Alterações morfológicas e hemodinâmica tardias no território esplênico de
pacientes com esquitomosse mansônica hepatoesplênica pós-anastomose
esplenorrenal distal . (Estudo com ultra-som Doppler)
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A anastomose esplenorrenal distal (AERD) (operação de Warren) (W) foi proposta
para o tratamento da hipertensão portal por cirrose hepática com a finalidade
de reduzir a pressão venosa nas varizes esofágicas. Esta operação, que deriva o
segmento distal da veia esplênica à veia renal, cria uma via de drenagem
portossistêmica setorial, estabelecendo comunicação entre o sistema
cardiotuberositário e a veia cava, sem interferir no fluxo mesentérico-portal.
Deste modo, as alterações circulatórias produzidas naquele território vascular
teriam a finalidade de evitar o sangramento digestivo alto que é fator
complicador na evolução clínica da doença(21). Esta técnica terapêutica também
foi aplicada em pacientes com hipertensão portal por esquistossomose mansônica
hepatoesplênica (EHE) e que tiveram sangramento pelas varizes esofágicas(17).
Entretanto, nesta doença há esplenomegalia mais acentuada do que na cirrose
hepática(4), apesar de ambas terem em comum a hipertensão portal e suas
complicações(3).
Na gênese desta visceromegalia concorrem dois fatores cuja influência
individual não está bem esclarecida: o hemodinâmico (aporte arterial e
congestão venosa) e a hiperplasia da polpa esplênica.
Na AERD, o aporte arterial é mantido e a facilitação da drenagem do sangue
venoso do baço reduz a congestão venosa esplênica. Deste modo, as alterações
residuais observáveis nesta víscera após a realização deste tratamento
cirúrgico(8, 13, 20), seriam dependentes da polpa esplênica e têm importância
clínica. O escasso comprometimento da função hepática na EHE e a sobrevida
prolongada dos pacientes, torna a hipertensão portal desta doença um modelo
adequado para avaliar as alterações tardias (morfológicas e hemodinâmicas) que
a AERD provoca no setor esplênico.
O ultra-som Doppler (US-Doppler), método não-invasivo de diagnóstico por
imagem, é utilizado habitualmente para verificar se a AERD está pérvia(1, 14).
Entretanto, ele também permite a medida de vários parâmetros: volume dos órgãos
sólidos intra-abdominais, diâmetro dos vasos, direção do fluxo sangüíneo e
velocidade no interior dos mesmos. Além destas medidas, a análise dos índices
que resultam da relação entre os valores obtidos, permite que sejam avaliadas
as condições morfológicas e hemodinâmicas do setor estudado. Os índices
morfológicos foram validados através de várias associações de diâmetros
("cortes") dos órgãos sólidos, medidos pelo US-Doppler que, ao serem
comparadas com o tamanho real do órgão, permitiram a escolha dos que melhor
exprimissem esta relação(7, 9, 10, 11, 12, 15, 18, 19) .
O objetivo deste trabalho foi avaliar as alterações tardias que a ERD provoca
no território esplênico. Para esta finalidade foram quantificados os aspectos
morfológicos e hemodinâmicos desta região em pacientes com EHE com o auxílio da
US-Doppler.
CASUÍSTICA E MÉTODO
Estudaram-se os resultados do exame US-Doppler de 52 pacientes consecutivos
provenientes do Ambulatório do Grupo de Cirurgia do Fígado e Hipertensão Portal
da Divisão de Clínica Cirúrgica II do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, SP. Todos apresentavam EHE e história de
sangramento digestivo alto por varizes esofágicas.
Os pacientes estavam distribuídos em dois grupos: 40 sem operação (NO) e 12
operados de AERD (W).
Os pacientes NO estavam em fase de exames pré-operatórios e os operados
(período superior a 6 meses) estavam sob acompanhamento no ambulatório e
realizando exames rotineiros de controle periódico.
Critério de inclusão dos pacientes operados: AERD pérvia.
Método
Através do US-Doppler foram medidos os seguintes parâmetros: três diâmetros do
baço ' longitudinal (LGT), transversal (TRV) e ântero-posterior (AP)(7) ' ; o
diâmetro da artéria e da veia esplênica; a velocidade de pico sistólico (VPS)
na artéria esplênica e a velocidade média de fluxo (Tmax) na veia esplênica. A
partir destes resultados, calcularam-se vários índices: o volumétrico (LGT x
TRV x AP x 0,523)(7) e o biométrico do baço (LGT x TRV)(10); o de pulsatilidade
(IP) e o de resistividade (IR) na artéria esplênica.
Os resultados dos parâmetros e índices foram anotados na forma de média e
desvio padrão e comparados entre os dois grupos.
Exame ultra-sonográfico
Todos os pacientes foram examinados em condições de jejum de 12 horas e
ingestão, prévia ao exame, de 10 mg de simeticona (Luftalâ) para reduzir a
interferência dos gases intestinais.
Os exames foram realizados em equipamento de ultra-sonografia de tempo real em
modo-B com transdutor convexo de 3,5 MHz (GE - Logic 500 MD, EUA) e Doppler
pulsado na freqüência de 3,5 e 2,5 MHz.
Os parâmetros morfométricos do baço, da artéria e veia esplênica foram medidos
no modo-B. Em seguida, o feixe Doppler foi direcionado para o vaso estudado com
correção do ângulo ao feixe Doppler e posicionada a amostra de volume (cerca de
2/3 do calibre) na luz do mesmo. A Tmaxda veia esplênica, assim como a VPS e os
índices IP e IR da artéria esplênica foram calculados automaticamente pelo
"software" específico do equipamento (operador-independente) através
do traçado espectral.
Tratamento estatístico
A comparação dos resultados de parâmetros e índices dos dois grupos de
pacientes foi feita mediante análise de variância (P <0.05: significativo).
RESULTADOS
Todos os pacientes com AERD (W) apresentavam a anastomose pérvia e os
resultados do exame US-Doppler, quando comparados aos dos pacientes NO
mostraram que:
a) houve redução dos três diâmetros (LGT, TRV e AP) do baço, do índice
volumétrico e biométrico esplênico;
b) não houve alteração do diâmetro, da VPS, dos índices de resistividade (IR) e
de pulsatilidade (IP) na artéria esplênica; do diâmetro na veia esplênica;
c) houve aumento da Tmax na veia esplênica.
Todos os parâmetros e índices avaliados no território esplênico dos doentes
estão representados nas Tabelas_1 e 2.
COMENTÁRIOS
Volume esplênico
Comparando os resultados da medida US-Doppler do baço dos doentes com EHE aos
dos pacientes normais, verificou-se que nos operados houve redução
estatisticamente significativa em todos os diâmetros medidos e,
conseqüentemente, dos índices volumétrico e biométrico (Tabela_1).
A grande variedade de tamanho do baço, observada nos doentes com EHE NO e
representada pelo desvio padrão no cálculo da média (Tabela_1), dificulta a
comparação dos dois grupos de doentes por dois fatos: pacientes não-pareados e
reduzido número dos pacientes operados. Entretanto, a análise estatística dos
resultados, mostrando significância, permite inferir a possibilidade de
comparar os dois grupos.
A avaliação clínica da esplenomegalia pela palpação e percussão, após a
realização de AERD em pacientes com EHE, mostrou resultados conflitantes:
ausência de variação(20) e redução volumétrica não especificada(8, 13) .
Entretanto, quando a medida foi feita na fase venosa da angiografia esplênica,
foi notada redução de aproximadamente 40% do volume, o que é comparável aos
resultados que se obteve pelo exame US-Doppler dos doentes desta série.
As eventuais disparidades dos resultados da medida do baço por vários métodos
podem ser devidas à forma irregular do órgão. O exame clínico (percussão e
palpação) é operador dependente e pouco confiável, pois o órgão se situa no
hipocôndrio esquerdo e é protegido pelo gradeado costal, tornando-se
perceptível somente quando seu diâmetro longitudinal aumenta(10, 15, 16). Os
métodos de imagem invasivos: radiografia(16), angiografia(2), tomografia
computadorizada e radioisotopia(22), ainda que apresentem bom índice de
correlação com o tamanho físico do órgão(6), expõem os pacientes à radiação e
ao uso dos contrastes. A US-Doppler, apesar de se valer de índices(7, 10), pode
ser utilizada para avaliar e comparar volumes esplênicos e tem a vantagem de
não ser invasiva.
Diferentemente do constatado no presente estudo, não foi observada diferença
estatisticamente significativa do único diâmetro (LGT) medido pelo exame com
US-Doppler(5) em pacientes cirróticos operados de AERD e NO. Este diâmetro, bem
como os demais e também os índices adotados nesta casuística, apresentaram
diminuição apreciável nos doentes desta série (Tabela_1).
A diminuição mais acentuada do índice volumétrico (46,64%) do que do biométrico
(33,35%) pode ser atribuída à diferença do modo de calcular seus valores.
Entretanto, ambos os índices indicam que houve queda acentuada do tamanho do
órgão após a realização da operação.
Interpreta-se este fato como sendo o resultado do efeito hemodinâmico da AERD
que, facilitando o escoamento do sangue do baço, eliminou o fator congestão
venosa e reduziu o tamanho do órgão.
A mensuração do tamanho do baço, após ter sido eliminada a congestão venosa no
território esplênico pela AERD, tornou possível a avaliação da repercussão do
componente hemodinâmico venoso sobre a esplenomegalia de longa duração na EHE.
Entretanto a interpretação das discrepâncias fica dificultada pelo número
reduzido de estudos realizados e pela falta de homogeneização dos parâmetros e
índices estudados.
Velocidade de pico sistólico na artéria esplênica (VPS)
Este parâmetro, nunca antes avaliado no setor esplênico de pacientes com EHE ou
cirrose hepática, representa o regime circulatório arterial do baço.
Observou-se VPS menor nos pacientes operados, mas que não foi estatisticamente
significativa (Tabela_2). O pequeno número de pacientes examinados (n = 12) na
presente casuística e a falta de significância estatística da diferença
numérica entre ambos os grupos, torna difícil a análise deste resultado.
Entretanto, se esta tendência à diminuição for comprovada, indicaria que o
tratamento cirúrgico, ainda que facilitando o escoamento venoso, paradoxalmente
reduziria o ritmo circulatório no órgão.
O aumento do número de estudos deste parâmetro US-Doppler em pacientes com EHE
e operados de AERD, assim como sua avaliação em outras doenças que tenham
resultado em hipertensão portal, talvez torne possível estabelecer seu
significado fisiopatológico.
Índices de impedância na artéria esplênica
O IR e IP exprimem as condições circulatórias do leito vascular
intraparenquimatoso do baço. Estando relacionados com a complacência das
paredes vasculares arteriais e com a resistência orgânica ao fluxo, indicam a
dificuldade à passagem do sangue pelo leito capilar.
Não se encontrou diferença estatisticamente significativa nos valores destes
índices quando se compararam os dois grupos de doentes (Tabela_2). Na EHE, a
redução dos parâmetros e índices morfométricos do baço nos pacientes operados
de AERD (Tabela_1), pressupõe o adensamento tecidual no órgão, pela remoção da
congestão venosa esplênica, com conseqüente aumento da resistência capilar e
dos índices de impedância. Entretanto, a falta de mudança nos valores dos
índices de impedância arterial, sugere que na EHE a retirada da dificuldade de
drenagem venosa não intervém nas condições hemodinâmicas da circulação
arteriovenosa esplênica.
Na cirrose hepática foram observados valores significativamente reduzidos
destes índices, nos pacientes em que havia alguma forma de derivação
portossistêmica que permitisse a descongestão esplênica (anastomose portocava,
esplenorrenal distal e derivação portossistêmica transjugular (TIPPS))(5).
Nestes doentes, não foi constatada a redução das dimensões do órgão, devendo-
se, no entanto, levar em conta o fato de que naquela casuística foi mensurado
um único parâmetro morfométrico do baço (LGT). Esta situação leva a concluir
que a facilidade de drenagem do fluxo venoso esplênico na cirrose hepática
propicia a redução da resistência capilar à circulação transesplênica.
A discrepância de resultados entre os pacientes com cirrose hepática e EHE, em
que pese haver somente um estudo(5), sugere que haja diferenças de resposta
biológica esplênica a estas doenças.
Velocidade média de fluxo na veia esplênica (Tmax)
O sangue da veia esplênica tem várias origens, sendo o baço a mais importante e
em condições normais é drenado para a veia porta. Entretanto, a dificuldade de
drenagem transhepática do sangue do território digestivo, na hipertensão
portal, promove a congestão esplênica e as conexões anastomóticas naturais
entre os sistemas cardiotuberositário com os vasos gástricos breves,
gastroomental da esquerda e mesentérico (veia mesentérica inferior), adquirem
importância hemodinâmica e clínica.
O aumento significativo da Tmax na veia esplênica, observada nos pacientes
operados, provavelmente resultou da redução da resistência à vazão e
conseqüente maior facilidade de drenagem venosa. Esta situação torna possível
que a AERD promova tanto a redução da congestão esplênica, quanto da pressão no
interior das varizes esofágicas, reduzindo o perigo de sangramento nesta
região.
CONCLUSÃO
Cotejando os resultados morfométricos e hemodinâmicos encontrados, observou-se
que na EHE a AERD promove a redução do volume esplênico, sem alterar as
condições hemodinâmicas arteriais do baço. Entretanto, os poucos estudos
realizados a este respeito e a falta de sistematização na medida dos
parâmetros, dificultam a real interpretação destes resultados, abrindo-se
assim, perspectivas para novos estudos da fisiologia e fisiopatologia da
circulação esplênica.