Caracterização do estilo alimentar de crianças com perturbações alimentares
As perturbações alimentares são definidas tendo por base aspectos intrínsecos
do processo alimentar como: falta de apetite, recusa de alimentos,
selectividade, vómitos, cólicas, dificuldade em engolir, ruminação, recusa de
sólidos. O conceito que começou por incluir o atraso de crescimento (failure
to thrive), este mais complexo e de consequências mais graves para o
desenvolvimento da criança pois uma perda de peso substancial, passou a
restringir-se aos aspectos específicos já descritos e, aparentemente, de
expressão apenas comportamental (Lindberg, Bohlin, & Hagekull, 1991). A
prevalência desta perturbação rondará cerca de 3 a 4 por cento das crianças
internadas de 0 a 12 meses, enquanto na população infantil, entre os 0 e os 7
anos de idade, será de 20 a 30% (Lindberg et al., 1991). Uma grande parte
destas perturbações são resolvidas rapidamente mas algumas necessitam de
intervenção mais demorada e podem acarretar consequências mais complexas.
As causas desta perturbação encontram-se em factores de ordem comportamental
mas também de ordem constitucional ou neurológica (Burklow, Phelps, Schultz,
MacConnel, & Rudolph, 1998).
O processo de diversificação alimentar que implica lidar com alimentos de
texturas, paladares, consistência muito diferente, exigindo adaptação ao gosto
e diferentes esforços de mastigação poderão favorecer a ocorrência da
perturbação. Também o desenvolvimento psicossocial da criança que implica
crescente autonomia e desejo de decidir o quê e quando comer é um aspecto a
considerar (Deheger, Akrout, Bellisle, Rossignol, & Rolland-Cachera, 1996;
Linscheid, Budd, & Rasnake, 2003).
Ao longo do primeiro ano de vida as interacções mãe ' criança focalizam-se no
processo alimentar (da criança). Muitas vezes a auto estima da mãe implica
perceberse eficaz no processo alimentar da criança, de acordo com critérios
centrados nas suas próprias necessidades e não nas reais necessidades do filho.
De facto a alimentação de um filho é fundamental na vida familiar em termos de
percepção da saúde, relacionamento mãe-filho, relacionamento conjugal e
familiar, etc.
Na nossa experiência com crianças com esta perturbação, temos verificado que em
muitos casos os pais, geralmente a mãe, apresentam ou apresentaram na infância
perturbações do comportamento alimentar ainda que ligeiras. Esta constatação
vai na linha dos investigadores que identificaram nas mães comportamentos,
atitudes e crenças que encontraram associadas às perturbações alimentares dos
filhos (Blisset, Meyer, Farrow, Bryan-Waught, & Nicholls, 2005; Cooper,
Whelan, Woolgar, Morrel, & Murray, 2004).
Alguns autores chamam à atenção para algumas variáveis associadas às
perturbações alimentares que consideram preditivas, sendo elas: ansiedade da
mãe na gravidez, saúde da mãe, percepção de problemas relacionados com a
amamentação, problemas alimentares dos pais na infância, privação ambiental,
vinculação insegura, negligência, disfunção familiar, deficiência mental e
doença psiquiátrica da mãe (Linscheid et al., 2003).
Em todos os casos, a ansiedade e precipitação da mãe, como resposta a problemas
alimentares situados na transição dos alimentos líquidos e papas para alimentos
sólidos e perante a diversificação alimentar, parecem-nos determinantes na
fixação de um padrão de rejeição acidental ou recusa dos novos alimentos por
parte da criança.
Estas perturbações são muitas vezes ultrapassadas sem consequências de maior.
Em alguns casos podem sobrevir, no entanto, efeitos graves. Contam-se entre
estes: atraso de crescimento estatura-ponderal, malnutrição, atraso de
desenvolvimento e, mais tarde, perturbações do comportamento alimentar (Kerwin
& Berkowitz, 1996).
Esta investigação teve como objectivos: averiguar a associação entre os
factores maternos (escolaridade, idade e tipo físico) e o tipo físico dos
filhos; caracterizar o comportamento alimentar do grupo de crianças com
perturbações alimentares, comparando-o com crianças com diferente evolução
ponderal.
MÉTODO
Participantes
A nossa amostra era composta por 124 crianças e respectivas mães; 58 eram do
sexo masculino e 66 do feminino. Os sujeitos constituem uma amostra de
conveniência com idades entre os 4 e os 13 anos, classificadas segundo o seu
estatuto de peso e apresentação, ou não, de perturbação alimentar, e
respectivas mães. As crianças foram distribuídas por quatro grupos, tendo em
conta o Índice de Massa Corporal (IMC) referenciado às tabelas recomendadas no
nosso país, em função da idade e sexo (Kuczmarski, Ogden, Guo et al., 2002).
Estes grupos são equivalentes quanto às características demográficas e sociais.
Material
Utilizou-se o seguinte material: Questionário do Comportamento Alimentar da
Criança (CEBQ), que é composto por 35 itens que avaliam, numa escala de Likert,
o comportamento de crianças e jovens em contexto alimentar. Inclui oito
dimensões relacionadas com o apetite que são: Prazer na comida (EF)
1
, Resposta à comida (FR), e Sobre-Ingestão emocional (EOE) (perante a acção de
factores emocionais o sujeito tende a comer mais do que o habitual) e Desejo de
bebida (DD), que avaliam a atracão pela comida; Resposta à saciedade (SR),
Selectividade alimentar (FF), Sub-ingestão emocional (EUE) (perante os factores
emocionais o sujeito perde o apetite e come menos do que o habitual) e Ingestão
lenta (SE), que avaliam o evitamento da comida. O instrumento foi desenvolvido
para estudar o estilo alimentar das crianças e jovens no contexto da obesidade
(Wardle, Guthrie, Sanderson, & Rapoport, 2001); discrimina o comportamento
alimentar de crianças com diferentes estatutos de peso (Viana, Sinde, &
Saxton, 2008).
A justificação para a utilização deste questionário em crianças com
perturbações alimentares fundamenta-se, por um lado, nos seus pressupostos
teóricos em que algumas das subescalas se referem a comportamentos observáveis
em crianças com perturbações alimentares, por exemplo Selectividade e Ingestão
lenta (Wardle et al., 2001). Fundamenta-se, por outro lado, no próprio conceito
de estilo alimentar(e.g., Viana & Sinde, 2003) que inclui a restrição
alimentar, considerada como um contínuo, em que num dos extremos se classifica
o comportamento alimentar normal e no outro o comportamento alimentar
restritivo (Polivy & Herman, 1987).
Procedimentos
Crianças e mães foram pesadas e medidas de modo a ser calculado o IMC pela
fórmula de Quetelet ' IMC = kg/m² (Garrow & Webster, 1985).
As mães responderam às questões demográficas, sobre aspectos socioeconómicos e
ao CEBQ (Wardle et al., 2001) já validado em Portugal (Viana & Sinde, 2005;
2008).
Os quatro grupos em que se distribuíram as crianças foram: I-Perturbações
alimentares; II-Normo-ponderais (percentil de IMC > 5 e < 85); III-Excesso de
peso (percentil de IMC > 85 e < 95) e IV-Obesos (percentil de IMC > 95).
Uma vez que os valores absolutos do IMC das crianças de diferentes grupos
etários e dos dois sexos não são equivalentes, não podendo, por isso, ser
considerados como variável, foram transformados em Z score (Cole & Pan,
2002).
Os métodos estatísticos incluíram a Análise de Variância univariada e a
Regressão Linear.
RESULTADOS
No quadro I observam-se os resultados da distribuição das crianças pelas quatro
categorias em que se classificaram, em função do sexo, da média de idade e de
escolaridade e o Z score do IMC. É de notar que os valores da escolaridade
dizem respeito a 94 crianças que frequentavam a escola, pois na nossa amostra
23 sujeitos tinham menos que 6 anos de idade frequentando a pré-escola.
Quadro 1
Variáveis demográficas: Média e (Desvio padrão)
No que diz respeito às mães, o cálculo do IMC permitiu categorizá-las nos
quatro grupos que traduzem o seu estatuto de ponderal, ou Tipo físico, conforme
a classificação da OMS (WHO, 1997). Com IMC inferior a 18 (baixo peso)
classificaramse 9 mães; IMC entre 18 e 25 (normo-ponderais) 52 mães; com IMC
entre 26 e 29 (excesso de peso) eram 30; 26 mães eram obesas, tinham IMC
superior a 30.
Ainda no quadro 1 apresentam-se os valores da idade, IMC e escolaridade das
mães (em anos) em função das quatro categorias dos respectivos filhos.
Testadas as diferenças entre os valores destas variáveis em função das quatro
categorias (Análise Univariada) apenas os valores da distribuição do Z score do
IMC foram estatisticamente significativos.
No quadro 2 podem observar-se os resultados da análise de regressão (método
passo a passo), tomando como variável dependente o Z score do IMC da criança.
Foram incluídas no modelo inicial, mas excluídas por os resultados não serem
significativos, as seguintes variáveis: Idade e Escolaridade da mãe, IMC da
mãe, Sub ingestão emocional, Selectividade, Resposta à comida, Prazer na
comida, Desejo de bebida.
Quadro 2
Análise de regressão linear -Variável dependente: Z Score IMC da criança
As variáveis no quadro são as que o modelo preservou. Tipo físico da mãe, Sobre
ingestão emocional, Resposta à saciedade e Ingestão lenta foram os factores
que, de que acordo com a análise, contribuíram para o Z score do IMC da
criança.
No quadro 3 apresentam-se os resultados (média e desvio padrão) obtidos pelos
sujeitos, categorizados segundo estatuto de IMC, nas subescalas do CEBQ. Estes
resultados traduzem o estilo alimentar de cada um dos grupos.
Quadro_3
Comportamento alimentar: M e DP em cada subescala por grupos
Na figura 1 observam-se os resultados das subescalas que implicam atracção
pela comida. Pode verificar-se nesta figura como os valores das diversas
subescalas aumentam conforme aumenta o estatuto de IMC, com excepção dos
valores de DD (Desejo de bebida) cujas diferenças não são estatisticamente
significativas.
Figura_1
Comportamento alimentar: atracção pela comida (médias nas subescalas do CEBQ
por grupos)
Na figura 2 observa-se a distribuição dos resultados das subescalas que
traduzem evitamento da comida em função do grupo de IMC. Constata-se que os
valores destas subescalas diminuem conforme aumenta o estatuto de IMC, com
excepção dos valores de EUE (Sub-ingestão emocional) que não apresentam
diferenças significativas.
Figura_2
Comportamento alimentar: evitamento da comida (médias nas subescalas do CEBQ
por grupos)
DISCUSSÃO
No que diz respeito à importância do tipo físico das mães enquanto determinante
do estatuto de peso (tipo físico) dos filhos, os resultados da análise de
regressão demonstram que existe uma associação positiva entre estes factores.
Assim, quanto mais elevado o estatuto de peso das mães mais elevado o dos
filhos, e vice-versa. Esta associação era esperada e sugere o efeito de
hereditariedade, pais obesos têm grande probabilidade de terem filhos obesos;
sugere também alguma influência comportamental entre mães e filhos (Johnson
& Birch, 1994; Whitaker, Deeks, Baughcum, & Specker, 2000). As mães são
reconhecidamente quem, na família, mais participa na socialização dos filhos no
domínio da alimentação dado o seu papel na selecção de produtos, confecção das
refeições, modelagem de atitudes e comportamentos perante os alimentos, etc.
(e.g., Fiese, Foley, & Spagnola, 2006; Viana et al., 2001).
Outras variáveis da mãe, como a idade ou a escolaridade não tiveram, neste
trabalho, impacto no IMC dos filhos. Em diversas investigações usando amostras
aleatórias, a obesidade e o excesso de peso, apesar de ocorrerem em todos os
estratos sociais, encontram-se associados aos níveis socioeconómicos e
culturais mais baixos (Rolland-Cachera & Bellisle, 1986), tal não aconteceu
porém na nossa amostra provavelmente pela falta de representatividade da mesma
Entre os factores do estilo alimentar, a Sobre ingestão emocional (EOE) teve
uma influência determinante positiva no estatuto de peso das crianças enquanto
Resposta à saciedade e Ingestão lenta mostraram ter uma influência negativa na
mesma variável dependente. Maior Sobre ingestão emocional mais IMC, maior
Resposta à saciedade e mais Ingestão lenta menor IMC e, neste caso, provável
presença de Perturbação alimentar.
Embora outras variáveis do estilo alimentar se distribuam de modo
significativamente discriminado ao longo dos grupos de IMC, quando consideradas
no conjunto do modelo de regressão, não tiveram a importância esperada.
No que diz respeito à caracterização do comportamento alimentar, os
participantes categorizados nos grupos já descritos, reagiram aos factores do
CEBQ de modo linear como se observou no Quadro3 e Figuras_1 e 2.
Tão importante como observar estes resultados é analisar o que cada um destes
factores avalia de facto.
Começando por Resposta à saciedade (SR), este aspecto reflecte a sensibilidade
às pistas internas de saciedade e, por isso, maior eficácia no controlo da
ingestão calórica e implica protecção face ao consumo alimentar em excesso.
Esta sensibilidade e controlo da ingestão parece ser em parte hereditária e
reflectir-se na ingestão energética, na quantidade ingerida a cada refeição e
na frequência de refeições (de Castro, 1993). Este aspecto parece estar
relacionado com a idade, apresentando as crianças de menor idade maior eficácia
na regulação da ingestão de modo a compensar uma refeição anterior (Carnell
& Wardle, 2006). Também Ingestão lenta (SE) e Selectividade alimentar (FF),
reflectindo falta de prazer e desinteresse pelos alimentos, estão associadas ao
baixo peso em crianças (Douglas & Bryon, 1996; Viana & Sinde, 2008).
Como vimos os valores de SR, SE e FF são superiores no grupo de Perturbações
alimentares e vão diminuindo conforme aumenta o estatuto de peso, sendo mais
baixos no grupo dos obesos.
O Prazer na comida (EF) e Resposta à comida (FR) reflectem um maior interesse
pelos alimentos e uma maior resposta às pistas externas com eles relacionadas
(externalidade). Estes comportamentos tornam-se mais pronunciados conforme as
crianças se mostram menos neofóbicas e mais autónomas face à alimentação
(Wardle et al. 2001). Verifica-se uma grande variabilidade entre indivíduos e
os que apresentam resultados mais elevados poderão estar em maior risco de
obesidade. Jansen et al. (2003) verificaram que em situação experimental,
crianças com excesso de peso e obesas não ajustavam a ingestão depois de uma
refeição anterior (contra regulação) ou depois de passado algum tempo a cheirar
alimentos com grande palatabilidade. Pelo contrário, as crianças normo-
ponderais respondiam a esta última situação com redução do apetite. Uma vez
considerados os nossos resultados, pode afirmar-se que este mecanismo de
ajustamento da ingestão energética (e.g., Wardle & Beales, 1987) fé menos
eficaz nos grupos com maior estatuto ponderal (e.g., Viana, 2002).
Quanto aos factores de ingestão emocional EOE (Sobre-ingestão emocional) e EUE
(Sub-ingestão emocional) estes reflectem reactividade emocional à comida, com
consequências opostas em termos de peso. Atitudes restritivas dos pais e
pressão para ingerir alimentos saudáveis parecem estar associados à sobre-
ingestão emocional, traduzindo-se em desinibição e externalidade que perturbam
o mecanismo de controlo da saciedade em meninas (Birch, Fisher, & Davison,
2003; Carper, Fisher, & Birch, 2000). Também o tipo de reactividade ao
stress parece interagir com a restrição, resultando em sobre ou sub-ingestão.
Roemmich, Wright, e Epstein (2002) verificaram que crianças muito reactivas e
muito restritivas demonstravam maior ingestão energética devido à desinibição,
induzida por stress, comparativamente a crianças menos reactividade e ao grupo
de controlo. No caso dos sujeitos deste estudo, o factor EUE (Sub-ingestão
emocional) não apresentou diferenças que permitissem caracterizar a pertença a
qualquer um dos grupos. Pelo contrário, os valores de EOE (Sobre-ingestão
emocional) mostraram-se associados linearmente à pertença dos sujeitos nos
quatro grupos.
Por fim, há que assinalar alguns obstáculos que limitam o impacto destes
resultados. Trata-se da questão dos números da amostra do Grupo I (Perturbações
alimentares). Este grupo é constituído por poucos sujeitos comparativamente aos
restantes. Esta diferença deve-se à nossa dificuldade em encontrar sujeitos com
este tipo de perturbação no contexto hospitalar e no período em que decorreu o
estudo. Ainda, o facto de se tratar de uma amostra não aleatória impossibilita
a generalização dos resultados.
Sobre-ingestão emocional e o Tipo físico da mãe encontram-se associados ao IMC
das crianças. Os factores Resposta à saciedade e Ingestão lenta encontram-se
negativamente associados ao estatuto ponderal dos sujeitos.
Os resultados nas subescalas do CEBQ reflectem o comportamento alimentar e
permitem discriminar o grupo de IMC a que pertencem as crianças.
Os valores nas subescalas relacionadas com a atracção pela comida são
significativamente mais baixos no grupo com perturbações alimentares e vão
aumentando conforme aumenta o IMC.
Pelo contrário, os valores nas subescalas relacionadas com o evitamento da
comida são significativamente mais elevados no grupo com perturbações
alimentares e vão diminuindo conforme aumenta o IMC.
Estas variações sugerem uma distribuição linear destes factores associada aos
padrões de ingestão em cujos extremos se situam os sujeitos com perturbações
alimentares e os obesos, respectivamente.
O CEBQ, originalmente criado para investigar aspectos relacionados com a
obesidade, mostra-se adequado para a investigação do comportamento alimentar
noutros grupos como, neste caso, com perturbações alimentares.