Antropologia em Portugal nos últimos 50 anos: introdução
Como Janus, deus romano dos inícios, das passagens e das transições, com uma
face voltada para o passado e outra virada para o futuro, podemos olhar para a
forma como se tem feito a investigação e o ensino da antropologia em Portugal.
Iniciadas há mais de um século, ambas têm sido desenvolvidas ao sabor dos
diversos contextos históricos, com enorme empenho por parte de inúmeros
pesquisadores nacionais e estrangeiros que escolheram este país para iniciar ou
dar continuidade aos seus estudos. Uns fizeram-no pontualmente, como uma fase
transitória das suas vidas. Outros devotaram e continuam a dedicar ainda à
pesquisa antropológica, a par da docência ou não, toda a sua vida profissional.
Os frutos dos seus trabalhos, no conjunto, formam um indiscutível contributo
para o corpo de conhecimentos empíricos, teóricos e metodológicos sobre as
diversas realidades abordadas, favorecendo o enriquecimento do saber sobre os
mais variados aspetos das diferentes culturas, tanto em Portugal como noutros
terrenos mais distantes.
Em abril de 2012 realizou-se o Congresso Evocativo do Cinquentenário da Criação
do Centro de Estudos de Antropologia Cultural (1962-2012), que pretendeu não
apenas celebrar a génese daquele centro, como se propôs, através do alinhamento
cronológico das sessões por décadas até ao presente, fazer um importante e
necessário balanço através da apresentação e debate sobre o trabalho que tem
sido desenvolvido na antropologia portuguesa, nos últimos 50 anos. Já naqueles
anos, a legislação era clara:
Tem-se procurado desenvolver e sistematizar uma atividade intensa e
útil no domínio da antropologia cultural, de modo a recuperar o
atraso em que nos encontramos nesta matéria. [Por esse motivo] Manda
o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro do Ultramar, o
seguinte: 1.º É criado na Junta de Investigações do Ultramar, para
funcionar junto do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, o
Centro de Estudos de Antropologia Cultural.[1]
Este Centro foi dirigido por António Jorge Dias que, com Ernesto Veiga de
Oliveira, Benjamim Pereira e Fernando Galhano, igualmente assegurava o
funcionamento do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular (CEEP). Este e o
Centro de Estudos de Antropologia Cultural (CEAC) foram o embrião do Museu de
Etnologia do Ultramar, inaugurado em 1965, e que promoveu ainda a criação do
primeiro curso universitário de antropologia do país, no final dessa década
(Leal 2006: 177). O CEAC surge como o primeiro da lista de inventário dos 52
organismos e instituições que se ocupavam do estudo dos problemas sociais em
Portugal (cf. Pereira 1965), dedicando-se à investigação no âmbito das recolhas
da Missão de Estudos de Minorias Étnicas do Ultramar Português da Junta de
Investigações do Ultramar (JIU), sendo também pioneiro, numa época que Jorge
Dias tinha designado como período antropológico-cultural e social (cf. Areia
1986).
A preocupação destes centros, da formação ministrada e do museu era sobretudo a
de dinamizar a investigação antropológica, quer em terras lusas, através dos
estudos etnográficos cá dentro, assim dando continuidade ao ideal de
construção da nação, quer simultaneamente noutras geografias, designadamente
nas províncias ultramarinas, com a face voltada para a construção do império
(cf. Stocking Jr. 1982). Quintino já havia notado como
em Portugal, a organização da agenda etnográfica é também tardia e
permite demonstrar de que modo as tradições da construção do império
e da construção da nação [ ] se articulam e tornam possível a
participação no centro, através da etnografia fora de casa, e na
periferia, através da etnografia das tradições populares em casa [ ]
(Quintino 2004: 40).
A equipa de Jorge Dias empenhava-se nas duas frentes, mesmo que as vontades das
tutelas nisto parecessem por vezes menos óbvias.
O conjunto de textos que a seguir se apresentam reflete bem esses tempos e os
que se seguiram. São uma mostra das dezenas de testemunhos na primeira pessoa,
de acordo com o período em que cada investigador desenvolveu o seu trabalho de
campo mais representativo para o contributo da antropologia portuguesa. A
pertinência e qualidade dos trabalhos apresentados no congresso levou a que os
participantes fossem convidados a redigir livremente sobre as suas
experiências, de forma que fosse possível documentar a expressão e registo dos
seus contributos e reflexões. Os autores apenas estavam balizados pela década
em que cada um desenvolveu pesquisa antropológica de modo mais intenso. Por
isso, o leitor irá notar no conjunto a diversidade de estilos, dimensão e
conteúdos, uns apresentando-se como artigos mais longos que, a partir de uma
experiência pessoal de ensino ou investigação, dão conta de um período ou
tendência da antropologia em Portugal (Xerardo Pereiro, Jorge Freitas Branco,
José Gabriel Pereira Bastos, Cristiana Bastos); e outros, sendo artigos mais
curtos, em jeito de depoimentos, são focados num tema de investigação (Manuela
Ivone Cunha, Maria de Fátima Amante) ou em interconexões de pesquisa, ensino,
tempo e lugar (Brian O'Neill, Miguel Vale de Almeida).
Ainda tendo trabalhado no CEAC com Jorge Dias, Carlos Ramos Oliveira oferece-
nos umas linhas dessa Memória do Centro de Estudos de Antropologia Cultural,
onde refere o entusiasmo e dedicação com que era desenvolvida a atividade deste
centro, o espírito de equipa e de entreajuda entre os seus colaboradores,
porque eram tão poucos, com tão parcos recursos e tanto por pesquisar. Susana
de Matos Viegas e João de Pina-Cabral dão-nos uma visão global de um período
conturbado e de renovação da disciplina, em Na encruzilhada portuguesa: a
antropologia contemporânea e a sua história. Com uma experiência de pertenças
multiculturais e sendo ele próprio um cocktailde identidades, Juan Brian
O'Neill regista Os anos 70 em 3D: reflexões pessoais. Recorrendo à metáfora
do corpo humano, descreve o seu percurso com um sentido crítico herdado das
influências que recebeu, desde a sua socialização primária, com os pais, aos
grandes mestres que o inspiraram, quer por leituras quer por ouvi-los em sala
de aula, até às próprias pesquisas feitas em diferentes latitudes. Também em
tom de nota pessoal, José Gabriel Pereira Bastos apresenta o seu percurso
científico híbrido, assente na psicologia/psicanálise tanto quanto na
antropologia ' uma interconexão que fala do percurso Da investigação por
objetivos a uma antropologia dos processos identitários: um ponto de vista
transdisciplinar e integrativo. Ainda referindo-se ao mesmo período, que
qualifica como sendo de luto intelectual, Jorge Freitas Branco busca os
Sentidos da antropologia em Portugal na década de 1970 e dá-nos conta de uma
alteração do paradigma focado na harmonia para um novo, centrado nas
desigualdades e conflitos, e das conturbadas vicissitudes da disciplina
naqueles anos igualmente conturbados, com uma experimentada visão por dentro
tão típica dos antropólogos. Sobre a pulverização dos anos 80, temos o
testemunho de Miguel Vale de Almeida, Com um pé dentro e outro fora: reflexões
pessoais sobre a geração dos eighties.Eram tempos de ressurgimento da
antropologia, de busca de novos rumos alternativos e de uma consolidação
equilibrada e isenta da disciplina. Questionando e desbravando o próprio país
como o banal da vida corrente, ao mesmo tempo iniciava-se o tecer das teias
da antropologia portuguesa com redes mais vastas, nomeadamente a europeia e a
lusófona. A almejada consolidação da antropologia é-nos explicada por Cristiana
Bastos. O seu contributo sobre A década de 1990: os anos da
internacionalização elucida-nos relativamente ao esforço que foi feito pelos
antropólogos portugueses da sua geração no sentido de fortalecer os caminhos já
traçados sobretudo no rumo continental, marcado pela fundação da European
Association of Social Anthropologists (EASA), e no transcontinental, repensando
criticamente e numa perspetiva pós-colonial os sentidos do império e da
lusofonia como contraponto de afirmação face à Europa e ao mundo e face ao
predomínio anglófono que se instalou nas academias. Reportando-se à mesma
altura, Manuela Ivone Cunha elabora uma análise das Linhas de redefinição de
um objeto: entre transformações no terreno e transformações na antropologia,
relativa à historicidade do etnógrafo e do etnografado, à qual acrescenta o
contexto teórico em que ambos se enquadram, e usando os espaços de reclusão
feminina como locusde investigação. Finalmente, a entrada no novo milénio
coloca os antropólogos em busca de novos rumos, procurando responder aos
desafios e tendências do século XXI e abrindo a investigação não só às áreas
temáticas centrais da antropologia, mas renovando-as com os debates
contemporâneos marcados pelo eixo tradição-modernidade em contextos culturais e
sociais diversos. Assim, Maria de Fátima Amante fala Das fronteiras como
espaço de construção e contestação identitária às questões da segurança e
Xerardo Pereiro Da antropologia à antropologia aplicada ou a afirmação da
disciplina no Norte de Portugal, o primeiro dedicado a um olhar crítico sobre
os condicionalismos em que as fronteiras nacionais são mantidas ou suprimidas
pelo Estado, através de uma experiência de terreno cunhada pela proximidade, na
raia luso-espanhola, e o segundo ilustrando os modos como se expande e afirma a
antropologia aplicada e implicada no Norte do país.
Foram deste modo compiladas todas as contribuições e alinhadas pelas diferentes
gerações de antropólogos, permitindo criar um dossiê emblemático da
antropologia portuguesa nos últimos 50 anos, cuja importância justificou que
fosse proposta a sua publicação à revista Etnográfica e que se espera venha a
contribuir, de algum modo, para o conhecimento da história da antropologia em
Portugal e permita uma reflexão centrada no futuro. Numa altura em que o país
atravessa crises profundas e se dá uma espécie de destruição criativa [ ],
esperando que, das cinzas, nasça algo de novo, como afirmou Manuel Sobrinho
Simões, parece ser oportuna tal reflexão, já que Na ciência, não nasce, diz o
mesmo investigador, nem nada se produz sem um esforço concertado.[2]