Intelectuais orgânicos e legitimação do Estado no Moçambique pós-independência:
o caso do Centro de Estudos Africanos (1975-1985)
O presente artigo analisa as condições sociais da produção de conhecimento
científico e legitimação do Estado em Moçambique durante o período da
"transição socialista" (1975-1985),1 tendo como caso de estudo o Centro de
Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Dois objetivos
específicos guiarão esta discussão. O primeiro é reconstituir a história
intelectual do CEA, descrevendo o contexto social e político da sua gênese, os
seus membros fundadores, linhas de pesquisa, metodologias e abordagens
teóricas. O segundo objetivo subdivide-se em duas partes: analisar a relação
entre a produção de conhecimento e o contexto político da construção do
socialismo em Moçambique e das lutas de libertação nacional na região austral;
e examinar a função intelectual que o CEA desempenhou na legitimação do Estado.
Esta análise será conduzida a partir do conceito de intelectual orgânico, de
Antonio Gramsci, reforçado ainda pelo conceito de engajamento crítico de Allen
Isaacman.2 Estes dois conceitos nos ajudarão a enfatizar o caráter heterogêneo
e plurivocal do CEA, a função que os seus pesquisadores tiveram ao estabelecer
a ligação entre sociedade civil e sociedade política e na definição de um tipo
de ciência social inovadora, que se pretendia, ao mesmo tempo, politicamente
engajada, aplicada, crítica e autorreflexiva.
O argumento central deste artigo é que os processos da produção de conhecimento
científico, numa situação histórica particular de Moçambique (1975-1985),
adquiriram dinâmicas próprias que desafiaram os pressupostos epistêmicos dentro
dos quais a universidade em Moçambique devia produzir conhecimento,3 e que isso
explicaria não somente o caráter ambíguo do trabalho científico do CEA, na
relação de proximidade/distanciamento com o poder político, mas as condições em
que as ciências sociais ganharam contornos em Moçambique como modo privilegiado
de produção de conhecimento sobre a sociedade. Isso tanto na introdução de um
tipo de pesquisa coletiva que respondia a preocupações candentes e atuais do
governo, quanto no privilégio do paradigma da economia política marxista e da
ênfase nos processos de transformação social; na criação de um curso de pós-
graduação que visava estudantes universitários e funcionários do Estado; e,
mais importante ainda, na preservação de um tipo de ciência social que
procurava refletir sobre as próprias condições da produção de conhecimento.
O nascimento do Centro de Estudos Africanos (CEA)
Moçambique testemunha, na altura da independência, em 1975, o êxodo maciço de
professores universitários portugueses, como de estudantes, criando uma
situação de crise total na única instituição de ensino superior existente. Os
números falam por si: nestes primeiros anos pós-independência, o grosso dos
estudantes tinha-se reduzido de 2.433 para 740, somente no período entre 1975 e
1978, enquanto o número de docentes moçambicanos reduziu-se para menos de 10
professores.4 Devido a essa falta de professores universitários, a universidade
nos primeiros anos pós-independência teve que "improvisar" usando "alunos-
monitores", que colaboravam na docência e investigação, sob a orientação direta
de um professor.
Os únicos cursos na área de Ciências Sociais na universidade eram o de
Filologia Românica e os bacharelados em História e Geografia, profundamente
eurocêntricos e virados para a exaltação da cultura e valores portugueses.
Agravando, ainda, o fato de que em Moçambique só estava disponível o primeiro
ano. Os estudantes que quisessem continuar teriam impreterivelmente que viajar
para a "metrópole". No pós-independência, os cursos de Ciências Sociais
permaneceram relativamente os mesmos. A licenciatura em História seria somente
introduzida em 1989, e os cursos de Sociologia, Antropologia, Ciências
Políticas, apenas em 1995, no âmbito da criação da Unidade de Investigação e
Formação em Ciências Sociais (UFICS).
Em janeiro de 1976, a Universidade inicia o seu primeiro ano letivo. Em maio do
mesmo ano, deu-se a mudança do nome de Universidade de Lourenço Marques para
Universidade Eduardo Mondlane (UEM), em homenagem ao primeiro presidente da
Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Esta modificação marcava
simbolicamente a tentativa do poder político efetuar uma "ruptura completa com
o passado colonial"5 e impor uma nova concepção de ensino superior. Uma
universidade popular a serviço da sociedade moçambicana "rumo ao socialismo".
Aos quadros da nova universidade era requerido que se apetrechassem com a
"teoria (marxista) da mudança social", em nítido conflito com a "teoria da
ordem social", considerada pelo então reitor da UEM como "uma das teorias mais
reacionárias da ciência social burguesa".6 Para os dirigentes da FRELIMO, a
gênese da teoria social, não deveria estar exclusivamente ligada ao estudo de
texto, a salas de aulas, mas também a uma "prática e nas lutas sociais".7
Este contexto de falta de professores e pesquisadores, de ausência de cursos na
área das Ciências Sociais e Humanas e de tentativa do novo poder de "tomar as
rédeas" da moribunda universidade e de "revolucionar" a sua concepção de ensino
e pesquisa (agora a serviço da maioria da população negra), desempenhou um
papel crucial no surgimento da ideia da criação de uma área de ensino e
pesquisa em Ciências Sociais no período pós-independência. Como afirmou
Fernando Ganhão, primeiro reitor da "nova" universidade:
Não havia moçambicanos para os substituir. Fomos aos países
socialistas com o intuito de encontrar pessoas para preencher essas
lacunas. Primeiro nesses países porque eu próprio vinha de um país
socialista, a Polônia, onde estava a fazer o meu doutoramento. No
entanto, eu estava consciente das limitações que eles tinham em
Ciências Sociais. Assim, não queria reproduzir esses modelos aqui em
Moçambique; decidi então virar as atenções para a Universidade de Dar
Es Salaam, onde encontrei no Centro de Pós-Graduação em Estudos de
Desenvolvimento alguns pesquisadores, dentre os quais Marc Wuyts, a
quem desafiei para ir trabalhar conosco a fim de se criar uma área de
ensino em Ciências Sociais aqui na UEM.8
A ideia inicial do reitor de criar na universidade novos cursos na área das
Ciências Sociais, em disciplinas, por exemplo, como Sociologia, Antropologia ou
Ciências Políticas, iria ainda ter que esperar cerca de vinte anos. No entanto,
começava-se já a cogitar na criação de algo em torno da pesquisa em História e,
assim, aproveitar os poucos jovens estudantes moçambicanos finalistas daquele
bacharelado da UEM. Como disse o reitor Fernando Ganhão:
Falei com várias pessoas. Convidei o dr. Aquino de Bragança, que era
jornalista do Afrique-Asie, e contatei os meus estudantes do
Bacharelado de História. Eu era então professor de História. Convidei
alguns alunos, dentre os quais, o Luís de Brito, o Carlos Serra, a
Teresa Cruz e Silva, a Isabel Casimiro e outros que já não me
recordo.9 Enfim, todo aquele grupo de estudantes do Bacharelado. Foi
nessa altura que me lembrei de fazer uma homenagem àquele Centro de
Estudos Africanos de 1949 que foi criado em Lisboa por Amílcar
Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e outros que se
encontravam exilados [...] não teve uma vida longa, esse Centro em
Portugal, mas a ideia era render uma homenagem, não obstante a sua
curta duração.10
O CEA foi, então, formalmente criado na Universidade Eduardo Mondlane em
janeiro de 1976, tendo como diretor Aquino de Bragança, o "nômada da luta
anticolonialista",11 jornalista, acadêmico, professor e conselheiro pessoal do
presidente Samora Machel. Um intelectual multifacetado profundamente engajado
na luta dos povos oprimidos, na defesa da justiça social, e na apologia de um
socialismo crítico e heterodoxo. Como muito bem observouImmanuel Wallerstein,
Aquino de Bragança desempenhou três diferentes papéisna sua vida: o de
militante, quando ainda jovem em Goa (Índia), e mais tarde, em Lisboa, Paris,
Rabat e Argel, mergulhou profundamente no ativismo anticolonial a favor dos
países africanos de expressão portuguesa, como jornalista radical12 e como um
elemento chave na criação (juntamente com nacionalistas africanos como
Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos) da Conferência das
Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP). Aquino de Bragança
teve um papel preponderante na emergência dos movimentos de libertação nacional
nessas colônias, como no sucesso das independências africanas. Marcelino dos
Santos afirmara que"os primeiros fornecimentos de armas aos movimentos de
libertação fizeram-se por intermédio de Aquino de Bragança, que organiza
igualmente o apoio logístico aos movimentos de libertação".13
Em 1974, com o fim do colonialismo, Aquino de Bragança acabou sendo uma figura
central nas negociações que levariam aos acordos de Lusaka, em que Portugal
reconheceu a independência de Moçambique governado pela FRELIMO. Estávamos,
então, em presença de outro papel de Aquino de Bragança, o de diplomata. Devido
a sua integridade e compromisso com a luta anticolonial, ele tinha conquistado
a confiança dos líderes da FRELIMO e especialmente do presidente Samora, tendo
sido, em outras ocasiões, chamado para missões diplomáticas em várias partes do
mundo.Depois da independência em 1975, com a FRELIMO no poder,
Samora logicamente disse: Aquino vamos para casa e ele naturalmente
veio para casa. E ele me disse uma vez que nunca na vida ele sentiu
que não estivesse em casa dele aqui.14 Sentiu-se sempre parte desta
comunidade, da comunidade da FRELIMO e também da própria comunidade
aqui, porque já tinha cá estado no período colonial e tinha também
amigos que não eram da FRELIMO.15
Aquino de Bragança veio, então, definitivamente para Moçambique em 1975, onde
"Samora Machel deu-lhe muitas posições e ele apenas requereu uma: a criação do
CEA".16 Não nos parece importante, aqui, averiguar de quem, de fato, surgiu a
ideia de criar o CEA (Fernando Ganhão ou Aquino de Bragança?). Importa, sim,
ter-se em consideração os vários contextos sociais em que se tornou possível o
surgimento desta instituição de pesquisa e ensino. O contexto internacional das
lutas de libertação nacional, o contexto da independência nacional de
Moçambique, do controle do poder do Estado por um grupo político que se
pretendia revolucionário e engajado na construção da alternativa socialista no
país e na África Austral. Um grupo político engajado na transformação radical
das condições sociais da população, dando ênfase particular ao papel da ciência
na transformação das mentalidades, na construção de uma nova historiografia
moçambicana livre da visão de mundo colonial, e no uso da ciência para a
revolução social e econômica.
No primeiro ano do CEA, a equipe de pesquisadores era constituída por uma
geração de jovens historiadores moçambicanos, que tinham sido recrutados do
bacharelado de História na Universidade Eduardo Mondlane: Luís de Brito,
Eulália de Brito, Miguel da Cruz, Ana Loforte, Teresa Cruz e Silva, Salomão
Nhantumbo, António Pacheco, Amélia Muge, Nogueira da Costa, João Morais e
Ricardo Teixeira. Este grupo não foi constante no Centro. Alguns permanecem,
mas outros foram transferidos para diversas instituições de ensino como
docentes, ou mesmo para outros lugares de pesquisa, em grande parte devido a
solicitações do governo para responder aos grandes desafios da reconstrução
nacional.
O CEA estava, nesse primeiro momento da sua criação, exclusivamente voltado à
pesquisa da História Colonial de Moçambique, dividida em seções, cada uma
representando diferentes períodos históricos. Os pesquisadores Luís de Brito,
Eulália de Brito, António Pacheco e o próprio diretor do Centro, constituíam o
grupo de pesquisa da África Austral, uma vez que Aquino de Bragança colocara
logo a necessidade de olhar Moçambique no seu contexto regional. Nogueira da
Costa e Miguel da Cruz constituíram o grupo de História do século XIX,
particularmente das companhias majestáticas; Ana Loforte, Salomão Nhantumbo e
Amélia Muge constituíram o grupo de Antropologia, e os restantes estudantes/
pesquisadores ficaram na Arqueologia. Estas áreas do CEA estavam mais
direcionadas para a pesquisa documental e com muito pouca atenção à pesquisa de
campo no interior das comunidades.
Esta foi, portanto, a estrutura inicial do Centro, em que, nos seus primeiros
três anos de funcionamento, era composto maioritariamente por jovens
pesquisadores moçambicanos. No entanto, foram, primeiro, aparecendo
pesquisadores internacionalistas, como Kurt Mandorin, Barry Munslow, Marc Wuyts
e David Wield. Alguns destes tinham sido inicialmente recrutados para ensinar
no idealizado curso de Ciências Sociais, desenhado pelo reitor Fernando Ganhão.
Porém, como este projeto não se concretizou, estes pesquisadores foram
gradualmente integrados ao CEA como colaboradores.
Foi com esta composição que o CEA levou a cabo, em 1976, a sua primeira
pesquisa coletiva, "Zimbabwe: a questão rodesiana", um estudo encomendado pelas
estruturas do poder e que pretendia auxiliar o governo moçambicano e os
revolucionários da ZANU (PF)17 a perceber melhor o tipo de desafios, tensões e
contradições que poderiam emergir no processo da negociação da independência do
Zimbabwe, que iria decorrer nesse mesmo ano em Genebra.18
O projeto foi elaborado e investigado e o relatório coletivamente19 escrito num
curto período de três semanas.20 O estudo, utilizando a perspectiva de análise
marxista, procurou compreender o desenvolvimento das estruturas coloniais
econômicas da Rodésia com o objetivo de distinguir as diferentes classes
sociais e facções de classe que emergiram da base colonial. Pretendiam ainda
identificar as prováveis posições que estas classes poderiam tomar naquela fase
da luta no Zimbabwe.21 Neste relatório, os pesquisadores do CEA examinaram
questões candentes para a fase de transição para a independência do Zimbabwe,
nomeadamente a importância do investimento estrangeiro na Rodésia, a questão da
terra, a dimensão, a composição e o caráter da classe operária e inferências
sobre o seu papel revolucionário na fase de transição para a independência.
Traziam ainda alguns dados sobre a pequena burguesia africana e a população
colona, como forma de empreender uma análise mais atual da sua heterogeneidade
e potencial para o Zimbabwe pós-independência.
Este relatório mudou de forma decisiva a dinâmica de investigação em Ciências
Sociais no pós-independência, introduzindo uma pesquisa (coletiva) que se
preocupava com assuntos candentes e urgentes da realidade moçambicana no
contexto da África Austral.22 Com esta empreitada científica, a antiga divisão
do CEA em temas da história dos séculos XVIII e XIX deixou de fazer sentido. Os
pesquisadores estavam agora mais absorvidos em fazer pesquisa coletiva,
urgente, e que respondessem aos desafios da atualidade.
O CEA ganhou uma nova dinâmica em 1977, um ano depois da sua criação, com a
chegada de Ruth First,23 que veio inicialmente para dirigir a pesquisa sobre o
fluxo de mão de obra migrante moçambicana para as minas da África do Sul.
Nascia, assim, a obra O mineiro moçambicano: um estudo sobre a exportação de
mão de obra. Este estudo acabou se tornando a obra de referência do CEA.24 Após
a conclusão da pesquisa, Ruth First foi nomeada, em 1979, para o cargo de
diretora científica do CEA. A partir daí ela iria dirigir, com "braço de
ferro", a maior parte da pesquisa científica do Centro.25 A antiga estrutura do
CEA, focalizada fundamentalmente na história dos séculos XVIII e XIX de
Moçambique, começou então a perder a posição de destaque.
Havia agora três principais grupos de interesse. O Núcleo de Estudos da África
Austral, um grupo de pesquisa centrado na análise contemporânea da situação
política e econômica da região da África Austral, com particular ênfase nas
dinâmicas internas da luta do Congresso Nacional Africano (CNA), e a análise
política, econômica e da desestabilização militar da África do Sul na região.
Havia ainda o curso de pós-graduação em Desenvolvimento, mais conhecido como
Curso de Desenvolvimento.
O primeiro esboço deste grande projeto de ensino/pesquisa foi desenhado por
Ruth First, Marc Wuyts e David Wield (em consulta com Aquino de Bragança), logo
após a conclusão da obra O mineiro moçambicano. O Curso tinha sido inicialmente
concebido como mestrado, no entanto, verificou-se que não havia candidatos
suficientes com licenciatura para preencher as vagas disponíveis. De acordo com
Marc Wuyts, a fraca adesão ao Curso deveu-se ao legado educacional colonial que
havia sido extremamente limitado para os moçambicanos negros. Luís de Brito
traz-nos, no entanto, uma outra leitura para a fraca aderência de candidatos da
Faculdade de Letras (Linguística, Geografia e História). Segundo Luís de Brito,
os docentes desta faculdade "não viam com bons olhos" este novo curso, uma vez
que prevalecia na altura a ideia de que o CEA possuía uma abordagem demasiado
economicista.26
Foi a partir destes obstáculos que Ruth First pensou em algo mais
"revolucionário". Um curso que pudesse congregar alunos com vários níveis
acadêmicos a partir do nível secundário, 9ª classe. Os alunos do Curso iriam,
portanto, ser recrutados em diversos setores da sociedade, do governo,
ministérios, governos provinciais, forças armadas, FRELIMO, imprensa,
universidade. O foco passou então à formação de pessoal diretamente envolvido
nas tarefas de construção do socialismo em Moçambique. Paralelamente a este
componente de ensino, que compreendia a aquisição de conhecimentos sobre
economia política, o curso tinha um componente de pesquisa muito forte. A
pesquisa, para o CEA, não era vista como um empreendimento acadêmico, tendo
lugar somente em laboratórios, em círculos exclusivos. Pesquisa social, para os
membros do Centro, significou o estudo e análise da realidade social do país.
Significou, por exemplo, o estudo das condições da produção nas machambas27
estatais mas também familiares, nas cooperativas, dentro de unidades de
produção industriais.
Em último lugar havia um terceiro grupo, a Oficina de História, criado em 1980
pelo diretor do Centro, Aquino de Bragança, voltado para o resgate da
experiência histórica da luta de libertação nacional, e para produção de
pesquisa histórica sobre Moçambique contemporâneo. Este coletivo de pesquisa
histórica fundou em 1983 a Não Vamos Esquecer!, uma revista de periodicidade
irregular e que teve apenas quatro edições. Em 1980, havia já sido criada pelo
CEA a revista semestral de Ciências Sociais, Estudos Moçambicanos, que
pretendia pensar Moçambique no contexto da África Austral.
A emergência de tensões e diferentes interesses de pesquisa
Um dos objetivos principais desta seção é demonstrar que o CEA não foi uma
entidade homogênea e monolítica; embora tenha partilhado valores e
características comuns, foi também um espaço de lutas e de diferentes
interesses e prioridades de pesquisa.
Durante as entrevistas com os pesquisadores do CEA, um ponto recorrentemente
referido por eles, quando perguntados sobre questões de liderança no Centro,
foi a relação de complementaridade, mas também de ambiguidade, entre o diretor
Aquino de Bragança e Ruth First, diretora científica. Para a maioria dos
entrevistados, o "motor" do CEA era encarnado pela figura de Ruth First. Foi
recorrentemente apontada a sua capacidade de liderança e de organização do
trabalho de pesquisa e ensino. Dan O'Meara, pesquisador sul-africano, que
juntou-se em 198128 ao Núcleo de Estudos da África Austral, por exemplo,
afirmou que "todos no CEA, incluindo Aquino, claramente perceberam que era a
Ruth First quem comandava o lugar, quem tomou quase todas as decisões e quem
angariava a maior parte do dinheiro para financiar os trabalhos do CEA".29
Ana Maria Gentili, historiadora italiana, foi uma das pesquisadoras e docentes
do Centro que destacou a sua capacidade de liderança:
Ruth First era uma pessoa que tinha uma grande qualidade de
pesquisadora, jornalista e uma grande capacidade de investigação e de
organização. Com ela não se brincava, tinhas que demonstrar que eras
bom pesquisador, que tinhas tudo terminado dentro dos prazos.30
É ainda Teresa Cruz e Silva quem não deixa de reconhecer o valor que teve a
presença de Ruth First no CEA: "com Ruth First nós aprendemos o método, como
trabalhar, como interrogar [...] ela era organizada, metódica, sistemática,
exatamente o oposto de Aquino de Bragança".31
No entanto, os entrevistados não deixaram de relacionar a sua personalidade
"forte" com o aparecimento de ressentimentos e tensões entre os pesquisadores
do Centro, e com outros departamentos de pesquisa e ensino da UEM. A propósito,
Teresa Cruz e Silva afirmou que "havia uns certos conflitos por causa da
personalidade dela. Ruth First, com aquele seu feitio e aquela sua maneira de
comando, não aceitava muito bem as pessoas da Faculdade de Letras, como também
da Faculdade de Economia".32
É de se referir que este artigo não se propõe a explicar o trabalho de Ruth
First no CEA em termos psicológicos, mas tão somente enfatizar que diante desta
figura estavam de fato duas "agendas" distintas: uma política (devido a sua
ligação com o "núcleo duro" do CNA e do partido comunista sul-africano) e outra
científica (como professora, pesquisadora e diretora científica do CEA). João
Paulo Borges Coelho sintetizou de forma esclarecedora a influência destas duas
personas:
Dentro do CEA vão-se criando tensões quando chega Ruth First em
meados de 79. Quando ela chega, ela entra como investigadora para
montar um projeto, mas que ela há-de ter trazido também uma agenda
própria relativamente a este núcleo acadêmico do CNA que se criou
aqui. Era uma espécie de atividade de contra-inteligência ou de
investigação da situação a partir de um ponto de observação muito
mais próximo da África do Sul.33
Ruth First acreditava que o seu trabalho na direção da pesquisa no CEA iria
também contribuir para a luta do CNA, não somente com a produção de
conhecimento científico politicamente relevante, acreditando que a compreensão
da situação política na sociedade sul-africana seria vital para o sucesso do
socialismo em Moçambique, mas também com a convicção de que a experiência dos
moçambicanos de gerirem um país soberano seria instrutivo para outros membros
do CNA, quando finalmente libertassem seus países do jugo colonial. Essa foi
uma das razões para a dinamização do Núcleo de Estudos da África Austral, que
iria também produzir "inteligência política" para o CNA.34 Dan O'Meara aludiu
ainda ao trabalho politicamente engajado de Ruth na construção do socialismo em
Moçambique:
Nós estávamos em Londres, numa confraternização para celebrar o 70º
aniversário de Yussuf Dadoo, na alturasecretário-geral do Parido
Comunista sul-africano. Joe Slovo e Ruth First estavam lá. Ruth
chamou-me à parte e perguntou-me se eu estava interessado em vir
trabalhar para o CEA. Ela explicou que tinha o apoio do presidente
Machel e do vice-presidente, Marcelino dos Santos, e que o
entendimento da política e da sociedade sul-africana era vital para o
sucesso do socialismo em Moçambique.35
No seu trabalho de direção da pesquisa, e principalmente do Curso de
Desenvolvimento, Ruth First confiou quase totalmente num pequeno "círculo
interno" de pesquisadores do CEA. Três destes se destacam: o macro-economista
belga Marc Wuyts, que, como disse Luís de Brito, era "a alma teórica do
Centro",36 a antropóloga americana Bridget O'Laughlin, e o sociólogo alemão
Kurt Habermeier. No entanto, este último iria deixar o CEA mais cedo, nos
princípios dos anos 1980. Marc Wuyts e Bridget O'Laughlin eram de fato a grande
influência intelectual de Ruth First. Quer dizer, enquanto Ruth First fornecia
a linha política e a disciplina (muito do respeito nutrido por ela advinha
disso), a análise da sociedade moçambicana vinha fundamentalmente de Marc Wuyts
e Bridget O'Laughlin. Marc Wuyts fornecia um entendimento coerente sobre a
evolução econômica de Moçambique e os problemas criados pela economia colonial,
como pelas políticas da FRELIMO. Bridget O'Laughlin proporcionava a Ruth First
um entendimento convincente de como a sociedade rural funcionava. Era então o
"trio"37 Ruth/Marc/Bridget que, em última instância, decidia sobre a natureza
da pesquisa e ensino que o CEA deveria desenvolver, principalmente no que
concernia ao Curso de Desenvolvimento. Ruth First deu a estes dois
pesquisadores uma nítida preeminência e neles confiava plenamente. Como afirmou
Isabel Casimiro, "os temas a pesquisar eram discutidos por todos, mas era o
'núcleo duro'"quem dirigia.38
Um segundo grupo de interesse, a Oficina de História, esteve organizado à volta
de pessoas como Aquino de Bragança, o historiador congolês Jacques Depelchin,
Ana Maria Gentili, o pesquisador brasileiro Valdemir Zamparoni e o grupo dos
jovens historiadores moçambicanos Luís de Brito, Teresa Cruz e Silva, Marco
Teixeira, Yussuf Adam, Alexandrino José e Isabel Casimiro. Este grupo procurava
afastar-se do controle de Ruth First, já que alguns destes pesquisadores
achavam que Ruth First abusava do seu poder e se ressentiam da sua atitude em
relação ao Aquino de Bragança. Como afirmou Judith Head, "Ruth não queria saber
da Oficina de História, o seu trabalho era o Curso de Desenvolvimento".39
A criação da Oficina de História pode ser lida, deixando de lado o seu
principal objetivo de restaurar a dignidade histórica dos moçambicanos, como
uma forma de Aquino de Bragança garantir um espaço de manobra (fora da alçada
de Ruth), na direção e definição dos objetos de pesquisa do Centro. No mesmo
diapasão, os pesquisadores do Núcleo de Estudos da África Austral, que sob
iniciativa de Ruth First produziram "dossiers" sobre a análise política na
África Austral para serem distribuídos aos membros do governo, lutavam
constantemente para adquirir um espaço próprio, livre do comando de First, e
onde pudessem desenvolver outro tipo de abordagens sobre África Austral, com
particular incidência para as questões sul-africanas.
O terceiro e último grupo constituído por pesquisadores como Robert Davies, Dan
O'Meara, Sipho Dlamini, Gottfried Wellmer e Alpheus Manghezi e Yussuf Adam era
o Núcleo de Estudos da África Austral. A principal luta desse grupo estava
relacionada com a garantia/manutenção de um espaço de pesquisa próprio e que
não estivesse sob o controle de Ruth First. O depoimento de Dan O'Meara é
elucidativo desta tensão:
Nós sentíamos [Núcleo de Estudos da África Austral] que Ruth não
seguia as questões políticas sul-africanas tão profundamente como nós
seguíamos e que o entendimento dela sobre alguns aspectos da luta na
África do Sul não estava atualizado, o que se resumia em repetir uma
linha política em vez de uma análise detalhada da evolução de vários
aspectos da luta dentro da África do Sul.40
Muito embora seja possível encontrar características comuns entre os
pesquisadores do CEA, como, por exemplo, a produção de conhecimento socialmente
relevante para a construção do socialismo em Moçambique e total libertação da
África Austral da dominação do sistema capitalista e segregacionista da África
do Sul, este Centro não formou um grupo unificado ou mesmo homogêneo. E é
exatamente neste ponto que este artigo se distancia da perspectiva do
antropólogo francês Christian Geffray, que, estando em Moçambique em 1986,
escreveu um artigo sobre o CEA em que argumentava que este tinha funcionado
como um órgão intelectual do poder e que, através das suas investigações sobre
o campesinato moçambicano, "caucionava" cientificamente as diretrizes políticas
da FRELIMO.41 Este tema será retomado na seção seguinte.
Intelectuais orgânicos e legitimação do Estado
Esta seção examina a conexão entre o trabalho científico do CEA e a manutenção
e legitimação da visãode mundo daFRELIMO durante o período de 1975 a 1984. Esta
conexão será estabelecida a partir da delineação das principais linhas de
investigação do Centro vis-à-vis o programa político do partido no poder. Em
seguida serão escolhidos alguns dos relatórios científicos como forma de
mostrar, mais uma vez, a sua profunda ligação e coerência com as prioridades
políticas do Estado para a transformação socialista. Contudo, antes de entramos
nesta análise, iremos por ora desenhar em traços gerais o contexto histórico em
que se vão estabelecer estas conexões entre produção científica e legitimação
do Estado.
O contexto histórico
Nos primeiros anos pós-independência, a FRELIMO acreditou que estava se movendo
de uma vitória para outra. Um mês depois da independência nacional, o sistema
judicial, a medicina, a educação e os serviços funerários tinham sido
nacionalizados.42 Foi neste período que a política de estatização da FRELIMO se
tornou mais acelerada e tentou eliminar a maior parte das empresas privadas,
congelando as suas contas bancárias.43 Apesar de ter herdado a economia em
bancarrota e com um défice crônico na balança de pagamentos, nos primeiros
cinco anos depois da independência nacional a FRELIMO conseguiu alcançar
progressos significativos na educação, saúde e habitação, tendo sido por
exemplo proclamado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1981, que o seu
sistema de cuidados de saúde e prevenção era um modelo para os países do
terceiro mundo.44
No campo político aconteceram grandes mudanças com a transformação da única
força política na sociedade,45 a FRELIMO, em "partido de vanguarda marxista-
leninista" no seu 3º congresso em 1977. O partido FRELIMO, a "força dirigente
da sociedade e do Estado", deveria então guiar, mobilizar e organizar as massas
na tarefa de construir uma democracia popular,46 "rumo ao socialismo". As suas
principais diretrizes políticas para o desenvolvimento socialista estavam
refletidas nas deliberações do histórico 3º congresso, que
[...] estabeleceu a linha estratégica do desenvolvimento de
Moçambique. Nesta estratégia a agricultura é a base e a indústria o
fator dinamizador e decisivo. Isto implica que numa primeira fase a
agricultura constitua a principal fonte de acumulação para o
desenvolvimento econômico. Isto significa que a socialização a
extensão e consolidação do setor estatal e a cooperativização de
produção familiar é uma tarefa imediata e imperativa.47
No setor econômico, a fuga maciça dos portugueses, que ocorrera a
partir do fim do salazarismo, em 1974, levou ao colapso de setores
vitais da economia, como o comércio e a produção de culturas
alimentares e a rede de distribuição rural, e não somente houve uma
fuga de capitais, mas também o que podia ser visto como uma
consciente e deliberada sabotagem foi levada a cabo.48 Começou-se
gradualmente a verificar o colapso do mercado, particularmente nas
trocas comerciais entre o setor rural e urbano, afetando sobremaneira
a produção do campesinato e o abastecimento em gêneros industriais,
uma vez que o Estado passava agora a privilegiar as
machambasestatais, representando o "polo de desenvolvimento",
acreditando que a transformação rural seria mais efetiva através do
setor público.49 Para a FRELIMO, o setor moderno da agricultura viria
com o incremento das machambas estatais em oposição ao setor
familiar, considerados nos primeiros cinco anos após a independência
como "atrasado". Daí, então, sancionar políticas agrárias que não
levavam em conta o papel do campesinato na produção.
Um outra grande inquietação destes primeiros cinco anos pós-independência foi o
que fazer com a dependência da economia do sul de Moçambique em relação ao
capital mineiro sul-africano. A preocupação do poder político resumia-se em
avaliar se se deveria cortar ou não este fluxo migratório. Uma questão sensível
para o governo moçambicano, uma vez que a grande maioria do operariado nacional
era constituída pelos cerca de 140.000 mineiros que trabalhavam anualmente nas
minas sul-africanas, sem contar ainda com aqueles que trabalhavam ilegalmente
em outros setores da economia sul-africana.50 Foi assim que a FRELIMO decidiu
manter o fluxo migratório, apesar do fato de que, em 1975, o governo sul-
africano reduziu drasticamente o número de contratados para 40.000, concorrendo
para o aumento do desemprego no sul de Moçambique. Como forma de responder a
esta crise, a FRELIMO tentou criar políticas agrárias que pudessem integrar
muitos dos desempregados na economia rural através da construção das aldeias
comunais (obrigando os camponeses a deixarem as suas machambas familiares, seus
locais sagrados e de culto e a irem viver de forma comunal), cooperativas de
produção e das machambas estatais. O descontentamento e desencantamento popular
começavam já a despontar gradualmente no horizonte moçambicano.
As infraestruturas econômicas e sociais acabariam gravemente afetadas por um
misto de deficiente gestão estatal, estrangulamento do tecido social causado
pelas incursões armadas da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) e, não
menos importante, pelas cheias que assolavam principalmente a zona sul do país.
O 4º congresso da FRELIMO, realizado 1983, tinha como um dos principais
objetivos tentar então corrigir as lacunas e os erros anteriores e prenunciar
uma nova ênfase em projetos de pequena escala descentralizados e orientados
para o mercado.51O congresso instruiu as instituições do Estado a darem maior
apoio à cooperativa, aos setores familiar e privado. Foram tomadas novas
medidas em relação, por exemplo, à questão agrária, quando a FRELIMO acabou
reconhecendo que tinha cometido um erro grave ao subestimar o papel do
campesinato dando todo o apoio ao setor estatal.
A FRELIMO decidiu então que a alocação dos recursos deveria se basear num
pragmatismo econômico em vez de ser pautado exclusivamente pela ideologia.52
Por outro lado, acreditava que ao se virar para uma estratégia mais direcionada
à abertura do mercado iria corrigir os desequilíbrios econômicos que resultaram
dos erros políticos do passado. No entanto, já havia um grande descontentamento
rural agravado pelos massacres às populações perpetradas pela RENAMO, o êxodo
forçado das populações para as cidades e o aumento do desemprego urbano. Por
volta do final de 1983, a guerra tinha reduzido a capacidade da FRELIMO para
implementar as suas políticas de desenvolvimento socialista. A economia
moçambicana mostrava sinais de colapso total, forçando o governo a negociar um
"pacto de não agressão e boa vizinhança" com a África do Sul. Os Acordos de
Nkomati seriam firmados em março de 1984, com a intermediação dos Estados
Unidos, em que os sul-africanos comprometeram-se a limitar as atividades da
RENAMO e Moçambique, por sua vez, a impedir o CNA de lançar as suas ações
militares a partir do solo moçambicano (no entanto, foi permitida a presença
diplomática do CNA em Maputo).53 Como forma de angariar apoio dos países
ocidentais e ao mesmo tempo tentar deter o declínio econômico,Moçambique, na
altura um dos países mais pobres do mundo e profundamente endividado,54
acabaria filiando-se, em setembro de 1984, ao Fundo Monetário Internacional
(FMI) e ao Banco Mundial. A partir daí foram introduzidas reformas econômicas e
políticas que iriam culminar, entre os anos 1984-1990, com o fim da ideologia
marxista-leninista, com a abertura para a economia de mercado e sistema
multipartidário.
Produção científico-social e legitimação do Estado
Cabe-nos, em seguida, procurar perceber as conexões existentes entre esta
"visão de mundo" do grupo dominante e o trabalho de pesquisa científica do CEA.
Antes, porém, de nos debruçarmos sobre esta relação, iremos explanar melhor o
nosso quadro conceitual.
Charles Kurzman e Lynn Owens55 apontam três principais abordagens no campo da
sociologia dos intelectuais. Encontramos uma primeira que analisa os
intelectuais como uma "classe-em-si-mesma" (class-in-themselves). Seus
proponentes seriam autores como Julien Benda, Alvin Gouldner ou mesmo Pierre
Bourdieu. Uma segunda abordagem que concebe os intelectuais como sem-classe
(classless), representada por Karl Mannheim, Edward Shills, Raymond Aron. Uma
terceira e última perspectiva aborda os intelectuais como vinculados a uma
classe (class-bound), e tem em Antonio Gramsci seu principal expoente, além de
autores como Michel Foucault, Edward Said ou Jerome Karabel.
Foi privilegiada aqui a analítica de Antonio Gramsci porque nos permite ver nos
pesquisadores do CEA não somente sua dimensão de "gestores da legitimação",56
mas também sua característica "revolucionária" ao questionar criticamente a
ordem social vigente. De acordo com este autor, todos os seres humanos são
potencialmente intelectuais, mas nem todos têm na sociedade a função de
intelectuais. Para ele, há dois tipos de intelectuais: o "tradicional" e o
"orgânico". Gramsci identifica os eclesiásticos como a forma mais típica de
intelectual tradicional, que são organicamente ligados a aristocracia
latifundiária. Outro tipo de intelectual tradicional é o rural, uma categoria
que inclui os eclesiásticos, advogados, notários e professores. Os intelectuais
orgânicos, por sua vez, são aqueles que se engajam na participação ativa da
vida prática, como construtores, organizadores e persuasores permanentes. De
acordo com Gramsci, eles são "orgânicos" porque estão ligados a uma classe
social ou um modo de produção específico.57
Este artigo usa uma definição não restrita do conceito de classe. Assim, a
classe social a que pertencem todos os pesquisadores do CEA é a "classe
dirigente", que segundo Georges Balandier, é "a única classe bem constituída em
África" e que se define "pelo acesso e a luta em torno do poder".58 Esta
definição ampliada de intelectual orgânico irá permitir lidar com a composição
social heterogênea dos pesquisadores do CEA, que como vimos, depois da nomeação
de Ruth First como diretora científica, acabou tendo mais pesquisadores de
outros países que moçambicanos. E estes expatriados não se consideravam de
alguma forma, por exemplo, como parte da classe proletária moçambicana.
A "organicidade" desses intelectuais, ou por outra, a sua vinculação de classe
só pode ser melhor percebida se tivermos em conta três diferentes contextos.
Primeiro, o contexto internacional da luta anti-imperialista e da polarização
do mundo em dois blocos ideológicos antagônicos (socialismo/capitalismo);
segundo, o contexto da África Austral e das lutas de libertação nacional de
países como Namíbia, Zimbabwe e África do Sul e, por último, o contexto
nacional da construção da alternativa socialista em Moçambique, liderada por um
Estado que se pretendia revolucionário, engajado na transformação social e no
uso da ciência para a revolução social. Foram alguns destes fatores que
atraíram muitos intelectuais e pesquisadores progressistas e de "esquerda" de
várias partes do mundo, como foi o caso dos pesquisadores expatriados do CEA.
Como afirmara Ana Maria Gentili,
Nós fomos a geração da descolonização. Éramos todos idealistas e
progressistas, no sentido de pensar que o conteúdo das independências
não era só a liberdade política, não era somente de transformar
indivíduos em cidadãos mas era também a justiça social.59
Como podemos notar a partir da tabela_1 apresentada, o tema da "transformação"
teve grande centralidade nos relatórios de investigação do CEA. Assim, dos
cerca de trinta e um relatórios produzidos no âmbito do Curso de
Desenvolvimento, nove60 incluíam nos seus títulos o termo "transformação". Na
sua maioria, estas pesquisas discutiram a transformação das antigas formas de
produção inerentes à economia colonial em novas formas baseadas em modelos de
produção socialista através, por exemplo, da introdução das machambas estatais
e da dinamização do movimento cooperativo no campo. Não podemos deixar de
lembrar que a FRELIMO, no seu 3º Congresso (1977), tinha definido a
"agricultura como a base e a indústria como o fator dinamizador para o
desenvolvimento da economia moçambicana".61 Este processo de transformação das
relações de produção implicou responder a vários objetivos que foram tidos como
prioridades de pesquisa no CEA: a coletivização da produção através da
transformação do setor familiar num setor cooperativo e a expansão do setor das
machambas estatais; a reorganização espacial das unidades de produção e de
formas de assentamento através da organização de aldeias comunais; melhoria das
condições de vida da população, organizando cuidados e serviços de saúde,
melhoria da habitação, fornecimento de água, de eletricidade.
![](/img/revistas/afro/n48/a01tab01.jpg)
Os pesquisadores do CEA eram "orgânicos" à classe dirigente no sentido que eles
se constituíam como produtores de um conhecimento científico-social aplicado,
que não só iria auxiliar o governo a alcançar os seus objetivos como a
justificar as suas opções perante a sociedade, e lutavam para tornar a classe
dirigente a que pertenciam hegemônica na sociedade, através, por exemplo, da
difusão dos resultados das suas pesquisas nas revistas Estudos Moçambicanos e
Não Vamos Esquecer!, bem como nos vários Relatórios de Investigação destinados
aos membros do governo e funcionários do Estado. Assim, como forma de melhor
servir aos objetivos do Estado, os pesquisadores do CEA procuraram aliar suas
prioridades de pesquisa às prioridades políticas da FRELIMO para o
desenvolvimento socialista de Moçambique. Daí então a produção de estudos
focalizados, alguns destes produzidos no âmbito do Curso de Desenvolvimento e
outros diretamente solicitados por vários órgãos do Estado, como ministérios,
direções nacionais, presidência da república etc. O trabalho intelectual do CEA
tornou-se, assim, subsidiário da configuração socioeconômica do projeto
hegemônico frelimista, e não o reverso. E foi precisamente nesta ligação entre
trabalho intelectual e "revolução" que residiu a maior parte das críticas de
alguns acadêmicos, principalmente do antropólogo francês Christian Geffray.62
A crítica de Geffray repousava em dois principais pontos. Primeiro, que o
discurso científico do CEA sobre a existência social do campesinato era
"teoricamente duvidosa",63 porque os pesquisadores do Centro não tinham levado
em consideração as especificidades culturais do campesinato, olhando para eles
como uma massa homogênea. Segundo, que a existência social do campesinato
também era "politicamente duvidosa".64 Para Geffray, o trabalho do CEA (que ele
via como um "órgão do estado") subordinou-se ao discurso do poder, com o
principal propósito de legitimar, cientificamente, a ideologia da FRELIMO na
construção e organização socialista da nação. Como afirmou Christian Geffray, o
CEA aceitou o discurso oficial que acreditava na existência em Moçambique de
uma "classe camponesa".
No final do seu artigo, Geffray descreve alguns dos fatores que contribuíram
para dar credibilidade científica ao CEA, nomeadamente, o prestígio político e
científico dos seus fundadores. Refere-se, neste caso, ao professor Aquino de
Bragança e a Ruth First, que gozavam de certa influência nos meios políticos
devido ao valor incontestável de suas produções científicas dentro de certos
domínios; a reputação da reflexão "crítica" (aspas do autor) dos pesquisadores
do Centro, bem como a adequação de uma linguagem às preocupações da elite no
poder.65
A crítica de Christian Geffray de que o CEA via o campesinato como uma massa
homogênea é incorreta. A pesquisa coletiva do CEA, O mineiro moçambicano, no
último capítulo, intitulado "trabalhadores ou camponeses?", faz uma análise
exaustiva da base social do campesinato e uma discussão sobre as implicações
políticas da organização dos camponeses em "aldeias comunais", devido às suas
diferenciações de classe (os camponeses pobres, médios e ricos, como aqueles
que migravam para as minas sul-africanas). De fato, os pesquisadores do Centro
se distanciavam da "visão dualista" entre o "tradicional" e setor "moderno"
(uma premissa que Christian Geffray parece assumir), argumentando que estes
camponeses estavam profundamente penetrados pela acumulação capitalista. Esta
discussão da "visão dualista" iria ser retomada pela pesquisadora do Centro,
Bridget O'Laughlin no seu artigo "A questão agrária".66
Uma vez mais, a analítica de Gramsci pode ser útil aqui para esclarecer as
características do trabalho intelectual do CEA no contexto totalitário da
construção do socialismo em Moçambique. Como sabemos, na ótica deste autor
havia uma diferença nítida entre "hegemonia política", um conceito leninista
que implicava a ditadura do proletariado, e "hegemonia ideológica", que
significava uma "liderança intelectual e moral" conseguida através do
"consentimento ideológico das massas".67
Neste sentido, os intelectuais orgânicos do CEA seguiram a linha política da
FRELIMO, não porque fossem coagidos, como aconteceria se o CEA fosse
estritamente um órgão do Estado, não no sentido jurídico do termo, mas na ideia
de que o seu trabalho de investigação se subordinava às diretrizes políticas do
Estado, mas porque "consentiram espontaneamente", uma vez que, parafraseando
Gramsci, eles tinham "internalizado" o projeto hegemônico da FRELIMO,68 ou pelo
menos a interpretação que se dava a esse projeto frelimista, e o seu trabalho
crítico servia, em última instância, como um fator legitimador do Estado. Cada
um dos pesquisadores empregados pelo CEA via o seu trabalho acadêmico como
politicamente engajado. Todos eles acreditavam que tinham um compromisso com o
socialismo moçambicano e com a libertação da África do Sul e da Namíbia, e tudo
o que faziam era moldado por essa crença.
A guisa de conclusão: engajamento crítico, um oximoro?
A seção anterior procurou estabelecer as interrelações do trabalho científico
do CEA com o grupo político dominante, sem contudo reduzir essa conexão a uma
adesão acrítica e dogmática aos desígnios do poder. Pelo contrário, o CEA,
durante o período em análise, procura preservar um lugar onde pudesse exercer a
crítica como uma reflexão sobre o próprio processo de produção de conhecimento.
Os pesquisadores do CEA procuraram, ainda, distanciar-se de uma distinção
rígida entre pesquisa social "aplicada" e uma reflexão sobre a própria produção
de conhecimento.69 Foi, desse modo, produzida uma pesquisa social que envolvia,
ao mesmo tempo, a teoria crítica e a pesquisa empírica. A Oficina de História e
o Curso de Desenvolvimento são dois dos exemplos mais eloquentes dessa
concepção de ciência social.
Neste artigo,procurou-se também abandonar a simples oposição entre autonomia da
pesquisa social e a sua redução a uma função ideológica. Neste sentido, a
exigência de uma pesquisa livre de valores não nos permitiria compreender todo
um contexto social e político que foi determinante na definição das prioridades
de pesquisa do CEA, bem como nas escolhas dos objetivos epistêmicos.
Esta aderência não significou, de forma alguma, uma distorção da realidade, ou
tabula rasa da complexidade e heterogeneidade do social. Pelo contrário, a
pesquisa do CEA esteve profundamente ligada ao trabalho empírico e ao respeito
pelos resultados desse mesmo empreendimento. Como foi, por exemplo, o caso da
pesquisa intitulada "Poder Popular e Desagregação nas Aldeias Comunais do
Planalto de Mueda" (1985), em que os pesquisadores reportam a não aderência dos
camponeses ao projeto político da organização coletiva da produção, reunindo
argumentos para demonstrar o falhanço do projeto frelimista das aldeias
comunais. Foi, pois, este "engajamento crítico"70do CEA na produção de
conhecimento científico-social que iria tornar o seu trabalho relevante e
importante para um audiência vasta, dentro e fora da academia. Os pesquisadores
do CEA lutaram para preservar um espaço onde pudessem desenvolver uma pesquisa
crítica como a produção de um tipo de ciência social que poderia refletir sobre
o próprio processo da produção de conhecimento.
O caso mais eloquente foi o artigo escrito por Aquino de Bragança e Jacques
Depelchin intitulado"Da idealização da FRELIMO à compreensão da História de
Moçambique.71 O texto, apresentado num seminário organizado pelo CEA em
fevereiro de 1986, refletia sobre as possibilidades de uma reescrita da
história da FRELIMO e de Moçambique, a partir das contradições que o país vivia
na altura. Seria assim, um convite à produção de uma pesquisa objetiva e
iconoclasta sobre o percurso da FRELIMO, desde a luta de libertação nacional
até a situação presente no controle do poder do Estado. Para Aquino de Bragança
e Jacques Depelchin, era preciso formular novas perguntas, escrevendo deste
modo a história da FRELIMO à luz das contradições que existem no seio da
sociedade moçambicana contemporânea. A análise histórica deveria ir além da
história "oficial", do "texto inalterável", aprofundando a crítica e analisando
a "realidade tal como ela é",72 e não procurando dar respostas que apenas
reforçassem a ideologia dominante e não fossem baseadas numa crítica objetiva
dessas mesmas ideologias. Para estes autores, a história oficial tem a
"tendência a ser uma história teleológica e autojustificativa".73
Podemos, portanto, encontrar quatro características principais deste
"engajamento crítico" do CEA. Em primeiro lugar, a defesa de uma abordagem
autorreflexiva e crítica na produção de conhecimento científico. Em segundo
lugar, foi desenvolvido no Centro um trabalho de pesquisa, maioritariamente de
caráter coletivo. Eram formadas, por exemplo, várias brigadas para uma
determinada pesquisa, em que no final aparecia o "autor coletivo". Estas
pesquisas procuravam enfatizar a "unidade entre a teoria e a prática",74
demonstrando que as soluções para o desenvolvimento socialista de Moçambique
residiam numa ruptura com toda a historiografia colonial e na escolha de uma
nova "teoria para a mudança social".75 Este binômio teoria-prática significava
uma ligação estreita entre ensino teórico e a pesquisa empírica da realidade
socioeconômica moçambicana. Foi, por outro lado, uma pesquisa coletiva
preocupada com a libertação nacional dos países da África Austral sob domínio
da África do Sul e do regime rodesiano. Daí, então, a grande divisa do CEA ser
a de "analisar Moçambique no contexto da África Austral".
Em terceiro lugar, foi uma pesquisa com um caráter urgente e atual e que
procurou examinar as estratégias de desenvolvimento do partido/Estado e a sua
validade para a transformação social de Moçambique. Uma pesquisa científica com
um propósito de, ao produzir esse conhecimento, ter uma função prática na
sociedade. Os "Relatórios de Investigação" (alguns de difusão restrita),
solicitados pelos vários órgãos do aparelho do Estado, são um exemplo eloquente
da escolha, por parte do CEA, de uma ciência social "aplicada" e que pudesse
refletir sobre os desafios da construção do socialismo em Moçambique.
E em último lugar, foi uma pesquisa que esteve preocupada com a formação de
estudantes universitários e quadros do aparelho do Estado, através do Curso de
Desenvolvimento, e com a criação de formas de disseminação e debate dos
resultados das suas pesquisas, através da revista Não Vamos Esquecer! e Estudos
Moçambicanos, além da distribuição em vários órgãos dos Estados, como os
ministérios, dos seus relatórios de pesquisa.
O grande desafio do CEA foi conquistar um espaço em que pudesse exercer a
dúvida e olhar criticamente as causas sociais e políticas que seus membros
apoiavam: a construção de uma alternativa socialista para Moçambique, mas
também a libertação de toda África Austral do sistema capitalista sul-africano.
E este "engajamento crítico" não era unicamente revelar as injustiças do
imperialismo e, no caso moçambicano, a desestabilização promovida pelo regime
do apartheid, mas formular questões cruciais de como este regime poderia ser
aniquilado e como construir uma sociedade socialista em Moçambique. Portanto,
não somente apoiar o modelo de desenvolvimento proposto pela FRELIMO, mas
mostrar, quando foi o caso, os seus pontos fracos ou as suas incongruências.
Um outro ponto importante a salientar é o fato de o CEA ter tido autonomia
financeira, fundamental para pôr a "máquina" da pesquisa e ensino a funcionar
eficientemente, tanto em relação à universidade como de uma forma geral ao
governo moçambicano. Estas instituições estatais colaboraram de outro modo, por
exemplo, em questões logísticas; e no caso particular do governo,
fundamentalmente na facilitação do trabalho de campo com as comunidades rurais,
junto às estruturas administrativas locais, ou mesmo providenciando transporte
para o contato com as comunidades rurais. Em termos financeiros, o CEA recebia
apoio de instituições governamentais e não governamentais estrangeiras. Segundo
Teresa Cruz e Silva,
O CEA tinha dois financiadores privilegiados e incondicionais, que
estiveram sempre com o CEA: a SIDA76 e a SAREC,77 que deu um
financiamento institucional que foi até aos tempos do Sérgio
Vieira.78 O CEA recebia o dinheiro e fazia o que queria com dinheiro
e não prestava contas. Os suecos sempre foram amigos da FRELIMO. A
ideia da SAREC era de permitir que houvesse uma instituição que
desempenhasse um papel pivô na transformação da visão do que eram as
Ciências Sociais e principalmente permitir que houvesse uma
investigação e sem imposição de temas de pesquisa.79
Foram portanto estas características em conjunto (a presença de pesquisadores
com sentido crítico, a autonomia financeira do Centro em relação ao governo e à
universidade) que tornaram o trabalho de investigação do CEA, no pós-
independência, único e que deveria ser visto não como um fim em si mesmo, como
Geffray pensava, mas como um ponto de partida para a investigação científica.80
Quer dizer, o CEA começou por apoiar e fazer das diretivas econômicas e sociais
do partido FRELIMO as suas prioridades de pesquisa e, no final, acabava
criticando aquelas mesmas políticas quando não refletiam os resultados das suas
pesquisas empíricas. Não obstante sabermos que havia limites impostos pelo
contexto social e político e que estruturavam a formação discursiva do CEA.81
Pois que, como assegurou Michel Foucault (1996),
em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certos números de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade.82
Esta prática científica do CEA, de olhar de forma não ortodoxa as causas que
apoiava, como de analisar a realidade social de forma crítica e independente,
com o objetivo último da transformação social das condições de vida dos
moçambicanos, começou gradualmente a declinar (ver Gráfico_1). O seu apogeu se
deu com a assinatura dos Acordos de Nkomati,83que, como vimos anteriormente, se
traduziuna saída de vários dos pesquisadores estrangeiros do CEA,
particularmente daqueles ligados ao CNA. Outros fatores, no entremeio, iriam
contribuir para esta crise do pensamento crítico: a morte de Ruth First em
1982, que daria um grande golpe na organização e liderança da pesquisa no
Centro, como no Curso de Desenvolvimentoque deixaria de exisitir, a crescente
crise econômica e o agravamento da guerra civil no país.
[/img/revistas/afro/n48/a01grf01.jpg]
A FRELIMO se tornava cada vez mais coerciva e dominante na sociedade, apertando
ainda mais o espaço de discussão aberta, que o CEA tinha então conquistado. Não
podemos argumentar, no entanto, que a pesquisa crítica tivesse desaparecido
completamente, mas tinha-se tornado mais difícil e requeria agora uma grande
coragem para aqueles que ainda continuavam a fazê-la. Foi neste contexto que
pesquisadores como Dan O'Meara, Sipho Dlamini, Robert Davies, Judith Head
decidiram abandonar Moçambique, abdicando do seu trabalho de pesquisa e ensino
no Centro.
Os Acordos de Nkomatipodem então ser vistos como o ponto de partida de um longo
processo de mudanças econômicas, políticas e intelectuais no país: (a) a
abertura para uma economia de mercado, privilegiando o investimento privado,
com a adesão de Moçambique ao FMI e BM; (b) amorte, em outubro de 1986, do
presidente Samora Machel e de alguns dos seus "camaradas", dentre os quais o
diretor do CEA, Aquino de Bragança,84 "num misterioso acidente de avião";85 (c)
a sua sucessão, ordeira e consensual,86 pelo ministro dos negócios
estrangeiros, Joaquim Chissano; (d) o fim da ideologia marxista-leninista; (e)
a abertura ao multipartidarismo e a liberdade de expressão com a nova
Constituição da República de 1990; (f) e, por fim, em 1992 o cessar-fogo e os
acordos gerais de paz entre o governo da FRELIMO e a RENAMO.
Neste artigo procuramos refletir sobre as condições sociais de produção de
conhecimento científico num contexto particular da história de Moçambique, o
período da "transição socialista", tendo como caso de estudo o Centro de
Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane. Esta escolha obrigou-nos a
"eclipsar" outros centros de pesquisa no país e que também desempenharam um
papel importante na paisagem intelectual pós-independência, por exemplo, o
departamento de História e o departamento de Antropologia/Arqueologia, ambos da
UEM; o Arquivo Histórico de Moçambique, como também o Centro de Estudos de
Técnicas Básicas para o Aproveitamento dos Recursos Naturais (TBARN). É
preciso, no entanto, ressaltar que mais do que qualquer outro lugar de produção
científica, o CEA, durante os "anos eufóricos" da "experiência socialista",
acabou sendo a mais marcante e prolífica instituição de pesquisa, disseminação
e publicação em ciências sociais.
A sua originalidade residiu na produção de um tipo de pesquisa científico-
social que não somente levou em conta a sua função de produtora de conhecimento
científico politicamente engajado na transformação socialista, mas também na
reflexão e questionamento dos próprios processos de produção científica. Uma
pesquisa que procurava refletir sobre si mesma. Foi, então, neste desejo
ambivalente entre, por um lado, auxiliar a FRELIMO na sua visão de mundo
socialista (que pressupunha uma abordagem pragmática, utilitária e não-
epistemológica da realidade social) e, por outro lado, preservar um espaço de
questionamento crítico e heterodoxo sobre a sociedade moçambicana e sobre o
fazer ciência, que poderíamos então compreender as conexões entre produção
científica e legitimação do Estado "freliminiano", como também a emergência de
uma nova forma de se fazer pesquisa social no Moçambique pós-independência.
Enfim, uma pesquisa politicamente engajada, urgente, atual, coletiva, crítica,
utilitária e autorreflexiva.
Texto recebido em 4 de maio de 2012 e aprovado em 10 de dezembro de 2012
1 Traçar limites cronológicos rigorosos sobre este contexto histórico pode ser
problemático. Neste estudo preferimos olhar para esta fase de uma forma fluida,
processual, sem contudo deixar de usar como marcos temporais: 1975, quando se
dá a independência nacional; 1976, o nascimento do CEA; e 1984, com a
assinatura dos Acordos de Nkomati, e que terão - como veremos neste estudo -
repercussões tanto políticas e econômicas, como também na própria história
intelectual do CEA.
2 Allen Isaacman, "Legacies of Engagement: Scholarship Informed by Political
Commitment", African Studies Review, v. 46, n.1 (2003), pp. 1-41.
3 Ver, por exemplo, a tônica do reitor da Universidade Eduardo Mondlane,
Fernando Ganhão, na distinção entre a teoria da "transformação social" e a
teoria "burguesa" e "reacionária" da ordem social; mas, por outro lado, no
interior do CEA, as diferentes abordagens teóricas e metodológicas da Oficina
de História do Núcleo da África Austral, e do Curso de Desenvolvimento:
Fernando Ganhão, "Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais",
Estudos Moçambicanos, n. 4 (1984), pp. 5-17.
4 Jasmin Beverwijk, "The Genesis of a System: Coallition Formation in
Mozambican Higher Education, 1993-2003" (Tese de Doutorado, Universidade de
Twente, 2005), p. 102.
5 Ganhão, "Problemas", pp. 5-17.
6 Ganhão, "Problemas", pp. 5-17.
7 Ganhão, "Problemas", p. 8.
8 Entrevista com Fernando Ganhão, julho de 2007.
9 Na verdade houve aqui um lapso de memória de Fernando Ganhão, na altura da
entrevista: os pesquisadores Carlos Serra e Isabel Casimiro não fizeram parte
do primeiro grupo de jovens estudantes que fundaram o CEA. Entrevista realizada
com Luís de Brito, março de 2010.
10 Entrevista com Ganhão, março de 2007.
11 Depoimento de Pietro Petrucci, jornalista italiano, apud Sílvia Bragança,
Aquino de Bragança: batalhas ganhas, sonhos a continuar, Maputo: Ndijira, 2009,
p. 55.
12 Escreveu sob temas relacionados com os países africanos então colônias
portuguesas nos jornais radicais, Revolution Africaine e Afrique-Asie,e que
viriam a ter um grande impacto, numa primeira fase, na formação dos movimentos
de libertação, e mais tarde numa maior consciencialização do mundo sobre a
legitimidade da luta armada desses movimentos e das atrocidades do colonialismo
português.
13 Marcelino dos Santos, "Elogio Funebre", Research Bullet (1987), p. 6.
14 Aquino de Bragança nasceu em 1928 em Goa, Índia.
15 Entrevista com José Luís Cabaço, setembro de 2009.
16 Immanuel Wallerstein,"Southern Africa and the World- Economy", Research
Bulletin, Fernand Braudel Center for Study of Economics, Historical Systems,
and Civilizations, Binghamton: State University of New York Press, (1987), pp.
1-5.
17 Zimbabwe African National Union (Patriotic Front).
18 As conversações começaram em Genebra, Suíça, em outubro de 1976, entre o
governo de Ian Smith e os partidos nacionalistas. Os nacionalistas estavam
divididos, apesar dos esforços do presidente dos estados da "Linha da Frente"
para uni-los. Os dois principais líderes nacionalistas, Joshua Nkomo e Robert
Mugabe tinham, no entanto, formado, nesse mesmo mês, a aliança política "Frente
Patriótica". Ndabaningi Sithole e Abel Muzorewa, líderes dos outros partidos,
participaram na conferência separadamente. Ian Smith, líder do governo
minoritário branco da Rodésia, insistia que o propósito da Conferência fosse o
de implementar as propostas de Henry Kissinger, então secretário de Estado dos
EUA, que incluíam controle branco da defesa, da lei e ordem. Os nacionalistas
rejeitaram logo de início essas propostas. Ivor Richard, o embaixador britânico
nas Nações Unidas, presidiu a Conferência que durou 7 semanas. As conversações
foram adiadas para dezembro, contudo nunca mais foram recomeçadas. Ver Gwyneth
Williams e Brian Hackland, The Dictionary of Contemporary Politics of Southern
African, London: Routledge, 1988.
19 Participaram deste projeto oito pesquisadores do CEA: Aquino de Bragança,
Maria Eulália Brito, Luís de Brito, Kurt Mandorin, Barry Munslow, António
Pacheco, David Wield e Marc Wuyts.
20 CEA, A questão rodesiana, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1978.
21 CEA, A questão rodesiana.
22 Este argumento é baseado na entrevista que fiz com Marc Wuyts, em julho de
2009. Para uma leitura mais detalhada sobre este Relatório de Investigação como
também da emergência desta nova forma de fazer pesquisa no CEA, ver Carlos
Fernandes, "Dinâmicas de pesquisa em Ciências Sociais: o caso do CEA - 1975-
1990" (Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, 2011), p. 284.
23 Ruth First, sul-africana, jornalista, pesquisadora, professora e ativista
política anti-apartheid, membro do CNA e do Partido Comunista Sul-Africano. A
sua entrega à causa das lutas de libertação nacional nos países da África
Austral, o seu compromisso com a luta antiimperialista e rigor na pesquisa
científica iria ter um grande impacto na vida do CEA, marcando profundamente
toda uma geração de jovens cientistas sociais moçambicanos. Foi assassinada,
com uma carta-bomba, pelos serviços secretos da África do Sul, em agosto de
1982, no seu escritório no CEA.
24 Para uma leitura mais atenta sobre este projeto de pesquisa (publicado em
Moçambique, em 1978, em livro com o titulo: O mineiro moçambicano: um estudo
sobre a exportação de mão de obra), vide Fernandes, "Dinâmicas".
25 Segundo Dan O'Meara, apesar da sua "personalidade difícil", a competência
profissional e sentido de liderança de Ruth First no Centro tinha deixado
Aquino de Bragança sem nenhum papel significativo na definição, organização,
administração da pesquisa. Entrevista com Dan O'Meara, 2007.
26 Entrevista com Luís de Brito, março de 2010.
27 O mesmo que farma ou herdade para cultivo.
28 O'Meara referiu que tinha sido convidado, em 1979, por Ruth First para
trabalhar no CEA, mas devido aos seus compromissos acadêmicos na Universidade
de Dar es Saalam, na Tanzânia, só viria a fazer parte do CEA em 1981.
29 Entrevista com Dan O'Meara, agosto, 2007.
30 Entrevista com Ana Maria Gentili, junho de 2007.
31 Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto de 2007.
32 Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto de 2007.
33 Entrevista com João Paulo Borges Coelho, agosto de 2007.
34 Durante a entrevista, O'Meara mencionou que muitas das pesquisas realizadas
pelo Núcleo eram usadas como fonte nos debates e discussões dentro do CNA sobre
a evolução da sociedade sul-africana e, particularmente, as reformas a serem
introduzidas pelo governo de P. W. Botha. Entrevista com Dan O'Meara, julho de
2007.
35 Entrevista com Dan O'Meara, agosto de 2007.
36 Entrevista com Luís de Brito, março de 2010.
37 Poderíamos ainda acrescentar a agrônoma inglesa Helena Donly, não obstante
ela ter chegado ao Centro muito mais tarde, em 1980. Donly também proporcionou
a Ruth First, um melhor entendimento da agricultura em Moçambique.
38 Entrevista com Isabel Casimiro, agosto de 2007.
39 Entrevista com Judith Head, agosto de 2007.
40 Entrevista com Dan O'Meara, julho de 2009.
41 Christian Geffray, "Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon
usage d'une meconnaissance scientifique", Politique Africaine, n. 29 (1988),
pp. 71-87.
42 Joseph Hanlon, Mozambique: The Revolution Under Fire, Londres: Zed Books,
1984, p. 46.
43 Ver Thomas Henriksen, Mozambique: A History, Cape Town: Rex Collings, 1978.
44 Hanlon, "Mozambique", p. 82.
45 A distinção entre partido e Estado não existia. A FRELIMO era a única força
política na sociedade. O partido trabalhou incessantemente para entrar e
controlar todos os setores da sociedade. Assim, logo nos princípios de 1978,
foram-se estabelecendo os "grupos dinamizadores", como também células do
partido na universidade, nas fábricas, "aldeias comunais", escolas, ministérios
etc., com o objetivo de garantir a implementação das orientações da FRELIMO,
como também de romper com os métodos de trabalho do Estado colonial
capitalista.
46 Teses do 3º Congresso, citadas a partir do artigo de Thomas Henriksen,
"Marxism and Mozambique", African Affairs, v. 77, n. 309 (1978), p. 459.
47Estudos Moçambicanos, n. 2, UEM, CEA (1981), p. 2.
48 Plantações e maquinarias de irrigação foram deliberadamente destruídas, gado
abatido e gêneros alimentícios disponíveis retirados do mercado com o intuito
de criar uma escassez artificial. Ver, Sónia Kruks, "From Nationalism to
Marxism: The Ideological History of Frelimo, 1962-1977", in Irving Markovitz
(org.), Studies in Power and Class in Africa (Londres: Oxford University Press,
1987).
49 Vide, Merle Bowen, The State Against the Peasantry: Rural Struggles in
Colonial and Postcolonial Mozambique, Charlottesville: University Press of
Virginia, 2000.
50 Dan O'Meara, "The Collapse of Mozambican Socialism", Transformation, n.14
(1991), pp. 82-103.
51 Merle Bowen, "Beyond Reform: Adjustment and Political Power in Contemporary
Mozambique", The Journal of Modern African Studies, n. 30 (1992), pp 255-79,
261.
52 Otto Roesch, "Economic Reform in Mozambique: Notes on Destabilization War,
and Class Formation", Taamuli, Dar es Salaam (1989), apud, Bowen, "Beyond", p.
263.
53 Ver Barry Munslow, "Rethinking the Revolution in Mozambique", Race &
Class, v. XXVI, n. 2 (1984), p.15-31.
54 Em 1987, segundo dados do Banco Mundial (1989), Moçambique tinha um PIB per
capita de 170 US$, colocando-se na 9º posição no ranking dos países mais
pobres. Vide João Mosca, "Evolução da agricultura moçambicana no período pós-
independência", Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural, Instituto
Superior de Agronomia de Lisboa (1996), pp. 1-51.
55 Kurzman e Owens, "The Sociology of Intellectuals", Annual Review of
Sociology, v. 28 (2002), pp. 63-90.
56 Robert Fatton, "Gramsci and the Legitimization of the State: The Case of the
Senegalese Passive Revolution" Canadian Journal of Political Science, v.19, n.4
(1986), p. 735.
57 Leonardo Salamini, "Gramsci and Marxist Sociology of Knowledge: An Analysis
of Hegemony-Ideology-Knowledge", The Sociological Quarterly, v. 15, n. 3
(1974), pp. 359-80.
58 Georges Balandier, "Problematique des classes sociale en Afrique noire",
Cahier Internationaux de Sociologie, n. XXXVIII (1965), p. 141, apud, Valdemir Zamparoni, "Entre Narros & Mulungos: colonialismo
e paisagem social em Lourenço Marques c. 1890-c.1940" (Tese de Doutorado,
Universidade de São Paulo, 1998), p. 582. Neste estudo,
Zamparoni reserva um capítulo para discutir, de forma minuciosa, os eixos
centrais na grande discussão em torno da ideia de classe que, segundo ele, tem
envolvido não só pesquisadores como também políticos.
59 Entrevista com Ana Maria Gentili, junho 2007.
60 CEA, "A transformação da agricultura familiar na província de Nampula",
1980; "Problemas de transformação rural na província de Gaza", 1980 (Restrito);
"Já não batem: a transformação da produção algodoeira", 1981; "O papel
dinamizador da Emochá na transformação socialista da Alta Zambézia", (1982); e
por último, "Porto de Maputo: zona de contentores: informação, trabalho
administrativo e a transformação do trabalho produtivo", 1983.
61 FRELIMO, "III Congresso do Partido Frelimo", Directivas Económicas Sociais,
Maputo: FRELIMO, 1977, pp. 1-12.
62 Ver Fernandes, "Dinâmicas". Para uma leitura das críticas deste autor, ver
Geffray, "Fragments".
63 Geffray, "Fragments", p. 73.
64 Geffray, "Fragments", p. 76.
65 Geffray, "Fragments", p. 76.
66 Neste artigo, O'Laughlin reflete sobre uma das grandes preocupações do
governo na altura, que era de aferir os motivos do fracasso da edificação das
aldeias comunais em algumas regiões, da fraca participação camponesa, como
também do persistente domínio da produção individual familiar em detrimento da
política da produção coletiva e cooperativa. Para esta autora, as suas causas
estavam relacionadas com a natureza da estrutura de classe rural deixada pela
dominação do capitalismo colonial em Moçambique, mas também "com a falta de
tomada de consciência do caráter urgente da cooperativização, como tarefa
imediata da revolução, por alguns setores do próprio aparelho do Estado. Ver
Bridget O'Laughlin, "A questão agrária em Moçambique", Estudos Mocambicanos,
n.3 (1981), p. 27.
67 Ver, Leonardo Salamini, "Gramsci and Marxist Sociology of Knowledge: An
Analysis of Hegemony-Ideology-Knowledge", The Sociological Quarterly, v. 15, n.
3 (1974), pp. 359-80.
68 Realçamos aqui o seu caráter dinâmico, em construção. Neste sentido,
poderemos então falar de uma "hegemonia" da FRELIMO em perpétua construção e
não algo já dado na sociedade. Argumentamos que é problemático afirmar que a
FRELIMO foi de fato hegemônica em Moçambique.
69 Ver por exemplo o discurso de Fernando Ganhão na abertura do primeiro ano
letivo da UEM em 1976: "Problemas", p. 17.
70 Allen Isaacman, "Legacies of Engagement: Scholarship Informed by Political
Commitment", African Studies Review, v. 46, n.1 (2003), pp. 1- 41.
71 Aquino de Bragança e Jacques Depelchin, "Da idealização da FRELIMO a
compreensão da História de Moçambique", Estudos Moçambicanos, n.5/6 (1986), pp.
30-52.
72 Bragança e Depelchin, "Da idealização", p. 33.
73 Bragança e Depelchin, "Da idealização", p. 33.
74 Ganhão, "Problemas", p. 9.
75 Ganhão, "Problemas", p. 9.
76 SIDA Swedish Internacional Development Cooperation Agency (Agência Sueca
para o Desenvolvimento Internacional).
77 SAREC Swedish Agency for Research Cooperation with Developing Countries
(Agência Sueca para a Cooperação na Pesquisa com os Países em Desenvolvimento).
78 Sérgio Vieira, coronel na reserva e membro do "núcleo duro" da FRELIMO,
tornou-se diretor do CEA, depois da morte de Aquino de Bragança em 1986.
79 Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto de 2007. p. 8.
80 Harold Wolpe, sociólogo sul-africano e ativista anti-apartheid, defendia
esta posição. Ele insistia que o trabalho intelectual e investigativo tinha que
produzir conhecimento para a política, sem, no entanto desligar-se da
investigação objetiva e científica do mundo. Ver, Peter Alexander, "Harold and
History", Keynote delivered at the Harold Memorial Trust's Tenth Anniversary
Colloquium, "Engaging Silences and Unresolved issues in the Political Economy
of South Africa", n. 21-23 ( 2006), pp. 1-5.
81 Por exemplo, o paradigma da economia política marxista que dominou o
trabalho científico do CEA (fundamentalmente através do Curso de
Desenvolvimento) acabou sendo mais "economicista" que "político", pois o CEA
nunca se propôs a abordar questões relacionadas, por exemplo, a uma análise
empírica na realidade moçambicana sobre "como aqueles que governam, governam?".
Ou mesmo "como os dominantes e os dominados percebem essa mesma dominação?
Poderíamos também incluir o tema do conflito armado contra a RENAMO. Como
sabemos, para o CEA, como também para o partido no poder, a RENAMO era vista
unicamente como uma força desestabilizadora criada fora de Moçambique. Durante
este período da "transição socialista", a discussão nos círculos acadêmicos
moçambicanos sobre a existência ou não de uma "guerra civil" em Moçambique, ou
mesmo de o debate sobre os fatores internos do conflito - ligados, por exemplo,
àquilo que Christian Geffray (1991), com a publicação do livro A causa das
armas, em 1990, se referiu como o "descontentamento popular" advindo da
ineficácia das políticas agrárias da FRELIMO e da marginalização das tradições
locais e estruturas de autoridade - era, de fato improvável de acontecer
naquele contexto histórico. Vide Christian Geffray, A causa das armas:
antropologia da guerra contemporânea em Moçambique, Porto: Afrontamento, 1991.
82 Michel Foucault, A ordem do discurso, São Paulo: Loyola, 1996, p. 8.
83 Estes seriam tempos difíceis para o CEA, particularmente para o Núcleo da
África Austral, como vimos, composto maioritariamente por pesquisadores sul-
africanos e membros do CNA. Este grupo de pesquisa foi então proibido de
produzir conhecimento sobre a situação política e econômica da África do Sul,
como também de tecer qualquer manifestação pública sobre os Acordos de Nkomati.
Como corolário desse "pacto de não agressão e boa vizinhança", as células
clandestinas do CNA em Moçambique eram já consideradas proibidas e tinham que
ser urgentemente desmanteladas. Por outro lado, não era permitida no meio
universitário qualquer discussão sobre a validade desta viragem do governo. Os
pesquisadores do CEA não podiam mais escrever sobre questões ligadas à África
do Sul.
84 Para o seu lugar foi nomeado, Sérgio Vieira, coronel (na reserva), ex-
ministro da Segurança e membro do "núcleo duro" da FRELIMO. A partir daí um
novo capítulo (que ultrapassa os limites históricos desta análise) da história
intelectual deste Centro tomou lugar.
85 Merle Bowen, "Beyond Reform: Adjustment and Political Power in Contemporary
Mozambique", The Journal of Modern African Studies, n. 30 (1992), pp. 255-79,
261.
86 Segundo Marina Ottaway, a morte de Samora serviu para enfatizar a
continuidade da liderança da FRELIMO, em vez de significar uma nova viragem.
Para esta autora, as reformas adotadas no pós-Nkomati foram feitas sem nenhuma
modificação do sistema político ou mesmo de mudança de pessoal. Em suma,
Moçambique passou de um "socialismo simbólico" para uma "reforma simbólica",
uma vez que estava-se em presença de um "estado fraco" (soft state) em paralelo
também com uma sociedade civil fraca, que não permitiram que as mudanças
propostas tivessem o efeito desejado. Ver Marina Ottaway, "Mozambique: From
Symbolic Socialism to Symbolic Reform", The Journal of Modern African Studies,
n. 6 (1988), pp. 211-26.