconcerto busque força para lutar, como se dava naquele momento,
com o da própria nação rebelada. Garrido Kam’tuta, assim, e já pelo convívio
que terá com Xico Futa, que o conhece até então apenas superficialmente, talvez
venha a ouvir a estória do cajueiro e de sua resistência e, um dia, se possa
fazer, como o outro, um sujeito lúcido, apaziguador, sereno e consciente de sua
força moral.
Desse modo, no futuro, e uma vez já vitoriosa a luta, talvez Garrido Kam’tuta
possa, ao contrário de Zeca Santos, rechaçar os "panos americanos" da camisa
que veste e dizer, como as três mulheres do poema vestidas, em diferença, com
seus "[...] panos pintados / garridos / caídos [...]: ‘– Luanda está aqui!’"
(Vieira, 1958: 29).