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variedadeBr
ano2013
fonteScielo

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A comida dos baianos no sabor amargo de Vilhena

Luís dos Santos Vilhena nasceu em 1744, na vila de Santiago de Cacém, no Alentejo, em Portugal. Com 22 anos, entrou para o serviço militar, no Regimento de Setúbal. Em 1776, pediu baixa do exército e decidiu ser professor. Viveu em Lisboa por 11 anos, ensinando latim e grego. Chegou a Lisboa quase no mesmo momento em que o Marquês de Pombal caía em desgraça, sendo apeado do poder.

Apesar das grandes discussões em torno do legado de Pombal, é indiscutível que as marcas do seu esforço de modernização tiveram prosseguimento no reinado de D. Maria. A permanência de Vilhena em Lisboa coincidiu com a grande presença das ideias iluministas em Portugal. Não fugiu a tais influências, sendo um iluminista, mas um "iluminista à portuguesa". Existe outro dado fundamental em torno a suas posições políticas: ele era um funcionário público do governo português na Colônia, pois foi nomeado para ocupar, como Professor Régio, a cadeira de Língua Grega em Salvador ou na Cidade da Bahia, onde chegou em fins de 1787. Vivendo basicamente do salário da Fazenda Real, pertencendo à burocracia, seria, evidentemente, um defensor dos interesses do Rei, da Coroa portuguesa, na sociedade colonial.

Segundo Katia Mattoso, por Vilhena não ter conseguido muitos alunos de grego na Cidade da Bahia, ganhava metade do que deveria perceber, advindo daí "certa miséria material".1 Ele possuía apenas cinco alunos, e seu salário de 440$000 era suplantado apenas pelo do professor da Cadeira de Filosofia Racional e pelo de um Professor Jubilado da mesma cadeira, que ganhavam 460$000.2 Ele não foi um funcionário comum; distinguia-se, por sua condição intelectual, por sua erudição e pelas relações sociais que estabeleceu com as elites baianas.

Na sua Recopilação de noticias soteropolitanas e brasilicas,3 hoje popularmente conhecidas como as Cartas de Vilhena, nada existe de modéstia, seja na afirmada erudição do nome com que assina e na forma como nomeia D. João, Príncipe Regente, e D. Rodrigo de Souza Coutinho, o Ministro a quem destina algumas de suas missivas,4 seja na sua pretensão de uma reforma geral da colonização. Ele abordou todos os aspectos da realidade, sendo seu relato expressivo, convincente, pois, muito viu onde viveu, ou seja, em Salvador, a Cidade da Bahia, lugar em que muito ouviu, outro tanto leu e, quem sabe, também copiou. O seu reformismo iluminista não pretendia transformar, mas racionalizar, melhorar a política do sistema colonial, para honra e glória do Império Português. Tanto assim que, em nenhum momento, questionou o colonialismo, pautado no monopólio comercial metropolitano; embora criticasse moralmente a escravidão e, em especial, os africanos e seus descendentes, não advogou a sua extinção, muito pelo contrário; segundo ele, até os libertos deveriam ter tutores, pois eram incapazes de exercer a liberdade. Cheio de reticências, argumentou ser o tráfico de escravos prejudicial à vida local pela presença dos bárbaros africanos. Faltava, na Colônia, respeito, ordem, segurança e política econômica adequadas: daí as suas ideias.

Sua crítica mordaz às autoridades e à sociedade local devia-se, provavelmente, à sua tentativa de, por um lado, vingar-se do pouco prestígio concedido a um professor na Colônia e, por outro, demonstrar para as elites portuguesas a sua distância dos modos e modas imperantes entre os soteropolitanos. Uma "sociedade de vícios", da qual a sua família não conseguiu desapegar-se, como revela o testamento de sua mulher, D. Maria Antonia, que documenta ter ela possuído cinco escravos adultos e três crioulinhos.5 Ladino, cheio de artimanhas, encheu de elogios o Governador da Bahia, D.

Fernando José de Portugal, ao mesmo tempo em que criticava, de forma exacerbada, a sua administração. vivendo 12 anos em Salvador, evidentemente não deixou de pensar que suas Cartas poderiam ser um caminho para a sua ascensão na Metrópole. Não é à toa que as três últimas visavam outro "padrinho", D. Rodrigo de Souza Coutinho, o Conde de Linhares, Ministro de D.

João. Ledo engano! quando a família real veio para o Brasil em 1808, ele ficou para trás, sem o esperado convite do poderoso Ministro.

Nada disso tira a importância das suas Cartas. A partir delas, podemos supor o que seria Salvador, uma cidade ainda rural, como o disse Katia Mattoso, imaginar o início de consolidação do processo de interiorização, perceber as nossas riquezas e as nossas carências. Este artigo vai se concentrar na sua perspectiva sobre alimentação, em especial na órbita da produção e comercialização dos produtos. Porém, muito mais ele disse sobre alimentos e sobre a vida da Colônia. É patente o seu interesse em preservar o Brasil para um Portugal combalido, fraco, submisso aos ditames britânicos. Brada forte contra o tráfico de escravos, não por humanismo, mas pelo temor da grande presença dos escravos e seus descendentes na população da Colônia. Amaldiçoa a mestiçagem e a flexibilidade da estrutura social, corrompida pela sexualidade desenfreada. A ferocidade de sua língua era um retrato do seu desespero diante da realidade. Passemos, porém, à mesa.

À mesa "pouco ilustrada" com o professor de grego Triste Bahia! Oh quão dessemelhante Estás, e estou de nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vejo eu , tu a mi abundante.

Gregório de Matos6 As significativas preocupações de Vilhena são, em sua maioria, sobre a produção e a escassez de alimentos, a alta dos preços, a qualidade dos produtos, a forma de comercialização, a relação entre as comidas e os grupos sociais, a que acrescenta seus devaneios transformadores. Por permanecer basicamente em Salvador, grande parte das suas informações são, em grande parte, sobre a alimentação nessa cidade, embora ele muito além. Isso ajuda a nossa compreensão, na medida em que Salvador, como metrópole regional e estrutura central do poder, pautava-se na comercialização de alimentos produzidos por outrem. Mais ainda: a maioria da população da capitania estava concentrada em Salvador e no Recôncavo. Katia Mattoso informa que, no último recenseamento do século XVIII, em 1779, a capitania da Bahia tinha 277.025 almas, incluindo-se Sergipe del Rei e o Espírito Santo, e que, em 1781, José da Silva Lisboa estimara a população da Bahia em 240.000 almas. Segundo ela, os números indicados por Vilhena ora 210 mil, ora 370 mil almas não deveriam inspirar grande confiança, embora merecessem ser analisados. Mostrando a importância demográfica de Salvador e sua hinterlândia, acrescenta que, em 1800, viviam no interior apenas 20,6% da população recenseada.7 E precisavam de comida para a sua sobrevivência.

Vilhena destaque a duas plantas: a cana-de-açúcar, processada em 260 engenhos no Recôncavo, ressaltando a opulência dos senhores e a qualidade do açúcar de Iguape; e o fumo, cultivado em 1.500 fazendas, grandes e pequenas, sendo a vila de Cachoeira, "a terra mais própria, e melhor para a plantação desta lucrativa erva".8 Essas plantas se transformavam em produtos de "grande deleite para as bocas humanas",9 produtos fundamentais de exportação para a Europa e a África, pilares da riqueza da província da Bahia. Mas isso não impediu a fama que tiveram os doces ' vendidos nos conventos e nas ruas ' , a profusão da cachaça, tampouco o hábito do consumo do tabaco, até mesmo como "bebida".

Vilhena percebeu, entretanto, que "a base fundamental da subsistência do Brasil estava na mandioca", na farinha, uma vez que todos, naturais e estrangeiros, se alimentavam de pão.10 As mesas da cidade refletiam a hierarquia das farinhas: a fina, a copioba, para os abastados; a de caroço, amarela, bolorenta, para os negros e pobres. Não esqueceu do aipim, para ele "outra qualidade de mandioca", mas sem o seu veneno, com a qual não se fazia farinha, porém, era "gostosa assada no borralho e comida quente com manteiga".11 A farinha de mandioca era a comida básica para todas as mesas, e sua falta implicava graves problemas para a nutrição da população. Daí o clamor de Vilhena contra os senhores de engenho que se recusavam a plantar mandioca em suas terras, visto que, para eles, afinal, o açúcar era muito mais vantajoso.12 É evidente que a prosperidade da economia de exportação gerava problemas de subsistência e fomentava a inquietação social, sobremodo em Salvador, pois cada dia recebia mais escravos,13 e se agravava a questão dos preços altos dos alimentos14 Mas o problema ganhava maiores contornos com a exportação, uma vez que, quando faltava farinha nas outras capitanias, "a da Bahia qual outra Sicília", é que as sustentava.15 E, para completar fato que ele não abordou , agravando ainda mais o problema de suprimento alimentar, muitas embarcações se abasteciam no porto de Salvador, apesar das proibições.16 Segundo Thales de Azevedo, usando informações de Silva Lisboa, em 1781, [...] a cidade consumia anualmente mais de 1 milhão de alqueires de farinha, cálculo que não lhe parecia exagerado admitindo-se , a quantidade da população da cidade do Salvador, que era de quase 50 mil habitantes; , a exportação de infinita farinha que ia para Angola e Costa da Mina para sustentação dos escravos que se iam comprar e da equipagem dos navios; , a quantidade que se exportava para Portugal não para o comércio como para a mesma equipagem.17 O outro principal produto da dieta dos soteropolitanos era a carne. Como ressalta Avanete Sousa, "O comércio de carne possuía lugar estratégico no abastecimento da cidade e envolvia uma complexa teia de interesses, pois se tratava de um produto que, depois da farinha, compunha a base da dieta da população local".18 Assim, a pecuária firmou-se desde cedo como um dos principais fatores de povoamento dos sertões.19 Sua expansão pelo interior do Brasil começou pela Bahia. Ao reservar os massapés do Recôncavo para a cultura da cana, o governo português instigou o avanço da colonização para o interior.

Dois vetores marcaram a expansão das fazendas de gado: um para o norte, subindo de Jacobina, à margem direita do rio São Francisco, até atingir o Piauí; o outro, em sentido contrário, avançou de Januária e Montes Claros para chegar a Minas Gerais.20 Conforme Erivaldo Neves, desde o século XVIII, houve a consolidação da policultura sertaneja, tanto da lavoura quanto da pecuária, com seus excedentes dinamizando o segmento mercantil interno da economia colonial.21 O professor de grego estava atento aos problemas de escassez de comida, à possibilidade da fome em Salvador, mas não deixou de observar a existência de um ativo mercado interno de alimentos, inclusive no Recôncavo. Como disse Thales de Azevedo, "nem sempre comemos aquilo que gostamos, mas sempre gostamos daquilo que comemos".22 Não foi diferente com os portugueses: eles trouxeram a sua cozinha firmada no trigo, no vinho, no azeite doce, nas carnes de boi e de porco, nos seus peixes, como a sardinha e o bacalhau, nos legumes, verduras e frutas. Assim, os privilegiados tentaram manter a cozinha portuguesa, através da importação dos produtos da terra natal; cedo, porém, apareceram os problemas com o abandono a que foi relegado o Brasil nas primeiras décadas após o descobrimento. Mesmo sendo um ponto de escala para o Oriente, as naus que chegavam vinham para tirar abastecer-se ou consertar as embarcações e não para trazer. O recurso era importar os produtos ou transplantar o que fosse possível, cercando-se dos elementos presentes no curral, no quintal e na horta e, em último caso, utilizar os produtos que as novas terras possuíam. Com o crescimento da população, fosse com os portugueses menos afortunados, fosse com a presença dos libertos e escravos, foi inevitável produzir alimentos para abastecer os habitantes. Evidentemente, a farinha de mandioca foi a rainha de todas as mesas baianas, tendo como rei a carne; no entanto, conforme mostra Vilhena, muito mais havia.

Possuía a ilha de Itaparica muitas fazendas e lavouras,23 sendo também uma "povoação de bastante comércio no tempo da pescaria das baleias, por ser naquele sitio a fábrica, onde se faz o azeite destes monstros marinhos".24 Na vila de São Francisco, produzia-se açúcar e pescava-se uma sardinha pequena chamada xangó e grandes camarões, utilizados, depois de secos, para o sustento dos escravos e para o "regalo de muitos brancos".25Em Santo Amaro da Purificação, além dos seus engenhos de açúcar, havia tabaco e muitos alambiques de aguardente. A cachaça de Santo Amaro ainda chegou famosa ao século XX. Em Cachoeira, além do açúcar do sítio do Iguape, anteriormente referido, havia grandes plantações de tabaco, produzindo-se também milho e legumes. Região escassa em peixes, possuía, no entanto, "umas muito miúdas sardinhas, a que dão o nome de petitingas",26 transformadas em comidas frescas, secas ou salgadas, que podiam ser temperadas com molho de limão e pimentas malaguetas e enroladas em folhas de bananeira, as denominadas moquecas.27 De Cachoeira, partiam as estradas que ligavam a Bahia ao Maranhão e a Minas Gerais, marcando o processo de interiorização da província.28 Pela vila de Maragogipe29 saía, em suas embarcações, farinha. Provavelmente, para ali era canalizada a produção excedente de farinha das fazendas de tabaco.30 A vila possuía também muitos mangues, com diversos mariscos e pescados, de grande utilidade no sustento da localidade e das de suas vizinhanças.

Do Recôncavo, desceu o professor para o sul, para a vila de São Jorge dos Ilhéus, ali encontrando tudo arruinado, produzindo-se alguma mandioca e "arroz que descascado faz o ramo do seu comércio para a Bahia".31 Voltou, a seguir, para o baixo sul, para a vila de Cairu, que ia do Morro de São Paulo, Boipeba, até atingir Jequié, locais com ótimas madeiras para a construção de embarcações, repletos de aves saborosas, farta caça terrestre, rios com peixes de variadas espécies, além de matas com saborosas frutas.32 Descendo um pouco mais para o sul, chegou à vila de Camamu, onde havia grande colheita de café, além de plantações de mandioca, arroz, legumes e uma "puríssima aguardente, superior à famosa de Parati".33 A importância de Camamu estava também no fato de partir daí uma estrada que conduzia aos sertões de Ressaca, Gavião e Rio Pardo, para onde descia o gado.34 Mercado para a produção de alimentos e para a criação de gado não faltava, não somente na província da Bahia, mas também em outras províncias. Segundo Avanete Sousa, em Salvador, "A média anual comercializada, entre 1791 e 1811, elevou-se a mais de 18 mil cabeças".35 para se ter uma ideia da importância do gado, além do seu significado alimentar, todos os rolos de tabaco que se embarcavam para o exterior iam encapados de couro, o que uma ideia da importância da criação de gado na região. De acordo com Thales de Azevedo, cada rolo pesava 8 arrobas, e produziam-se pelo menos 25 mil arrobas, ou seja, 3.125 rolos; e exportavam-se anualmente até 50 mil moios de sola.36 Segundo Richard Graham, o couro representava 11% das exportações durante o período 1796-1811, alcançando 22% em 1802.37 Vilhena chegou à vila de Maraú, junto a Barcelos, e à vila de Camamu, onde se produzia mandioca e cana, que se destilava para fazer aguardente.38 Encontrou, em Canavieiras, moradores que exportavam farinha e madeira, e, às margens do rio Pardo, encontrou boas fazendas de gado.39 Os habitantes de Belmonte, no extremo sul da província, ocupavam-se da plantação de mandioca e milho,40 enquanto, na freguesia de Santa Cruz atual Santa Cruz de Cabrália , a população dedicava-se à pesca de garoupas, "peixes muito análogos ao bacalhau, que salgados, e secos vêm vender à Bahia".41 Não grande valor à vila de Porto Seguro, com apenas umas roças de mandioca e de cana, para a produção de aguardente: como Santa Cruz, seu grande negócio era com as garoupas e meros, ali existentes em grande quantidade.42 Refere-se ao terreno fértil de Trancoso43 e de Comoxatiba,44 mas de pouca produção e menos ainda de população.

Em Prado e Alcobaça,45 de forma geral, seus habitantes ocupavam-se da lavoura de mandioca. em relação a Caravelas, concede importância ao comércio de farinha para seu abastecimento e de Salvador e, até mesmo, para outras povoações da costa do Brasil "e ainda fora dela como Angola".46 Constata ainda que, na comarca de Jacobina, vasta de serras altas, mas também repleta de imensas planícies, se criava gado e se plantavam legumes, alguma mandioca, milho e arroz para o sustento dos seus habitantes. Divide os sertões em dois ramos: um, para a parte do norte, principiando em Juazeiro, "por onde vem a dilatadissima estrada do Piauí para a Bahia", abundante em "gado vacum, e cavalar";47 o outro, para a parte do sul, com a estrada que da Bahia desce para Minas Gerais.48 Como diz Antonio Risério, "Salvador era um grande entreposto comercial. De uma parte, recebia produtos de pontos diversos do mundo. Da Europa, da África e, mesmo, da Ásia. De outra parte, não parava de enviar mercadorias suas para esses mesmos lugares".49

Alimentos exportados para Portugal em 1798 No dizer de Vilhena, em 1798, exportava-se para Portugal: açúcar, com 17.826 caixas, no total de mais de setecentas mil arrobas, correspondendo em valores a mais de 43% de todos os produtos; tabaco, com 326 fardos, 23.448 rolos, com mais de trezentos e oitenta mil arrobas, além de tabaco de diversas qualidades, que, em termos de valores, chegava a quase 18% de toda a exportação; o restante era muito pouca coisa: 379 sacas de arroz, 254 sacas de café, 56 barris de mel, 7 pipas de aguardente de mel, 6 sacas de cacau e oitenta mil réis de farinha.

Quer dizer, o que importava mesmo para Portugal era o açúcar e o fumo. O que não se pode afirmar é se os alimentos exportados ficavam em Portugal, sobretudo o açúcar e o fumo, ou se iam parar na Inglaterra ou mesmo na África, através dos traficantes de escravos.

Alimentos importados de Portugal em 1798 Não , nas Cartas de Vilhena, uma descrição dos produtos importados em 1798, apenas a sua origem: mercadorias gerais da Europa, de fábricas particulares, da Ásia e de Portugal. Segundo Thales de Azevedo, Em troca, pois, da madeira, do açúcar, do tabaco, do algodão, dos couros e da própria farinha de mandioca, que as frotas carregavam em grande quantidade, recebíamos vinho, aguardente, azeite de oliva, cebolas, sardinhas, bacalhau, sal, chouriça, toucinho, queijos, vinagre, azeitonas e outros "gêneros molhados".50 Os produtos de Portugal representavam pouco mais de um quarto do que vinha para a Bahia, ou seja, 26,5% do total de mercadorias. Enfim, afirmava-se o caráter secundário de Portugal em termos de produção e sua condição de satélite dos ingleses. O próprio Vilhena expressa tal situação: Os gêneros que os estrangeiros introduzem em Portugal, são infinitamente mais, que os que dele exportam. Reexportam os portugueses para o Brasil aqueles gêneros dos estrangeiros, a quem pagam a indústria e despesas, que com a sua comissão, e avanços, carregam em conta aos correspondentes no Brasil e este é o motivo que a metrópole jamais pode confiar, nem contar com a riqueza de suas colônias, que devendo, e podendo ser o seu Potosí, o são dos estrangeiros, nas mãos dos quais vai parar a riqueza toda das mesmas colônias, não por este modo permitido, mas pelo hostil com que nelas estão atualmente introduzindo inumeráveis navios carregados de contrabandos.51 Se se exportava para a metrópole mais de dois milhões e seiscentos contos de réis, se importava de Portugal em torno de dois milhões e sessenta e quatro contos de réis de produtos. Enfim, então a riqueza começava a transferir-se para o Brasil.

Exportação e importação de alimentos para as ilhas de Açores e Madeira em 1798 Embora Vilhena considerasse fraco o comércio com essas ilhas, informa que a Bahia lhes enviava algum açúcar e aguardente de cana, importando vinhos, aguardente, pouca carne de porco e louça inglesa de "pó-de-pedra".52

Exportação e importação de alimentos com os portos do Brasil em 1798 Caíra drasticamente o comércio da capitania do Ceará e da Paraíba, em decorrência da seca que consumira quase todo o gado daquelas paragens. por acaso, diz o professor de grego, "aparece hoje na Bahia alguma pequena embarcação do Ceará ou Paraíba, com carne e couros".53 Todo o comércio com esses portos fora transferido para o Rio Grande de São Pedro do Sul, com a aquisição de carnes secas e salgadas, equivalentes a 300.000 arrobas, "bastante farinha de trigo" (800 arrobas), "alguns queijos (1.500 unidades), e muito sebo em pães", "além de muita quantidade de milho".54 Em troca, a Bahia enviava sal, "bastantes gêneros vindos da Europa, algum açúcar e doce".55 Com a criação do Caminho Real que aproximou Minas Gerais do Rio de Janeiro, diminuiu em muito o comércio com aquela província. Para , excetuando-se muitos escravos, iam apenas "alguns molhados", e de chegavam pouco ouro e algumas bestas muares.56 O comércio com o porto de Santos ou com a capitania de São Paulo era mínimo, com "exceção de alguma farinha de trigo, milho, legumes, e toucinho, que aqui se vem vender de tarde em tarde".57 É bastante plausível a crítica estabelecida por Thales de Azevedo em relação à afirmação de Gilberto Freyre de que "foi completa a vitória do complexo indígena da mandioca sobre o trigo: tornou-se a base do regime alimentar do colonizador".58 Ao contrário, ele pensa como Vilhena: nem os filhos do Brasil nem da África veem o pão como sustento mas como regalo; quando, em "caso de necessidade, se lhes pão, pedem farinha para comerem com ele".59 E até os cachorros o recusam. Óbvio, os nascidos no Brasil, sobretudo pobres, e os africanos dificilmente teriam acesso ao pão. Era produto para quem tinha recursos. Segundo Avanete Sousa, ao contrário de São Paulo, onde eram as mulheres que produziam o pão, em Salvador, " para o final do século XVIII, eram homens brancos pobres a maioria dos que trabalhavam no fabrico do pão". E acrescenta: "Em geral, os fabricantes de pão possuíam de dois a quatro escravos, encarregados de vender mercadorias de porta em porta".60 em 1644, na lista dos que amassavam pão, havia 16 nomes, apenas três de padeiras,61 o que reforça a perspectiva de Thales de Azevedo de que nunca deixou de haver pão de trigo na Bahia.62 E que Vilhena, ao dizer que "os poucos ricos, que passando de Portugal para esta região, querem por algum tempo usar do pão de trigo, os quais vem a ser nada em comparação do todo,"63 podiam até ser poucos, mas teriam de ser excepcionais comilões. Sem acrescentar São Paulo, e deixando de lado Portugal, do Rio Grande de São Pedro, a Bahia importou, em 1798, 800 arrobas de farinha de trigo,64 o equivalente a mais ou menos 12.000 quilos.

Ora, isso demonstra, explicitamente, que, embora os portugueses comessem o "mantimento da terra", não abandonaram inteiramente seu sistema alimentar, com base no trigo. De acordo com Thales de Azevedo, "apesar do 'mantimento da terra' constituir uma ponte ecológico-social ligando os dois grupos portugueses de um lado, e gente de cor do outro , havia uma nítida distinção entre os padrões de nutrição de um e outro".65

Exportação e importação de alimentos com a Costa d'África em 1798 De Angola, eram trazidos 2.151 escravos, enviando-se em troca uma cesta de mercadorias, o banzo,66 com açúcar, aguardente67 e algum tabaco e fumo de rolo.

Para a Costa da Mina, ilhas de Príncipe e São Tomé, "se exporta daqui muito tabaco do refugo do que se manda para Lisboa", "em rolos muito mais pequenos", assim como muita aguardente.68 Da Costa da Mina, tinham vindo 4.903 escravos mais que o dobro dos de Angola , além de 1.000 canadas69 de azeite de palma.70 De São Tomé e Príncipe, eram importados canela e azeite de palma.

Portanto, apesar das possíveis imprecisões de Vilhena, configura-se nitidamente, na província da Bahia, um dinâmico mercado interno, pautado na produção de alimentos e criação de animais. Além disso, ainda eram importados, substancialmente, produtos básicos para a população, como a carne seca e salgada de Rio Grande de São Pedro. Então, qual o motivo dos receios do professor de grego diante de tanta fartura? Primeiro, quem mandava e tinha os maiores capitais estava interessado certamente nos lucros advindos dos produtos de exportação. E comida para eles não era problema; se não havia aqui, traziam da Europa ou mesmo de outras províncias brasileiras. Segundo, onde se concentrava a maioria da população da província, Salvador e Recôncavo, a produção de alimentos foi sempre um componente relativamente secundário.71 Terceiro, quem comercializava alimentos estava interessado em lucros e, assim, podia vender os produtos aos navios que aportavam em Salvador, bem como a outras províncias, fosse a de Minas Gerais, fosse a de Pernambuco. Quarto, as intempéries que cercavam a produção de alimentos ou a criação de animais, como secas, enchentes, epidemias. Desse modo, da população pobre e escrava, que constituía a maioria dos habitantes, muito mais próxima andava a fome que a esperada fartura. E fome tinha razão Vilhena em preocupar-se podia ser o caminho para a revolta.

Armazenamento e comércio dos alimentos Os grãos e o celeiro público Ao tratar da topografia da baía, Vilhena ressalta a sua grandeza, com muitas povoações em suas margens, nela desaguando muitos rios, além de diferentes braços de mar com bons portos, "por onde trilham inumeráveis embarcações que conduzem os gêneros, que hoje formam a alma do comércio da Bahia".72 Graham vai além, ao explicitar que Salvador vivia do transporte por água de quase todos os alimentos, exceto a carne.73 Embora os baianos comessem também arroz, feijão e trigo, o fundamental mesmo era a farinha. Daí a preocupação de Vilhena e também das autoridades locais com a sua escassez. O Conselho74 das cidades no Império Português tinha, entre suas principais atribuições, a obrigação de assegurar que a população recebesse adequados suprimentos a um preço acessível.

Havia dois pontos em que as autoridades se esforçavam para proteger o povo em questões de alimentação. Um era para controlar o preço; o outro, para exercer uma constante vigilância sobre aqueles que queriam burlar o mercado, favorecendo a escassez e o aumento dos preços. O rótulo "monopolista" era aplicado a todos os que pretendiam colocar o seu ganho privado sobre o "bem comum".75 Assim, para racionalizar as vendas, impedir os monopólios, as constantes desordens nos barcos e estocar os alimentos para as épocas de escassez, o Governador, Rodrigo José de Menezes, construiu, em 1785, um celeiro público. Entretanto, para Vilhena, o celeiro público era uma aberração, pois situado numa casa emprestada, debaixo dos quartéis que serviam aos oficiais da Marinha.76 Era tão pequeno para a sua finalidade que, no máximo, poderia receber mantimentos para sustentar a população da cidade por três meses. Dadas as suas condições, Vilhena temia que se retornasse ao "antigo uso, de venderem os mantimentos a bordo das embarcações". E que os "tristes pobres", que apenas podiam comprar uma quartinha de farinha, voltariam a ter de pegar nos saveiros em "que se arrisca o negro, ou negra, que vai a bordo comprar, e não menos se arrisca o dinheiro e o saco"77. "Tristes pobres" que tinham os negros para se arriscarem por eles. Mas, a sua crítica veemente recai sobre o alto valor dos ordenados pagos e a corrupção do escrivão e do tesoureiro, "pelos escandalosos monopólios que faz [sic] com outros mais".78 Segundo o professor de grego, os espertalhões empregavam os seus caixeiros na venda de farinha no celeiro público, e outros iam aos campos, comprando a farinha aos lavradores e "demorando-a em celeiros", dali vendendo-a aos poucos, sem que jamais houvesse em abundância na cidade. Quando existia farinha no celeiro público, vendiam às 9 horas por 960 rs. o alqueire79 e, às 11 horas a vendiam por 1.280 rs. O mesmo praticavam com quase todo legume ou grão que por ali passasse.80 E, para completar a situação escabrosa do celeiro público, eram muitas as embarcações que iam vender farinha pelas povoações do Recôncavo e seus engenhos, para não pagarem o vintém que se estipulou fosse pago a cada alqueire que entrasse na citada instituição. E, assim, muitas famílias numerosas não mandavam comprar gênero algum naquela instituição.81 Diante dos parcos recursos arrecadados para suprir a conservação, pagar as despesas e ainda manter um hospital, entravam também no celeiro público, goma e café, ironiza Vilhena, ignorando, porém, se a goma ia incluída na farinha e o café incluído no feijão, "ou se houve descuido em quem me alcançou esta notícia tirada dos próprios livros".82 Mas, adiante, é taxativo sobre a péssima qualidade da farinha do celeiro público, que, muitas vezes, "mal serviria para dar a porcos", sendo nociva "à saúde do pobre povo".83 Oferece-nos, ainda, dados importantes ao informar os rendimentos do celeiro público, com um total de mais de 83 contos de réis, de 1785 a 1798. Importantes eram os produtos arrolados em alqueires: o primeiro deles era a farinha, por superar em mais de dez vezes a produção do segundo, o milho. Após, com metade da produção do milho, o arroz e, em seguida, correspondendo a 70% do estocado em arroz, o feijão.84 Enfim, de acordo com Vilhena, o reinado do feijão ainda não chegara à Bahia.85 E pelos dados apresentados por Graham, em 1849, a farinha continuava sendo rainha com um percentual de 87,44%, enquanto o feijão atingia apenas 1,35% dos gêneros tributados em Salvador.86 Apesar da vontade do professor de grego com seus desafetos, ele estava certo em relação ao deficiente suprimento da população. Era uma rede com regras próprias, que envolvia produtores, intermediários, negociantes, capitães de barcos, lojistas, carregadores, negros de ganho e os próprios administradores do celeiro público. As regras, porém, eram muitas vezes quebradas, havia muitas brigas e até subalternos se davam bem, mas a conta, como sempre, quem pagava era "o povo humilde". E isso permaneceria por todo o século XIX.

As boiadas, os currais e os açougues: o modelo e a desordem A carne de boi tinha para a população de Salvador, além de sua importância nutritiva como fonte de proteínas, especial significado simbólico, como geradora de prestígio.87 Salvador consumia de 350 a 600 cabeças de gado por semana, nos fins do século XVIII e começos do século XIX, de acordo com Richard Graham.88 Era, portanto, fonte de preocupação para as autoridades e para o professor de grego.

Vilhena critica severamente as famílias poderosas que, no passado, poderiam ter desenvolvido, nas "terras admiráveis" próximas a Salvador, a criação de gado, propiciando o abastecimento da cidade, e com consternação a escassez da carne, esperando a vinda das boiadas dos longínquos sertões do Piauí, tangidas por vaqueiros, montados em cavalos, com ferrões de uma polegada de comprimento, sempre atacados nos seus lombos, até que chegam a Feira [de Santana],89 "distante doze léguas da cidade, e ali são recolhidos a currais, em que areia, e estrumes; destes são conduzidos para a cidade, sem comerem mais, que o que, andando, podem apanhar com a língua".90 E considera que seria acertado criarem-se pastos fora da cidade, para que os bois estropiados pudessem descansar e se refazer antes de serem mortos.91 Somente assim, se disporia de uma carne de melhor qualidade.

Para Graham, havia uma grande "Feira do Gado" montada em Capuame (atual Dias d'Ávila), a 30 milhas de distância de Salvador, que tinha, em 1785, 300 casas, com administrador público, moradia para os vaqueiros e grandes currais.

Legalmente, todo gado destinado ao Recôncavo era obrigado a passar por Capuame.

Adiante, o mesmo autor informa que a "Feira do Gado" tinha a grande desvantagem de sua localização e que, nos finais do século XVIII, como a maior parte do gado vinha do oeste e do noroeste, os vaqueiros achavam mais conveniente levá- lo para um povoado chamado Feira de Santana. Até 1818, a restrição a Feira de Santana pelo Conselho da cidade se manteve.92 Rollie Poppino diz que a feira nasceu no primeiro quartel do século XVIII, a "princípio como a feira de Santana dos Olhos d'Água, depois se chamou simplesmente de Feira de Santana".

Adiante esclarece que, "Em 1825, porém, uma referência à 'grande e povoada' Feira de Santana [...] Três anos depois, Feira de Santana foi considerada [...] uma das três principais feiras da Província".93 Ainda sobre o gado, Vilhena acrescenta que os monopolizadores e atravessadores da carne eram os grandes beneficiados, com abusos para forçar as altas de preços e burlar os contratos, em detrimento do povo. Porém, o lucro excessivo com a liberdade de preços estava fazendo, como se diz, "o feitiço virar contra o feiticeiro", pois estavam ganhando menos e, às vezes, até perdendo. Primeiro, porque, ao chegar aos sertões "a notícia da soltura do preço; raro, ou nenhum criador desce com os gados", vendendo na porteira de suas fazendas como querem; segundo, porque os pobres ficavam sem comprar a carne, por ser cara "ou a vão comprar de tarde, quando quebra, que assim chamam ao abaixar o preço, o que se faz quando está meio corrupta, e é boa para dar a cães ou lançar no mar".94 Enfim, nesse período, o liberalismo era uma faca de dois gumes, como viria a ocorrer no século XIX.95 Para elogiar o penúltimo Governador, D. Rodrigo José de Menezes, "merecedor do epíteto de Pai da Pátria", refere-se ao matadouro, que ele chama de currais do Conselho. Esses currais, como indica Vilhena ao tratar das fontes, embora não precise sua localização, deveriam ficar próximos ou fazer parte da povoação de Santo Antonio Além-do-Carmo. Segundo Graham, "em 1789, foi construído o novo matadouro, situado na extremidade norte da cidade, em um pequeno rancho ao longo da estrada que corria do distrito da Soledade voltado para o Barbalho" (tradução do autor).96 Portanto, ambos tratam do mesmo equipamento urbano, com denominações diferenciadas. Para Vilhena, constituem um modelo para o gênero, duvidando que existissem semelhantes na América Portuguesa ou mesmo em Lisboa.

Se viessem vinte marchantes com o gado, eles o recolheriam separadamente, sem o risco de confundir-se. Existia uma perfeita separação, entre os responsáveis pela matança, esfolação e depósito das carnes, e também cômodos para os que cuidavam da supervisão, desde o administrador, o juiz e o escrivão até os oficiais da Balança. Passavam de cem os homens ocupados na "carnificina", com tudo organizado em diferentes repartições. Tão arrumado era, que havia um lugar para as fateiras, que, sem "sair fora, despejam os debulhos das reses".97 Enfim, segundo ele, alguma coisa prestava, mas nada disso impedia a constante falta de carne de boi na Cidade da Bahia. E ela era tão séria, que até os oficiais tentavam arrebatar no matadouro a carne destinada aos açougues, embora fossem dissuadidos disso pelo administrador: seria melhor não tentarem, para evitar "ficarem despedaçados pelas mãos de mais de oitenta ou cem negros", os quais teriam "tanta dúvida em matar um homem, quanto se lhes oferece em derribar um boi".98 Ainda segundo Graham, "Em 1799, o Conselho da cidade, para facilitar as inspeções oficiais, estabeleceu que os açougues ficariam em dois pontos: 17, nos fundos do Conselho, e 8, na cidade baixa, a poucos blocos ao norte do mercado de grãos" (tradução do autor).99 Vilhena corrobora em parte as afirmativas de Graham, dizendo que "No lado do Norte fica a soberba Sala do Senado, a que por baixo corresponde a cadeia para mulheres, e os açougues".100 , segundo Avanete Sousa, a política municipal estabeleceu talhos em lugares distantes e pouco povoados, como Brotas e Cabula, assim como em locais "de significativo trânsito humano e comercial, como na freguesia da Praia, na Baixa dos Sapateiros e em Itapagipe onde havia expressiva comunidade de pescadores."101 Segundo o julgamento de Vilhena, havia, nos açougues ou talhos distribuídos pela cidade, um descontrole generalizado, desenvolvido pelos soldados, quando faltava carne na capital. Eles tiravam à força das mãos dos escravos e dos ministros os quartos de carne e, quando o Presidente do Senado mandava fechar os açougues para evitar as desordens, os soldados os arrombavam.102 Não tomavam apenas a carne que lhes bastasse, mas dela se apoderavam também para entregar a negras com as quais tinham tratos ou contratos, "conhecidas como cacheteiras", que a moqueavam, vendendo "em bocadinhos" e "roubando os miseráveis pobres, que por outro meio a não podem conseguir".103 Lamenta a audácia dos soldados, que quase impediram seu próprio General de ter carne no sábado de Aleluia de 1797, tendo sido necessário mandar matar um boi no pátio de seu próprio palácio.

Para não morrer de sede104 Tratando ainda da Cidade da Bahia, Vilhena, como sempre, é crítico em relação ao acesso à água: "não dentro na cidade uma única fonte, cuja água se possa beber, quando para gasto não abundam".105 Na cidade baixa, para o gasto, existiam as fontes da Preguiça, da ladeira da Misericórdia, e a Fonte do Pereira, no fundo da ladeira do Tabuão.106 Ressalta, todavia, que "toda a montanha na sua falda geme água, e poucas são as casas que não tenham a sua poça",107 embora toda ela fosse salobra.108 na cidade alta, fora dela, detrás do convento da Soledade, havia a fonte do Queimado, "de água excelente para beber, donde a manda buscar quase toda a gente da Praia, e muita parte da cidade".109 Enumera várias outras fontes: como a do bairro de Santo Antônio perto dos Currais; outra próxima ao grande Dique; por detrás do convento do Desterro, a fonte das Pedras e a fonte Nova; por detrás do convento da Lapa, a fonte do Tororó; por detrás do convento da Piedade, a fonte do Coqueiro; abaixo da igreja de Santana, a fonte do Gravatá, segundo ele, a mais imunda de todas.

Refere-se ainda a um poço junto à capela de São Miguel, a outro no sítio do Maciel, e a um olho d'água, numa baixa próxima ao Dique, que chamavam de Barril. Ao sul da cidade, ficava o Forte de São Pedro e, perto dele, a fonte com o mesmo nome, "cuja água é de todas a melhor quanto à qualidade",110 salienta. Enfim, de uma forma geral, minguava água para o uso da população, sobretudo no que dizia respeito aos aspectos nutritivos ou dietéticos.

Os problemas com a água eram aguçados por várias circunstâncias. Quando deixava de chover por mês e meio ou dois meses, as fontes secavam, e quem possuía fonte particular passava a vender a sua água, como o fazia, segundo ele, sem nenhuma vergonha, um eclesiástico.111 Por outro lado, a desordem vingava nas fontes, com a sua apropriação pelos soldados. E sobrava para os pretos e suas parceiras negras, constrangidos a levar água para onde os soldados determinassem, "sem que eles sejam aguadeiros, nem paguem às negras que o são";112 se não obedecessem, tinham suas vasilhas quebradas e eram espancados. Os pretos tinham suas cabeças partidas, uma infinidade deles ficava aleijado, e muitos vinham a morrer.113 Existiam, entretanto, negros114 que lhes queriam "fazer a cara", logo saindo à espada ou à faca para enfrentá-los. Semelhantes desordens sucediam também com os "forçados das galés, facinorosos, e desesperados, a quem devera destinar-se privativamente uma fonte".115 Salienta ainda que os pretos viviam brigando entre si, quebrando cabeças e braços, para tomar a água. Uns, pelo que lhes pertencia, outros, para defender e "patrocinar negras suas parceiras, e apaixonadas".116

O grande e o pequeno comércio dos vendedores de comida A ti tocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado A mim foi-me trocando, e tem trocado Tanto negócio, e tanto negociante.

Gregório de Matos117 Salvador era, na época, um dos principais centros comerciais do Atlântico Sul, considerada, pelo professor de grego, mais "pecuniosa" que o Rio de Janeiro e Pernambuco, porém, menos policiada. Compunha-se o corpo de comerciantes de 164 homens, mas não mereciam ter os seus nomes citados, tampouco terem especificados seus gêneros de comércio.118 Alguns "comerciam com o nome, e com cabedais de personagens a quem seria menos decente o saber-se que comerciam", e outros tantos eram "bastardos por sua desonestidade", o que terminava por prejudicar os legítimos comerciantes.119 Enfim, de forma geral, ele equalizou a todos, os "naturais golpistas ou escroques" e os grandes exportadores e importadores de produtos e carne humana (escravos), proprietários de lojas e armazéns. Consoante Sousa, "Entre 1760 e 1808, através de minuciosa pesquisa em inventários, Mascarenhas conseguiu arrolar cerca de 163 comerciantes em Salvador, entre grandes, médios e pequenos mercadores".120 De acordo com o professor de grego, "a maior parte dos comerciantes mais ricos da Bahia moram nesta freguesia",121 ou seja, a da Conceição da Praia. Isso significa que, naquele momento, os grandes comerciantes não apenas negociavam na área comercial, mas tinham ali também o seu espaço residencial. Mais adiante, falando do imposto de consumo, esclarece que os que têm "negócio em grosso" (atacadistas), "vendem das suas lojas por miúdo, a côvado, e vara, saem turmas de negras com caixinhas cheias de fazendas, a maior parte de contrabandos, tirados por alto, ou comprados em navios estrangeiros".122 Essas negras tinham salvo-conduto pelo respeito às casas poderosas a que pertenciam, "e triste será a sorte de quem bolir com elas".123 Ironicamente, continua, existiam vendedoras negras que não pertenciam às lojas, tirando "uma licença do Senado para poderem vender, livres das ciladas do vigilante rendeiro do Ver".124 E vai além, chegando às vendas e tabernas que existiam por toda a cidade e subúrbios, criticando o rendeiro que fazia ajustes com seus proprietários, ficando "o vendilhão habilitado para furtar a salvo, entrando logo no ajuste o avisá-lo quando houver correição geral".125 Embora fale em tabernas, não estabelece o seu número, mas constata a existência de mais de 250 vendas em toda a cidade.126 Provavelmente, seus números se aproximam da realidade, pois, segundo Avanete Sousa, " em 1792, foram concedidas 426 licenças para funcionamento de vendas, tabernas e botequins.

Isto sem contar os estabelecimentos que funcionavam clandestinamente".127 Ressalta, porém o que também nos interessa , que " nesta cidade multidões de comerciantes nos gêneros da primeira necessidade, como são farinhas e carnes, além de outros mais miúdos".128 Segundo Graham, A maior parte desses vendedores, em contraste com os proprietários de lojas em geral, eram mulheres, especialmente mulheres de cor. [...] gente que era parte do dia a dia da cidade, demonstrando a força do seu valor. Elas estavam presentes em Salvador no mínimo dois séculos e, em Lisboa, antes disso. E na África Ocidental e Central, as mulheres tinham um longo domínio no comércio e eram reconhecidas como vendedoras no mercado (tradução do autor).129

Quitandas, pescado, sal e azeite Quitandas eram as feiras livres onde se juntavam "muitas negras a vender tudo que trazem, como seja peixe, carne meia assada, a que dão o nome de moqueada, toucinho, baleia no tempo da pesca, hortaliças, etc.".130 Uma das quitandas estava localizada na Praia;131 a outra, que "indecentemente" estava no Terreiro de Jesus, fora transferida para uma rua chamada Nova, com poucas casas, e as que o Senado mandou edificar, por serem tão pequenas, as quitandeiras não quiseram alugar. a terceira quitanda se situava nas Portas de São Bento, onde o Senado mandou fazer outras cabanas, que, por serem "espaçosas, quase nunca ficam por alugar".132 Estariam Vilhena e Avanete Sousa falando sobre os mesmos personagens e comércios, quando ela diz: Em situação mais confortável estavam os foreiros das bancas construídas pela municipalidade e dispostas pela cidade, a saber: 23 no Terreiro, 22 na Praia, 23 em São Bento e 19 no Caminho Novo, entre o Cais Dourado e o Taboão. Estes locais, onde se vendia de tudo, de peixes a outros gêneros comestíveis, assumiam características de pequenos mercados aos quais afluía a população dos arredores e de vários pontos da cidade.

E arremata, em nota de de página: "As de São Bento e as do Caminho Novo foram edificadas em 1790".133 O professor de grego considera que a venda do pescado se dava em grande desordem, pois passava por quatro ou cinco mãos, antes de chegar aos que o compram para comer.134 Em sua opinião, se o governador não tivesse entregado a praça de São Bento ao Senado, que, no local, havia implantado quitandas, ali deveria ser instalada uma praça de pescado, da qual a Bahia ainda carecia. Mas, logo reconsidera, dizendo que "a pescadaría devera ser na beira-mar, onde os pescadores deveram ser obrigados a ter o seu peixe exposto à venda ao povo, por uma ou duas horas depois que desembarcassem, pois que o calor não permite maior demora".135 Não era incomum, no Brasil, o apodrecimento de peixe em regiões de grande produção. Até hoje, a inexistência de frigoríficos para o armazenamento de peixe é um problema para os pescadores artesanais. Vilhena queria mais: seria necessário punir quem vendesse em outro lugar, que não a praia, em especial as negras regateiras (vendedoras ambulantes).136 Negócio privativo das ganhadeiras, elas vendiam o peixe "a outras negras, para tornarem a vender, e a esta passagem chamam carambola". E o peixe ficava caro, porque existia ainda outro embaraço: antes de chegar ao porto, os oficiais inferiores, a pretexto de se destinarem a oficiais superiores, arrebatavam, com violência, o peixe dos pescadores e o entregavam para as ganhadeiras ou outras negras, "com quem tem seus tratos, e comércios".137 Para ele, faltava polícia e "governo econômico", mas isso não era feito, porque as ganhadeiras "são, ou foram cativas de casas ricas, e chamadas nobres, com as quais ninguém quer se intrometer [...] pelo interesse que de comum tem as senhoras naquela negociação".138 Se é verdade que a elite feminina local branca podia ter interferência no comércio popular de rua, é evidente o preconceito de Vilhena em não considerar as mulheres negras capazes de desenvolver seus próprios negócios.139 Para ele, era inconcebível um ex-escravo, e mais ainda sendo mulher, ter capacidade de exercer, de maneira inteligente e autônoma, uma atividade lucrativa, a ponto de estabelecer uma verdadeira reserva de mercado.

Existiam, também, grandes problemas na vendagem do sal e do azeite, fruto das atitudes do monopólio do seu administrador. Era difícil alguém conseguir meio alqueire de sal, porque ele era enviado a outros lugares e a portos da costa, para ser vendido mais caro. Por outro lado, o administrador queria vender o sal em moeda de prata ou ouro, e não na moeda de cobre, corrente e aceita pela Arrecadação da Real Fazenda.140 Para Thales de Azevedo, além do privilégio de classe, a preguiça nos brancos era também causada pela escassez de sal, pois as perdas de cloreto de sódio que ocorrem nos climas úmidos e quentes dão lugar "a verdadeiros quadros de insuficiência suprarrenal baixa da tensão arterial, adinamia, incapacidade para o esforço muscular, câimbras e dores na panturrilha".141 o azeite era objeto de grande opressão para o povo pobre, pois, o que lhe era vendido, era "grosso como lodo, feito dos torresmos, das baleias", enquanto era enviado "impunemente para fora todo azeite bom, ainda nos anos em que é abundantíssima a pesca das baleias".142 Para completar, o local de venda era aberto na "boca da noite" e às oito horas estava fechado; apesar de todo o lucro existente, "escandaliza que se requeira o aumento daquelas fezes de azeite".143

"Especialidades baianas" O texto abaixo é o mais citado de Vilhena: Não deixa de ser digno de reparo o ver que das casas mais opulentas desta cidade, onde andam os contratos, e negociações de maior porte, saem oito, dez, e mais negros a vender pelas ruas a pregão as cousas mais insignificantes, e vis; como sejam iguarias de diversas qualidades v.g. mocotós, mãos de vaca, carurus, vatapás, mingau, pamonha, canjica, isto é, papas de milho, acaçá, acarajé, ubobó, arroz de côco, feijão de côco, angu, pão-de-ló de arroz, o mesmo de milho, roletes de cana, queimados isto é rebuçados a 8 por um vintém, e doces de infinitas qualidades ótimos muitos deles, pelo seu asseio, para tomar por vomitórios; e o que mais escandaliza é uma água suja feita com mel, e certas misturas a que chamam o aloá, que faz vêzes de limonadas para os negros".144 Muito tem sido dito, a partir dessa citação, para caracterizar uma possível africanização da comida baiana. Entretanto, Vivaldo da Costa Lima, embora reconheça uma amostra considerável na relação de Vilhena, viu apenas quatro pratos "tipicamente africanos, como o acarajé, o acaçá, o vatapá145 e o abará".146 Era evidente que, após mais de dois séculos do tráfico de escravos, com o acúmulo de povos de duas regiões (África Central e Costa da Mina), o aumento do contingente de negros livres, muitos deles negociantes, e as relações constantes com a África, crescia em muito a probabilidade de terem sido incorporadas à realidade baiana novos ingredientes e outras técnicas culinárias, além das existentes, oriundas dos portugueses e de povos indígenas. Muitos desses africanos e africanas eram exímios cozinheiros, além de participantes das tradicionais organizações religiosas africanas, e seriam responsáveis pela recriação de uma sofisticada e ampla "cozinha sagrada", da qual alguns pratos seminais, como os citados, seriam aproveitados no cotidiano dos homens. Assim, negar a presença de componentes africanos na cozinha baiana seria absurdo. Mas, daí a pensar em africanização da comida baiana, não passa de "devaneio". É preciso estabelecer também que, naquele momento, muito do que se comia nas regiões do tráfico baiano, conforme demonstra Luiz Antonio de Oliveira Mendes, refletia a incorporação de grande número de produtos americanos e portugueses, da farinha ao milho, de frutas, legumes e hortaliças à cachaça.147 A globalização alimentar, embora ainda lenta e bastante seletiva, começava a se pronunciar.

Havia ainda outro problema: quem comia tais produtos? Os que leram Vilhena com atenção, além da célebre citação, teriam a resposta: [...] bem se , que uma semelhante negociação, além de ludibriosa para quem não tem a alma possuída do espírito da torpe ambição, devera ser privativa da repartição dos pobres, que nada têm, de que possam haver o necessário para a sua subsistência.148 Clareza maior impossível: desapreço para os negociantes que usavam os negros, e consumo propício à grande massa pobre que habitava Salvador. Como disse Claude Papavero, referindo-se a outro autor e a outro momento histórico, mas aplicável perfeitamente à perspectiva de Vilhena nos finais do século XVIII: "à vista do tom de mofa utilizado pelo autor nas menções a tais preparos alimentares, não parece que houvesse ocorrido uma integração cultural, paralela à mestiçagem física, de uma proporção importante da população colonial".149 Acredito que, a partir daquele momento, os pratos africanos se incorporavam àquilo que eu chamaria de "culinária popular", de negros e de brancos pobres. Como afirma Isabel Braga, Não obstante, os alimentos que os brancos desfavorecidos consumiam no Brasil eram bem mais próximos dos que eram utilizados por índios e negros do que daqueles que integravam as dietas da metrópole, mesmo entre os mais pobres.150 E isso pode ser visto também em outra passagem, muito menos conhecida, em que o autor, falando da desordem do hospital da Bahia, está persuadido de ser "o único, onde se aos soldados, quando o pedem, leite para almoçar, ovos, manteiga, doce indispensavelmente para a sobremesa; pão-de-ló, mãos de vaca, a que chamam aquimocotós, e o mais é que caruru".151 Vilhena reage à mestiçagem, que possibilitaria uma quebra da hierarquia social com a ascensão de mestiços, mas ela não poderia ser evitada, pois existia. Não se pode esquecer que "pardos" ou "mulatos", embora em outro patamar, distinto do dos pretos, de uma forma geral não tinham maior qualificação social. Se ascendiam, não eram mais mestiços, embranqueciam, o que enlouquecia o professor de grego. Na Colônia, imperava uma rede hierarquizada de posições, em que elementos como o vestuário e a comida definiam a importância social de cada indivíduo. Se, para as elites soteropolitanas, havia um custo pela cama, maior seria ainda pela mesa: a denominada, por Papavero, "desmediterraneização pragmática da dieta",152 ou ajustamento às condições locais ocorreu, mas daí a aceitar publicamente as comidas vendidas ou preparadas por negros ia uma longa distância. Por sua vez, quando se trata da culinária baiana, existe a completa invisibilização da mulher branca, da dona da casa. um esquecimento de que comida implica relações de poder, e, assim, pensar que as cozinheiras negras, por sua presença nos espaços brancos, dominaram a cozinha e impuseram o seu paladar é ilusão. Inseriram alguns elementos, adicionaram certos ingredientes, mas sempre sob a supervisão e o poder de mando da patroa branca. Enfim, a mesa era um dos espaços fundamentais de poder para a mulher branca no Brasil colonial e imperial.153 E Vilhena, como vimos, não economiza adjetivos, depreciando as comidas populares. Mas, as mulheres brancas eram minoritárias e, por outro lado, os poderosos podiam se enfastiar no azeite, sem a publicização.

A corrupção dos mantimentos Estupendas usuras nos mercados, Todos, os que não furtam, muito pobres E eis aqui a cidade da Bahia.

Gregório de Matos154 Para o professor de grego, a desonestidade, com a venda de alimentos no estado de imperfeição, concorria em muito para a falta de saúde na Bahia. Começando "pelo pão, que é a farinha de mandioca, chamada vulgarmente farinha-de-pau".

Segundo ele, a farinha vinha de vários portos e comarcas, do sul e do norte, de Caravelas, passando por Nazaré ele a cita até Maragogipe, onde os monopolistas e atravessadores a conduziam para os depósitos e, em conluio com os responsáveis pelo celeiro público, somente a liberavam, quando aqueles a requeriam. Ao chegar ao celeiro, sem nenhuma avaliação do seu teor, [...] ali se expõe à venda, sem que se averigue, nem indague da sua qualidade, que muitas vezes é tal, que mal serviria para dar a porcos; tanto pela muita casca com que a ralaram, como pelo pouco que a torraram [...] o que tudo é em extremo nocivo à saúde do pobre povo.155 As frutas eram vendidas verdes. A farinha de trigo que vinha da Europa era misturada com outra, apodrecida, e com ela faziam pão, biscoitos, bolachas "muitas vezes intragáveis" , queijos, manteiga e aletria.156 No azeite, assim como na manteiga velha e rançosa, misturavam sebo. E para dar uma cor agradável à manteiga, colocavam uma batatinha. O mesmo faziam os "sórdidos vendeiros e taberneiros", temperando os vinhos e os vinagres com pimentas e outras misturas, como ao colocar água salgada na cachaça. Chamavam o peixe de fresco, quando na realidade estava podre. Muita carne salgada, conhecida por carne do sertão,157 vindo ardida do calor das embarcações, era vendida aos pobres para suas famílias, e aos ricos para os escravos, visto que era mais barata que a fresca. E reiterava a sua queixa: "falta de governo econômico".158

A comida dos escravos Contados são os que dão a seus escravos ensino e muitos nem de comer sem lhes perdoar o serviço.

Gregório de Matos159 Vilhena começa a falar sobre a comida dos escravos invocando a existência de uma ordem, se não inexistente, jamais cumprida, de que os senhores seriam obrigados a fazer plantações de mandioca, para tirarem a farinha de que carecia a sua escravidão.160 Mas nada disso era feito, sendo os escravos tratados de modo bárbaro e cruel pela maior parte dos senhores de engenho, embora existissem formas diferenciadas de tratamento. Uns senhores [...] não lhes dando sustento algum, lhes facultam somente o trabalharem no domingo, ou dia santo, em um pedacinho de terra, a que chamam roça, para daquele trabalho tirarem sustento para toda a semana, acudindo somente com alguma gota de mel, o mais grosseiro, se é em tempo de moagem.161 Outros davam aos escravos, apenas e tão somente, o sábado para trabalharem para si, adicionando mais "uma quarta de farinha, e três libras e meia de carne seca, e salgada para se sustentarem dez dias. Outros porém mais humanos lhes dão esta ração, e um dia livre em cada semana". E, finalmente, os que "são os mais pobres, e menos enfatuados, que sustentam, e tratam os seus escravos com humanidade, e caridade cristã".162 Aqueles "infelizes escravos" que possuíam uma "rocinha", produziam mandioca "e algum outro legume", dali podendo tirar o seu lucro, se não fossem os tantos inimigos que os perseguiam: os seus parceiros que os roubam, por serem "esfaimados e preguiçosos"; [...] os muitos gados, que arrombam as cercas de suas plantações e as devastam; a destruição provocada por muita caça, em especial um porco bravo pequeno, chamado caititu; por fim, a "perniciosa formiga", que em uma noite pode tudo destruir".163 Como se pode perceber, Vilhena trata apenas dos escravos dos engenhos de açúcar, não incluindo os escravos da plantação fumageira, da farinha ou mesmo do sertão da Bahia. Tampouco os escravos urbanos. Todos eles com melhores condições de trabalho e provavelmente com maior mobilidade física e relativa liberdade. O que, possivelmente, se traduziria em melhor alimentação.

Russel-Wood, no seu livro Escravos e libertos no Brasil colonial,164 refere-se às pesquisas realizadas no Recôncavo baiano no período 1780-1860. Usando Barickman, observa que, [...] embora a prática de permitir que os escravos cultivassem roças fosse comum nas plantations açucareiras e nos canaviais, a produção não atendia às necessidades de sobrevivência, o excedente para a venda era raro e o potencial de vender a produção, limitado".165 O próprio Barickman informa: [...] os escravos dos engenhos baianos ocasionalmente participavam desse mercado vendendo a produção excedente de suas roças; com mais frequência e com impacto muito maior na economia interna, esses escravos, através das compras feitas por seus senhores, contribuíam para a demanda de víveres produzidos na Bahia e em outras partes do Brasil.166 Mais adiante, salienta que "os senhores de engenho e lavradores de cana compravam para seus cativos uma reduzida gama de artigos: na prática, pouco além de alguns mantimentos básicos e tecidos baratos".167 Portanto, nutriam-se um pouco melhor os que tinham acesso a uma roça para cultivar os seus produtos.

Em muitas áreas do Recôncavo, a roça e o dia livre para o seu cultivo tornaram- se quase um direito consuetudinário. Vilhena acerta ao apontar os problemas que atingiam as roças, como a derrubada das cercas pelo gado. Assim, compreende-se que, quase um século após o seu relato, prospere, ainda com vigor, em 1888 e 1889, o roubo de gado por ex-escravos. De acordo com Walter Fraga Filho, "havia conexão entre o roubo de gado e a defesa do direito costumeiro às roças, pois muitos dos animais abatidos eram os mesmos que estragavam a plantação dos libertos".168 Vilhena sugere o caminho para melhorar a vida dos escravos assim como a dos senhores, na medida em que, pela "falta de governo econômico", em breve tempo os perdiam, "consumidos de trabalho, fome e açoites".169 Os senhores deveriam escolher "uma sorte de terras", mandar lavrar, cavar e destruir os imensos formigueiros; depois, fariam uma cerca alta e forte para impedir a entrada do gado. Deveria ser plantado, na maior parte do terreno, mandioca, depois arroz, por sua grande rentabilidade agrícola; entre a mandioca ou separado, se plantaria aipim e também inhame, batata, milho, gergelim, abóbora, além de um grande bananal, porque a banana é de todos o maior "mantimento da pobreza". A roça deveria ser feita por toda a escravatura, sendo por ela responsável o feitor-mor, o qual destinaria dois escravos para cuidarem da plantação, não permitindo furtos e sendo responsáveis por todo e qualquer prejuízo. Não deveria a roça do feitor-mor ser a mesma, nem vizinha, "por ser quase infalível o lucro de um, e prejuízo dos outros".170 Junto à morada do senhor, deveria se dispor de [...] um grande cocal [coqueiral], cujo fruto não serviria para regalo, como ainda para extrair azeite fresco, para temperar muitas iguarias, e frigir, como para fazer saborosíssimos manjares, não para os escravos, como para os mesmos senhores.171 Interessante é a sua constatação de que, nesse período, o leite de coco era utilizado na condimentação dos alimentos e de que deveria haver também dendezeiros, para deles extrair-se o azeite, "tempero essencial da maior parte das viandas dos pretos, e ainda dos brancos criados com eles".172 Assim, o professor de grego reitera a recriação das comidas africanas entre os africanos e seus descendentes, assim como entre os brancos empobrecidos.

Com essas medidas de economia, trazendo os seus escravos sempre fartos e contentes, eles teriam maior tempo de vida, poderiam trabalhar mais "e então finalmente deixariam de ser enterrados quase todas as semanas sacos de dinheiro por que se compram".173 Enfim, precisava-se de senhores de escravos com melhor formação no uso das terras e racionais no aproveitamento dos seus investimentos na mão de obra escrava. Melhorar o tratamento dos escravos não era primordialmente uma questão de humanidade ou direito, mas, sobretudo, de economia.

Despedindo-me de Vilhena Adeus praia, adeus Cidade, e agora me deverás, Velhaca, dar eu adeus, a quem devo ao demo dar.

Gregório de Matos174 Mais de cem anos separavam o Boca do Inferno de Luis dos Santos Vilhena, muitas foram as transformações, os problemas se aguçaram, mas a ferocidade de um na poesia, estava presente, em menor proporção, na prosa do autor setecentista.

Tinhoso, ladino, vingativo era o professor de grego no uso da pena. Afinal, sentia-se desprestigiado pelos poderosos da terra. Da sua vida pouco se sabe, mas não deixo de recear que ele possa ter sido adepto do "faça o que eu digo, mas não faça o que faço". Nada disso, porém, prejudica o passeio proveitoso que se pode fazer pela Bahia a partir das tão citadas Cartas de Vilhena: missivas de um "fiel amigo da verdade", a ponto de dizer que não passava de "ser um coletor do que vejo, e me dizem, e muitas cousas pode haver que andem desviadas dos meus olhos e ouvidos".175 Desviou-se do que quis, mas, seguramente, foi um bom observador do que via, do que ouvia e do que lia, daí o caráter enciclopédico do seu trabalho, seja em termos de assuntos, seja em termos espaciais, pois chegou ao Amazonas, sem nunca ter saído da Bahia. Como ele queria "consertar" o Brasil para o debilitado Portugal, aborda assuntos fundamentais para a compreensão da Colônia brasileira: a estratificação social, a escravidão, o tráfico de escravos, a presença africana e dos seus descendentes, a mestiçagem, a preguiça, a ostentação e o "teatro dos vícios", incluindo-se a libertinagem e a corrupção desenfreada. No meio de tudo isso, estava um elemento fundamental para a sobrevivência da população: a comida.

Como ele próprio afirma, "sem homens não sociedade, e sem meios de subsistência não pode haver homens".176 E a comida sempre escasseava, apesar da constituição de produção e mercado internos, sendo sempre necessário recorrer ao mercado externo. Muito nos diz sobre a produção e distribuição dos alimentos, marcadas pelo lucro, desgoverno e corrupção; menos sobre a preparação e menos ainda sobre a mesa propriamente dita, mas, mesmo assim nos permite refletir sobre o que comiam os diversos grupos que viviam na Bahia. Com ele, se pode ver o surgimento de uma culinária popular baiana, dos negros e dos brancos empobrecidos, distante do que comia "a nobreza da terra", em muito ainda presa às suas origens.

Assim, com o olhar vigilante e ferino de Vilhena, " vejo o prenúncio de novos tempos".

Texto recebido em 20 de outubro de 2012 e aprovado em 5 de março de 2013

* Esta é uma versão inicial e reduzida de um capítulo do trabalho "A comida dos baianos no século XIX", cuja pesquisa foi realizada com o apoio do CNPQ.

Agradeço a João Reis, pelo constante subsídio bibliográfico.

1 Katia M. de Queirós Mattoso. "A opulência na província da Bahia", in Luis Felipe de Alencastro (org.), História da vida privada no Brasil: Império(São Paulo: Companhia das Letras, 1997) p. 147.

2 Luis dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII. Bahia: Itapuã, 1969, pp.

279 e 284. A edição tem três volumes, e as citações aqui utilizadas são majoritariamente do primeiro volume. Quando retiradas dos volumes 2 e 3, serão devidamente identificadas. O livro foi originalmente editado com o título Recopilação de noticias soteropolitanas e brasilicas, Bahia: Imprensa Official do Estado, 1921.

3 Convém notar que a denominação erudita para os nascidos em Salvador, soteropolitanos de sotero ("salvador" ) + polis ("cidade") , permanece até os dias de hoje.

4 Nas Cartas se autodenomina Amador Veríssimo de Aleteya, que em grego significa "fiel amigo da verdade". As primeiras Cartas foram enviadas a D.

João, a quem denomina Filipono, ou seja, "amante do trabalho". as quatro últimas foram encaminhadas a D. Rodrigo de Souza Coutinho, a quem chama de Patrífilo, ou seja, "amigo da pátria". Vilhena, A Bahia, p. 29 e Vilhena, A Bahia, v. 3, p. 757.

5 As informações sobre a vida e o pensamento de Vilhena foram obtidas em Leopoldo Collor Jobim, "Luis dos Santos Vilhena e o pensamento iluminista no Brasil" (Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1981).

6 Gregório de Matos, Antologia Gregório de Matos Guerra. Seleção e notas de Higino Barros. Porto Alegre: L & PM, 2009, p. 103.

7 Katia M. de Queirós Mattoso. Bahia, século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, pp. 84-90.

8 Vilhena, A Bahia, pp. 197, 199, 231, 232.

9 Sobre os contrastes, do ponto de vista simbólico, entre o açúcar e o fumo, ver Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1983, pp. 1-17.

10 Vilhena, A Bahia, p. 200.

11 Vilhena, A Bahia, p. 202. Ainda hoje, o aipim cozido faz parte do café da manhã de muitos baianos, servido quente com manteiga.

12 Vilhena, A Bahia, pp. 156-8.

13 Estudiosos do tráfico estimam que Salvador teria recebido, entre 1678 e 1830, cerca de 790.000 africanos. Ver Manolo Florentino, Alexandre Vieira Ribeiro e Daniel Domingues Silva, "Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)", Afro-Ásia, v. 31 (2004), p. 97.

14 Sobre as crises de alimentação, ver B. J. Barickman, Um contraponto baiano.

Açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 133.

15 Vilhena, A Bahia, p. 159. Trata-se de uma referência a Roma, que se valia da Sicília em tempos de escassez.

16 Sobre o abastecimento dos navios em Salvador, desrespeitando as normas estabelecidas, ver Jaime Rodrigues, De costa a costa. Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860), São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 60.

17 Thales de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, Bahia: Itapuã, 1969, p.

298.

18 Avanete Pereira Sousa, A Bahia no século XVIII. Poder político local e atividades econômicas, São Paulo: Alameda, 2012, p. 151.

19 Sobre a importância da pecuária para a economia baiana, além de Sousa (A Bahia no século XVIII), ver Azevedo, Povoamento. pp. 320-36: Stuart B.

Schwartz, Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 88; Eurico Alves Boaventura, Fidalgos e vaqueiros, Salvador: UFBA-Centro Editorial e Didático, 1989; Maria Aparecida Silva de Sousa,A conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia, Vitória da Conquista: UESB, 2001; Erivaldo Fagundes Neves, Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio. Um estudo de história regional e local. Salvador/Feira de Santana: EDUFBA/UEFS, 2008. pp. 183-226.

20 Neves, "Policultura e autossuficiência", p. 187.

21 Neves, "Policultura e autossuficiência", p. 185.

22 Azevedo, Povoamento, pp. 273-4 23 Vilhena, A Bahia, p. 41.

24 Vilhena, A Bahia, p. 50.

25 Vilhena, A Bahia, p. 479.

26 Petitingas são petiscos muito comuns nos bares de Salvador.

27 Moquecas, sem dendê, são bastante raras hoje. Mesmo assim, anos recentes, o bar e restaurante Rombiamar, na Boca do Rio, sempre servia essas moquecas, apimentadas, que vinham do interior.

28 "Saem da vila da Cachoeira diferentes estradas, o que concorre muito para faze-la famosa, pois que de todas as minas, e sertões se vem dar àquele porto; muitos pastos em que se refazem as cavalgaduras, que pisam aquelas estradas, e os viajantes ali vão deixar uma grande parte do seu dinheiro. A estrada que sai por S. Pedro da Muritiba estende-se até Minas Novas, Rio de Contas, Serro do Frio, e todas as minas gerais, até que circulando vai sair ao Rio de Janeiro; sai outra que passando pela vila de Água Fria, passa às minas da Jacobina, corta parte do Piauí, e conduz até o Maranhão; e além destas saem outras de menos conta, e menor distância." Vilhena, A Bahia, v. 2, p. 483.

29 Segundo Barickman, Jaguaripe e Maragogipe forneciam grande parte da farinha vendida no mercado de Salvador. Ver Barickman, Um contraponto baiano, p. 173. De referência a Nazaré, contida na vila de Jaguaripe, a que Vilhena são se refere, informa Graham: "No mercado de Nazaré aos sábados, 10 a 12 mil alqueires de farinha eram vendidos. Os barcos de Nazaré e Jaguaripe juntos providenciavam 43% da farinha de Salvador" (tradução livre do autor).

Ver Richard Graham, Feeding the City: from Street Market to Liberal Reform in Salvador, Brazil. 1780-1860, Texas, USA: University of Texas Press, 2010, p.

86.

30 Sobre a autossuficiência das fazendas de tabaco, que muitas vezes produziam também feijão e milho, além de mandioca, ver Barickman, Um contraponto baiano, p. 103.

31 Vilhena, A Bahia, p. 492.

32 Tendo em vista que Vilhena não viajou pelo interior da Bahia, muito menos por outras capitanias, embora seu relato chegue à Amazônia, deixo de apresentar o seu capítulo sobre as riquezas naturais do Brasil. Suponho que o mesmo, em grande parte, teria se baseado em outros cronistas, sendo uma cópia empobrecida de autores como Gabriel Soares de Sousa, Tratado descritivo do Brasil em 1587, São Paulo: EDUSP/ Nacional, 1971; Pe. Fernão Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil, São Paulo/Brasília: Nacional/INL, 1978; Maria Leda Oliveira, A história do Brasil de Frei Vicente do Salvador: história e política no Império Português do século XVII, Rio de Janeiro/São Paulo: Versal/ Odebrecht, 2008. Assim como vários outros, ele passeia da fartura alimentar ao inferno na terra, com os "tigres inimicíssimos dos jacarés". Ver Vilhena, A Bahia, v. 3, pp. 675-733.

33 Vilhena, A Bahia, p. 497. A cachaça de Parati manteve-se em parte do século XX com grande prestígio. E a de Camamu? Talvez os historiadores possam esclarecer.

34 Vilhena, A Bahia, p. 501.

35 Sousa, A Bahia no século XVIII, p. 38.

36 Azevedo, Povoamento, pp. 325-6.

37 Graham, Feeding the City, p. 122.

38 Vilhena, A Bahia, p. 502 39 Vilhena, A Bahia, pp. 510-1.

40 Vilhena, A Bahia, p.518.

41 Vilhena, A Bahia, v. 2, p. 520.

42 Vilhena, A Bahia, v. 2, p. 521.

43 Vilhena, A Bahia, v. 2, pp. 523-4.

44 Vilhena, A Bahia, v. 2, p. 525. Hoje, a localidade denomina-se Cumuruxatiba.

45 Vilhena, A Bahia, v. 2, pp. 526-7.

46 Vilhena, A Bahia, v. 2, p. 528.

47 Vilhena, A Bahia, v. 2, p. 561.

48 Vilhena, A Bahia, v. 2, p. 561.

49 Antonio Risério, Uma história da Cidade da Bahia, Rio de Janeiro: Versal, 2004, p. 238.

50 Azevedo, Povoamento, p. 275.

51 Vilhena, A Bahia, p. 948.

52 Vilhena, A Bahia, p. 59.

53 Vilhena, A Bahia, p. 58.

54 Vilhena, A Bahia, p. 57.

55 Vilhena, A Bahia, p. 57.

56 Vilhena, A Bahia, p. 57.

57 Vilhena, A Bahia, p. 58.

58 Azevedo, Povoamento, pp. 362-3.

59 Vilhena, A Bahia, p. 159.

60 Sousa, A Bahia no século XVIII, p. 237.

61 Azevedo, Povoamento, p. 365.

62 Azevedo, Povoamento, p. 360.

63 Vilhena, A Bahia, p. 200.

64 Vilhena, A Bahia, p. 61.

65 Azevedo, Povoamento, pp. 362-3.

66 Sobre o banzo ou cesta de mercadorias de procedências diversas, ver Gustavo Acioli e Maximiliano M. Menz, "Resgate e mercadorias: uma análise comparada do tráfico luso-brasileiro de escravos em Angola e na Costa da Mina (século XVIII)", Afro-Ásia, v. 37 (2008), pp. 50-5.

67 Embora recebesse o produto de outras regiões, a cachaça carioca tinha uma "aguçada preferência" dos africanos de Luanda nos finais do século XVII. Ver João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. de Carvalho, O alufá Rufino. Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (1822-1853), São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 167.

68 Vilhena, A Bahia, p. 59.

69 Unidade portuguesa de capacidade para líquidos, correspondente a 1,4 litros.

Para A. Saramago, a medida corresponde a cerca de dois litros. Ver Cristiana Couto, Arte de cozinha. Alimentação e dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX), São Paulo: SENAC, 2007, p.157.

70 Vilhena, A Bahia, p. 61.

71 Relativamente, porque algumas vilas eram grandes produtoras de alimentos, como Nazaré das Farinhas. E, mesmo em Salvador, existia uma produção, a ser avaliada, de mandioca, feijão e legumes.

72 Vilhena, A Bahia, p. 41.

73 Graham, Feeding the City, pp. 74-91. O autor traça uma excelente radiografia da população marítima, sua composição e suas relações sociais, e da tipologia das embarcações, mas em grande parte com informações da segunda metade do século XIX.

74 Era a Câmara Municipal do período, com atribuições hoje divididas com as esferas estaduais e federais. Constituía-se no órgão governamental da Coroa Portuguesa. Ver Sousa, A Bahia no século XVIII, livro que, em grande parte, trata da organização do poder político.

75 Graham, Feeding the City, p. 174.

76 Segundo o mapa de Vilhena, o celeiro situava-se, na época, na freguesia da Conceição da Praia, nas proximidades do atual Mercado Modelo ou no local em que hoje se encontra.

77 Vilhena, A Bahia, p. 124.

78 Vilhena, A Bahia, p. 125.

79 O real (plural réis,abreviado rs.) era uma fração da moeda circulante, "em que as cédulas eram múltiplas e as moedas frações de mil réis". o alqueire era uma "antiga medida de capacidade us. sobretudo para cereais", cujo volume era variável conforme o local. Por exemplo, na região de Lisboa, equivalia a 13,8 litros. no Pará, correspondia a cerca de 30 kg. Ver Antonio Houaiss e Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2391 e p. 167.

80 Vilhena, A Bahia, p. 125.

81 Vilhena, A Bahia, p. 71.

82 Vilhena, A Bahia, p. 71.

83 Vilhena, A Bahia, p. 157.

84 Em alqueires, seriam as seguintes correspondências: farinha, 3 669 769; milho, 267 839, 1/4; arroz, 131 475, 1/2; feijão, 94 475, 3/4. Vilhena, A Bahia, "Memória dos Rendimentos do Celeiro Público da Cidade da Bahia desde 9 de setembro de 1785, dia da sua abertura, até dezembro de 1798", p.72.

85 O que contraria o postulado de Cascudo, de que "Poderiamos dizer o binômio feijão-e-farinha estava governando o cardápio brasileiro desde a primeira metade do século XVII. Luis da Câmara Cascudo, História da alimentação no Brasil, São Paulo: Global, 2004, p. 441. Entretanto, não se pode desconhecer, segundo Papavero, que o feijão estava presente no Brasil, inclusive por serem conhecidos na Europa de longa data, desde o século XVII.

Porém, ser um ingrediente valorizado na dieta local, era outra coisa. Ver Claude G. Papavero, "Ingredientes de uma identidade colonial: os alimentos na poesia de Gregório de Matos" (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo 2007), pp. 241-4. São intrigantes os dados apresentados por Russel-Wood, a partir de um documento de 1749, em relação à alimentação da casa de retiro da Santa Casa de Misericórdia, onde as recolhidas recebiam "3 quartos de farinha de guerra por pessoa, mensalmente, e 6 para a regente" e, ao mesmo tempo, "9 quartos de feijão para todas, mensalmente", in Russel-Wood, A. J. R.

Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550- 1755.

Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981, pp. 262-3. Um documento do século XVIII, encontrado por Luís Mott no Arquivo Público da Bahia, registra a presença do feijão e da farinha na alimentação dos baianos, além de o arroz aparecer com frequência. Desse documento se dará conta, oportunamente, no texto "Uma mesa aristocrática de um prisioneiro no século XVIII na Bahia", da autoria de Luís Mott e Jeferson Bacelar.

86 Graham, Feeding the City, pp. 221-3.

87 Sobre a importância da carne, com perspectivas divergentes, ver: Alan Beardsworth and Teresa Keil, The Mysterious Meanings of Meat, in Sociology on the Menu. An Invitation to the Study of Food and Society, London/New York: Routledge, 1997, pp. 193-217; Marvin Harris, Bueno para comer. Enigmas de alimentación y cultura, Madrid: Alianza, 2011, pp. 22-64.

88 Graham, Feeding the City, p. 107.

89 Vilhena, A Bahia, p. 160. Vilhena escreve apenas "Feira".

Édison Carneiro, em nota de rodapé, completa com "de Santana".

90 Vilhena, A Bahia, p. 160.

91 Vilhena, A Bahia, pp. 127-8.

92 Graham, Feeding the City, pp. 108 e 110.

93 Rollie E. Popppino. Feira de Santana, Bahia: Itapuã, 1968, pp. 20-1.

94 Vilhena, A Bahia, p. 129. A quebra se mantém até os dias de hoje nas feiras populares, não tanto em relação à carne, embora ainda exista, mas sobretudo em relação a frutas, verduras e legumes.

95 Sobre o paternalismo e o liberalismo, ver dois capítulos de Graham, Feeding the City: "Chapter 10- Meat, Manioc and Adam Smith" e "Chapter 11 - The People do not Live by Theories". pp. 172-207; e João José Reis e Márcia Gabriela D. de Aguiar. "Carne sem osso e farinha sem caroço: o motim de 1858 contra a carestia na Bahia", Revista de História, n. 135 (1996), p. 133- 59.

96 Graham, Feeding the City, p. 113.

97 Vilhena, A Bahia, p. 70.

98 Vilhena, A Bahia, pp. 129-30.

99 Graham, Feeding the City, p. 119.

100 Vilhena, A Bahia, p. 69. A Sala do Senado é o belo salão onde atualmente se reúne a Câmara de Vereadores.

101 Sousa, A Bahia no século XVIII, p. 155.

102 Vilhena, A Bahia, p. 129.

103 Vilhena, A Bahia, p. 129.

104 Contemporaneamente, com a postura dos ambientalistas, existe uma preocupação com a escassez de água no Ocidente desenvolvido. Entretanto, a literatura antropológica sobre os problemas de água nas cidades é escassa. Ver o interessante artigo de Guy Thuillier, "Water Supplies in Nineteenth-Century Nivernais", in Robert Forster and Orest A. Ranum (ed.), Food and Drink in History: Selections from the Annales, Economies, Sociétés, Civilisations, v. 5 (Baltimore/London: The John Hopkins University Press, 1979), pp. 109-25.

105 Vilhena, A Bahia, p. 102.

106 Vilhena, A Bahia, p. 102.

107 Provavelmente, a denominação se refere a cisternas ou poços perfurados, muito comuns nas casas baianas ainda no século XX.

108 Vilhena, A Bahia, pp. 102-3.

109 Vilhena, A Bahia, p. 103.

110 Vilhena, A Bahia, p. 103.

111 Vilhena, A Bahia, p. 109.

112 Vilhena, A Bahia, p. 108.

113 Vilhena, A Bahia, pp. 108-9.

114 Faria Vilhena alguma distinção entre as designações "preto" e "negro"? Embora atente para as dificuldades ou ambiguidades em torno da classificação racial nos séculos XVIII e XIX, Santos escreve: "Por certo as categorias 'preta' ou 'negra' na sociedade brasileira referiam-se a 'africano' e a 'negro escravo'. Ver Jocélio Teles dos Santos, "De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil dos séculos XVIII-XIX",Afro-Ásia, 32 (2005), p. 137. Silvia Lara afirma o contrário: "Negro, segundo Bluteau, era um designativo de cor, origem e nascimento: trata-se de alguém 'natural da terra dos negros' ou 'filho de pais negros'" e acrescenta em nota: "A terra dos negros ou 'Nigritas' é uma vastíssima região da África entre o Saara e o [sic] Guiné". "A palavra 'preto', por sua vez, aparece claramente associada à condição escrava". Ver Silvia Hunold Lara, Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 132 e p. 135.

115 Vilhena, A Bahia, p. 109.

116 Vilhena, A Bahia, p. 108.

117 Matos,Antologia, p. 103.

118 Vilhena, A Bahia, p. 56.

119 Vilhena,A Bahia, p. 56.

120 Sousa, A Bahia no século XVIII, p. 52.

121 Vilhena, A Bahia, p. 95.

122 Vilhena, A Bahia, p. 131.

123 Vilhena, A Bahia, p. 131.

124 Vilhena, A Bahia, p. 131. O rendeiro do Ver era o indivíduo que arrematava em hasta pública o direito de cobrar dos vendeiros, taberneiros e regateiros, quando eles vendiam sem licença ou praticavam preços superiores ao estipulado pela municipalidade. Sobre o assunto, ver Sousa,A Bahia no século XVIII, pp. 160-3.

125 Vilhena, A Bahia, p. 131.

126 Vilhena,A Bahia, p. 131.

127 Sousa,A Bahia no século XVIII, p. 52.

128 Vilhena, A Bahia, p. 95.

129 Graham, Feeding the City, p. 35.

130 Vilhena, A Bahia, p. 93.

131 Seria a Conceição da Praia.

132 Vilhena, A Bahia, p. 93.

133 Sousa, A Bahia no século XVIII, p. 143.

134 Vilhena, A Bahia, p. 127.

135 Vilhena, A Bahia, pp. 126-7. Falando sobre o assunto, Sousa informa: "Situadas, inicialmente, apenas na zona da cidade baixa conhecida por Praia e na Praça do Terreiro, ao longo dos séculos, foram instaladas balanças do pescado também na Pituba, em Itapoã, na Gamboa, em Itapagipe, no Rio Vermelho, em Água de Meninos, nas Pedreiras e em Ubaranas".

Ver Souza, A Bahia no século XVIII, p. 159.

136 Vilhena, A Bahia, p. 127.

137 Vilhena,A Bahia, p. 127.

138 Vilhena,A Bahia, p. 127.

139 Sobre a participação das mulheres nos mercados africanos, ver Pierre Verger e Roger Bastide, "Contribuição ao estudo dos mercados nagôs do Baixo Benin", in Pierre Verger, Artigos, São Paulo: Corrupio, 1992, pp. 122-59. Sobre as ganhadeiras em Salvador, no século XIX, ver Cecília C.

Moreira Soares, Mulher negra na Bahia no século XIX, Salvador: Eduneb, 2007, pp. 57-81 e, também, Maria Inês Côrtes de Oliveira, O liberto: seu mundo e os outros, São Paulo: Corrupio, 1988.

Sobre o poder e a organização dos ganhadores, ver João José Reis, "A greve negra de 1857 na Bahia", Revista USP, Dossiê Brasil/África, v. 18 (1993), pp.

7-29.

140 Vilhena,A Bahia, p. 132.

141 Azevedo, Povoamento, pp. 348-9.

142 Vilhena, A Bahia, p. 132.

143 Vilhena, A Bahia, p. 132.

144 Vilhena, A Bahia, p. 130.

145 Vivaldo da Costa Lima, nos seus últimos anos de vida, em conversa informal com o autor, declarou ter dúvida em relação à origem africana do vatapá.

146 Vivaldo da Costa Lima, "As dietas africanas no sistema alimentar brasileiro", in Carlos Caroso e Jeferson Bacelar (orgs.), Faces da tradição afro-brasileira (Rio de Janeiro/Salvador: Pallas/CEAO, 2006), p. 321.

147 Luiz Antonio de Oliveira Mendes,Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a Costa d'África e o Brazil. Apresentada à Real Academia das Ciências de Lisboa em 1793, Porto: Escorpião, 1977.

148 Vilhena, A Bahia, p. 130.

149 Claude G. Papavero, "Ingredientes de uma identidade colonial", pp. 390-1.

150 Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Sabores do Brasil em Portugal. Descobrir e transformar novos alimentos (séculos XVI-XXI), São Paulo: Senac, 2010, p. 76.

151 Vilhena,A Bahia, p. 260.

152 Papavero, "Ingredientes de uma identidade colonial", p. 379.

153 Sobre o assunto, ver Claude G. Papavero, "Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista", Caderno Espaço Feminino, v. 19, n.1 (2008), pp. 59-88.

154 Matos, Antologia, p. 35.

155 Vilhena, A Bahia, p. 157.

156 O Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 147, define aletriacomo "massa de farinha de trigo crua e seca, em fios muito delgados, us.

em sopas ou, em pratos doces, combinada com leite, ovos e açúcar" e indica como sinônimos: cabelo-de-anjo, fidelinho, fidéu e letria.

157 Carne de sertão é uma das designações para o "charque", também conhecido porjabá e carne seca.

158 Vilhena,A Bahia, p. 161.

159 Matos, Antologia, p. 47.

160 Vilhena, A Bahia, p. 158.

161 Vilhena,A Bahia, p. 185.

162 Vilhena, A Bahia, p. 186.

163 Vilhena, A Bahia, p. 186.

164 A. J. R. Russel-Wood, Escravos e libertos no Brasil colonial, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. O livro foi originalmente publicado na Inglaterra, em 1982, e o texto aqui citado está em "Epílogo: Considerações retrospectivas, atuais e prospectivas", que faz parte da edição brasileira.

165 Russel-Wood, Escravos e libertos, p. 310.

166 Barickman,Um contraponto baiano,p. 308.

167 Barickman,Um contraponto baiano, p. 308.

168 Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da liberdade. Histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910), Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

169 Vilhena, A Bahia, p. 186.

170 Vilhena,A Bahia, p. 187.

171 Vilhena,A Bahia, pp. 187-8.

172 Vilhena, A Bahia, p. 188.

173 Vilhena, A Bahia, p. 188.

174 Matos, Antologia, p. 205.

175 Vilhena, A Bahia, p. 61.

176 Vilhena, A Bahia, v. 3, p. 915.


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