Família, parentesco espiritual e estabilidade familiar entre cativos
pertencentes a grandes posses de Minas Gerais século XIX
A herança africana, sem dúvida, fez parte da experiência que os cativos tiveram
em sua condição escrava. Trazidos de "suas terras" de origem, compartilhando o
mesmo navio negreiro que os levaria até a sua nova morada, começavam ali, senão
anteriormente, a serem delineados os traços culturais que iriam levar grupos,
até então "dispersos" entre si, a compor as bases da comunidade africana e
afro-brasileira.1
Mantendo seus padrões culturais ou reelaborando em terras brasileiras os traços
que lhes permitiam pertencer a uma identidade africana, não há dúvidas que a
experiência dos cativos africanos, bem como seu legado cultural, influenciou
fortemente as comunidades escravas. Seja no interior das fazendas e dos sítios,
na área rural ou urbana, no nordeste ou no sudeste brasileiro. Os traços da
herança africana, constantemente renovados pelo tráfico, se fizeram sentir
cotidianamente entre os escravos. Isto ocorreu por meio do casamento, das
práticas de nomeação e apadrinhamento de seus filhos, em sua religiosidade, nas
lutas contra a opressão senhorial e em tantas outras atitudes tomadas por eles,
na busca de um espaço de autonomia, mesmo que restrito, dentro do sistema
escravista.
Robert Slenes, baseando-se nas observações do antropólogo Igor Kopytoff,
demonstrou que as "raízes" africanas não eram concebidas num determinado espaço
geográfico, e, sim, em seu grupo de parentesco, nos ancestrais e em uma memória
genealógica, pois "os africanos levam seus ancestrais consigo quando mudam de
lugar, não importando onde esses estejam enterrados".2 Seu livro procurou
demonstrar que os africanos trazidos ao Brasil, apesar das penosas condições e
da separação a que foram expostos, teriam buscado na medida do possível
organizar suas vidas "de acordo com a gramática (profunda) da família-
linhagem".3
Para o pesquisador, o encontro da cultura africana com a afro-brasileira dos
escravos, que foi mediada por suas experiências no cativeiro, tornou visível a
"flor" que não teria sido vista, ou entendida, pelos viajantes que estiveram no
Brasil do século XIX, muito menos por seus leitores, que perpetuaram na
historiografia brasileira, até pelo menos a década de 1970, o caráter anômico
de suas relações familiares.
A família escrava foi de vital importância para a vida cotidiana dos cativos,
por meio dela eles tiveram a oportunidade de manter e redefinir suas raízes
africanas. Puderam também contar com uma instituição forte que lhes
possibilitava auferir ganhos (sociais, econômicos e políticos), constituir
espaços de sociabilidade e solidariedade. Tratamos, aqui, de famílias escravas
que extrapolam os "núcleos primários"; ou seja, da intergeracional e ampliada,
baseada no parentesco consanguíneo e no ritual, já que ela se estendia muito
além dos limites de qualquer unidade domiciliar ou consanguínea. Podia
atravessar os limites legais da condição de escravo, por meio das relações
oriundas entre cativos e pessoas livres e libertas.4
O nosso objeto de estudo é o distrito de Santo Antonio do Juiz de Fora,
localizado na Zona da Mata Mineira, e que viria a se constituir em uma das
regiões mais prósperas, ligada à plantationcafeeira, e aquela com maior
contingente de escravos no decorrer do século XIX. A pesquisa aborda, mais
especificamente, três famílias possuidoras de grande mão-de-obra cativa,
encabeçadas pelos senhores Antonio Dias Tostes, comendador Francisco de Paula e
capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage. Desde o início do século XIX, a localidade
contou com uma maioria de cativos de origem africana, talvez até antes, pelo
grande afluxo de cativos. Constatação que pode ser observada por meio da
análise das Listas Nominativas de Habitantes de 1831,5 que apontam um
percentual de 56,8% de escravos procedentes da África contra 43,2% de nacionais
(crioulos, pardos e cabras). A maioria dos africanos encontrava-se entre jovens
e adultos, os nacionais estavam em sua maior parte entre as crianças.
Acreditamos que essa maioria de africanos, seja no total dos escravos, seja
entre os jovens/adultos, deva ter conformado os padrões da comunidade cativa
naquele distrito. A análise das propriedades das três famílias de elite daquele
local possibilita o entendimento das práticas culturais africanas em períodos
distintos. A maior parte dos cativos daqueles três proprietários, com a
procedência conhecida, era proveniente da África Central ou Centro-Oeste
africano, padrão reforçado por outras pesquisas sobre Minas Gerais e o sudeste
escravista.6 Isabel Reis concluiu que a proximidade entre os africanos e os
crioulos de primeira geração e, consequentemente, sua herança cultural foi
aspecto importante na vida familiar desses indivíduos.7
Slenes está "convencido de que gente dessas origens [kongo(bakongo)e mbundu],
junto com migrantes de grupos relacionados, formava a matriz cultural das
senzalas do Sudeste a partir da década de 1820".8 Ainda de acordo com o
historiador, o conhecimento de suas articulações comunitárias, sobretudo por
meio dos "cultos de aflição", pode ajudar na compreensão das "questões
relativas à formação do poder nas senzalas e das estratégias familiares e
identitárias dos escravos, no contexto de seu relacionamento com senhores e
outras pessoas livres".9
O mesmo autor, enfocando o Centro-Sul do Brasil da primeira metade do século
XIX, em especial as áreas rurais do Rio de Janeiro e de São Paulo, constatou
que essa região possuía condições favoráveis para o surgimento de uma
identidade comum entre escravos africanos, não possuindo equivalente em outra
parte do Brasil e em nenhum outro período.10
No ano de 1831, o distrito de Santo Antonio do Juiz de Fora tinha 172 cativos
descritos como casados e viúvos, 20,6% do total de escravos, a maioria composta
por africanos. A maior parte destes cativos encontrava-se nas faixas de posses
de tamanhos médio e grande, ou seja, propriedades com mais de 20 cativos.
O recenseador, em geral, caracterizou cada escravo dos fogos de acordo com as
variáveis discriminadas naquelas Listas e, quase sempre, descreveu primeiro
homens e depois mulheres.11 Entretanto, nas Listas Nominativas não existe
menções aos nomes dos cônjuges, o que não nos permitiu saber quem eram eles.
Esse limite nos impediu de traçar considerações sobre as possíveis relações
endogâmicas e exogâmicas daqueles indivíduos.12 Dos cativos casados no distrito
de Santo Antonio do Paraibuna, no ano de 1831, o homem mais jovem tinha 13 anos
e o mais velho, 62; as mulheres mais jovens 14 anos e a mais velha, 52.
Pressupõe-se, aqui, que o estado conjugal atribuído pelo recenseador dizia
respeito a uniões legítimas, sacramentadas perante a Igreja Católica.
Os relatos de viajantes que passaram pela Zona da Mata, durante o século XIX,
trazem algumas informações interessantes acerca da vida dos escravos, do tipo
de trabalhos realizados por eles, de suas habitações, de seu regime alimentar,
além de traços a respeito da localidade e de seus moradores mais
proeminentes.13 Podemos ter uma interessante noção das observações daqueles
viajantes, por exemplo, com um diálogo ocorrido, em 1816, entre Saint-Hilaire e
um escravo, quando ele passou pelos arredores onde se formaria o município
estudado.
Chegando a uma plantação de milho, o viajante avistou uma fumaça que "anunciava
uma choça qualquer de negro".14 Dirigindo-se àquele lado, encontrou uma
barraca, que os pretos da província de Minas tinham o costume de levantar
quando eram obrigados a dormir no campo. Ainda sobre os "mesquinhos abrigos", o
naturalista nos oferece uma descrição de sua arquitetura, bem como dos
utensílios e do mobiliário utilizados. Ao se aproximar da choça, Saint-Hilaire
se deparou com um negro sentado no chão "comendo pedaços de tatu assado sobre
carvões; nesse momento o mesmo pôs alguns pedaços numa meia cabaça, acrescentou
angu e ofereceu-me a comida de modo gracioso".15 A partir daí, o viajante
estabeleceu um diálogo com o escravo que, segundo ele, "não modifiquei uma
única palavra":16
Saint-Hilaire ' Você naturalmente se aborrece vivendo muito só no
meio do mato?
Escravo ' Nossa casa não é muito afastada daqui; além disso eu
trabalho.
Saint-Hilaire ' Você é da costa da África; não sente algumas vezes
saudade de sua terra?
Escravo ' Não: isto aqui é melhor; não tinha ainda barba quando vim
para cá; habituei-me com a vida que passo.
Saint-Hilaire ' Mas aqui você é escravo; não pode jamais fazer o que
quer.
Escravo ' Isso é desagradável, é verdade; mas o meu senhor é bom, me
dá bastante de comer: ainda não me bateu seis vezes desde que me
comprou, e me deixa tratar da minha roça. Trabalho para mim aos
domingos; planto milho e mandubis (Arachis), e com isso arranjo algum
dinheiro.
Saint-Hilaire ' É casado?
Escravo ' Não: mas vou me casar dentro de pouco tempo; quando se fica
assim sempre só, o coração não vive satisfeito. Meu senhor me
ofereceu primeiro uma crioula, mas não a quero mais: as crioulas
desprezam os negros da costa. Vou me casar com outra mulher que a
minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala minha
língua.
Saint-Hilaire: Tirei uma moeda e dei-a ao negro, e ele fez questão de
me oferecer alguns pequenos peixes e um pepino que foi buscar no seu
campo de mandubis.17
Logo a seguir, o naturalista francês fez declarações, a nosso ver, pouco
convincentes a respeito da escravidão e da cultura africana, afirmando que "os
negros não são sempre tão infelizes como se diz. A escravidão não é para eles o
que seria para nós, porque se preocupam pouco com o futuro, e, quando o
presente é suportável, não precisam de mais".18 Parece que ele levou ao pé da
letra o que o escravo lhe disse, sem se perguntar se o mesmo estava dizendo (a
um branco, "amigo" dos senhores) o que realmente pensava. Vale ressaltar que,
ao analisarmos o relato do viajante, não o consideramos como uma descrição
ipsis litteris da conversa e do encontro dele com o escravo. O relato escrito é
a transcrição de uma dinâmica oral, que está permeada pelo olhar de quem
escreve.
Estando em uma zona de contato, o escravo já teria realizado uma interação
cultural. Mesmo não conseguindo controlar a cultura dominante, apropriou e
ressignificou alguns de seus elementos culturais.19 Ao dialogar sobre si com o
viajante, o escravo pode ter feito uma representação daquilo que ele queria que
fosse absorvido pelo estrangeiro. Nesse sentido, é interessante pensar-se em
que medida os relatos de viajantes, por exemplo, foram moldados pelos não
europeus (escravos em nosso caso); e até que ponto o que foi dito pelo escravo
era a imagem que ele queria que fosse passada, muitas vezes por saber que era a
mais adequada e/ou vantajosa naquele momento.
Voltando ao diálogo entre Saint-Hilaire e o negro, o excerto acima exposto,
além de explicitar a expectativa do escravo africano com relação ao seu
casamento, demonstra a sua preferência por uma relação endogâmica, indicando a
possibilidade de escolha por parte do cativo, quando o mesmo renega uma cativa
crioula oferecida por seu senhor. A questão das "escolhas" dos cônjuges pode
ser bem entendida no livro de Sandra Graham, no qual podemos conhecer a
história da cativa "Caetana", que lutou tão ferozmente contra a escolha de seu
consorte e o consequente casamento com ele. Pediu a anulação do matrimônio,
enfrentando as pressões exercidas pela autoridade de seu dono, e depois pela de
seu tio.20
Tendo como base o diálogo acima e o afirmado pela historiografia, deve ser
muito provável que os(as) escravos(as) listados(as) como casados(as), tenham
tido seus cônjuges dentro da própria posse. Entretanto, não nos podemos
esquecer de que os cativos podem ter sido casados com outras escravas, agora na
condição de ex-escravas, bem como com outras que habitavam posses diferentes
das suas.21 Também é necessário relembrar que esses casamentos estavam muito
sujeitos ao tamanho da posse em que se encontravam os escravos. De acordo com
Slenes, em estudo sobre Campinas (SP) nos anos de 1870, o casamento entre
escravos de posses diferentes não ocorreu de maneira substancial. Médias e
grandes propriedades, por possuírem maior percentual de cativos, propiciaram
maior pool aos enlaces matrimoniais entre escravos, sendo as percentagens de
homens e mulheres algumas vezes casados extremamente sensíveis à razão de
sexo.22
Brenda Stevenson, em trabalho sobre Loudoun, na Virginia, sul dos Estados
Unidos, localidade que estava perdendo cativos no tráfico interno, percebeu que
as famílias mais comuns na região eram as matrifocais. Sua explicação para tal
constatação foi a de que havia naquela localidade uma maioria de casamentos
entre cativos de propriedades diferentes (abroad marriages), tanto nas pequenas
quanto nas maiores. Dessa forma, a autora argumentou que as crianças passavam a
maior parte do tempo com suas mães e, ocasionalmente, com seus pais. Todavia,
Stevenson refutou a falta de uma referência masculina na vida desses infantes,
já que a sua socialização não se dava apenas no âmbito da chamada família
conjugal, mas também e, principalmente, dentro da comunidade escrava, por meio
dos laços de parentesco e amizade.23
Conclusões opostas às de Stevenson foram feitas por Ann Patton Malone em
pesquisa sobre três propriedades na Louisiana. Em uma região que vinha ganhando
escravos no tráfico interno, Malone percebeu que a maioria das famílias
encontradas eram as nucleares e os casamentos entre escravarias eram raros,
provavelmente pelo equilíbrio entre os sexos e pela proibição dessas uniões
pelos proprietários.24
Com essa ressalva e baseados nas já citadas Listas de Habitantes de 1831, nas
quais podemos ter uma visão mais adequada sobre as origens25 dos cativos
casados e viúvos daquela localidade, no início do século XIX, tentaremos, por
meio do Gráfico_I, uma aproximação a respeito dos tipos de relações
matrimoniais que aqueles cativos podem ter tido.
![](/img/revistas/afro/n46/a01grf01.jpg)
Apesar do alerta que fizemos sobre o conhecimento do tipo de relações
existentes àquela época, arriscamos algumas hipóteses acerca dos casamentos
endogâmicos e exogâmicos, tendo como base o conhecimento quantitativo das
origens (os casados eram 62 africanos e 36 africanas; 15 crioulos e 41
crioulas, mais uma crioula viúva; sete pardos e oito pardas, mais uma parda
viúva; um cabra).
Podemos notar que os africanos excederam em número suas parceiras de mesma
origem, situação completamente oposta a dos crioulos e dos pardos, em que as
mulheres eram maioria. O indivíduo descrito como cabra era um homem, não
havendo entre os apresentados como casados nenhuma cativa com a mesma
designação.
Pois bem, o conhecimento dos dados expostos no Gráfico_I permite visualizar que
os homens africanos, que eram a maioria em relação às mulheres de mesma origem,
não puderam se casar exclusivamente dentro do mesmo grupo, realizando, dessa
forma, casamentos do tipo exogâmico. Em contrapartida, os crioulos e os pardos,
que constituíam a minoria, ambos em relação às mulheres de mesma origem que a
sua, tiveram maiores possibilidades de se casar com cativas do mesmo grupo,
provavelmente, se não houve naquelas propriedades muitos casamentos entre
escravos de posses diferentes, ou com ex-cativos ou livres. Os cativos,
principalmente os africanos, tiveram que contrair matrimônio com cônjuges de um
grupo de origem diferente do seu, caracterizando casamentos do tipo exogâmico.
É isso que os dados sugerem, caso dos africanos, dos crioulos, dos pardos e dos
cabras que tenham contraído, em sua maioria, casamentos com cônjuges da mesma
propriedade. Situação que não deve ter sido diferente para o único cativo
casado descrito como cabra.
A distribuição dos escravos casados e viúvos em faixas etárias demonstra que a
maioria pertencia à dos jovens/adultos, com 76 mulheres (sendo duas viúvas) e
70 homens; seguida pela dos idosos com 14 homens e seis mulheres. Temos ainda
uma população bastante jovem que se estava casando, composta por aqueles que se
encontravam na faixa das crianças (1'14 anos de idade), com quatro mulheres e
dois homens. A supremacia das mulheres no casamento pode ser observada pela
baixa razão de sexo, encontrada entre os escravos casados nas três faixas
etárias, exceção feita aos idosos. De maneira geral, houve uma razão bem
próxima do equilíbrio, chegando a 97,7 homens por grupo de 100 mulheres (Tabela
I).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab01.jpg]
A análise dos escravos casados ou viúvos demonstra que o aumento do tamanho dos
fogos é diretamente proporcional ao dos cativos casados de ambos os sexos,
quanto maior o número de escravos num determinado fogo, maior o percentual de
homens e mulheres casados.
No tocante aos homens e às mulheres acima dos 15 anos que contraíram
matrimônio, detectamos para elas o mesmo padrão, ou seja, o aumento das faixas
de tamanho das posses foi acompanhado pelo da percentagem do número de casadas.
Contudo, assim como os cativos, percebemos um aumento entre a primeira e a
segunda faixas de tamanho das propriedades, com um ligeiro decréscimo entre
médias e grandes propriedades. Contudo, de maneira geral, quanto maior a posse,
maior a possibilidade de encontrarmos escravos casados (Tabela_II).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab02.jpg]
Em todas as faixas, foram as mulheres que proporcionalmente mais se casaram.
Isso se explica pelo fato de que eram minoria e puderam dispor de um
contingente de homens acima dos 15 anos; as cativas devem ter contado com um
"estoque" de possíveis cônjuges para contrair o casamento, o que se reflete nos
percentuais abaixo descritos.
Em sua análise sobre as posses de escravos no município de Campinas em 1872,
Slenes apontou que entre as médias e as grandes posses, respectivamente, 10 a
49, e 50 ou mais cativos, 67% das mulheres acima de 15 anos eram casadas ou
viúvas. Se nos ativermos ao conhecimento específico de cada faixa de fogo/
posse, veremos que, nas posses grandes do distrito de Santo Antonio do Juiz de
Fora, foram encontradas 40,7% das escravas, nessa faixa etária, casadas ou
viúvas. Aquelas que pertenciam às posses médias tiveram um percentual um pouco
maior, 47,7%. Nas pequenas posses, encontramos apenas 11,6% de cativas casadas.
As 86 mulheres casadas e viúvas acima dos 15 anos, no ano de 1831,
correspondiam a 48,3% do total de todas as cativas com idades acima daquela
(178), cifra ainda bem menor que a exposta pelo pesquisador. Já os homens eram
20,0% (Tabela_II).
Utilizando a mesma classificação de Slenes, com relação à idade das cativas
casadas ou viúvas, cremos que as cifras por nós encontradas são dignas de
comparação. O número de casadas ou viúvas no total daquela população feminina,
e que ficaram a parte de nossos cálculos, compreendeu apenas quatro mulheres, o
que não é suficiente para alterar demasiadamente nossos argumentos. De maneira
geral, nossos dados parecem corroborar, mais uma vez, o entendimento que se tem
por parte da bibliografia especializada, que as médias e as grandes posses
contavam com os maiores percentuais de homens e mulheres casados ou viúvos.
O tamanho das posses em escravos foi uma variável que influiu sobremaneira nas
possibilidades de uma união formal entre os cativos. Esse aspecto foi abordado
por Slenes, que buscou entender a variação nos padrões de casamento
(religioso), por tamanho de fogo ou posse (pequenas, 1 9 escravos; e médias e
grandes, respectivamente, 10 a 49, e 50 ou mais cativos) em Campinas. Slenes
percebeu na "proibição", pelos proprietários, do casamento entre cativos de
diferentes posses e entre escravos e libertos um importante inibidor nos
índices de casamentos formais nas faixas de tamanho de fogo/posse, não só
naquela localidade, mas também em outras regiões.26
O conhecimento da média das idades dos escravos casados é uma questão
importante. De maneira geral, os homens casaram-se, pelo menos do ponto de
vista legal, com idades maiores que a das mulheres por volta dos 32 anos
enquanto elas tinham 25,5 anos. A idade média dos casados e viúvos, acima de 15
anos, foi de 28,7 anos (Tabela_III).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab03.jpg]
Essas tendências podem ser observadas quando analisamos as médias em cada faixa
de tamanho dos fogos, com os homens com idades na casa dos 30 anos e mulheres
na dos 20. Cabe, porém, ressaltar que essa fonte abarcou um ano específico
(1831), e não as datas e as idades em que os escravos contraíram o sacramento
do matrimônio perante a Igreja Católica. Certamente, essas idades que
apresentamos são muito mais altas do que realmente deveriam ser. Embora essa
fonte, devido a essas limitações, não seja a mais adequada para o conhecimento
preciso das idades médias, reflete uma tendência anterior ao ano de 1831, o que
os registros paroquiais muito provavelmente confirmariam, qual seja a de que as
mulheres se casavam com idades inferiores às dos homens em todas as faixas de
tamanho dos fogos.
Rômulo Andrade, em seu estudo sobre Juiz de Fora do século XIX, encontrou uma
exogamia praticada em maior número por homens africanos casados com mulheres
crioulas. Segundo o historiador, o que ocorreu não foi uma preferência por
parte dos cativos, a demografia desequilibrada da plantation desfavoreceu o
africano, que não encontrou dentro das posses uma possível cônjuge da mesma
origem. O pesquisador demonstrou ainda que os africanos tinham idade mais
avançada que as crioulas, "praticamente todas já casadas (com os de mesmo
grupo, em quase sua totalidade) ou enviuvadas". Outra observação feita por
Andrade para explicar os casamentos entre escravos de origem diferente está nas
limitações impostas pelo sistema escravista, que levava africanos e crioulos "a
recorrer às 'sobras' do sexo".27
O capitão Tostes, o mais destacado proprietário de escravos recenseado em Juiz
de Fora no ano de 1831, possuía uma maioria esmagadora de cativos africanos do
sexo masculino e em idade produtiva, entre os 15 e 40 anos de idade. O fato de
não contarmos com designações menos genéricas do termo africano, bem como a
ausência da referência aos nomes dos casais, não nos permitiu inferir um pouco
mais acerca das escolhas no tocante ao casamento, ou seja, sobre a endogamia ou
exogamia nos casamentos daquela posse. Entretanto, parece ter ocorrido a mesma
tendência esboçada para a localidade como um todo.
O número de escravos descritos como casados era 20. A maioria deles, homens ou
mulheres, eram africanos, respectivamente, 15 e 14, seguidos por 5 crioulos e 6
crioulas. Se os descritos como casados naquele fogo o eram entre si, o mesmo
gráfico nos dá condição de perceber a possibilidade de casamentos exogâmicos e
endogâmicos. Caso os africanos casassem apenas com africanas e o mesmo
ocorresse entre os crioulos, mesmo assim haveria um déficit. Os africanos,
tanto homens quanto mulheres, podem ter tido a oportunidade de se casar apenas
entre eles, contudo, um dos homens teria de recorrer ao casamento com escrava
crioula (Gráfico_II).
[/img/revistas/afro/n46/a01grf02.jpg]
Da mesma forma, pode ter havido a possibilidade de que os crioulos tenham se
casado apenas com crioulas, porém, como havia uma a mais do que o número de
cativos de mesma origem, certamente, se seu cônjuge pertencia àquela
propriedade era um escravo africano. Talvez aquele africano a que nos referimos
acima, caso se tivesse casado no interior da posse, tenha recorrido a um
casamento do tipo exogâmico, possivelmente com a crioula "em excesso". O único
casal efetivamente descrito dizia respeito a uma relação do tipo exogâmico,
entre Roque, escravo africano de cinquenta anos, casado com a crioula liberta
Antonia, também com cinquenta anos. A endogamia por origem foi bastante comum
na Bahia, segundo constatou Isabel Reis, e não só nas cerimônias sacramentadas
pela Igreja. De maneira geral, a pesquisadora detectou que os africanos se
uniram, na maior parte das vezes, com cônjuges de mesma origem.28
A partilha de bens de 1837 nos possibilitou conhecer 44 cativos descritos como
casados, 25,7%, um total de 22 casais. Havia, ainda, outros três homens na
condição de casados, entretanto sem menção alguma a suas esposas, e ainda um
escravo viúvo. Dos casados, de quem foi possível saber a origem, 22 eram
africanos e quatro, crioulos. Dos primeiros, 17 eram da "África Central", nove
oriundos de Cabinda, sete do Congo e um de Monjolo. Entre os "angola", eram
dois de Benguela, havia ainda dois cassange, e um rebolo. Dos três cativos
casados sem a nomeação de seu cônjuge, dois eram de origem africana, um de
Cabinda e outro de Benguela. Sobre "Paulo Caxoeira", outro desses casados sem a
nomeação de seu cônjuge, não conhecemos a origem.
Ainda em relação aos casais, notamos um equilíbrio entre exogâmicos e
endogâmicos. Quatro deles se casaram com pessoas de mesma procedência, Marcos e
Francisca (cabinda); Vicente e Esmeria (congo); Leandro e Izabel (congo) e
Leandro e Ignacia (crioulos). Os casais exogâmicos perfizeram o mesmo número
com os seguintes casais: Baptista, cabinda, e Maria, cassange, Martina, monjolo
e Francelina, cabinda, Fernando, congo e Antonia, cabinda e Elias, cassange e
Anna, cabinda. Para os outros casais, não foi possível saber suas origens.
Quando essa aparece, abarca, em sua maioria, os homens de procedência africana.
Na Tabela_IV, temos a oportunidade de visualizar o perfil desses 22 casais
descritos.
[/img/revistas/afro/n46/a01tab04.jpg]
Todavia, com relação aos filhos desses casais, conseguimos saber da existência
de apenas cinco crianças, todas elas contando, no máximo, um ano de vida. São
elas: Sebastião, crioulo, filho de João José e Thereza; Lourença, filha de
Fernando, congo e Antonia, cabinda; Martinho, filho de Elias, cassange e Anna,
cabinda; Ludovino filho de Matheus, congo e Marianna; e Herculano, filho de
Lourenço, rebolo e Catharina. Muito provavelmente esses cativos devem ter tido
outros filhos que não sobreviveram até o momento dessa partilha.
De alguns desses casais, não foi possível conhecer a idade, mas, na maioria
deles, observamos que o homem tinha idade superior à da mulher. A Tabela_V
demonstra os vínculos familiares presentes naquela posse no ano de 1837. A
princípio, a mesma contou com famílias do tipo nuclear, com e sem filhos.
[/img/revistas/afro/n46/a01tab05.jpg]
Na relação entre sexo e estado conjugal, naquelas comunidades cativas,
verificamos que os homens eram, em sua maioria, solteiros, tanto para o ano de
1831, quanto para 1837. As mulheres solteiras chegaram a 30,0% no primeiro
período e no segundo tiveram uma pequena queda, chegando a 26,7%. Diferente do
ocorrido com estas, as casadas, que já eram maioria no ano de 1831, elevaram um
pouco sua percentagem quando da partilha ocorrida no ano de 1837, o que leva a
crer que o casamento deve ter sido bastante procurado e, quem sabe, incentivado
pelos Dias Tostes, mesmo com a aquisição de escravos no tráfico atlântico
(Tabela_VI).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab06.jpg]
Entre os Paula Lima, outra família pesquisada, havia outros casais com filhos
entre os escravos inventariados, assim como registros de casamentos e de
batizados nos livros da paróquia de Santo Antonio de Juiz de Fora.29 Nessa
posse também encontramos maior percentagem de mulheres casadas em relação aos
homens. Aqui vale a mesma ressalva feita para os cativos de Antonio Dias
Tostes. Certamente essas cifras representam, também, a razão entre o número de
homens e mulheres que se encontravam no interior da propriedade. Estando os
primeiros em maioria, o pool de mulheres em idade de se casar deve ter sido um
tanto quanto restrito àqueles homens (Tabela_VII).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab07.jpg]
Mesmo assim, conseguimos encontrar, listados nessa fonte, 38 casais, o que
equivalia a 37,2% do total da posse. Eram 87 escravos, entre filhos, pais e
mães, 42,1% do total dos cativos, que pertenceram a algum tipo de família.
Pudemos localizar ainda três famílias com mães e seus filhos, e uma com o pai e
o filho. Com relação aos vínculos familiares, essa posse se assemelha à dos
Dias Tostes no ano de 1837 (Tabela_VIII).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab08.jpg]
Na maioria das vezes, não havia referência à origem dos cônjuges, e quando essa
aparecia apenas um deles era designado. Como pode ser visto na Tabela_IX, a
maioria dos cativos casados, no momento do inventário, não possuía sua origem
descrita, totalizando 31.
[/img/revistas/afro/n46/a01tab09.jpg]
A comunidade cativa encontrada na propriedade do capitão Manoel Ignacio de
Barbosa Lage era composta por 18 casais constituindo famílias, que foram
descritos como casados, provavelmente reconhecidos pela Igreja Católica,
totalizando 36 indivíduos, ou seja, 30,5% do total de cativos encontravam-se
unidos pelo casamento. Deparamo-nos com três mães solteiras, com seus filhos
sem indicação alguma dos nomes dos pais.30 Nessa posse também o número
percentual de mulheres casadas excedeu o dos homens (Tabela_X).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab10.jpg]
Dentre os cativos que contraíram o matrimônio católico, encontramos apenas um
casal entre os escravos que moravam na cidade, Bonifácio, pardo, carpinteiro de
45 anos, casado com Cândida, parda de 50 anos, aparentemente sem filhos. Os
outros 17 casais encontravam-se na fazenda da Boa Esperança. A Tabela_XI nos dá
um panorama do perfil dos casais encontrados naquela propriedade, no tocante à
variável origem.
[/img/revistas/afro/n46/a01tab11.jpg]
Notamos aí um predomínio de casais em que os homens eram, em sua maioria,
africanos (de nação) casados com mulheres que, aparentemente, não
compartilhavam com eles a mesma origem. Em dois desses casos, podemos ter
alguma evidência sobre a esposa André, de nação casado com Joanna, crioula, e
Silvério, de nação casado com Julianna. As mulheres designadas como africanas
perfizeram um número pequeno e, aparentemente, não foram desposadas por nenhum
dos cativos oriundos do continente africano e nem por crioulos. Em todos os
casais, o homem, de origem africana ou não, era mais velho que sua esposa,
exceção feita à escrava Theodora, de 35 anos, casada com Nicolau crioulo, à
época com 26 anos de idade.
Dos casais listados acima, a maioria tinha, no momento do inventário, filhos
designados. Com exceção de Bonifácio e Cândida (pardos), André (de nação) e
Joanna (crioula), Calixto (de nação) e Brígida, Seraphim (de nação) e Rita, e
Joaquim (de nação) e Luiza que não tiveram, relacionado na avaliação, nenhum
filho, sobre os demais foram mencionados 29 filhos no total, entre crianças e
jovens. Tivemos ainda a oportunidade de conhecer as relações familiares de três
escravas, a princípio mães solteiras. Minelvina, parda, deu à luz três filhos,
Rachel, de nação, a outros três e Joaquina, também de nação, a dois; ou seja,
havia um total de trinta e sete escravos com alguma referência imediata forte,
com seus pais casados e/ou com as mães. As idades variavam entre os 26 anos de
Hilário, filho de Fidelis, de nação, e Margarida, e um mês, idade de Maria,
filha de Antonio, pedreiro, e Prudência; apenas de um desses filhos não foi
possível conhecer a idade. Essa posse teve, então, famílias do tipo nuclear,
casais com ou sem filhos, e grupos matrifocais mães e seus filhos presentes
(Tabela_XII).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab12.jpg]
A propriedade do capitão Manoel Ignácio contou com o nascimento de cativos para
o incremento de sua posse de escravos.31 Se somarmos os escravos detentores de
algum vínculo familiar, podemos concluir que 76 cativos daquela propriedade, ou
seja, 64,4%, dos 118 escravos pertencentes a ela, fizeram parte de algum grupo
familiar.
Poucos foram os cativos descritos como portadores de algum tipo de ofício
especializado, apenas três escravos um pedreiro, um carpinteiro e um tropeiro.
Diferentemente de José, tropeiro, de 38 anos, os outros dois possuíam laços
afetivos e familiares: o carpinteiro Bonifácio, pardo de 45 anos, casado com
Cândida, parda de 50 anos, residentes na cidade, e ainda Antonio, pedreiro,
casado com Prudência, esses moradores na fazenda da Boa Esperança.
Acima pudemos ter acesso aos vínculos familiares e aos perfis dos casais nas
posses de Antonio Dias Tostes, do comendador Francisco de Paula Lima e do
capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage. Isto nos permitiu vislumbrar as
possibilidades de laços familiares dos cativos na primeira e na segunda metade
do século XIX. O Gráfico_III apresenta o percentual dos escravos com algum tipo
de vínculo familiar, segundo o total de cativos das propriedades. Podemos notar
que o mesmo demonstra uma curva ascendente entre os anos de 1831 e 1868. Ao que
parece, à medida que os anos se passaram, as possibilidades de algum tipo de
laço familiar aumentaram. Porém, talvez o que esse gráfico esteja refletindo
sejam as estratégias distintas dos ditos proprietários. Paula Lima 43,9% de
escravos com algum tipo de vínculo familiar. Em 1868, na propriedade do capitão
Manoel Ignácio Barbosa Lage, existia um percentual de 64,9% de escravos com
tais laços.
[/img/revistas/afro/n46/a01grf03.jpg]
Analisamos as posses da família Tostes no período anterior ao fim do tráfico
efetivo de cativos (1850). Apesar de todas as dificuldades na aquisição de
escravos àquela época, como, por exemplo, o aumento do preço, eles devem ter
investido ainda mais na compra de cativos. Nesse caso, homens em idade
produtiva, dificultando a consecução de laços familiares, legítimos ou
ilegítimos. Outra hipótese a ser levantada é a de que, em 1831, a posse fosse
mais nova, constituída por escravos (adultos) comprados, que só depois vieram a
ter filhos. Entretanto, cabe a ressalva de que, entre 1831 e 1837, houve um
aumento desses vínculos, talvez consequência de uma nova estratégia na
manutenção/ampliação de sua posse em escravos com o incentivo a relações
familiares.
Essa situação deve ter sido diferente para Francisco de Paula Lima e Manoel
Ignácio Barbosa Lage, que já tinham escravarias mais equilibradas. Com a
impossibilidade de ter uma farta oferta de cativos, pelo menos como as do
período anterior ao ano de 1850, devem ter, quem sabe, incentivado as relações
entre seus escravos. Isto fica patente na superioridade dos vínculos familiares
encontrados em suas propriedades, quando comparados com os da dos Dias Tostes
em 1831 e 1837.
Provavelmente reduziram o ritmo de compra de novos escravos; com isso o grupo
de escravos passou cada vez mais a se aproximar de uma população "normal", com
mais casados e/ou viúvos e mais crianças, isto é, não necessariamente houve uma
mudança de intenções por parte dos senhores embora a hipótese faça sentido.
As propriedades estudadas possibilitaram aos cativos, até certo ponto, um
convívio familiar, bem como a constituição de família em suas "múltiplas
formas". A análise das relações de parentesco espiritual nos pode ajudar a
conhecer um pouco mais como se estruturaram as redes de solidariedade e
reciprocidade daqueles escravos.
O parentesco espiritual: em busca de solidariedades
O batismo cristão se mostrou, no âmbito da sociedade brasileira, uma
instituição forte e almejada por todos os estratos da população. Para os
cativos não foi diferente. Aqueles indivíduos buscaram esse sacramento e
estabeleceram com isso relações de solidariedade e reciprocidade, que se
consubstanciaram por meio do compadrio (parentesco espiritual). Para além de
seu significado católico, os laços estabelecidos pelos cativos e seus padrinhos
extrapolaram o espaço da Igreja e mostraram-se presentes em toda a sociedade.32
De acordo com Stuart Schwartz:
[...] no ato ritual do batismo e no parentesco religiosamente
sancionado do compadrio, que acompanha esse sacramento, temos uma
oportunidade de ver a definição mais ampla de parentesco no contexto
dessa sociedade católica escravocrata e de testemunhar as estratégias
de escravos e senhores dentro das fronteiras culturais determinadas
por esse relacionamento espiritual.33
Tais laços também tinham uma dimensão social fora da estrutura da Igreja.
Podiam ser utilizados para reforçar o parentesco já existente, solidificar
relações com pessoas de classe social semelhante ou estabelecer ligações
verticais entre indivíduos socialmente desiguais. Construído na Igreja e
projetado para dentro do ambiente social, "o compadrio significava mais que
tudo, a consecução de um laço de aliança que atava, à beira da pia batismal, os
pais de uma criança e seus padrinhos".34
Vários estudos acerca desse tema, embora com métodos, perguntas e inquietações
diferentes, indicam alguns padrões que caracterizavam o batismo de escravos no
Brasil e a formação de laços de parentesco espiritual (compadrio).35 Os cativos
do Brasil, de acordo com a condição social a que estavam submetidos,
estabeleceram várias opções de compadrio. Era comum pensar-se, mediante um
enfoque "funcionalista", que os escravos tenderam a ter como padrinhos ou
compadres seus próprios senhores, estratégia clara para a obtenção de
benefícios ou regalias futuras. Assim, ao invés de gerar laços de solidariedade
entre os cativos, o compadrio tinha uma relação meramente utilitária e
reforçava a instituição da escravidão.
Os percentuais de crianças legítimas e naturais eram bastante equilibrados
entre os Dias Tostes e os Paula Lima, já os Barbosa Lage tinham uma maioria de
cativos legítimos. As três famílias senhoriais levaram ao batismo muitos
cativos. Nesse aspecto, sobressaíram-se os Dias Tostes com 194 escravos
batizados, seguidos pelos Paula Lima e pelos Barbosa Lage, com quase o mesmo
número de batizandos a pia, respectivamente, 128 e 126. Em números absolutos,
os Dias Tostes e os Barbosa Lage também foram os que mais levaram crianças
escravas legítimas, ou seja, filhos de uma união sancionada pela Igreja, àquele
sacramento cristão. Os Paula Lima tiveram pouco mais da metade de escravos
legítimos em suas posses, totalizando 65 (50,8%).
O capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage e seus descendentes, ao que parece,
continuaram incentivando o nascimento de crianças em suas posses, por
conseguinte o casamento legalmente formalizado de seus cativos, o que pode ser
percebido pela alta percentagem de legítimos (101), equivalendo a 80,2% dos
batizandos. A única família onde a maioria dos escravos foi fruto de relações
ilegítimas, consequentemente naturais, foi a dos Dias Tostes que, de acordo com
os registros paroquiais de batismo, contaram durante aquele período com 114
cativos, 58,8% descritos como naturais (Tabela_XIII).
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A família Tostes levou ao sacramento do batismo 194 crianças (cativas e livres/
libertas). A maioria foi descrita como natural (ilegítimo), ou seja, fruto de
uma relação não sacramentada pela Igreja Católica, o que não quer dizer que os
cativos não tinham seus pais presentes, eram 114 crianças (58,8%).36 Os
padrinhos e as madrinhas dos escravos da família Dias Tostes encontravam-se em
todas as camadas da sociedade daquela época. Como se pode observar na Tabela
XIV, as madrinhas escravas estiveram, naquele sacramento, na maior parte das
vezes com padrinhos de igual condição que a sua, o mesmo acontecendo com os
padrinhos 25 (12,9%). Elas também estiveram apadrinhando três crianças, porém,
nesse caso, não foi possível conhecer a condição de seus parceiros. Entre
aqueles em que se pôde detectar o status jurídico, os livres, com parceiros de
condição diversa, perfizeram o segundo maior contingente, com os padrinhos
participando de 7,7% dos batismos e as madrinhas, 11,9.
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Salta aos olhos o grande número de padrinhos e madrinhas que não tiveram suas
condições descritas pelos párocos responsáveis por aquele sacramento, situação
que também ocorreu com os Barbosa Lage e os Paula Lima. Pela análise dos nomes,
acreditamos que muitos daqueles homens e mulheres encontravam-se distribuídos
entre indivíduos de condição escrava ou livre/liberta.
Os registros apontam várias pessoas descritas pelo pároco com apenas um nome,
indicativo, quem sabe, de sua condição cativa, visto que se fossem livres,
mesmo que pobres, possivelmente teriam seu sobrenome indicado. Todavia, como é
sabido, era costume dos libertos - e até mesmo dos livres pobres , devido aos
seus laços de dependência , a adição ao seu nome do sobrenome de seus ex-
proprietários ou senhores.37 Contudo, nem no caso dos possíveis cativos ou dos
livres/libertos, houve a possibilidade de designação da condição, o que elevou
as cifras dos padrinhos e das madrinhas com status jurídico desconhecido.
Talvez esses números possam demonstrar a preferência, por parte dos pais
daqueles batizandos, para tecer relações de parentesco social com indivíduos de
condição superior à sua. Se essa gama de padrinhos e madrinhas fosse cativa,
certamente sua condição não nos escaparia, pois, junto a sua indicação, viria o
nome de seu proprietário. Não houve nenhum caso de apadrinhamento em que o
padrinho fosse de origem divina (Nossa Senhora etc.), e dos batizandos somente
quatro não tiveram padrinhos, no caso das madrinhas esse número sobe para 12.
Na posse dos Barbosa Lage, apesar do alto percentual dos padrinhos e das
madrinhas, em que foi possível saber a condição (41,3%), a maioria deles era
escrava, 65 (51,6% do total). Acerca da preferência por padrinhos e madrinhas
escravos, em seu estudo sobre a escrava Caetana e sua luta em não aceitar o
casamento que lhe foi imposto por seu senhor, Graham apontou para um aspecto
interessante nas relações de compadrio entre os escravos. De acordo com ela:
Em vez de competir por padrinhos livres, esses escravos se
apadrinhavam mutuamente. Ao servir de padrinho, o cativo ganhava seus
próprios dependentes e seguidores fiéis, reproduzindo na senzala os
padrões de clientelismo que, em geral, se pensa que incluíam os
cativos apenas como recebedores de favores, não como protetores. Os
laços que ligavam alguns escravos excluíam outros, marcando, ainda
mais, uma hierarquia entre eles. [...] Os escravos não se enganavam
ao ver vantagens em padrinhos cativos. Consideremos o significado das
relações de Caetana. Sem duvida, faltam os laços com padrinhos
livres, com os benefícios tangíveis que poderiam oferecer:
intervenção protetora ou de apoio junto ao senhor, talvez até a
alforria. Não obstante, outro escravo, especialmente um da mesma
fazenda, podia ser mais acessível e confiável, alguém inclinado a ter
em alta consideração o afilhado e os pais e responder com mais
rapidez ou generosidade a alguma necessidade. Cativos de
consideração, como Alexandre e Luísa Jacinta, poderiam ser mais
eficazes do que padrinhos livres, mas pobres, que mal conseguiam
sobreviver nas margens da sociedade branca respeitável.38
Logo a seguir, vêm os "não consta", que, como tentamos expor acima, podiam ser,
e certamente o eram, de condições diversas. Contudo, não foi possível saber seu
statusjurídico. Ao que parece, a comunidade cativa daquelas posses se apoiava
fortemente em seus "iguais", no que diz respeito ao apadrinhamento das
crianças, filhas de mulher escrava. Houve também, embora de maneira menos
intensa, o apadrinhamento com indivíduos de condição superior a dos pais
daquelas crianças. Nesse caso, percebemos um cativo sendo apadrinhado por uma
madrinha forra e um padrinho escravo. Houve ainda o apadrinhamento de uma
criança com ambos os padrinhos libertos e outra cujos padrinhos eram forros
(Tabela_XV).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab15.jpg]
O apadrinhamento entre os escravos da Família Paula Lima aproxima-se mais dos
padrões encontrados para os Dias Tostes. Percebe-se, nesse aspecto, um alto
índice de padrinhos e madrinhas sem indicação de sua condição. Notamos que as
madrinhas escravas tiveram como padrinhos apenas cativos de mesma condição que
a sua. Já os dessa condição apadrinharam ainda com uma forra e duas "não
consta". Entretanto, nessas posses parece que houve maior predileção na busca
por padrinhos de condição social superior à dos pais dos batizandos. Notamos
que 23 madrinhas livres estiveram presentes àquele sacramento com padrinhos de
condições diversas, cinco deles livres, havia, ainda, outro padrinho livre com
uma madrinha "não consta". Como já dissemos, a única forra que encontramos teve
como parceiro um escravo (Tabela_XVI).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab16.jpg]
Na Tabela_XVII, encontramos os percentuais dos batizandos nascidos antes da Lei
do Ventre Livre, excluímos, portanto, os filhos de mulher escrava, batizados
por aquelas famílias a partir de 1871. Os Barbosa Lage, que sempre levaram
muitos cativos ao sacramento do batismo, tinham um percentual de 84,5% de
crianças legítimas, corroborando talvez sua aparente preferência pelo aumento
de suas posses em cativos por meio do nascimento de crianças. Apesar de termos
apontado que Antonio Dias Tostes utilizou-se do tráfico para a manutenção/
ampliação de sua posse, parece que, sobretudo a partir da segunda metade do
século XIX, seus herdeiros conseguiram incrementar suas propriedades por meio
também do nascimento de crianças. Foram 64 escravos legítimos ou 50,8%. Os
Paula Lima tiveram um total de 52 crianças legítimas (50,1%), dos 102 cativos
nascidos antes da lei de 28 de setembro de 1871, levados por aquela família ao
sacramento do batismo.
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Os percentuais de nascimento de crianças legítimas, fruto de uma união
sacramentada pela Igreja, não são tão baixos se comparados com outras
regiões.39 Eni de Mesquita Samara destacou que "embora predominassem entre os
escravos os solteiros, as porcentagens de famílias constituídas legitimamente
ou através de uniões consensuais são representativas e talvez comparáveis aos
dados referentes à população livre e pobre".40
É preciso ressaltar que a ilegitimidade foi um fato comum na vida brasileira,
tanto entre as pessoas de ascendência africana quanto as de origem europeia.
Entretanto, as populações com ilegitimidade elevada não viviam desprovidas de
laços familiares. Por meio dos registros de batistério na São Paulo urbana do
século XIX, Kuznesof encontrou "a presença de pais e, mais especialmente, de
avós, nas cerimônias de bebês ilegítimos".41
Ainda a esse respeito, Eliane Cristina Lopes apontou que os costumes africanos
muitas vezes contribuíram para a resistência às uniões sacramentadas. Segundo
ela, os cativos tinham pontos de vista diferentes dos europeus em relação, por
exemplo, ao adultério, ao casamento e à bastardia. Para essa pesquisadora, "o
ilegítimo, então, não se tornou problema entre as nações africanas, uma vez que
o sangue se transmitia pela mãe e o papel do pai era pouco solicitado, cabendo
ao tio, 'irmão da mãe', muitas das tarefas paternas de educação e manutenção
das crianças seus sobrinhos".42
Sobre essa questão, o estudo de Lamur, para a fazenda Vossenburg localizada no
Suriname, durante o século XIX, parece-nos interessante. Este estudioso
concluiu que, naquela localidade, havia uma grande variedade de uniões
conjugais que incluíam a monogamia, a poligamia, domicílios para homem e mulher
e, finalmente, domicílios chefiados por mulher. Mesmo havendo a poligamia, a
promiscuidade atribuída aos escravos não se sustentava, existindo um aspecto
diferente, quais sejam os laços sociais e emocionais entre marido e mulher,
caracterizando muitas famílias. Os escravos, segundo ele, "se consideravam
casados, apesar de não haverem contraído um casamento legal".43
Os filhos escravos legítimos, pertencentes à família Dias Tostes, eram 78,
40,2% do total daquelas crianças. Dois cativos (1,0%) pertencentes àquela
família não tinham indicação sobre sua legitimidade, pois eram escravos
adultos. Cabe ressaltar que, de todos os batizados por essa família, havia uma
maioria escrava, 131 (67,5%), logo em seguida vinham os que, em virtude da Lei
do Ventre Livre, eram livres, 62 (32,0%), e por último um liberto (0,5%).
Essas 78 crianças legítimas eram filhas de pais que tiveram suas relações
afetivas sacramentadas pelo rito do casamento católico. Desses casais, 73
(96,0%) eram escravos, ou seja, casais endogâmicos, no que diz respeito à
condição social dos cativos. Outros dois casais (2,6%) eram formados por dois
libertos e duas escravas, havia ainda uma cativa casada com um homem (1,4%),
cuja condição não conseguimos saber. Os outros dois enlaces matrimoniais de
cativos pertencentes àquela família tiveram pais e mães sem a designação de sua
condição por parte do pároco (Tabela_XVIII).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab18.jpg]
Entre os Paula Lima, também houve uma maioria de casais com a condição social
escrava, 60 (96,8%), seguidos por três sobre os quais não houve menção ao
statusjurídico. Pudemos conhecer também dois casais em que a mulher era cativa
e o marido "não consta". Por último, havia um casal formado por uma mulher de
condição livre e um homem escravo (Tabela_XIX).
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Nas posses da família Barbosa Lage, todos os pais e as mães, com status
jurídico conhecido, eram escravos. Parece que os casamentos ocorridos entre os
cativos daquela família foram fortemente concentrados entre indivíduos de mesma
condição social. Diferente dos casais de cativos dos Dias Tostes e dos Paula
Lima, que sacramentaram seu matrimônio com libertos e livres. Havia ainda
aqueles pais que não tiveram essa condição anotada pelo pároco, mas cujos
filhos eram escravos de algum membro daquela família. Acreditamos os que não
tem a condição declarada não eram livres ou libertos, pois, se assim o fosse,
provavelmente o pároco a descreveria. A hipótese mais provável, e que talvez
possa valer também para as outras duas famílias, é que tenham sido cativos que
o cura não descreveu, ou que o mesmo tenha simplesmente feito um registro falho
(Tabela_XX).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab20.jpg]
Sheila de Castro Faria, em estudo sobre Campos dos Goitacazes (RJ), no século
XVIII, considerou fácil entender o casamento entre homens escravos e mulheres
livres, já que o partus sequitur ventrem (o parto segue o ventre), ou seja, os
filhos destes seriam livres, já que seguiam a condição social da mãe. Talvez
tenha sido esse o raciocínio empreendido pelos cativos dos Dias Tostes e também
pelos da família Paula Lima. Sobre os relacionamentos de pais livres e mães
escravas, era mais difícil de entender, já que, nesse caso, os filhos seriam
escravos. Sheila Faria apontou algumas hipóteses.44
Os escravos dos Paula Lima contraíram núpcias em sua maioria com parceiros
pertencentes a esta mesma família. Dos 38 casais encontrados nos registros
paroquiais de casamento, 35 deles eram dela oriundos, em apenas dois casos
houve o casamento com cativos de outros proprietários. Houve, ainda, o
casamento entre Emilio, africano, livre, e a escrava Ignacia, pertencente à
Viscondessa de Uberaba e filha de Custódio e Mathildes (Tabela_XXI).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab21.jpg]
Localizamos ainda outros cinco casais, segundo as anotações feitas pelo pároco
naqueles registros de casamento, eram todos ex-escravos de algum indivíduo
pertencente àquela família senhorial. Todos se casaram na paróquia do Rio Novo,
após a promulgação da Lei Áurea. Provavelmente, esses cinco casais já possuíam
um relacionamento afetivo anterior que veio a ser legitimado somente nos idos
de 1888.
O mesmo ocorreu com os mancípios dos Barbosa Lage (Tabela_XXII). Foram 20 os
casados que tiveram seu relacionamento legalizado por aquela família, de acordo
com os registros que conseguimos localizar. Dezesseis desses casais escravos
pertenciam ao capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, à sua esposa ou aos seus
herdeiros. Os outros quatro não tiveram o nome dos proprietários descritos,
entretanto, foram seus padrinhos/madrinhas indivíduos pertencentes àquela
família.
[/img/revistas/afro/n46/a01tab22.jpg]
O mesmo padrão encontrado para as duas famílias acima descritas pode ser visto
entre os 49 casais pertencentes aos Dias Tostes, detectados nos registros
paroquiais de casamento. Estes proprietários também tiveram uma maioria de
escravos (37) casando-se no interior de suas posses. Havia ainda dois casais
dos quais não foi possível conhecer ambos os proprietários, no entanto, um dos
senhores era um Dias Tostes; e outros quatro casamentos entre cativos dos Dias
Tostes e de outros proprietários (Tabela_XXIII).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab23.jpg]
Como já tivemos oportunidade de demonstrar, entre os Tostes houve maiores
possibilidades para que os cativos se casassem com indivíduos de outra condição
social, que não a escrava. Foi possível saber da existência de três casais em
que um dos cônjuges era livre, e outros três em que uma era liberta. Foi este
sacramento que uniu, no dia 26 de fevereiro de 1884, o viúvo livre, Rufino
Elias da Silva e a cativa Francisca, pertencente à dona Ritta de Cassia Tostes,
viúva de Antonio Dias Tostes, filho de pai homônimo e de dona Anna Maria do
Sacramento. Os outros dois casamentos foram realizados no dia 28 de agosto de
1887, unindo a livre Antonia Maria da Conceição com o escravo Marcelino, e a
também livre Deolinda Anna de Jesus ao cativo Ananias, ambos pertencentes à
mesma dona Ritta.
Foi possível ainda conhecer o enlace matrimonial de três libertas com escravos.
O primeiro desses relacionamentos se deu entre Joanna, africana, e Manoel,
também africano, escravo do comendador Henrique Guilherme Fernando Halfeld,
genro de Antonio Dias Tostes, e foi celebrado no dia 17 de novembro de 1872.
Entre os anos de 1887 e 1888, aconteceu o casamento do escravo Generoso,
propriedade de Generoso Dias Tostes, e a liberta Cassiana Maria de Jesus. Já no
ano de 1882, aos 31 dias do mês de maio, casaram-se perante a Igreja Evaristo,
crioulo, escravo de dona Ritta de Cassia Tostes, e Philomena Maria de Jesus,
liberta. Esse assento de casamento é muito interessante, pois nele o pároco
escreveu informações a respeito dos noivos. Sabemos, por meio desse matrimônio,
que Evaristo era natural da Bahia e que foi comprado pelo esposo de dona Ritta,
o capitão Antonio Dias Tostes, em dezembro de 1873, do senhor Francisco Albino
da Costa Freiras, e que Philomena era ex-escrava do casal, nascida e batizada
em Juiz de Fora, tendo sido liberta em testamento pelo capitão Tostes.
Estabilidade das famílias: divisão/manutenção no decorrer do século XIX
O ato da partilha dos bens de um proprietário foi, sem dúvida, um dos momentos
que mais causou expectativas e tensões aos escravos e suas famílias. A
possibilidade de esfacelamento dos laços consanguíneos e espirituais, sempre
presentes, chegava ao seu ápice no momento da morte de seus senhores, quando os
cativos se deparavam "[...] com aquilo que todos eles temiam muito: a venda
para um dono novo e desconhecido".45
O tamanho das posses foi fator importante para a estabilidade da família
escrava.46 No ato da divisão dos bens de um indivíduo, esse aspecto fez toda a
diferença para as relações familiares dos cativos, não nos esqueçamos de que o
escravo era um bem, uma mercadoria, e, portanto, poderia ser alvo de venda,
troca, pagamento de dívidas etc. O "fazer parte" de uma propriedade, pequena,
média ou grande, podia influir não só nessa estabilidade, mas também nas
possibilidades de convívio dos membros da família, e na consecução de relações
de parentesco, fossem elas consanguíneas ou espirituais. Foi "[...] nessas
unidades médias e grandes que os escravos normalmente conseguiam casar- se com
mais frequência e formar famílias conjugais relativamente estáveis".47
Sem dúvida, os cativos que pertenceram às pequenas propriedades, quando da
divisão dos bens de seu senhor, tiveram maiores possibilidades de esfacelamento
de suas relações familiares e afetivas, vis-a-vis às médias e às grandes
propriedades. É necessário ressaltar que, assim como demonstrou Ann Malone em
seu estudo sobre os Estados Unidos, o número dos herdeiros tornou-se uma
variável muito importante na manutenção das relações familiares entre os
cativos, quanto maior o número de herdeiros, maior a possibilidade de
destruição desses laços.48
O ciclo de vida dos proprietários, como um aspecto a ser considerado no
entendimento das possibilidades de organização familiar, foi destacado por
Herbert Gutman. O pesquisador argumentou que os senhores de escravos
atravessavam três fases básicas durante sua vida, que influenciariam
sobremaneira na socialização e na criação de uma comunidade escrava. Em um
primeiro momento, na juventude, haveria a montagem dos empreendimentos, na
maioria das vezes com a participação de poucos cativos. A segunda fase se faria
presente com a maturidade e a estabilidade "empresarial" desses senhores. A
última e derradeira chegaria ao fim com a morte do proprietário e a consequente
divisão de seu patrimônio, por doações e heranças, o que poderia também
acarretar o momento mais crítico para a comunidade cativa.49 Entretanto, vale
ressaltar, mais uma vez, que muitas famílias senhoriais procuraram, não somente
por meio do casamento entre seus "pares", manter e/ou aumentar suas posses,
essa prática também se deu nos momentos da morte, mesmo com a partilha efetuada
perante a lei, muitos deles permaneceram unidos na tentativa de não fragmentar
suas propriedades.
Manolo Florentino e José Roberto Góes pesquisaram a província do Rio de Janeiro
entre 1790 e 1830. Utilizando-se de inventários post mortem, tiveram a
possibilidade de conhecer 138 famílias cativas, congregando 377 parentes. Os
autores afirmaram que a família escrava permanecia unida mesmo depois da
partilha dos bens do proprietário, e que a maior parte dos parentes ultrapassou
essa delicada etapa de suas vidas. Segundo seus dados, três em cada quatro
famílias permaneceram unidas após a divisão dos bens. Além de ser uma
instituição estável, a família conseguia, de maneira bem razoável, ultrapassar
as barreiras da alta mortalidade de seus membros, em especial as crianças, e em
todas as conjunturas do mercado de mão-de-obra africana. As famílias escravas
constituíam-se como o pilar da comunidade cativa. De acordo com Florentino e
Góes:
A maior parte dos parentes ultrapassava incólume, pois, esta delicada
etapa da vida escrava, continuando juntos e, deste modo, preservando
o lugar social da criação, recriação e transmissão dos valores
escravos, e seu espaço maior de solidariedade e proteção.50
A família escrava, na partilha dos inventários, foi um dos aspectos da vida dos
cativos que mereceu atenção por parte de Cristiany Miranda Rocha, em seu estudo
sobre Campinas, século XIX.51 Analisando três famílias de proprietários dessa
região, a autora chegou à conclusão de que houve a manutenção das famílias e
dos filhos menores de 12 anos, não ocorrendo entre as três famílias senhoriais
estudadas por ela nenhum caso de separação de casais. Em pesquisa anterior, a
pesquisadora havia chamado a atenção para o impacto da partilha sobre as
famílias escravas.52
Em sua tese de doutorado, utilizando-se do método de intercruzamento de
diversas fontes, a pesquisadora ainda pôde perceber que, mesmo quando houve a
separação entre pais, mães e filhos, esta podia não ser efetiva. Esses
familiares, supostamente separados, eram legados a herdeiros que ainda
coabitavam a mesma posse, como no caso de beneficiários menores, ou mesmo que
assim não fossem, tinham, além da proximidade afetiva, a geográfica, ou seja,
na prática, aqueles escravos continuavam vivendo com suas famílias ou muito
próximos a elas.
Uma das questões interessantes levantada por Cristiany Rocha diz respeito à
quebra dos laços familiares antes e após a Lei de 28 de Setembro de 1871, que
proibiu a separação de casais ou de pais e seus filhos menores de 12 anos.53
Estudando as partilhas realizadas em momentos diversos no decorrer do século
XIX, a autora concluiu que:
Portanto, ao que parece, muito antes da lei de 1871 proibir a
separação de casais e de pais e filhos menores de 12 anos (em
qualquer tipo de transmissão de propriedade) [Lei de 15 de setembro
de 1869], a prática entre os senhores de escravos de Campinas já era
a de preservar esses núcleos familiares nas partilhas, sobretudo os
casais. Assim, podemos considerar que aquela lei veio formalizar uma
prática já existente desde a primeira metade dos Oitocentos.54
Em estudo sobre a comunidade escrava em Juiz de Fora, no século XIX, dentre
outros aspectos, Rômulo Andrade Garcia preocupou-se com a questão se havia um
mercado de famílias escravas. Utilizando-se, sobretudo, das Escrituras de
Compra e Venda de Escravos, o pesquisador demonstrou que no primeiro caso:
[...] a comercialização envolvendo famílias era pouco expressiva no
conjunto e atendia quase que exclusivamente, o interesse dos
senhores, não havendo respeito aos laços familiares dos cativos. No
momento em que a lei favorecia a unidade familiar, ainda assim o que
vimos foi um número significativo de casais negociados sem os filhos
e de filhos negociados sem os pais.55
Em Batatais, a "maioria das famílias arroladas permaneceu totalmente ou
parcialmente unida após a partilha".56 Todavia, como bem atentou Garavazo, essa
constatação está longe de significar que a partilha não punha à prova a
estabilidade das famílias escravas. Atenta às leis que impunham a manutenção da
família cativa a partir de 1869 e, posteriormente, pelas de 1871 e 1885, a
pesquisadora estabeleceu dois períodos de estudo, o primeiro de 1851/1869 e o
segundo de 1871/1887, o que lhe permitiu observar que
[...] avaliadas nas duas primeiras décadas iniciais do período, [as
unidades familiares] foram menos prejudicadas no momento da partilha,
já que a proporção de famílias que permaneceu total ou parcialmente
unida após a efetivação das partilhas realizadas nesses lustros
chegou a 72,0% contra 67,1% verificados nas duas décadas posteriores.
Tal resultado não deveria ser esperado, uma vez que a nova legislação
imposta ao sistema escravista pós 1869 tinha como objetivo final
evitar a separação das famílias.57
Não podemos perder de vista que as esperanças dos escravos pesaram no momento
da morte do senhor e de sua consequente partilha. Sem dúvida, as relações
tecidas por esses cativos com seus senhores devem ter sido levadas em
consideração no momento da divisão daqueles mancípios. Os laços engendrados
possivelmente foram respeitados pelos senhores, seja pelas vinculações
estabelecidas entre eles e seus cativos, seja pelo medo de alguma atitude de
revolta diante das expectativas de quebra em suas relações afetivas.
Por meio do conhecimento das famílias que habitavam naquelas posses e,
posteriormente, com a análise das partilhas dos bens dos três proprietários -
no caso de Antonio Dias Tostes, o de sua esposa -, notamos que houve a
possibilidade de manutenção dos laços afetivos de pais, mães e/ou filhos.
Embora, como podemos observar, na Tabela_XXIV, a posse do comendador tivesse
uma maioria de famílias unidas após a divisão dos bens, houve também um número
alto de famílias esfaceladas.
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Uma incursão mais aprofundada às fontes permite conhecer os destinos das
famílias separadas. Na partilha dos bens de dona Anna Maria do Sacramento,
primeira esposa de Antonio Dias Tostes, ocorrida em 1837, havia 185 cativos.
Trinta deles foram utilizados para pagar as dívidas do casal, o restante foi
dividido entre os 12 herdeiros e o viúvo. Notamos que permaneceram juntos todos
os 22 casais indicados. Para o pagamento das dívidas, foram escolhidas duas
famílias, uma delas formada por João José, sua mulher Theresa e o filho deles,
o crioulo Sebastião, de um ano, que permaneceram juntos. A outra era a de
Martins, monjolo de 24 anos, e sua consorte Francelina, cambinda de 16 anos.
O viúvo Antonio Dias Tostes recebeu como herança a posse de 12 casais escravos,
oito deles sem filhos, e outros quatro com filhos, e ainda Bazílio, viúvo, e os
escravos Ricardo, cabinda , de 28 anos, e João Benguela, de 30 e poucos anos,
ambos casados, entretanto, sem a indicação de quem eram suas esposas. Outros
seis herdeiros de dona Ana receberam como legado oito casais escravos, a
maioria deles sem filhos, exceção feita à família de Matheus Gomes, 40 anos,
sua esposa Joaquina Benguela, e a filha do casal Dorothea, crioula de um ano e
meio. O herdeiro, Manoel José Pires, recebeu o escravo Paulo Caxoeira, casado,
com 40 anos sem esposa mencionada (Tabela_XXV).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab25.jpg]
Apesar dessa aparente estabilidade encontrada na separação dos casais, parece
que nem tudo "foi flor" naquela propriedade. Uma análise mais pormenorizada da
partilha nos permitiu perceber que várias crianças (faixa etária 1'14 anos),
crioulas e africanas, foram distribuídas entre os herdeiros, com idades a
partir dos cinco meses. A princípio, a partilha dos bens daquela senhora foi
extremamente penosa para a estabilidade das famílias escravas. Todavia, é
preciso ressaltar que essa talvez tenha sido uma realidade apenas aparente, já
que não conseguimos identificar na partilha as relações consanguíneas dessas
crianças.
Na propriedade do capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, segundo seu inventário,
houve 21 famílias partilhadas. Independente do tipo de arranjo familiar (18
conjugais com ou sem filhos e três matrifocais), elas permaneceram unidas. A
viúva do capitão Lage herdou sete dessas famílias, sendo três conjugais sem
filhos, três conjugais com filhos e uma matrifocal, abrangendo 29 cativos.
Os demais 14 núcleos familiares foram partilhados entre os outros quatro
herdeiros, em que havia 48 escravos com algum tipo de vínculo familiar. O dr.
Francisco de Assis Barbosa Lage recebeu como pagamento de sua legítima uma
família matrifocal que abarcava quatro cativos. A filha do capitão Manoel, dona
Marianna Cândida Lage Nunes, e seu esposo José Ribeiro Nunes receberam quatro
famílias, todas conjugais e com filhos totalizando 16 escravos. Dr. Antero José
Lage Barbosa herdou 15 cativos, distribuídos em cinco daquelas famílias
escravas, três delas com pai, mãe e filhos; recebeu ainda um casal sem filhos,
Joaquina, de nação, de 22 anos e seus filhos Benedicta, sete anos, e Daniel,
três anos. Finalmente os herdeiros do finado Antonio Augusto Barbosa Lage,
filho do inventariante, receberam três casais com seus filhos e um casal sem,
totalizando 12 indivíduos escravizados (Tabela_XXVI).
[/img/revistas/afro/n46/a01tab26.jpg]
Essa partilha dos bens foi concluída em 7 de outubro de 1868, ou seja, antes da
Lei de 1869, que proibia a separação de casais. Sua análise permite concluir
que nenhum casal foi separado de seus filhos menores de 12 anos, aliás, é
interessante destacar que até mesmo filhos com idades bem maiores permaneceram
junto com seus pais. Com exceção de Sebastião, pardo de 14 anos, nenhum outro
cativo com idade abaixo dessa foi descrito como sem seu pai e/ou mãe.
Foi isto o que aconteceu com a família de Antonio, pedreiro, de 45 anos, ele e
sua mulher Prudência, herdados pela viúva inventariante na partilha dos bens,
mantiveram seus vínculos com os filhos Andalixto, de 22 anos, Basílio, de 14,
Sérgio, de 11, Anna de seis , Alexandrina, de dois, e Maria com um mês de vida.
Situação semelhante ocorreu com as famílias de Lino, de nação, e Constança,
ambos com 50 anos de idade, e seu filho Ludovico, então com 22 anos; e a de
Matheos, de nação, e Clemência, respectivamente, 60 e 35 anos, e seus filhos
Anselmo, 20 anos, Thereza, 12; Paulina, adoentada, cinco; Justino, três, que
foram herdados pela filha do Capitão Barbosa Lage. O dr. Antero José recebeu
ainda a família de Fidelis, de nação, e Margarida, 60 e 50 anos, que teve a
companhia de seus dois filhos, Hilário, com 26, e Jeronymo, 22 anos.
Esses dois exemplos são bastante interessantes, pois nos dão uma amostra do
grau de estabilidade das famílias escravas. Ora, ter perto de si filhos com 20
e poucos anos, sem dúvida, é um indicativo de relações afetivas fortes e
duradouras, e é o tipo de relacionamento que esses cativos tinham. Ainda mais,
se esses jovens não fossem os primogênitos, pois, como sabemos, os escravos
efetivamente descritos nos inventários foram somente aqueles que conseguiram
sobreviver, os vínculos entre eles podem ter sido ainda mais duradouros. O que
podemos notar é que os laços de parentesco e a família foram buscados e
preservados pelos escravos, sendo que alguns deles conseguiram manter junto a
si seus filhos, quem sabe, até que esses viessem a formar suas próprias
famílias.
Ao contrário das duas posses acima descritas, na partilha dos bens do
comendador Francisco de Paula Lima, que possuía 42 núcleos familiares, houve a
separação de laços afetivos de 13 famílias cativas, que só aparecem na
descrição dos bens e, posteriormente, não foram mais mencionadas. Entretanto,
ao que parece, algumas dessas separações não foram efetivadas. A Tabela_XXVII
mostra os destinos desses cativos.
[/img/revistas/afro/n46/a01tab27.jpg]
Na divisão dos bens, coube à viúva, dona Francisca Benedicta de Miranda Lima,
108 cativos. Dentre esses, havia 22 núcleos familiares, sendo que quatro deles
contavam com pais e seus filhos, outros 17 somente com os casais sem filhos
mencionados, e uma unicamente com a mãe e seu filho. Dentre esses 17, havia
três cativas casadas com a nomeação de seus maridos. No entanto, os mesmos não
se encontravam na parte que caberia à viúva.
Percorrendo os bens herdados pelos outros herdeiros, e de posse dos nomes dos
maridos dessas cativas, conseguimos localizá-los entre os bens de três filhos
da viúva, todos menores de idade; eram eles: Marcos, 10 anos, José Rodrigues,
16, e Benjamin com sete anos. Parece-nos que, nesses casos, a aparente
separação dos laços afetivos entre aquelas famí
lias não deve ter efetivamente acontecido, pelo menos não nessa partilha, pois,
provavelmente, os filhos menores e dona Francisca ainda deviam estar coabitando
na mesma posse, o que deve ter permitido àquelas famílias a manutenção de seus
vínculos familiares e, quem sabe, espirituais.
A família constituída por Caetana e seu filho Justo, de seis anos, não teve a
mesma sorte, pois o escravinho veio a fazer parte dos bens adquiridos pela
viúva. Todavia, sua mãe não foi partilhada com nenhum dos herdeiros, e a mesma
desaparece em meio à feitura do inventário sem deixar pistas. Fato semelhante
ocorreu com o casal José, rebolo, e Victória. Ela também passou a pertencer à
inventariante, mas seu marido desapareceu, assim com a mãe do escravinho Justo.
Poderia ainda ter corrido a separação de dois outros casais. Ana e Calixto, e
Rosa e Joaquim Antonio, mas acreditamos que não. Dizemos isso porque os
escravos Calixto e Joaquim Antonio receberam do comendador Francisco de Paula
Lima, de acordo com o seu testamento de última vontade, a tão sonhada carta de
alforria com a condição de residirem em companhia de sua mulher, "dando ela uma
gratificação anual segundo o serviço que prestarem", ou seja, os casais
certamente continuaram a manter sua união e, agora, com a possibilidade, quem
sabe, da alforria das mulheres. Não é difícil imaginar que os forros Calixto e
Joaquim Antonio poupariam o pecúlio anual que receberiam da viúva do
comendador, bem como as gratificações provenientes de outros serviços, com o
intuito de libertarem suas amadas e também a filha Maria Joaquina.
Os herdeiros do comendador partilharam as outras sete famílias descritas, sendo
quatro nucleares, duas matrifocais e uma patrifocal. Essa posse também
partilhou muitas crianças. A análise dessa propriedade permite visualizar
vários meninos e meninas, distribuídos entre os herdeiros. Seriam os
descendentes das 21 famílias nucleares sem filhos que a Tabela acima nos
mostra?
Pela análise das fontes consultadas, parece que os cativos daquelas três posses
tiveram a possibilidade de manter certa estabilidade de seus laços afetivos e
espirituais, estabelecendo vínculos rituais e consanguíneos, até mesmo com
indivíduos de status social diferente do seu. Outrossim, "o fato dos escravos
terem sido destinados a herdeiros distintos não significa necessariamente que a
ruptura dos laços parentais estabelecidos realmente ocorreu".58 As propriedades
estudadas possibilitaram aos cativos um convívio familiar, bem como a
constituição da família em suas "múltiplas formas". As relações de parentesco
espiritual permitiram conhecer como se estruturaram as redes de solidariedade e
reciprocidade daqueles indivíduos. Foi possível aos escravos daquelas três
posses, mesmo após a partilha de bens do seu senhor, manter laços afetivos e
espirituais entre si e com cativos pertencentes a outras, bem como estabelecer
vínculos espirituais e consanguíneos com indivíduos de diferentes status
social. As diferenças e as semelhanças entre as famílias escravas pertencentes
às três famílias senhoriais certamente foram conformadas tanto pelas esperanças
dos cativos, quanto pelas determinações de seus senhores.
Texto recebido em 5/8/2009 e aprovado em 16/6/2011
* Este artigo faz parte de um dos capítulos de minha tese de doutorado
defendida em 2009 na Universidade Estadual de Campinas: "Escravidão e família
escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista".
1 Para uma análise acerca da herança africana e uma crítica sobre o grau de
distanciamento dos grupos etnolinguísticos centro-africanos, conferir: Robert
Slenes, "Malungu, Ngoma vem!: África encoberta e descoberta no Brasil", Revista
USP, n. 12 (1991-92), pp. 48-67.
2 Robert Slenes, Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava, Brasil sudeste, século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1999, p. 147.
3 Slenes, Na senzala uma flor,p. 147.
4 Cabe ressaltar que as experiências, as estratégias e o cotidiano dessas
famílias foram múltiplos e variados, ou seja, questões como as relativas ao
matrimônio e ao compadrio, por exemplo, variaram dependendo das especificidades
da época estudada. A análise da documentação demonstra que houve um conjunto
diferenciado de possibilidades na história desses escravizados e de suas
famílias, que, certamente, não devem ser tratadas como um contexto único.
5 Mapas de População. Distrito de Santo Antonio do Juiz de Fora, Termo da Nobre
e Muito Leal Vila de Barbacena, 1831. Arquivo Público Mineiro (Doravante APM).
Caixa 9; Documento 4.
6 Fabio Wilson Amaral Pinheiro, "O tráfico atlântico de escravos na formação
dos plantéis mineiros, Zona da Mata (c.1809 c.1830)" (Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007). Afonso de
Alencastro Graça Filho e Fábio Carlos Vieira Pinto, "Tráfico e famílias
escravas em Minas Gerais", in Andréa Lisly Gonçavles e Valdei Lopes de Araújo
(orgs.), Estado, região e sociedade: contribuições sobre história social e
política (Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008). Marcos Ferreira
de Andrade, Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro Minas
Gerais Campanha da Princesa (1799-1850),Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. Robert Slenes, "A árvore de Nsanda transplantada: cultos
kongo de aflição e identidade escrava no Sudeste brasileiro (século XIX)", in
Douglas Cole Libby e Júnia Ferreira Furtado (orgs.), Trabalho livre, trabalho
escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX (São Paulo: Annablume, 2006).
7 Isabel Cristina Ferreira dos Reis, "A família negra no tempo da escravidão:
Bahia, 1850-1888" (Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2007).
8 Slenes, "A árvore de Nsanda", p. 276.
9 Slenes, "A árvore de Nsanda", p. 276.
10 Slenes, "Malungu, Ngoma vem!", p. 55.
11 Na confecção da Lista, além do número de fogos e dos nomes dos indivíduos
residentes, havia cinco variáveis presentes: "Qualidades"; "Condições";
"Idades"; "Estados" e "Ocupações". O recenseador as classificou da seguinte
forma: na primeira delas foram listados os indivíduos descritos por ele como
brancos(as), africanos(as), crioulos(as), pardos(as), cabras. Na segunda,
cativos(as), libertos(as), forros(as), livres. A terceira e a quarta variáveis
arrolaram, respectivamente, as idades dos habitantes e se eram casados,
solteiros ou viúvos. Na última, encontramos menção às ocupações dos indivíduos
que habitavam naqueles fogos, tais como roceiro, lavrador, administrador,
feitor etc.
12 Baseando-nos na historiografia, consideramos casamentos endogâmicos aqueles
ocorridos entre cativos "iguais", dentro de seu próprio grupo, no que diz
respeito à origem ou à cor, crioulo com crioula, pardo com parda, africano com
africana; no caso desses últimos, consideramos também relações endogâmicas as
ocorridas entre mina e mina, rebolo e rebolo etc. Os casamentos exogâmicos são
os que ocorreram fora do grupo, entre os "desiguais", também em relação à
origem e à cor, ou seja, africano com crioula, crioulo com parda, no caso dos
africanos, aquelas relações ocorridas entre mina e cassange, angola e
moçambique também são consideradas exogâmicas.
13 Sobre essa fonte, seus cuidados e possibilidades ver Robert Slenes, "Lares
negros, olhares brancos: histórias da família escrava no século XIX", Revista
Brasileira de História,v. 8, n. 16 (1988), pp. 189-203,
reeditado em Antônio Augusto Arantes et alii (orgs.), Colcha de retalhos:
estudos sobre a família no Brasil (Campinas: Editora da Unicamp, 1993).
14 Auguste de Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de
Minas Geraes, Paris: Grimbert e Dorez, 1830, p. 97.
15 Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces,p. 98
16 Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces, p. 99.
17 Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces, pp. 98-9.
18 Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces, p. 99.
19 Fazendo uso de conceitos etnográficos, Pratt afirmou que, nas regiões de
zona de contato, ocorre o fenômeno da transculturação, quando o grupo
subordinado seleciona o que e o modo como absorverá elementos da cultura
dominante. Mary Louis Pratt, Os olhos do Império: relatos de viagem e
transculturação, Bauru: Edusc, 1999.
20 Sandra Lauderdale Graham, Caetana diz não: histórias de mulheres da
sociedade escravista brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
21 Alida Metcalf encontra um percentual de 93% de escravos casados,
pertencentes ao mesmo senhor, em Santana do Parnaíba (SP). Alida C Metcalf, "A
família escrava no Brasil colonial: um estudo de caso em São Paulo", in Sérgio
Odilon Nadalin et alii (orgs.), Historia e população: estudos sobre a América
Latina (São Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1990); Iraci Del Nero da Costa, Robert Slenes e Stuart Schwartz, "A
família escrava em Lorena (1801)", Estudos Econômicos. Demografia da
escravidão, v.17, n. 2 (1987); Robert Slenes, "Escravidão e
família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava
(Campinas, século XIX)", Estudos Econômicos,v.17, n. 2 (1987).
22 Slenes, "Escravidão e família", p. 218. De acordo com Bacellar e Scott, "Em
Itu, os escravos casados chegavam a compor 37% do total em 1808, mantendo, para
o total das três datas analisadas [1798, 1808 e 1818], uma média de quase 31%.
Nas vilas de economia de abastecimento, os casados, embora em percentuais um
pouco menores, também compunham parte considerável do conjunto: 22%, em 1798,
32%, em 1808 e 28%, em 1818. Se levados em conta somente os escravos de 7 anos
excluindo-se assim a faixa em que não poderia haver indivíduos casados as
porcentagens elevam-se muito, ultrapassando os 40% em Itu e os 35% nas demais
vilas. Caso também sejam excluídos os escravos da faixa etária 8 a 14, os
casados ultrapassariam o índice de 50% em ambas as áreas." Carlos de Almeida
Prado Bacellar e Ana Silvia Volpi Scott, "Sobreviver na senzala: estudo da
composição e continuidade das grandes escravarias paulistas, 1798-1818", in
Sérgio Odilon Nadalin et alii (orgs.), História e população, p. 214.
23 Brenda E. Stevenson, Life in Black and White. Family and Community in Slave
South,New York: Oxford University Press: 1996.
24 Ann Patton Malone,Sweet Chariot: Slave Family and Household Structure in
Nineteenth-Century, Louisiana: Chapel Hill & London, 1992.
25 Cabe lembrar que o recenseador denominou os escravos como africanos,
crioulos, pardos e cabras na variável "qualidade". Portanto, é por esse motivo
que o gráfico vem representado com o que entendemos hoje como origem e cor dos
escravos.
26 Slenes, Na senzala uma flor.
27 Rômulo Andrade, "Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava e
seus vínculos de parentesco: Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX" (Tese de
Doutorado, Universidade de São Paulo, 1995), p. 276.
28 Isabel Reis, "A família negra no tempo da escravidão".
29 Arquivo da Catedral Metropolitana de Juiz de Fora; Cúria Metropolitana
Arquivo Arquidiocesano de Juiz de Fora.
30 Inventário post mortemdo Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, 28/08/1868,
ID: 402; Cx. 43B, AHUFJF. Cartório do 1º Ofício Cível.
31 Foram 62 inocentes batizados por esse senhor entre os anos de 1818 e 1868. A
hipótese de reprodução natural nessa posse está detalhada em minha tese de
doutorado. Cf.: Jonis Freire, "Escravidão e família escrava".
32 Tânia M. G. N. Kjerfve e Silvia M. J. Brugger, "Compadrio: relação social e
libertação espiritual em sociedades escravistas (Campos, 1754-1766)", Estudos
Afro-Asiáticos, n. 20 (1991). Maria de Fátima das Neves
ressalta que o sacramento do batismo interessava muito aos proprietários de
escravos, pois, em virtude da instituição do padroado, o Estado português
delegou à máquina eclesiástica inúmeras funções, levando as esferas religiosa e
civil da vida das populações a estarem pouco diferenciadas. Dentre essas
funções, a que mais interessava aos senhores de escravos dizia respeito à
declaração, feita no registro de batismo dos inocentes, do nome do seu
proprietário, o que lhes garantia a posse efetiva dos mesmos. Cf.: Maria de
Fátima das Neves, "Ampliando a família escrava: o compadrio de escravos em São
Paulo no século XIX", in Sergio Nadalin et alii (orgs.), História e população.
33 Stuart Schwartz,Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade
colonial, 1550-1835, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
34 José Roberto Góes, O cativeiro imperfeito: um estudo sobre a escravidão no
Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, Vitória: Lineart, 1993, p.
105.
35 Stephan Gudeman e Stuart Schwartz, "Purgando o pecado original: compadrio e
batismo de escravos na Bahia no século XVIII", in João José Reis (org.),
Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil (São Paulo:
Brasiliense, Brasília CNPq, 1988); Roberto Guedes Ferreira,
"Na pia batismal família e compadrio entre escravos na freguesia de São José do
Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX)" (Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal Fluminense, 2000); Tarcísio Rodrigues
Botelho, "Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de
Minas Gerais no século XIX" (Dissertação de Mestrado, Universidade de São
Paulo, 1994); Maria de Fátima das Neves, "Ampliando a família
escrava"; Tânia M. G. N. Kjerfve e Silvia M. J. Brugger,
"Compadrio: relação social"; Ana Lugão Rios, "Família e
Transição" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 1990),
pp. 47-63; Góes, O cativeiro imperfeito; Stanley Stein,
Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba, com referência especial ao
município de Vassouras, São Paulo: Brasiliense, 1961; Vitória
Schettini Andrade, "Batismo e apadrinhamento de filhos de mães escravas, São
Paulo do Muriaé (1852-1888)" (Dissertação de Mestrado, Universidade Severino
Sombra, 2006).
36 Sobre a ausência dos pais dos batizandos, Botelho atentou para o seguinte: "
[...] a possível ausência do pai escravo deve ser posta em dúvida, já que pode
estar sendo influenciada pela documentação utilizada. Apenas os laços conjugais
legalmente sancionados eram levados em consideração. Assim muitos núcleos
familiares que apareciam constituídos apenas de mãe e filhos poderiam na
verdade contar com a presença de um parceiro masculino fixo, que também
dividiria atribuições e encargos". Tarcísio Rodrigues Botelho, "Famílias e
escravaria"; Slenes também discutiu esse aspecto e tem hipóteses interessantes
sobre essa situação em Na senzala uma flor.
37 Com relação à incorporação do nome/sobrenome do senhor por parte dos
libertos, os autores se dividem entre aqueles que não vislumbram esta hipótese
e entre os que apoiam a hipótese de que eles associem os nomes e os sobrenomes.
No primeiro caso, ver Hebe Maria Mattos, Das cores do silêncio: os significados
da liberdade no sudeste escravista, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Para o segundo, conferir Jean Hebrard, "Esclavage et
dénomination: imposition et appropriation d'um nom chez lês esclaves de la
Bahia au XIXª siecle", Cahiers du Brésil Contemporain, n. 53/54 (2003).
38 Graham, Caetana diz não, pp. 73-5.
39 Em Vila Rica, em 1804, Ramos constata a presença de 2% de filhos de escravas
casadas legalmente perante a Igreja; na freguesia de São José da Cidade do Rio
de Janeiro, entre 1802 e 1821, Ferreira encontra 6,8%; Brugger analisando São
João Del-Rey, entre 1730 e 1850, encontra um máximo de 19,72% de crianças
escravas legítimas. Donald Ramos, "City and Country: The Family in Minas
Gerais, 1804-1838", Journal of Family History, v.3, n.4 (1986); Roberto Guedes Ferreira, "Na pia batismal família e compadrio"; Silvia Maria J. Brugger, "Legitimidade, casamento e relações
ditas ilícitas em São João Del Rei (1730 - 1850)", Diamantina: Anais do IX
Seminário sobre Economia Mineira - CEDEPLAR-UFMG, 2000.
40 Eni de Mesquita Samara, "A família negra no Brasil: escravos e libertos",
Anais do VI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Olinda: ABEP, 1988, p.
15.
41 Elisabeth Anne Kuznesof, "Ilegitimidade, raça e laços de família no Brasil
do século XIX: uma análise da informação de censos e de batismos para São Paulo
e Rio de Janeiro", in Sérgio Odilon Nadalin et alii (orgs.), História e
população, p. 173.
42 Eliane Cristina Lopes, O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São
Paulo do século XVIII, São Paulo: Annablume/FAPESP, 1999, p. 205.
43 H. E. Lamur, "A família escrava no Suriname colonial do século XIX", Estudos
Afro-Asiáticos, n. 29 (1996), p. 109.
44 Segundo a pesquisadora: "[...] a primeira seria a presença do amor ou de
preferências sexuais fortes; a segunda, e talvez a mais provável para a maioria
dos casos seria o interesse de alguns homens, despossuídos, em ter acesso a
terras dos donos das escravas; uma terceira poderia ser a existência de um
mercado matrimonial, com uma menor proporção de mulheres livres/forras e
disponíveis para o casamento." Sheila Siqueria de Castro Faria, A colônia em
movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (sudeste, século XIX), Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 317. Francisco Vidal
Luna e Iraci Del Nero da Costa puderam perceber que em Vila Rica, entre os anos
de 1727-1826, houve um número significativo desses enlaces matrimoniais. De um
total de 1.591 casamentos, 200 deles envolveram um indivíduo livre e outro
escravo o que equivale a 12% do total. Francisco Vidal Luna e Iraci Del Nero da
Costa, "Vila Rica: nota sobre casamentos de escravos (1727-1826)", África, n. 4
(1981). Em Santana de Parnaíba (1775-1820), Metcalf encontrou
20% de casamentos envolvendo escravos e pessoas livres Alida C. Metcal, "Vida
familiar dos escravos em São Paulo no século XVIII: o caso de Santana de
Parnaíba, São Paulo", Estudos Econômicos, v. 17, n. 2 (1987), p. 237.
45 Graham, Caetana diz não, p.153.
46 Slenes, Na senzala uma flor; Costa, Slenes e Schwartz, "A
família escrava em Lorena (1801)".
47 Slenes, Na senzala uma flor, p. 72.
48 Malone,Sweet Chariot.
49 Herbert Gutman, The Black Family in Slavery and Freedom, New York: Pantheon,
1976.
50 Manolo Florentino e José Roberto Góes, A paz das senzalas: famílias escravas
e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 c.1850, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1997, p. 116.
51 Cristiany Miranda Rocha, "Gerações da senzala: famílias e estratégias
escravas no contexto dos tráficos africano e interno, Campinas" (Tese de
Doutorado em História, Universidade Estadual de Campinas, 2004).
52 Cristiany Miranda Rocha, Histórias de famílias escravas: Campinas, século
XIX, Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
53 Rocha, "Gerações da senzala".
54 Rocha, "Gerações da senzala", p. 57. Esta hipótese já havia sido levantada
por Slenes, Na senzala uma flor.
55 Rômulo Andrade, "Limites impostos a escravidão", pp. 365-66.
56 Juliana Garavazo, "Riqueza e escravidão no Nordeste Paulista: Batatais,
1851-1887" (Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2006), p. 240.
57 Garavazo, "Riqueza e escravidão no Nordeste Paulista", p. 241.
58 Garavazo, "Riqueza e escravidão no Nordeste Paulista", p. 243.