Facilidades de acesso reveladas pelos usuários do Sistema Único de Saúde
INTRODUÇÃO
A história da saúde no Brasil sempre foi mediada por interesses políticos e
econômicos, e sofreu muitas alterações até a criação do sistema de saúde atual.
De acordo com cada época vivida, surgiam novas necessidades e interesses e com
isso as mudanças foram acontecendo gradativamente até a consolidação deste, que
é um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, o Sistema Único de Saúde
(SUS).
O SUS foi instituído com base nos princípios trazidos pela Reforma Sanitária,
com destaque para o princípio da universalidade. Por meio dele, foram
incorporados como cidadãos, com direitos a serem garantidos pelo Estado, 60
milhões de brasileiros, até então submetidos a uma atenção estatal de medicina
simplificada ou entidades filantrópicas(1).
A partir do movimento da Reforma Sanitária e da implantação do novo sistema de
saúde previa-se um modelo assistencial que garantisse a assistência integral à
saúde e a unificação das ações curativas e preventivas, bem como um
redirecionamento das práticas de enfermagem(2-3). De acordo com a legislação
brasileira, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação,
educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, acessos aos serviços
de saúde, dentre outras, cabendo ao Estado a garantia das condições necessárias
para o alcance da mesma(4-5).
Neste contexto, o art. 196 da Constituição de 1988 (CF/88) considera que a
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação(6). Essa mesma Constituição colocou as bases do que hoje
conhecemos como SUS, que foi posteriormente regulamentado pelas Leis n°s 8.080/
90 (Lei Orgânica da Saúde) e 8.142/90 (que dispõe sobre a participação da
comunidade).
A Lei n° 8.080/90, que regulamenta as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, no Capítulo II, art. 7°, refere-se aos princípios e
diretrizes do SUS. Esse documento afirma que as ações, os serviços públicos de
saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS são
desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição
Federal, obedecendo aos seguintes princípios: universalidade de acesso aos
serviços de saúde em todos os níveis de assistência; integralidade de
assistência; igualdade de assistência; participação da comunidade;
descentralização político-administrativa; regionalização; hierarquização e
resolutividade(5-6). De forma complementar, em dezembro de 1990, foi instituída
a lei 8142/90 com o objetivo de incentivar e abarcar a participação da
comunidade no âmbito do SUS e estabelecer os conselhos.
A partir do princípio da universalidade, a saúde passou a ser considerada
direito de todos e dever do Estado e, assim, os indivíduos adquiriram o direito
de ter acesso às ações e serviços de saúde como, por exemplo, consultas,
exames, tratamentos e internações nas instituições de saúde, sejam elas
públicas ou privadas conveniadas ao sistema. No entanto, a televisão apresenta
constantemente uma imagem de caos na saúde através de mortes na porta de
hospitais, pessoas que ficam sem diagnóstico rápido e adequado por demora no
atendimento ou por falta de exames e outras não têm acesso a medicações, dentre
outras imagens veiculadas pela mídia. Ela divulga todos os dias um sistema
falido que se encontra em condições precárias e sem capacidade de atender às
demandas da população.
Em função do exposto, sentimos a necessidade de ampliar o nosso conhecimento
sobre as questões relacionadas ao acesso da população à saúde e traçamos o
seguinte objetivo para o estudo: analisar a percepção dos usuários sobre as
facilidades de acesso às ações e aos serviços do SUS. Consideramos que este
estudo poderá contribuir para uma melhor compreensão dos mecanismos implicados
no acesso as ações e serviços do SUS, considerando a perspectiva dos usuários.
MÉTODO
Trata-se de um estudo qualitativo que se caracteriza pela preocupação em
compreender a maneira de agir e de pensar das pessoas e dos grupos e busca
responder às exigências colocadas ao estudo do fenômeno(7). Os dados foram
coletados em um hospital federal geral de grande porte, localizado na cidade do
Rio de Janeiro. Para a escolha deste campo foram levadas em consideração
algumas particularidades de funcionamento, que são: ter sido constituído há
mais de 20 anos, e ter construído uma história dentro do sistema de saúde do
município; ser de fácil acesso à população, o que possibilita a procura de
usuários de diversas localizações do município; e ter história de prestação de
assistência anterior à implantação do SUS.
Os sujeitos estudados foram 24 usuários em atendimento no campo escolhido, a
partir dos seguintes critérios de inclusão: faixa etária a partir dos 40 anos;
usuários do hospital e sujeitos que tenham tido experiência como usuários do
serviço de saúde antes de 1990. A coleta de dados ocorreu no período de
novembro de 2005 a março de 2006, sendo utilizada a técnica de entrevista semi-
estruturada, orientada por roteiro temático. Na análise dos dados foi utilizada
a técnica de análise temática de conteúdo, conforme Bardin(8), e o seu
desenvolvimento foi apoiado nos procedimentos e instrumentos propostos por
Oliveira(9).
Em observância aos aspectos éticos de pesquisa que envolve seres humanos, foram
respeitados os preceitos da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde,
através da aprovação do projeto pelo Comitê de Ética da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, expresso no protocolo nº 006/2005, da aplicação do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido e da consideração dos preceitos éticos da
autonomia, beneficência, não-maleficência, justiça e equidade.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O SUS ao alcance de todos
Nas 24 entrevistas analisadas foram identificadas 1.178 unidades de registro
(URs) distribuídas em 78 temas, que deram origem a 6 categorias, quais sejam:
(I) Determinação das dificuldades para o alcance do atendimento no SUS; (II) O
atendimento no SUS: efetivação e facilidades; (III) Medicações e exames no
contexto do SUS: expectativas, dificuldades e conquistas dos usuários; (IV)
Fragilidades no processo de atendimento na concretização do principio de
universalidade; (V) Universalização da assistência; (VI) A presença do INAMPS
no discurso dos usuários. Neste estudo, aprofundaremos a discussão presente na
segunda categoria, formada por 271 URs (23% do material total analisado), sendo
a segunda mais representativa de toda a análise.
A categoria caracteriza-se por compor descrições sobre a efetividade do acesso
no âmbito do SUS, ou seja, expressa a percepção do usuário sobre o alcance dos
diversos tipos de atendimento e, ainda, apresenta os elementos que contribuem
de forma positiva para esta efetivação. Os sujeitos pontuam fatores que estão
diretamente relacionados ao alcance do atendimento no sistema público de saúde,
alguns dos quais objetivos e internos ao mesmo, como o processo de referência
entre os serviços, por exemplo, e outros subjetivos, como a religiosidade, a fé
e a sorte. Nesta categoria são, ainda, apresentados os diferentes tipos de
conquistas de atendimentos pelos usuários, que englobam desde serviços de
consultas ambulatoriais aos serviços de alta complexidade.
O sistema de saúde apresentou avanços importantes na conquista de direitos
essenciais na área de saúde, como a disponibilidade de serviços de alta
complexidade (hemodiálise e transplantes de órgãos, por exemplo) e a ampliação
da porta de entrada do sistema, que corresponde ao aumento da rede básica
especialmente através da implantação das equipes da Estratégia da Saúde da
Família e de ambulatórios especializados nos hospitais do SUS.
Pode-se identificar a percepção de que o acesso se concretiza no alcance
objetivo das diversas ações de atendimento desejadas. Observa-se, ainda, uma
atitude positiva frente ao acesso ao sistema, uma vez que se mostram
satisfeitos com o atendimento recebido, sendo este o tema mais frequente dentro
desta categoria (51 URs):
Todos [atendimentos] que estou tentando fazer, atualmente, consegui.
(E22)
Todas as vezes que eu precisei fui muito feliz, tive um bom
atendimento. (E12)
Se não fosse ele, eu não teria condições de fazer esse transplante
que eu fiz. (E9)
Encontrei [atendimento]. A hemodiálise foi um. (E 14)
O acesso aos serviços e ações de saúde proporcionado pelo SUS à população,
contribui de forma significativa para a sua satisfação, uma vez que
determinados serviços, especialmente os de alta complexidade, que alguns
indivíduos encontrariam dificuldade para ter acesso, são disponibilizados para
todos. Nesse sentido, os entrevistados verbalizam o alcance dos serviços de
alta complexidade, como hemodiálises e transplantes, e atribuem ao SUS o
oferecimento de tratamentos dispendiosos que antes não eram acessíveis ao
conjunto da população.
A universalidade do atendimento configura-se, em vários estudos, como sendo o
princípio que mais caracteriza o Sistema Único de Saúde em sua proposta
essencial e em sua concretização no âmbito das instituições de saúde(10).
Assim, todos os cidadãos brasileiros devem ter as suas necessidades atendidas
para que se possa assegurar a efetivação do acesso dentro do sistema público de
saúde(1,11). Nessa direção, pode-se afirmar que, a partir da universalidade,
todos os indivíduos passaram a ter direito, livre de preconceitos ou
privilégios, ao acesso a todas as instituições de saúde em qualquer nível de
atenção indispensável ao atendimento da necessidade sentida e tecnicamente
identificada(10).
A universalização da assistência caracteriza-se como uma das maiores conquistas
da reforma sanitária. A partir da promulgação da lei Orgânica da Saúde, que
apresenta noções de direitos e de deveres, a saúde passou a ser um direito
fundamental de todo ser humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício e assegurar que toda a população,
independente de ter vínculo empregatício formal ou não, tenha acesso às ações e
serviços de saúde(5).
O nível de atenção denominado de alta complexidade refere-se à reunião de
procedimentos que envolvem alta tecnologia e alto custo e tem como objetivo
proporcionar ao cidadão acesso às ações e aos serviços para a manutenção da
vida e a redução de agravos à saúde. Esses procedimentos têm um impacto
financeiro alto para o sistema, como é o caso da diálise, da quimioterapia, dos
transplantes, da radioterapia e da hemoterapia(12).
Na análise dos diversos serviços oferecidos pelo SUS, destacam-se os de média e
alta complexidades como, por exemplo, as consultas ambulatoriais, as
internações e os transplantes, e dentre esses, encontram-se acessíveis à
população diversas especialidades como endocrinologia, cardiologia, ortopedia,
urologia, oftalmologia e ginecologia:
É cardiologia, endocrinologia, clínica médica. Aqui eu consigo muito
mais. (E23)
O SUS lá de São João de Meriti fazia atendimento de ortopedia e era
do SUS. Foi quando eu passei a conhecer o SUS. (E19)
Meu filho foi para o hospital [...], e o médico operou ele lá. (E6)
Já me internei aqui, já internei na Ilha, já internei no Jardim
América, tudo isso. (E8)
Ressalta-se que a prática nos serviços de média e alta complexidades demanda
profissionais especializados e uso de aporte tecnológico para o diagnóstico e
terapia específica(12). Os sujeitos, em suas falas, afirmam que conseguem
atendimento nestes níveis de complexidade, além dos daqueles menos complexos.
Esse fato permite considerar que, em que pesem as dificuldades enfrentadas pelo
sistema de saúde, ele tem gerado uma cobertura populacional antes inexistente
no Brasil. Essa cobertura ganha peso maior ainda quando são consideradas as
desigualdades sociais e regionais presentes em toda a extensão de um país como
o nosso.
A partir do exposto, apresenta-se o princípio da equidade, que busca soluções
para as desigualdades existentes na área da saúde, oriundas do contexto social,
da gestão do sistema, da distribuição da rede assistencial, dentre outras(10).
Destaca-se, ainda, que esse princípio apresenta forte relação com aquele da
universalidade, uma vez que sua concretização se manifesta através da promoção
do acesso igualitário da população as ações e serviços de saúde das
instituições públicas e conveniadas, segundo suas necessidades, independente da
condição social ou do vínculo previdenciário(10).
Os sujeitos apontam, com igual importância, o acesso a cirurgias, consultas,
tratamentos e internações dentro do SUS. Destaca-se que houve redução do número
de internações no setor privado com um aumento significativo desse procedimento
nas instituições públicas, que quase dobrou sua participação nesse cenário(13).
Dessa forma, pode-se observar a presença mais intensa do setor público em
relação ao número de internações na última década, atuando de forma
substitutiva ao setor privado(13).
O alcance de determinados serviços dentro do SUS, que são avaliados como de
extrema importância pela população, parece estar presente na vida dos sujeitos.
A ampliação do acesso às internações e às cirurgias confere ao sistema uma
imagem positiva frente aos usuários. Observa-se, portanto, uma seletiva de
julgamento por parte da população, em função da sua avaliação quanto ao grau de
necessidade do serviço ou ação buscada.
Outras questões também foram mencionadas com relação à facilidade de acesso
como, por exemplo, a presença da informatização facilitando o agendamento de
consultas e a emergência como porta de entrada nos serviços hospitalares.
A informatização que está priorizando o SUS, você marca consulta pelo
telefone. (E 18)
Começa na emergência, normalmente a gente começa na emergência, eu
comecei na emergência. Agora não, eu estou fazendo tratamento. (E 12)
A informatização é um recurso importante para integração dos serviços, gerando
agilidade no encaminhamento de usuários aos recursos disponíveis no sistema e
no controle dos gastos(13). As unidades de emergência se tornaram, ao menos nas
metrópoles, a grande porta de entrada do sistema de saúde, atendendo a toda e
qualquer queixa grave, leve ou moderada, urgente ou não. A consequência mais
imediata é a superlotação deste tipo de setor que, muitas vezes, não suporta a
demanda e acaba por oferecer uma atenção precária. Assim, as emergências
hospitalares são locais de primeiro atendimento para muitos usuários quando
necessitam de cuidados. Com isso, uma das dificuldades encontradas ainda no SUS
é o reconhecimento e a utilização da rede básica como porta de entrada do
sistema, pois grande parte da população faz uso da emergência para problemas
que poderiam ser solucionados nos postos de saúde.
Eu cheguei na unidade, na emergência, e fiquei em uma maca sem
colchão, sem lençol, sem travesseiro, sem nada. (E17)
A minha filha esteve uma vez à noite na emergência por causa de
problema de ouvido. (E2)
Diversos são os fatores que estão envolvidos com as dificuldades de
atendimento, como por exemplo, as grandes filas em hospitais públicos para
atendimento de emergência e a longa espera para cirurgias eletivas, bem como a
dificuldade de conseguir acesso a determinados serviços.
Com a implantação do SUS e a municipalização dos serviços procura-se realizar
mudanças no modelo assistencial através da ampliação da rede básica. Essas
mudanças almejam oferecer mais alternativas à população, antes de procurar o
atendimento emergencial. Nesse sentido, destaca-se que emergência deveria ser
destinada a qualquer caso que implicasse em risco imediato de vida ou de lesões
irreparáveis para o paciente, mas o fato é que nem sempre os pacientes que
procuram essa unidade portam morbidades dessa natureza(13).
Para enfrentar esta situação, foi implantando o Programa de Saúde da Família
(PSF), em 1994, cujos principais objetivos são a melhoria dos indicadores de
saúde, diminuição do número de exames complementares, de encaminhamentos de
emergência e de internações hospitalares(14). Complementar a isso, o Ministério
da Saúde elaborou o QualiSUS como uma proposta para melhora no atendimento de
emergência, que preza o atendimento do usuário conforme o seu grau de risco,
uma atenção mais efetiva e humanizada pelos profissionais de saúde e o menor
tempo de permanência hospitalar(12).
Diante da situação exposta sobre o atendimento na emergência, destaca-se que a
inclusão de grande parcela da população no sistema veio acompanhada de alguns
racionamentos, especialmente relacionados à queda de qualidade dos serviços
públicos(1). Dessa forma, apesar de existir e ser garantido por lei o acesso
universal, as ações oferecidas apresentam-se, na prática dos serviços, como
limitadas e, muitas vezes, de baixa resolubilidade.
No entanto, e apesar das dificuldades enfrentadas pelos indivíduos, o
atendimento também é identificado como sendo rápido e eficiente, como pode ser
percebido nas falas a seguir:
Sei que me atenderam rápido [no SUS]. (E19)
[o atendimento no SUS] foi rápido, foi eficiente. (E3)
Esta percepção de rapidez e eficiência pode estar relacionada com o tipo de
serviço procurado. Observa-se que dentro do Sistema existem diferentes tipos de
serviços, o que conseqüentemente acarreta oportunidades de acesso
diferenciadas. Serviços que possuem uma demanda maior e uma estrutura nem
sempre adequada, como as grandes emergências, tendem a possuir maiores
dificuldades, mesmo que se apresentem como resolutivos, enquanto outros
serviços que possuem um fluxo de atendimento mais previsível, como a imunização
ou os ambulatórios, tendem a ser mais organizados.
Os elementos facilitadores para o alcance do atendimento no SUS
Dentre os elementos que foram citados pelos sujeitos como facilitadores do
atendimento está o sistema de referência entre serviços. Assim, deduz-se que a
consolidação desse mecanismo seria um avanço importante dentro do SUS, no que
diz respeito ao acesso dos usuários às ações e aos serviços de saúde e ao seu
trânsito nos diferentes níveis do sistema. Torna-se necessário ressaltar a
inexistência de uma alusão ao sistema de contra-referência por parte dos
usuários, o que sugere a sua não efetividade.
Isto indica que os clientes são incorporados aos serviços novos para os quais
foram referenciados, mas não são retroagidos aos de origem, ou quando o são,
esse retorno não é formalizado. Destaca-se que o sistema de referência e de
contra-referência exige a construção de parcerias entre as instituições
públicas e destas com as conveniadas. A parceria pode ser entendida como um
trabalho articulado e participativo, mantendo-se uma relação horizontal entre
as instituições e estabelecendo uma rede progressiva de cuidados(15).
Porque você não consegue marcar uma consulta se não tem
encaminhamento. (E5)
Existe [encaminhamento], porque eu já peguei encaminhamento daqui
para outro lugar e fui bem atendida. (E15)
No caso, lá onde moro, novamente, a doutora faz um pedido e a gente
vai. Eles carimbam e mandam fazer. A gente faz até particular. Eles
pagam, no caso, para a gente fazer. (E7)
O sistema de referência e contra-referência é reconhecido como um dos processos
mais importantes para a viabilização do SUS, uma vez que é a partir da sua
estruturação que o acesso regulado de pacientes aos diversos níveis de atenção
torna-se possível(16). Por outro lado, sem o funcionamento adequado desse
processo não há garantia de continuidade da assistência, constituindo-se em uma
dificuldade complementar para o alcance de determinados princípios e
diretrizes, como universalidade, integralidade, eqüidade, regionalização e
hierarquização.
Alguns usuários fazem menção à função de complementaridade do setor privado no
SUS, ou seja, eles reconhecem a utilização de serviços particulares pelos
usuários do SUS, diante da impossibilidade de oferecer um determinado serviço
para a população. Com relação a isso, diz a CF/88, art. 199, que as
instituições privadas podem ter participação de caráter complementar no SUS,
segundo as diretrizes deste Sistema, mediante contrato de direito público, com
preferência para entidades filantrópicas e sem fins lucrativos(6). Diante da
insuficiência de cobertura assistencial à população de uma determinada área
programática, o mesmo pode recorrer aos serviços oferecidos pela iniciativa
privada(5), que devem atuar como se fossem públicas, respeitando seus
princípios e diretrizes.
Os princípios da hierarquização e da regionalização caracteri-zam-se pela
distribuição de ações e serviços de saúde em todas as regiões, em diferentes
níveis de complexidade atendendo assim às necessidades de toda a população. As
necessidades que não são passíveis de resolução nos níveis primários de
assistência devem ser referenciadas para os serviços de maior complexidade. Os
serviços devem ser organizados em níveis crescentes de complexidades a uma
determinada área geográfica, planejada a partir de critérios epidemiológicos e
com conhecimento da clientela a ser atendida(17). A hierarquização deve
garantir formas de acesso e serviços que componham toda a complexidade
requerida para o caso e proceder a divisão dos níveis de atenção.
O atendimento próximo à residência foi outro fator considerado como facilitador
do acesso para o usuário do serviço. Essa facilidade pode estar relacionada com
o fato de que quanto mais próximo de sua moradia for disponibilizado o
atendimento, menor é o deslocamento a ser realizado, menores são os gastos com
transportes e menor é a demanda reprimida, pois se forem oferecidos serviços
adequados em cada área programática, mais fácil será o acesso da população aos
mesmos. A Norma Operacional Atenção à Saúde (NOAS)/SUS 2001 prevê investimentos
para possibilitar o acesso de todo cidadão a todas as ações e serviços
necessários para a resolução de seus problemas de saúde, o mais próximo
possível de sua residência. Essa norma ampliou as responsabilidades dos
municípios na atenção básica, definiu o processo de regionalização da
assistência e criou mecanismos para o fortalecimento da capacidade de gestão do
Sistema Único de Saúde(18).
Eu moro em Inhaúma e o PAM [de Inhaúma], para mim, fica mais perto.
(E2)
Um dos princípios organizativos do SUS é a regionalização e observa-se que suas
ações se direcionam para proporcionar à população o acesso às ações e aos
serviços necessários à solução de problemas de saúde, em qualquer nível de
complexidade, o mais próximo possível da residência(10). Destaca-se que a
regionalização atua como o princípio que norteia e põe em prática o movimento
de descentralização, que possui ênfase na municipalização das ações(10).
A descentralização surge como uma marca dentro do SUS, uma vez que a base do
sistema de saúde passou a ser municipal, entretanto, a descentralização não
corresponde somente à municipalização. No processo de municipalização o
município passa a ser o condutor responsável por sua política de saúde, por
meio da descentralização das ações, do planejamento, dos recursos financeiros e
principalmente do poder político(19). Assim, a ampliação do acesso às ações e
serviços de saúde para população sob a gerência dos governos municipais, com
destaque para as ações básicas de saúde, foi o ganho mais significativo desse
processo(20).
O SUS é um sistema ainda em construção e, por isso, vem evoluindo com o passar
dos anos. Um dos fatores que contribuiu para esse crescimento é a Política
Nacional de Humanização implementada pelo Ministério da Saúde e suas diretrizes
possibilitam, aos usuários, maior facilidade de acesso aos serviços e às ações
preventivas(21). Com isso, as ações voltadas para a atenção básica têm recebido
grande incentivo do Ministério da Saúde para funcionar como um eixo
estruturante do sistema. As unidades de atendimento básico, em especial as de
saúde da família, destinam-se a funcionar como porta de entrada do sistema e
suas atuações estão voltadas aos cuidados primários de saúde, oferecendo ações
de prevenção, promoção e assistência(13).
Outra situação relevante que contribui para o avanço do SUS está assegurada
pela Lei n° 8.142/90, que é a participação popular na gestão sanitária, em
especial nos Conselhos de Saúde, onde entidades e movimentos da sociedade civil
têm direito a se fazerem representar e, assim, conseguirem expor suas sugestões
e necessidades(22). Diante disso, ressalta-se que a facilidade do atendimento
também está relacionada à questão temporal, sendo a atual organização
sanitária, administrativa e política do SUS um dos fatores que contribue para
que este se concretize, como pode ser percebido nas seguintes falas:
[Atendimento] está mais fácil agora. (E4)
Hoje é mais fácil [conseguir atendimento]. (E11)
Entendendo o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência
Social) como um sistema excludente para uma parcela da população, é cabível que
exista esta referência à questão temporal relacionada com a facilidade de
acesso, pois a parcela da população que não contribuía com a previdência social
encontrava barreiras para conseguir acesso aos serviços. Durante várias
décadas, para se ter acesso à saúde era necessário possuir contrato formal de
trabalho e o restante da população, que não o possuía, recorria aos poucos
serviços estaduais e municipais existentes ou às Santas Casas de Misericórdia,
destinadas ao tratamento de "indigentes"(23).
Mas, a partir do princípio da universalidade, todos os cidadãos brasileiros,
trabalhadores ou não, passaram a ter acesso aos serviços e ações de saúde,
garantido como direito a ser assegurado pelo Estado, onde todos devem ser
atendidos de acordo com suas necessidades e sem nenhum tipo de custo
complementar pelo atendimento. Complementar a isso, destaca-se que este
princípio abrange uma das principais características do sistema atual de saúde,
uma vez que o diferencia dos anteriores por sua característica inclusiva(10).
Outro elemento caracterizado pelos usuários como facilitador do acesso é a fé,
pois esta se traduz como sendo a confiança que algum fato normalmente ainda não
concretizado o seja, causada pela convicção que se possui e é depositada em
algo ou alguém. A fé pode ser direcionada tanto a pessoas quanto a um objeto
inanimado, uma ideologia, um pensamento filosófico, um sistema qualquer ou um
conjunto de regras. É possível observar que os entrevistados crêem que o fato
de serem atendidos possui uma relação direta com Deus ou com a sorte:
Deus ajuda a gente e a gente consegue um bom atendimento. (E 13)
Eu tive um problema há um ano atrás, cheguei enfartado, cheguei mal e
graças a Deus encontrei uma equipe espetacular. (E12)
Dessa vez agora eu dei sorte, eu vim e consegui. (E4)
Mas não sei se todo mundo teve a mesma sorte que eu. (E22)
A sorte é uma palavra derivada do latim que significa destino, acaso ou risco
(24). Como podemos observar nas citações, sorte é usada quase como um sinônimo
de destino. No imaginário da população, sorte está intimamente relacionada à
predisposição, à fatalidade ou que algo ocorreu devido a alguma força maior.
A fé e a sorte estão relacionadas com o sentimento de esperança, que é uma
crença emocional que tem como objetivo a busca por resultados positivos. Ela
demanda certa persistência e a crença de que algo é possível, mesmo quando há
indicações do contrário(25). É possível identificar nas falas dos usuários que
estes possuem sentimentos de esperança com relação ao alcance do atendimento,
pois muitas vezes o mesmo não é efetuado ou, então, o é sem a resolutividade
desejada. Entretanto, ainda assim, o cidadão acredita que o serviço oferecido é
capaz de atender as suas necessidades. Dessa forma, a esperança torna-se a
principal aliada da população, no sentido de manter-se persistente em busca do
atendimento.
A validação do alcance do atendimento como uma questão de fé e sorte sugere
falta de efetividade do Sistema. Assim, eles atribuem o alcance do atendimento
ou até mesmo a qualificação deste a Deus e à sorte e não ao direito que lhes é
garantido por lei, ou a organização dos serviços e à competência profissional.
CONCLUSÕES
Diante dos dados apresentados é possível observar que os usuários se reportam
significativamente aos princípios do SUS, principalmente ao princípio de
universalidade, que se faz presente em seus discursos de forma transversal aos
demais princípios como, por exemplo, a hierarquização e a regionalização.
Foi possível verificar a existência de uma atitude positiva diante do sistema,
a partir das menções às facilidades encontradas dentro do mesmo, como o acesso
a diversos tipos de serviços, sejam eles consultas, exames, medicações,
internações, cirurgias, ou serviços de alta complexidade. O fato de os sujeitos
reconhecerem o acesso a diversos tipos de ações e serviços reforça, mais uma
vez, a idéia de que o SUS apresenta-se como universal, permitindo o atendimento
de necessidades de saúde de uma parcela da população que antes não tinha
qualquer acesso a serviços.. Frente a isto, surge uma satisfação com o
atendimento encontrado, o que demonstra certo otimismo associado ao Sistema.
O acesso a serviços de alta complexidade foi destacado pelos usuários como uma
grande conquista e percebe-se a satisfação dos mesmos ao se referirem ao
alcance desses serviços, bem como à assistência complementar como, por exemplo,
o acesso a medicações, exames e consultas ambulatoriais para acompanhamento.
Um fator que merece destaque é a alusão ao sistema de referência que é
reconhecido pelos usuários como uma forma de facilitação do atendimento e do
fluxo dentro do sistema, o encaminhamento do usuário de uma unidade básica para
uma rede hospitalar é referido facilitador do acesso consultas, a internações,
a cirurgias, ou até mesmo a exames mais complexos. Complementar a este fato
chama atenção a não identificação do sistema de contra-referência, ou seja,
existe a referência do usuário para diferentes níveis de complexidade,
entretanto, o retorno não ocorre, acarretando uma interrupção no fluxo de
atendimento. Destaca-se que esta situação demonstra uma fragilidade e, por que
não, uma deficiência à concretização do princípio de hierarquização da
assistência.
Fazem menção, ainda, à emergência como porta de entrada do Sistema facilitando
o acesso, o que mostra a falha existente na política que prioriza a atuação da
atenção básica como acolhedora da demanda. Esta situação se relaciona com uma
cultura na qual as unidades básicas de saúde são vistas como locais de promoção
da saúde e de prevenção de doenças, e não como instituições capazes de ser
resolutivas e de assegurar o atendimento de maior complexidade, quando este for
necessário. Por outro lado, indica também a incapacidade da rede básica em
identificar as necessidades de dada comunidade e atendê-las, o que proporciona
uma superlotação do setor de urgência que, muitas vezes, destina o atendimento
a problemas que poderiam ser resolvidas em outros níveis de complexidade.
Complementando a idéia anterior, percebe-se que ainda existem dificuldades com
relação ao reconhecimento da rede básica como "porta de entrada" do SUS, ainda
que nos últimos anos inúmeros esforços tenham sido empenhados na tentativa de
ampliar a rede básica e, conseqüentemente, o acesso da população a ela.
Ainda que de forma discreta, alguns usuários estabelecem uma comparação do SUS
com o sistema de saúde anterior, o que demonstra a presença do mesmo na memória
dos sujeitos. Assim, destaca-se que se referem à maior facilidade de
atendimento no sistema atual, fato este que pode estar relacionado com o
princípio da universalidade, uma vez que, no INAMPS, só tinha acesso à saúde o
cidadão que contribuía com a Previdência Social, o que o tornava, de certa
forma, um sistema excludente.
Os princípios da universalidade, da regionalização e da hierarquização aparecem
nos discursos dos usuários através da menção ao sistema de referência e ao
atendimento próximo da residência como elementos facilitadores do acesso.
Assim, destaca-se que a atual organização do SUS, bem como seus princípios e
diretrizes são reconhecidos, pela maioria dos usuários, como grande conquista
para a população.
Diante do exposto, torna-se evidente que a maioria dos usuários reconhece o
princípio da universalidade e seu alcance, mas que, para a efetivação completa
desse princípio ainda são necessárias muitas reflexões, discussões e ações. A
implantação do SUS representa o resultado de um longo processo de lutas sociais
que se desenvolveu no Brasil, com o fortalecimento da assistência à saúde como
política de atendimento universal e igualitária, que visa a diminuir as
desigualdades sociais existentes, sobretudo quanto à universalização do acesso.