Dilemas de pais e filhos no processo sucessório de empresas familiares
1. INTRODUÇÃO
O estudo sobre a questão sucessória em empresas familiares é fundamental para o
correto entendimento sobre a natureza dessas organizações. A empresa familiar
difere de outros tipos de organização (entre muitas outras razões que serão
abordadas a seguir neste estudo) principalmente pelo fato de haver em si, de
forma intrínseca, a expectativa de perpetuidade, nutrida não somente no
ambiente empresarial, mas também no seio familiar. Negócios de cunho familiar
tendem a buscar sua sobrevivência ao longo do tempo de forma mais aguerrida do
que os próprios resultados financeiros ou tangíveis de curto prazo,
principalmente porque carregam, dentro de si, o que se denomina sonho do
fundador e, em decorrência, de seus parentes próximos, numa interessante e
complexa mistura, que envolve relações familiares, sociedade patrimonial e,
muitas vezes, trabalho em conjunto.
Nesse sentido, é evidente que o trato da questão sucessória passa a ser
determinante para o êxito, no longo prazo, desse tipo de empreendimento, uma
vez que somente com o sucesso do processo de passagem do bastão, a acontecer
mais cedo ou mais tarde, dependendo do momento de vida dos envolvidos, é que se
pode ter a expectativa de que a empresa tenha longa duração, visto que somente
esta poderá perpetuar-se ao longo do tempo, mas não seus proprietários ou
gestores. Ainda nesse sentido, a questão sucessória que envolve a transferência
de poder diretamente entre pais e filhos, principalmente aqueles que estejam em
atuação simultânea dentro da empresa, envolve fatores e ambiguidades de parte a
parte que tendem a tornar esta transição mais complexa e principalmente mais
emocional.
Decorrente do apontado, é possível observar que a empresa familiar se constitui
como um cenário propenso à vivência de dilemas, em especial no que se refere ao
processo sucessório. Salienta-se que por dilema se entende a vivência de uma
situação complexa ou embaraçosa, que indica saídas difíceis ou penosas, ante a
qual os envolvidos se veem sem possibilidade de escolha satisfatória. A partir
disso, supõe-se que a abordagem de pais e filhos em relação à sucessão seja
distinta. Considera-se, portanto, a relação entre os protagonistas diretos do
processo sucessório como potencialmente delicada, uma vez que se alia vínculos
afetivo e profissional somados a diferentes percepções do negócio e eventual
falta de diálogo, ambos reforçadores de dilemas relacionados à sucessão e a seu
planejamento, execução e desfecho.
Diante disso, apresenta-se como pertinente a questão de pesquisa:
Quais são e como se expressam os dilemas de pais e filhos
concomitantemente em atuação em empresas familiares em relação ao
processo sucessório?
A fim de responder à questão, o objetivo geral no presente artigo foi apontar,
descrever e analisar os dilemas vividos por pais e filhos em relação ao
processo sucessório em pequenas e médias empresas familiares, considerando-se
os seguintes prismas: os principais elementos envolvidos na avaliação pessoal
do sucedido e do provável sucessor em relação ao processo sucessório; os
principais dilemas vividos por esses sujeitos; as possíveis consequências para
o processo sucessório dos dilemas vividos por pais e filhos.
Este artigo foi estruturado da seguinte forma: em primeiro lugar, a introdução,
contextualizando o tema, a questão de pesquisa e seu objetivo geral. Logo a
seguir, na revisão da literatura busca-se oferecer amparo teórico para a
pesquisa de campo, cujos procedimentos metodológicos são apresentados logo a
seguir. Em relação à revisão da literatura, cabe referir que, embora não esteja
especificamente relacionada à temática das empresas familiares, a abordagem de
Zygmunt Bauman sobre a liquidez da existência foi considerada neste estudo como
importante subsídio conceitual em relação à questão sucessória. Posteriormente,
há a apresentação e a análise dos dados de pesquisa, sob a perspectiva dos
pais-sucedidos e dos filhos-sucessores. Por fim, tecem-se as considerações
finais do estudo.
2. REVISÃO DA LITERATURA
A grande importância das empresas familiares em níveis nacional e internacional
pode ser comprovada pela penetração desse tipo de organização na sociedade e na
economia. Dados indicam que entre 65% e 80% das empresas no mundo e pelo menos
80% das empresas brasileiras legalmente constituídas podem ser classificadas
como familiares, ou seja, têm membros de uma mesma família em seu controle
acionário e, na maioria das vezes, também no comando da gestão. Inclusive,
quando se considera o total das empresas privadas brasileiras, as organizações
familiares são responsáveis por mais de 61% da receita delas e por pelo menos
dois terços dos empregos oferecidos (LANSBERG, 1999; GERSICK et al., 2006;
OLIVEIRA, 2006).
Uma das questões mais relevantes para que a empresa familiar possa perdurar
dentro do mercado é a forma como ela enfrenta a questão do processo sucessório.
E isso, certamente, não somente pelos efeitos e mudanças diretivas e
operacionais que dito processo traz à empresa, mas também pelos diversos
fatores emocionais e intangíveis nele existentes. Estudos apontam que no Brasil
apenas 30% do comando das empresas familiares nacionais passam da primeira para
a segunda geração e ínfimos 5% para a terceira geração (OLIVEIRA, 2006; PASSOS
et al., 2006).
Segundo Davis e Tagiuri (1989), a qualidade da relação de trabalho entre pais e
filhos dentro do universo da empresa familiar varia de acordo com o estágio de
vida deles. De acordo com os autores, em determinados momentos do ciclo de vida
de cada um existe a tendência de melhor ou pior relação entre pais e filhos. É
sabido que a atuação concomitante de sucessor e sucedido dentro do negócio
familiar é fator relevante em relação à questão negocial e patrimonial como um
todo. Por sua vez, Lansberg (1988) alerta para a ambivalência que toma pais e
filhos, não somente em relação ao trabalho conjunto, mas especialmente no que
diz respeito ao planejamento sucessório, assim como em relação à figura do
outro, muitas vezes visto como uma ameaça.
Leone (2005) traz para o universo sucessório a figura do duelo. Esses duelos,
que têm o potencial de extinguir a empresa, se dão pelo menos em três
diferentes níveis: o duelo do sucedido com ele próprio; o duelo do sucedido na
escolha do sucessor; e, por fim, o duelo entre sucessores. Mesmo que esses
duelos, todos ou algum deles, não se apliquem em relação a casos específicos, é
provável que tanto o pai-sucedido como o filho-sucessor apresentem
convergências e divergências relativas à sucessão em pelo menos duas
perspectivas: a da organização e a pessoal/emocional dos envolvidos.
Cabe ressaltar que a empresa familiar sofre o que Lansberg (1999) qualificou
como um dilema de definição. Existe larga diferença nas opiniões dos
pesquisadores quanto a uma única conceituação para esse tipo de empreendimento.
Para fins deste estudo, será adotado o seguinte conceito:
"Empresa familiar: controlada por uma única família, da qual dois
ou mais de seus membros têm influência preponderante na direção do
negócio, mediante cargos gerenciais/de governança, direitos de
propriedade e relações familiares" (DAVIS, 2007, p.4).
O desenvolvimento do conceito de empresa familiar ganhou contribuição a partir
do modelo proposto por John A. Davis e Renato Tagiuri, denominado Modelo de
Três Círculos da Empresa Familiar (DAVIS, 2007, p.6), cuja representação é
exposta na figura_1.
![](/img/revistas/rausp/v47n2/a12fig01.jpg)
Esse modelo descreve a dinâmica da empresa familiar como composta por três
subsistemas diferentes e independentes, porém superpostos: negócio (gestão),
propriedade e família. Assim, qualquer ente, dentro de uma empresa familiar,
pode fazer parte de um dos sete setores formados pelos círculos superpostos dos
subsistemas. Alguns estarão em mais de um setor e outros em apenas um. É
possível, portanto, a partir disso, mapear a presença da família nele (WARD,
2004; GERSICK et al., 2006).
Enquanto o modelo dos três círculos pode oferecer um quadro fotográfico da
empresa familiar em determinado momento de sua existência, tal proposta tem uma
limitação evidente: a ausência de análise em relação às mudanças trazidas pela
dinâmica das empresas familiares, principalmente as relacionadas com a passagem
do tempo, e a influência delas ao longo de sua trajetória.
Segundo Gersick et al. (2006, p.16), "é fácil ver como ca- da círculo muda
quando as pessoas entram e saem dele ao lon- go do tempo". Independentemente de
ocorrer na esfera da ges- tão, da propriedade ou da família, o fato é que se
trata de um sistema dinâmico e evolutivo. Dessa forma, o resultado da inclusão
do aspecto do desenvolvimento ao longo do tempo ao modelo dos três círculos
resultou posteriormente no que se chamou de Modelo Tridimensional de
Desenvolvimento da Empresa Familiar, constante na figura_2.
Em relação à sucessão, a literatura especializada concorda que esse é
provavelmente o momento mais crítico pelo qual passa a empresa familiar,
salientando que ela deve ser encarada como um processo e não como um evento
(LANSBERG, 1999). No entanto, o dilema que muitas vezes se denota do trato do
planejamento sucessório dentro das organizações familiares é evidente. Ao mesmo
tempo em que o líder (muitas vezes o empreendedor e fundador da empresa) tem
consciência que dele se espera uma postura austera e sábia em relação à questão
da continuidade do empreendimento familiar, ele é, igualmente, confrontado com
os próprios dramas pessoais, medos e ansiedades em relação ao tema. E descobre
que abrir mão de seu papel na empresa é mais difícil do que imaginava
(SONNENFELD, 1988; LANSBERG, 1999; POZA, 2004; TONDO, 2008).
Pode-se inferir que, principalmente para o sucedido, a su- cessão implica de
certa forma o que Bauman (2008, p.69) clas- sifica como "o espectro da
exclusão, da morte metafórica". Se- gundo o mesmo autor, um dos maiores dramas
vivenciados pela humanidade nos dias atuais, no que ele classifica como
"modernidade-líquida", é exatamente o medo de ser excluído, de ficar para trás,
de certa forma tornar-se imprestável, descartável, elementos que se configuram
como dilemas ante a questão, principalmente do ponto de vista de quem está
deixando o poder.
Além disso, segundo Bauman (2007a, p.10),
"a responsabilidade em resolver os dilemas gerados por
circunstâncias voláteis e constantemente instáveis é jogada sobre os
ombros dos indivíduos ' dos quais se espera que sejam free-choosers e
suportem plenamente as consequências de suas escolhas".
Ainda nas palavras desse autor:
"Não há, então, uma boa escolha. Não se pode ficar com a torta e
comê-la ' mas é exatamente isso que você é pressionado a fazer pelo
ambiente em que tenta compor sua vida. Qualquer escolha que você
faça, está arranjando confusão" (BAUMAN, 2007b, p.142).
A ambivalência do pai-sucedido também tem origem, se- gundo Erikson, Erikson e
Kivnick (1986), em uma luta interior entre o que qualificam como "senso de
integridade" e o "senso de desespero". O senso de integridade emerge de uma
capacidade do líder de ter uma apreciação profunda de seu ciclo de vida, do
processo de envelhecimento e da própria ligação entre as gerações ascendentes e
descendentes. Essa consciência e a própria capacidade de apreciar suas
realizações lhe permitem incentivar e colaborar com a transferência de poder
aos sucessores dentro dos eixos da família e da empresa, possibilitando manter
a sua vinculação ao negócio familiar de forma salutar, numa espécie de papel
consultivo. A sensação de realização permite-lhe abrir mão, isto é, deixar que
a nova geração assuma e ele próprio aproprie-se da sensação de dever cumprido.
Esses líderes provavelmente estarão mais preparados para participar de forma
construtiva do processo sucessório (KANITZ, 2008).
O senso de desespero apontado por Erikson, Erikson e Kivnick (1986) reflete o
lado sombrio e oposto do descrito anteriormente. A busca incessante por um
último feito heroico, que possibilite uma suposta retirada triunfal pode levar
o sucedido, já envelhecido, a agarrar-se infinitamente ao poder estratégico da
empresa, tornando-o incapaz de planejar e levar adiante o processo de sucessão.
Pode não haver, por parte desses sujeitos, um sentimento próprio de apropriação
ou plenitude em relação ao que viveram, e eles não se sentem realizados, apesar
da idade, temendo desesperadamente abrir mão do papel e do poder. Com
frequência, tal relutância do pai-sucedido leva a empresa ao fracasso, por
conta de um decréscimo de suas habilidades.
Ao postergar indefinidamente a transição de poder e a aposentadoria, o pai foge
do conflito integridade X desespero. É como se lutasse pela própria
sobrevivência, similar ao que Bauman (2008) descreve como o pavor da morte e o
medo da exclusão. Nesse sentido, o filho-sucessor, antes visto como parceiro,
agora pode ser percebido pelo pai como uma ameaça ao seu posto, mais um sinal
do desespero, confusão e sofrimento vivido pelo patriarca (KANITZ, 2008).
Os sucessores também se defrontam com dilemas. Assim como no caso do sucedido,
o potencial sucessor da empresa familiar vive uma forte situação de
ambiguidade. Ao mesmo tempo em que busca a consolidação de sua identidade,
depara-se com a fragilidade, por vezes física e mental, por conta do
envelhecimento do pai-sucedido. Segundo Kanitz (2008, p.212), "o maior problema
de um filho numa empresa familiar é o seu esforço e habilidade para alcançar
uma identidade própria". Esse esforço, porém, pode gerar consequências tanto
para a empresa quanto em relação ao pai-sucedido.
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
3.1. Método
Segundo Minayo, Deslandes e Gomes (2007), a metodo- logia é o caminho do
pensamento e a prática exercida na abor- dagem da realidade. Na presente
pesquisa exploratória qualitativa trabalha-se com o universo dos significados,
dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes dos pais-
sucedidos e dos prováveis filhos/as sucessores/as.
3.2. Participantes da pesquisa
Nesta pesquisa exploratória contou-se com uma amostra intencional de cinco pais
sucedidos e sete prováveis filhos sucessores distribuídos em cinco pequenas e
médias empresas familiares de três diferentes regiões do Brasil ' Sul, Sudeste
e Nordeste ' que atuam em um mesmo e peculiar segmento de atividade na área de
prestação de serviços. Essas empresas encontram-se nas fases de trabalho
conjunto ou passagem do bastão, conforme proposto por Gersick et al. (2006).
Além disso, outro importante critério de escolha dessas empresas foi o de que
pais-sucedidos e filhos-sucessores estivessem concomitantemente em atuação
dentro da empresa familiar. Havia entre os sucedidos e prováveis sucessores uma
relação de ascendência direta e expectativa de transferência de gestão e de
propriedade, mesmo que parcial. No quadro abaixo consta a descrição dos
participantes da pesquisa e suas empresas.
3.3. Coleta de dados
Segundo Bauer e Gaskell (2002, p.78), as entrevistas individuais são
recomendadas, dentre outras situações, "quando o tópico se refere a
experiências individuais, detalhadas, esco- lhas e biografias pessoais" ou para
abordar "assuntos de sensibilidade particular que podem provocar ansiedade".
Tondo (1999), por sua vez, afirma que é essencial que o entrevistador
desenvolva uma relação de confiança com os entrevistados, a fim de colocá-los à
vontade para relatar suas histórias dentro da empresa familiar.
O número de entrevistas da presente pesquisa levou em consideração a
possibilidade de acesso às empresas e também o critério de saturação, ou seja,
a possível regularidade referente às concepções, explicações e aos sentidos
atribuídos pelos entrevistados, conforme apontado por Minayo, Deslandes e Gomes
(2007). Uma vez contatados os cinco pais sucedidos ' não havia mães nessa
condição ', foi-lhes solicitado que indicassem seus/suas prováveis sucessores/
as. Dos cinco sucedidos, apenas um (uma transição da segunda para a terceira
geração) solicitou prazo de 24 horas para indicar o provável sucessor a fazer
parte da pesquisa. Os demais indicaram seus filhos/as-sucessores/as
imediatamente ao questionamento. Ocorreu que um dos sucedidos contatados
(Empresa D), que tem um filho e uma filha participando como ele da gestão da
empresa, ao ser questionado sobre a indicação de provável sucessor, respondeu
de pronto, aos risos: "Viu? Por isso as empresas familiares quebram!" Todos os
prováveis sucessores/as mostraram-se lisonjeados e disponíveis para a pesquisa.
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Foi acordado que as entrevistas seriam feitas na sequência, de forma
individual, primeiro com o pai-sucedido e posteriormente com o filho/a-
sucessor/a, preferencialmente no mesmo dia ou em dias seguidos. Realizadas nas
sedes das empresas, com exceção de uma realizada no hotel onde o entrevistador
estava hospedado, as entrevistas foram gravadas de forma consentida,
totalizando aproximadamente 20 horas de duração, e posteriormente transcritas.
Duas empresas contam com a indicação de dois prováveis sucessores. Isso se deve
ao fato de que dois sucedidos alteraram sua indicação durante a entrevista,
expondo sua dúvida sobre o futuro sucessor de suas empresas. Dessa forma, o
número de prováveis sucessores entrevistados para a pesquisa foi maior do que o
número de sucedidos.
3.4. Análise dos dados
Para a análise dos dados adotaram-se os seguintes passos habituais apresentados
por Minayo, Deslandes e Gomes (2007): decompor o material a ser analisado em
partes; distribuir as partes em categorias; fazer uma descrição do resultado da
cate- gorização; fazer inferências dos resultados; interpretar os resultados
com auxílio da fundamentação teórica adotada.
Os dados foram organizados em seis partes especiais para cada sujeito,
definidos a partir dos roteiros de entrevista: percepções gerais; percepções
gerais sobre as empresas familiares; percepções gerais sobre o processo
sucessório; percepções sobre a própria empresa familiar e seu processo
sucessório; percepções sobre o/a filho/a-sucessor/a ou sobre o pai-sucedido; e,
finalmente, percepções próprias do momento e em relação ao futuro profissional.
A fim de obter-se êxito nessa tarefa, foi realizada, finalmente, a análise dos
dados coletados a partir das narrativas disponíveis, uma articulação entre os
objetivos da pesquisa, a base teórica adotada e os dados empíricos (MINAYO,
DESLANDES e GOMES, 2007).
4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Embora guardem semelhanças e inter-relações evidentes, os dilemas de pais e
filhos dentro da empresa familiar, a partir da perspectiva sucessória, são
diferentes. Em relação aos pais-sucedidos, a maioria dos dilemas diz respeito
aos conflitos pessoais vivenciados a partir da mudança de papel no negócio, na
família e, eventualmente, na própria questão da propriedade, o que confirma a
correção sobre o entendimento das empresas familiares sob a perspectiva do
Modelo de Três Círculos da Empresa Familiar (DAVIS e TAGIURI, 1989) e do Modelo
Tridimensional de Desenvolvimento da Empresa Familiar (GERSICK et al., 2006).
Já no que tange aos filhos-sucessores, percebe-se que muitos de seus dilemas
pessoais sobre o tema guardam relação com os próprios dilemas que estes
identificam nos pais-sucedidos, como a frustração de não assumir o negócio
frente ao receio de tirar o posto de liderança do próprio pai (KANITZ, 2008;
KETS DE VRIES, CARLOCK e FLORENT-TREACY, 2009).
Dentro das empresas estudadas e a partir das entrevistas com os pais-sucedidos
e os filhos-sucessores por eles indicados, foram identificados de forma
majoritária os dilemas em relação à perspectiva sucessória, abordados a seguir.
4.1. Principais dilemas dos pais-sucedidos
4.1.1. Definições e indefinições ante a questão sucessória
Dentre os principais dilemas inicialmente identificados está o da escolha do
filho-sucessor da empresa familiar, haja vista que em nenhuma das empresas
pesquisadas existe a situação de filho único. Ward (2004) mostra que um terço
de todos os proprietários-diretores acima de 60 anos não tem em mente quem será
seu sucessor no negócio.
Nas situações pesquisadas, a partir da escolha de um filho sucessor dentro da
organização, ter-se-á automaticamente também presente a figura do filho não
sucessor, o que pode ocorrer de forma harmônica, como, por outro lado, pode
também gerar situações potencialmente conflituosas, restando evidente a
dificuldade da família em separar os três círculos que envolvem a empresa
familiar (GERSICK et al., 2006). Dentre as razões principais para a escolha do
filho-sucessor, identificam-se aspectos como formação, experiência, esforço,
vocação e também a falta de outras opções viáveis para exercer a função.
Outra questão importante identificada na pesquisa diz respeito à falta de
transparência com que, em geral, o processo sucessório é conduzido nas empresas
estudadas. Nesse sentido, uma das principais situações admitidas pelos pais-
sucedidos é que existe pouca formalização em relação ao processo sucessório,
seja em relação às questões gerenciais, seja no que diz respeito à situação
patrimonial. São raras as conversas familiares sobre o tema e, quando estas
acontecem, ocorrem por acaso, sem qualquer planejamento ou pauta.
"Não conversamos sobre isso, sucessão, é um negócio bem amador,
sabe? Não está sendo profissional... Não tem nada programado, nada
planejado" (Pai-sucedido ' Empresa D).
As razões para a falta de abordagem desse tema são controversas. Os pais, em
geral, parecem não entrar no tema até que um fato externo, em geral oriundo de
doença ou risco iminente de morte, os obrigue a disparar o processo.
"Eu tive agora esse problema no coração... Eu não morri por sorte
[...] Então, eu verifiquei a fragilidade da vida, que você corre o
risco de uma hora para outra morrer. Aí fiquei apavorado, de
começarem a se digladiar e a empresa ir por água abaixo. O que eu
fiz? Eu falei: 'Bom, vou transferir para vocês a empresa' e fiz isso,
dei a parte de cada um, aquilo que tinha direito" (Pai-sucedido '
Empresa C).
4.1.2. O papel do filho-sucessor e do filho não sucessor na empresa familiar
Na perspectiva sucessória, um dos dilemas mais presentes nos pais-sucedidos
entrevistados diz respeito ao papel do filho-sucessor e do filho não sucessor,
porém atuante na empresa familiar. Na dupla função de pai e empresário, o
sucedido encontra-se igualmente preocupado com ambas as situações em relação
aos filhos.
Dentro desse contexto, identificou-se na pesquisa um desejo, explícito ou não,
por parte da maioria dos pais-sucedidos de que a vida profissional dos filhos
orbite em torno da firma familiar e que eles encontrem nela uma forma de
convivência. Igualmente, a expressiva maioria dos pais-sucedidos tem plena
consciência de que tal feito pode ser dos mais difíceis e, inclusive, levar a
empresa futuramente ao fracasso.
"Não é muito fácil. Outro dia, numa reunião, eu disse: 'Olha, assim
vocês não vão longe'. Eu pretendo trabalhar esta questão, basicamente
porque eu acho que a única coisa que pode dar errado na empresa é
essa questão da sociedade entre as duas" (Pai-sucedido ' Empresa A).
Percebe-se também, a partir dos dados coletados, que existe por parte dos pais
o desejo ou quiçá um sentimento de obrigação não somente para com os filhos,
mas para com os familiares como um todo, inclusive genros e noras, de
possibilitar que a vida destes possa ter na empresa um porto-seguro no caso de
insucesso de outras aventuras profissionais, em que pese isso potencialmente
trazer várias possibilidades de conflito e fracasso.
"Os agregados, esses são os complicados. Os irmãos se dão bem e
sempre vão se dar bem, o problema é os agregados... Aí também tem que
arrumar emprego para eles, vão trabalhar junto na empresa, aí o
negócio começa a complicar" (Pai-sucedido ' Empresa D).
Outra questão vivenciada como dilema pelos pais-sucedidos, conforme Bauman
(2007b), diz respeito a como lidar com a perspectiva do filho não sucessor, ou
aquele que não estará exatamente numa posição de comando dentro da empresa
familiar. Embora Passos et al. (2006) ressaltem a importância dos herdeiros não
sucessores dentro do espectro da empresa familiar, tal situação é por vezes
vista pelos pais como um "tratamento diferenciado indevido", restando nesses
casos incerto o limite entre o papel de pai, que busca o melhor para os filhos,
e o de empresário, que busca o melhor para a empresa.
Dentre as empresas pesquisadas, em apenas uma se cogita utilizar o sistema de
gestão compartilhada entre os irmãos, talvez não por acaso a que tem o pai-
sucedido mais jovem (50 anos). É possível que tal situação represente ' muito
mais do que um desejo ' uma grande indefinição do pai-sucedido em relação ao
futuro, até por conta do fato de ele não ter ainda refletido mais a fundo sobre
quem deve ser a melhor alternativa para sucedê-lo.
4.1.3. A postura ambivalente ante o filho-sucessor
"Eu costumo brincar que o meu maior concorrente hoje é o meu filho.
Ele é o meu maior concorrente hoje porque ele pensa totalmente ao
contrário de mim, ele é a água e eu sou o vinho" (Pai-sucedido '
Empresa D).
Uma das principais questões identificadas entre os pais-sucedidos entrevistados
para o presente trabalho diz respeito a sua postura ambivalente ante o filho-
sucessor. Em outras palavras, a partir da perspectiva sucessória na empresa
familiar, nota-se em alguns casos que as mesmas características do filho-
sucessor, que são vistas com admiração e respeito por parte de pais-sucedidos,
podem igualmente trazer à tona neles sentimento de inveja ou medo, ocasionando
a postura ambivalente e, inclusive, certa rivalidade.
Notadamente, tal situação tem a ver com o que Erikson, Erikson e Kivnick (1986)
descrevem como a luta interna do sucedido entre o "senso de integridade" e o
"senso de desespero", abordada previamente. Lansberg (1988) também destaca que
os sentimentos ambivalentes são os principais responsáveis pela frequente
relutância do sucedido em planejar a inevitável transição sucessória. Assim,
como se pode observar também a partir de Bauman (2007a; 2007b), não há saída
satisfatória para uma situação que se mostra penosa e constrangedora para o
sucedido, configurando-se como um dilema vivido, mesmo que para ele próprio não
se apresente como tal.
A questão da divisão de poder também parece afetar sobremaneira a visão do pai-
sucedido. Agir racionalmente em prol da continuidade da empresa, quando isso
aponta para sua eventual exclusão de modo concreto ou fictício ' "você se sente
fora" ' é algo que se faz acompanhar de sofrimento (BAUMAN, 2007a). O mesmo
autor também aborda o medo intermitente de ser "deixado para trás" (2007b,
p.17), conforme ilustra o pai-sucedido da empresa D.
"Então, às vezes você se sente, quando está transferindo a tua...
digamos assim, a sucessão, está transferindo a empresa para eles,
você se sente fora, meio peixe fora d'água [...] Então eles se reúnem
e fazem um complô contra você" (Pai-sucedido ' Empresa D).
Em consequência, é possível perceber em alguns casos que os empreendedores e os
sucessores desenvolvem sentimentos de rivalidade e inveja, o que pode ocasionar
dificuldades graves em relação à questão sucessória. Conforme lembram Gersick
et al. (2006, p.209), "os empreendedores tendem a ser personalidades
narcisistas, que não acham fácil dividir as luzes da ribalta com outra pessoa,
mesmo sendo esta uma filha ou um filho". Em alguns desses pais-sucedidos,
identifica-se uma sensação ambígua, como se o fato de o filho tratá-lo de igual
para igual dentro da empresa familiar representasse um entrave para a relação
de ambos.
"Era tudo comigo e agora mudou" (Pai-sucedido ' Empre- sa D).
"Então, ela [filha] não gosta do jeito que eu ajo com ela e daí? Eu
não gosto do jeito que ela age comigo, entendeu? Se fosse uma
secretária, seria mais fácil pra mim: 'Faça isso, isso, isso e deu'"
(Pai-sucedido ' Empresa D).
Lansberg (1988, p.126) destaca que "fundadores debatendo-se com a sucessão com
frequência experimentam poderosos sentimentos de rivalidade e inveja em direção
aos sucessores potenciais". Esse fato é observado na Empresa C, em que o filho-
sucessor percebe, segundo suas palavras, um "conflito constante" no pai-
sucedido em relação à passagem de poder na empresa familiar. Em consonância com
a visão de Leone (2005), esse filho-sucessor afirma ser esse "um duelo [do pai]
com ele mesmo. Um duelo com ele mesmo e um duelo comigo". E ressalta: "Eu sinto
que, para ele, cada decisão que eu tomo é um conflito. Eu sinto isto".
4.1.4. A perda de um papel fundamental no cotidiano do negócio
A partir da perspectiva da sucessão, uma das situações potencialmente mais
delicadas e que devem ser enfrentadas pelo pai-sucedido é o processo no qual
este vai perdendo o papel fundamental que antes desempenhava no negócio
familiar. Nunca é demais lembrar que, em geral, a empresa familiar foi
concebida, nasceu e desenvolveu-se sob a tutela de um personagem central, com
frequência o próprio fundador, quase sempre com fortes características
empreendedoras e até mesmo visto como um herói, que passou a tratá-la muitas
vezes de maneira indiferenciada de si, ou seja, sem a consciência real sobre os
limites entre a própria identidade e a da firma (SONNENFELD, 1988; SONNENFELD e
SPENCE, 1989).
Na pesquisa realizada, foi possível encontrar diferentes maneiras de os
sucedidos encararem a perda de poder dentro da empresa familiar, uma
transformação que pode levá-los a se tornarem elementos figurativos dentro do
próprio negócio que outrora conceberam e desenvolveram, algo similar ao que
Bauman (2008) define como morte metafórica. Alguns sucedidos entendem ser esse
um processo natural e que a partir dele devem reorganizar-se pessoalmente e
suas vidas, de acordo com essa perspectiva. Outros mostram maior dificuldade em
lidar com essa situação, demonstrando um suposto desdém pela empresa ou
atribuindo a uma necessidade intrínseca da firma ou a eventuais questões de
mercado a justificativa para sua relutância em fazer evoluir o processo
sucessório (SONNENFELD, 1988; POZA, 2004).
Algo unânime entre os pais-sucedidos foi a percepção e até mesmo o desejo de
permanecerem vinculados de alguma forma à empresa, mesmo que em idade avançada
e após a passagem do bastão. Nenhum dos sucedidos entrevistados mencionou
interesse em afastar-se completamente do negócio a partir da perspectiva de
sucessão. Todos veem como importante a continuidade de sua participação, de
forma a servir de suporte ou até mesmo como mentor do filho-sucessor, embora
esse formato em geral esteja muito pouco estruturado e discutido dentro da
empresa e entre os partícipes do processo. Em outras palavras, não há bem
certeza de como este envolvimento se dará na prática, no futuro.
"Até digo que quero continuar participando do que está acontecendo,
sei lá, reuniões, decisões, coisa e tal, mas o dia a dia entregar
mesmo. [...] Eu... claro que não penso em botar um pijama e ficar em
casa, mas em todo caso eu acho que tenho que passar o bastão mesmo"
(Pai-sucedido ' Empresa B).
"Eu não me vejo afastado, fora do negócio. Eu acho que eu vou até o
fim" (Pai-sucedido ' Empresa E).
Outra questão que apareceu com frequência nas entrevistas com os pais-sucedidos
foi a preocupação em não conseguirem acompanhar a evolução da geração mais
jovem. O pai-sucedido da Empresa D abordou esse ponto: "Acho que todo pai tem
essa sensação de estar ficando para trás, que o filho sabe mais do que você,
que está ficando ultrapassado". Assim, o desejo de ver concretizado o sonho de
possibilitar ao filho tornar-se um profissional admirado é concomitantemente
vivido com o medo de tornar-se ultrapassado, descartável, excluído, conforme
Bauman (2007b), caracterizando-se tal como um dilema.
Percebe-se, portanto, que os sucedidos identificam-se de tal forma com suas
empresas que qualquer papel coadjuvante nelas pode representar para si próprios
algo próximo a um processo de luto (SONNENFELD, 1988; BAUMAN, 2008), mesmo que
de forma consciente alguns desses sujeitos tenham presente que a sucessão
representa um caminho não somente apropriado, mas inexorável em determinado
momento.
4.1.5. Os novos caminhos pessoais e profissionais pós-sucessão
Um dos grandes desafios para qualquer líder empresarial prestes a concluir o
processo de sucessão dentro de uma organização familiar é descobrir novas
fontes de satisfação longe da empresa e do estilo de vida ao qual esteve
acostumado, muitas vezes por algumas décadas.
Previsivelmente, essa situação nem sempre é fácil. O fato é que o papel de
líder, não somente empresarial, mas da própria família, pode aderir à própria
personalidade do sujeito, causando, conforme antes exposto, uma confusão
pessoal e de status entre a identidade pessoal e profissional, entre o controle
do negócio e o da família, conforme aponta Ward (2004). Essa realidade com
frequência envolve dificuldades em fazer com que esses líderes se sintam aptos
a abrir mão do poder na hora certa. Isso se dá em boa parte porque há uma
sensação generalizada de que a aposentadoria representaria, por assim dizer,
uma morte de fato ou metafórica (BAUMAN, 2008) para quem está se retirando de
um papel que já faz parte de seu íntimo. Em outras palavras, é como se não
houvesse vida além daquela com a qual o líder já se acostumou (SONNENFELD,
1988; SONNENFELD e SPENCE, 1989).
"Estou passando por uma fase para poder ver como é que vou
adiante... Porque as pessoas estão vivendo mais e têm que trabalhar,
têm que ter uma atividade, nem que seja músico [...] Por exemplo, se
você der o azar de viver 90 anos, como é que vai ser?" (Pai-sucedido
' Empresa A).
"Eu estou assim um pouco preocupado porque esse negócio de ficar
com muito tempo disponível... Quer dizer, de um lado os problemas
diminuíram, os problemas existenciais diminuíram, os problemas de
negócio diminuíram, mas é um problema que eu me encontro agora, o que
eu faço, vamos dizer assim, com o desenvolvimento da minha vida..."
(Pai-sucedido ' Empresa A).
4.2. Principais dilemas dos filhos-sucessores
4.2.1. Informalidade e indefinições na empresa familiar
Identificou-se, junto à parte dos filhos-sucessores, grande desconforto no que
diz respeito à informalidade excessiva e por vezes perniciosa que é encontrada
em algumas empresas familiares, ocasionando indefinições e mistura de papéis
dentro da organização que podem trazer descontentamento, frustração e até mesmo
os temidos conflitos de poder entre os participantes do processo, exatamente em
linha diversa do que propõem Gersick et al. (2006) e Passos et al. (2006).
Igualmente, foi identificado também junto aos filhos-sucessores certo mal-estar
com a falta de discussões em família sobre o tema sucessão, como se esse
assunto fosse, por assim dizer, proibido ou representasse verdadeiro tabu
dentro do espectro familiar.
Praticamente uníssona entre os filhos-sucessores foi a percepção de que há
pouco diálogo entre os familiares envolvidos na condução do processo sucessório
ou sobre o tema. Não existem, por exemplo, definições prévias sobre seu tempo
de duração, um cronograma que permita que se façam as adequações necessárias e
o conhecimento prévio de quais as ideias dos pais-sucedidos sobre o futuro da
empresa, inclusive a informação sobre quem será o sucessor e mesmo que tipo de
estrutura de propriedade ou modelo de gestão se pensará doravante. Com isso, o
sucessor fica muitas vezes com o próprio futuro profissional indefinido,
simplesmente por não saber qual é o plano do sucedido, ou se existe algum.
Curiosamente, porém, esses assuntos são quase um tabu dentro do contexto
familiar. O filho-sucessor da Empresa E, por exemplo, tem a seguinte percepção:
"Sabe, às vezes é a dificuldade de conversar entre si, melindre,
não sei o que passa na cabeça das pessoas, mas o fato é que... fica
uma pendência".
Dentre outras situações de indefinição, a mais grave aparenta ser a falta de um
modelo futuro e da própria comunicação ou discussão dele com os envolvidos, e
principalmente de quem será o sucessor na empresa, ou mesmo se ela deverá estar
futuramente sob a égide de uma gestão compartilhada. Nesse sentido, é possível
perceber que os sucessores, em algumas situações, dependem da solução dos
dilemas parentais para que possam passar a cuidar dos seus (KANITZ, 2008; KETS
DE VRIES, CARLOCK e FLORENT-TREACY, 2009).
4.2.2. A falta de transparência em relação ao processo sucessório
Fica claro que existe um sem-número de silêncios por parte dos sucessores no
que se refere à questão sucessória dentro da empresa familiar. Por uma razão ou
outra, tais abordagens são colocadas de lado, adiadas, supostamente esquecidas
ou simplesmente omitidas, a fim de não trazerem à tona eventuais assuntos
difíceis ou pontos de vista divergentes.
Unanimemente, os 12 sujeitos entrevistados, sejam pais-sucedidos, sejam filhos-
sucessores, afirmam que a responsabilidade principal e de liderança na condução
do processo sucessório é do pai. Ocorre que por diversos motivos, alguns dos
quais já abordados, os sucedidos muitas vezes adiam indefinidamente o tema, não
conseguindo estabelecer formalmente um canal de diálogo com o restante dos
familiares ou mesmo um cronograma passo a passo para transferência de suas
incumbências executivas. Aronoff, McClure e Ward (2003) afirmam que, ao evitar
o assunto sucessório, os proprietários procuram proteger a si próprios de tomar
as difíceis decisões envolvidas no tema. Mesmo nesses casos, os filhos-
sucessores, em sua maioria, preferem não trazer esse assunto à tona com o
genitor, a fim de evitar serem mal interpretados por ele, de forma a parecerem
gananciosos, interesseiros ou mesmo "querendo a morte" do pai, conforme Ramírez
(2007).
"[sobre se essas conversas deveriam ser formalizadas] Eu acho que
sim, eu acho que sim, mas eu acho que exige uma maturidade que a
gente não tem hoje para sentar e falar disso... Falta coragem, falta
coragem porque pode surgir alguma mágoa, sabe? Então eu vou evitar
falar disso que aí ninguém fica magoado, e a gente tem uma relação
super boa" (Filha-sucessora ' Empresa B).
Passos et al. (2006, p.92) reiteram que as discussões sobre o planejamento da
sucessão somente podem acontecer com a permissão do líder da atual geração: "A
ele cabe abrir caminho para que as conversas aconteçam, inclusive com prazos
para as diversas etapas do processo".
4.2.3. A empresa como elo salvador da família
"Mas eu assumo, eu não teria coragem ' por mais incompetente que
ele fosse ' de demitir um tio meu..." (Filha-sucessora ' Empresa B).
Situação sabidamente comum em muitas organizações fami- liares é a visão que
membros da família têm em relação à própria empresa, como uma solução de vida,
principalmente no que diz respeito ao aspecto profissional. Vista desse prisma,
a empresa familiar ultrapassa os limites de um negócio usual e passa a
representar uma salvação para a vida de alguns familiares.
Em algumas das empresas pesquisadas, essa visão é real. Ela acontece
principalmente nas famílias de tamanho crescente, em geral na terceira geração.
A questão é que, enquanto muitos agregam e criam valor ao negócio e acabam por
merecer a confiança dos demais familiares e do próprio líder principal, alçando
um papel relevante dentro da organização, outros não somente nada acrescentam,
como também podem, em alguns casos, prejudicar de forma cabal o andamento da
empresa.
No universo da pesquisa, existe claramente a percepção de que a empresa
familiar pode ser uma saída para dificuldades pessoais de membros da família,
como uma escolha profissional inadequada, uma demissão inesperada ou mesmo uma
carreira estagnada fora da organização. Ocorre que há um limite para is- so. A
questão do nepotismo, conforme abordada, dentre outros autores, por Ramírez
(2007), envolve alçar um familiar a determinada posição dentro da empresa
somente por causa de seu parentesco, e não por sua competência. Nesse sentido,
a falta de discernimento causada pela mistura dos sentimentos de amor pela
família com o papel de principal gestor do negócio familiar configura-se como
um dilema e acaba por confundir o líder e obrigá-lo indiretamente a tomar
decisões conflitantes em certo grau.
A maioria dos filhos-sucessores afirmou ter relação muito positiva com os
demais irmãos que atuam na empresa. Entretanto, em pelo menos dois casos, os
sucessores expressamente admitiram dificuldades. O mais agudo foi o exposto
pelo filho-sucessor da empresa C. Filho único da atual esposa do pai (seus dois
irmãos são filhos da primeira esposa, já falecida), duas décadas mais jovem do
que os demais e com maior espírito empreendedor, formação e capacidade
gerencial, as perspectivas de convivência futura entre os irmãos parecem ser
sombrias, em que pese a determinação e o idealismo do pai-sucedido em sonhar
com a possibilidade de contar com os três filhos trabalhando juntos no negócio.
Um dos irmãos é hoje colega do sucessor na diretoria da empresa. Mas tem papel
praticamente simbólico, tendo sido readmitido pelo pai mesmo após tê-lo traído
de forma explícita a partir da abertura de um negócio concorrente. O sucessor
descreve sua percepção do episódio:
"Já largou meu pai na mão e foi montar a empresa dele e, mesmo
assim, depois que se deu mal, meu pai aceitou de volta: 'Vem, filho,
aqui está teu dinheirinho'".
Apesar de ironizar a atitude do pai, o sucessor acaba por admitir que ela seja
compreensível. "Ele tem três filhos, então como é que meu pai ia deixar o cara
na mão, né?"
Essa situação reforça a importância de definição prévia e expressa por parte da
família empresária do papel de cada membro no negócio, dentro do modelo de três
círculos (GERSICK et al., 2006).
4.2.4. A sensação de culpa, incompetência e/ou falta de legitimidade
Foi possível identificar alguns dilemas próprios dos sucessores, tendo origem
no que pode se denominar como seu dilema original: as dúvidas em relação à
própria competência e legitimidade ante a posição que ocupam. Nesse sentido,
surgiu com peso nas entrevistas realizadas a conotação negativa atribuída ao
status defilho/filha do dono. É possível perceber que essa denominação
representa um peso adicional aos sucessores, trazendo para alguns uma sensação
de culpa e, para outros, a preocupação com sua imagem pessoal e com os exemplos
a serem dados aos funcionários. Em alguns casos, foi possível perceber o desejo
dos próprios sucessores em fugir dessa denominação de filho/filha do dono,
dando a entender que necessitam legitimar-se pelas próprias forças,
independentemente do parentesco com o líder principal da empresa.
Outro dilema bastante perceptível nos filhos-sucessores relaciona-se a certa
dificuldade deles em lidar com a possível perda de poder do pai na organização.
Existe nos sucessores, nesse caso, um dilema entre assumir o comando da empresa
e a eventual perda da convivência com o sucedido, como profissional e também
como pai. Uma situação aparentemente difícil para os sucessores, que muitas
vezes veem a saída do pai da empresa familiar como um tipo figurado de morte
(BAUMAN, 2007b; 2008).
O sucessor da empresa C resume abaixo o sofrimento que ele próprio vive entre o
forte e importante simbolismo de passagem de bastão por parte do pai, em
relação à perda pessoal que essa eventual atitude trará para si:
"A parte profissional quer [a legitimação por parte do pai], quer
porque vai valorizar tudo o que eu fiz, tudo que eu estudei, tudo que
eu me preparei, tudo o que conheço da empresa... O dia que ele falar
isto, pô, eu realmente cumpri a minha missão como sucessor, né?... Ou
seja, meu pai assumiu isto. Por outro lado, a partir do momento que
ele assumir [a competência do filho], ele não vem mais e o dia em que
ele não vier mais, eu vou sentir" (Filho-sucessor ' Empresa C).
Identificou-se, portanto, que os filhos-sucessores não desejam ser eles
próprios a razão para a saída completa do pai das atividades da empresa
familiar, em que pese nutrirem a expectativa de concretização da sucessão.
4.2.5. A ascensão profissional ante a decadência do sucedido
"Coincidiu [o declínio do pai] com o meu crescimento dentro da
empresa... Isto até chegou a criar problema... Eu cheguei a
considerar: 'Vale a pena eu assumir a empresa?' Fiquei meio
grilado... Falei: 'Pô, estou vendo meu pai definhar... será que vale
a pena eu assumir a empresa?' Só que pensei: 'Se eu não assumir a
empresa, o que vai ser do futuro desta família?'" (Filho-sucessor '
Empresa C).
Trata-se de um dilema relativo à encruzilhada em que se encontram os sucedidos
em relação ao inexorável processo do envelhecimento. Esse dilema, em geral,
desdobra-se aos filhos, visto que é originado no drama paterno vivenciado em
função da gradativa consciência adquirida sobre o envelhecimento e a própria
mortalidade.
Dentro do espectro deste trabalho, o dilema mais presente entre os sucessores é
exatamente como lidar com a própria ascensão profissional, a partir do
simultâneo declínio do pai-sucedido. Nesse sentido, percebe-se uma tendência
dos filhos-sucessores, na maioria das vezes referendada pelos pais-sucedidos,
em buscarem estender o período relativo à fase de trabalho conjunto, conforme
Gersick et al. (2006), para além do que poderia parecer razoável, pelo menos do
ponto de vista conceitual, a fim de evitarem a vivência do dilema.
Apenas uma das empresas do presente estudo (Empresa C) encontrava-se na fase de
passagem do bastão (GERSICK et al., 2006). Não por acaso, o filho-sucessor da
referida empresa abordou muitas vezes o dilema vivido pelo pai entre abrir mão
do poder e continuar a sentir-se vivo. "Eu não sei, acho que ele acha que
perdeu a importância... Só que na verdade não perdeu, na verdade a decisão dele
é tudo para mim ainda", diz. Apesar de tudo, o filho-sucessor reconhece que
sofre com a situação pela qual o pai passa. "É doido. Eu consigo me colocar no
papel dele, mas talvez não consiga sentir a dor que ele sinta, não consigo
imaginar a dor que ele sinta para passar [o bastão] mesmo", diz.
Trata-se, portanto, de um dilema vivido pelo sucessor entre assumir seu papel
dentro da empresa familiar e possivelmente com isso acabar enviando o pai a uma
verdadeira insignificância, ou, segundo Bauman (2007b), deixá-lo para trás,
remetendo-o simbolicamente para a lata do lixo como elemento descartável ou
inútil, a partir do fato de que nesse caso os conceitos de aposentadoria e
morte podem ser percebidos como inseparáveis (SONNENFELD, 1988; SONNENFELD e
SPENCE, 1989).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão sucessória que envolve pais e filhos é tema repleto de dilemas entre
os envolvidos diretamente no processo. Em relação ao sucedido, a vivência dos
dilemas relativos ao processo sucessório nas empresas familiares mostrou-se
atrelada à ideia de vida e morte. A sucessão, ou a passagem do bastão, conforme
menciona a literatura especializada (entre outros, LANSBERG, 1999; GERSICK et
al., 2006; PASSOS et al., 2006), contempla a luta do sucedido pela
sobrevivência, o horror da expiração, o medo de ser excluído e o pavor do
morrer, sentimentos que Bauman (2007b; 2008) constata como presentes na
sociedade líquido-moderna, bem como os sensos de integridade e de desespero,
que Erikson, Erikson e Kivnick (1986) elencam e autores que se debruçam
especificamente sobre a empresa familiar legitimam.
No que toca aos filhos-sucessores, é possível concluir, a partir dos dados da
presente pesquisa, que os dilemas que vivenciam estão vinculados à busca de
legitimação, pela aprovação e valorização por parte dos pais-sucedidos, assim
como dos demais stakeholders da empresa. Para os filhos-sucessores, parece ser
necessário que passem por algum tipo de confirmação social, incluídos aí os
diversos públicos: o próprio corpo funcional da empresa, que frequentemente os
tem meramente como filho/filha do dono; a sociedade como um todo, que muitas
vezes não oferece aos sucessores o crédito que estes esperam, devido ao fato de
os perceberem como meros afortunados por serem herdeiros da empresa da família;
e eles próprios, que não raro padecem com sentimentos próprios de falta de
merecimento ou mesmo culpa por estarem na posição que ocupam.
Tomando-se os principais dilemas identificados no presente estudo, tanto de
parte dos pais-sucedidos como também dos filhos-sucessores, percebe-se que, ao
menos indiretamente, todos eles relacionam-se aos conceitos literais e
principalmente simbólicos do viver e do morrer. A sucessão, nesse sentido,
carrega um sofrimento que se relaciona com a vida e a morte.
Em geral, os pais-sucedidos construíram tamanha identificação com suas
empresas/criaturas que, a rigor, não veem sentido em viver fora delas. Aliás,
tornam-se dependentes delas em vários aspectos. Como aspecto tangível,
encontra-se o financeiro. Como intangível, destaca-se a dependência emocional
decorrente do fato de que muitos desses sujeitos confundem-se com a empresa,
vendo a si próprios como sendoa própria empresa e vice-versa.
O dilema presente nos filhos-sucessores pela própria legitimação, conforme dito
anteriormente, é o mais evidente. Trata-se de um dilema porque, ao envolver a
questão da legitimação, envolve também uma simultânea mudança do papel exercido
pelo pai. Essas mudanças que envolvem o papel do pai-sucedido na empresa causam
uma série de reações nos filhos-sucessores. Os filhos acabam por viver os
próprios dilemas e também são afetados pelos dilemas vivenciados pelos pais,
assim como estes últimos são influenciados pelos dilemas dos filhos. Dessa
forma, resta evidente que esses dilemas vivenciados por pais e filhos têm
efetivamente potencial para comprometer o processo sucessório nas empresas
familiares pesquisadas.
É possível que o presente trabalho contribua para a pesquisa nessa área de
conhecimento ao oferecer uma visão específica sobre os dilemas vivenciados por
pais e filhos ante a questão sucessória nas pequenas e médias empresas
familiares pesquisadas. Conforme o objetivo principal proposto, foi possível
descrever e compreender como se expressam os dilemas entre pais e filhos
concomitantemente em atuação em relação ao processo sucessório nas pequenas e
médias empresas familiares pesquisadas.
A pesquisa aqui relatada tem algumas limitações: a impossibilidade de
automática generalização dos resultados en- contrados, devido às condições
peculiares encontradas nas empresas pesquisadas; a impossibilidade de
identificação do segmento de negócio pesquisado para o presente trabalho, o que
poderia permitir o aprofundamento da análise do objeto de estudo e maior
argumentação em prol das análises realizadas; a possível necessidade de uma
abordagem mais aprofundada em outras áreas do conhecimento, de preferência por
meio de uma estrutura multidisciplinar, haja vista os aspectos envolvidos terem
vieses diversos.
As sugestões para futuras pesquisas são no sentido de avaliar em profundidade
aspectos relacionados a determinadas fases da vida dos sujeitos, pais-sucedidos
e filhos-sucessores, haja vista que visivelmente cada momento de vida tem
pontos específicos a serem abordados, conforme já expuseram anteriormente Davis
e Tagiuri (1989). Outro aspecto que pode merecer estudo mais aprofundado diz
respeito à influência dos arquétipos de vida e morte no que tange à questão
sucessória, além de suas abordagens em diferentes culturas, visto que estas
sabidamente têm influência na forma como a sociedade e, em consequência, os
próprios sujeitos percebem essa situação. Outra sugestão, ainda, para pesquisa
futura é aprofundar o estudo sobre como se opera a questão sucessória junto aos
coadjuvantes do processo, entre eles os filhos não sucessores que trabalham na
empresa, os familiares acionistas que não atuam no negócio, o próprio corpo
gerencial e que não faz parte da família empresária, assim como os demais
parceiros estratégicos. Por fim, é possível estudar casos nos quais, ao
contrário do que ocorre neste estudo, os pais-sucedidos não tenham filhos-
sucessores aptos, qualificados ou disponíveis para continuarem o empreendimento
familiar.