O conceito epicurista de kritêrion vinculado ao de enargeías e de kanôn
1. O uso e significado de kritêrion nos escritos remanescentes de Epicuro
O termo critério comparece seis vezes nos escritos remanescentes de Epicuro:
quatro na Carta a Heródoto, uma na Carta a Pítocles e uma nas Máximas
Principais, na qual Epicuro se vale também da expressão krísis, a fim de
expressar um juízo nos moldes de um questionamento de verdade ou de falsidade.
O termo cânone consta uma única vez, na Carta a Meneceu1.
Nas quatro vezes que o termo critério é usado na Carta a Heródoto, o
significado que ele comporta não condiz com o que habitualmente concebemos por
critério, mas tende a condizer. Hoje concebemos por critério uma deliberação
(princípio ou regra) racionalmente elaborada e posta como base para instruir o
discernimento ou exercitar o juízo na tarefa da ciência. Critério, para
Epicuro, em seu primordial sentido, diz respeito a uma imposição (ao que ele
denomina de epibolê) natural ou involuntária, de modo que em si o conceito não
aloja a idéia de um modelo normatizado racionalmente. Por esse ponto de vista,
quando ele diz critério, refere-se, antes de tudo, a um vigor natural que se
sobrepõe à apreciação ou juízo: vigor mediante o qual não somos levados
primordialmente a distinguir o certo do errado (e vice-versa), mas a adotar o
certo ou o errado como se fosse o verdadeiro. Está aí, pois, a grande
dificuldade que Epicuro tomou para si, e que, inclusive, propôs aos seus
discípulos que o ajudassem a resolver:
"Tudo o que aqui foi dito [diz ele no final da Carta a], Pítocles, procure
rememorar. Verás como te livrarás de muitos mitos, e como poderás identificar
umas quantas outras do mesmo gênero. Mas, sobretudo, te apliques tu mesmo a
teorizar a respeito dos princípios, do infinito, e de coisas semelhantes, dos
critérios (te kritêríon), e também das impulsões e de tudo aquilo em vista do
qual nós nos dedicamos a investigar"2.
Primeiro: do fato de Epicuro não atribuir apenas para si a tarefa da execução
de seu próprio projeto filosófico, mostra, por um lado (e mais uma vez), o
caráter propedêutico de sua doutrina; por outro, denuncia como a tarefa de
conhecer a si mesmo (de conhecer a natureza humana) é coletiva, e requer um
dedicado empenho subjetivo, sendo que o mesmo vale quanto à dedicação em favor
da verdade ou da busca por ciência; segundo: dois fatores contribuíram para que
Epicuro desse ao termo critério uma conotação distinta da habitual: 1º) o
objetivo maior (o télos) de sua doutrina: a busca por serenidade e paz; 2º) o
fundamento primeiro (o prôton archê) da doutrina: o reconhecimento da natureza
mínima que podemos (e, por suposto, devemos) nos inteirar a respeito das
coisas, e, de modo prioritário, a respeito de nós mesmos. Juntando estes dois
objetivos ' a busca por serenidade e o tornar-se ciente de nossa natureza
humana ' resultou para Epicuro a necessidade de reconhecer, e não de impor
critérios. Daí por que, primordialmente, o que entrou em questão foi a busca
por critérios, ou seja, aprender a reconhecer tudo o que a natureza em nós
dispõe e que intervém no exercício do discernimento ou do juízo.
Por duas vezes na Carta a Heródoto, Epicuro vincula o termo critério ao de
evidência (tà enargeía), expressão do que, em nossa mente, se sobrepõe (se
projeta, no sentido da epibolê) a partir das phantasíai sorvidas do sensível3.
Foi, com efeito, Cícero quem traduziu a enargeía dos gregos por evidência, e
preferiu evidentia a illustratio: "... nada há de mais claro (disse ele) que a
enargeía, como dizem os gregos. Entre nós a denominamos de perspicuidade
(perspicuitas) ou então de evidência..."4. Foi, pois, a propriedade do "ser
claro ' esset clarius" que levou Cícero a especificar a enargeía quer nos
termos de uma perspicuidade (do que se pode ver nitidamente, de modo claro,
manifesto), quer, propriamente, no de evidência. Foi, além disso, em vista
desse mesmo "ser claro" que Quintiliano veiculou como sendo de Cícero a noção
de ilustração (de illustratio) como sinônimo de evidência5. Quintiliano, por
sua vez, deu ao conceito de illustratio uma conotação essencialmente retórica:
no sentido de que seria função da atividade oratória reproduzir nos ouvintes
(claro que pela via do discurso e na forma de um artifício) um efeito análogo
ao da enargeía produzido na percepção.
Epicuro recriminaria Quintiliano por desrespeito à soberania do humano. Sob
nenhum aspecto a sua doutrina comporta qualquer artifício invasivo na forma de
uma doçura ou sedução verbal, enquanto malandragem retórica, destinada a
cativar, e, portanto, a suplantar a mente e a vontade do outro. A enargeía tem
nele um sentido apenas epistêmico: o de evidência restrita à conotação de
kritêrion, ou seja, de um modo humano natural de criar para si armadilhas a
partir das "projeções sensíveis (dadas no recinto) da mente"6. Perante as
coisas, perante qualquer fenômeno, o sujeito senciente tem sempre a sua mente
invadida por um algo vívido, iluminante, reluzente (que ele chama argós), que o
cativa e o afeta. Toda percepção sensível promove na mente um algo que reluz,
em si dotado de uma intensidade (da enargeía dita por ele) específica, e,
sobretudo, de uma potência (energeía) provocativa. Trata-se de um movimento e
de uma ação naturais, em vista do que o sujeito senciente deriva para si
certezas manifestas: assentimentos que não comportam dúvidas, quer quanto à sua
verdade quer quanto à sua falsidade.
Na medida em que as enargeías (as evidências) são por Epicuro concebidas como
dotadas de energeías (de forças, vigores), então faz sentido manter a fórmula
original, constante na Carta a Heródoto. Foi, aliás, Gassendi quem alterou a
fórmula: de tàs energeías (de as potências ou forças) para tàs enargeías (para
as evidências ou clarividências). Sem maiores justificativas, Gassendi pôs um
"α" (um alfa) no lugar de "ε" (de epsílon), e o resultado ficou assim: antes de
afirmar que os critérios são alçados à condição de critério pelas forças(como
consta na fórmula original), assim se dá pelas evidências inerentes ao percepto
sensível7. Essa mudança (de um "alfa" para um "epsílon", talvez fruto de um
descuido ingrato), a bem da verdade pouco interferiu no texto da Carta Epicuro.
Mesmo que bastante significativa, ela apenas pôs à mostra, não a rigor uma
equivalência, mas o quanto um conceito se explica pelo outro. Tanto é verdade,
que, na mesma Carta (§ 48), Epicuro se valeu de uma outra vez do termo
energeía, justo para expressar as forças agentes (em nós) do percepto sensível,
ou, como ele denominou, as forças da phantasía.
Ora, é a evidência, do ponto de vista de Epicuro, que define o critério. Melhor
dizendo: é a força da evidência que dá às phantasíai da mente a condição de
critério, e, assim, juntos, enargeía, energeía e kritêríôn compõem uma mesma
questão: aquela segundo a qual existem forças naturais que se impõem na
condição de critério, e que agem sobre nós, mediante uma evidência específica.
Kritêríôn, pois (não dá para negar), tem em Epicuro uma função paradigmática '
encerra um paradigma, modelo ou padrão ' no contexto fragmentário de sua
doutrina8. Trata-se, com efeito, de uma imposição, mas por força da natureza,
na medida em que algo se manifesta à mente de modo vívido, e, por esse
apresentar-se, vem a se constituir em um testemunho crível, valioso. Daí que
kritêríôn diz respeito ao que vem a se impor como um saber ou verdade (a título
de uma dóxa) dada de imediato à mente, pela via do sensível: verdade que o
indivíduo senciente cultiva como uma certeza, e da qual as phantasíai (as
imagens ou representações mentais) resultam para ele em testemunhos (martyríai)
confiáveis.
Que as evidências agem com força em nós, isso é fato. Também não podemos negar
que elas, por esse agir ou operar (érgon), nos afetam, e que, por esse afetar,
nos transformam em indivíduos opinativos: temos logo a necessidade de dizer
algo, quer no sentido de perguntar para o outro ou confabular com o indivíduo
que de nós está mais próximo, quer no de propalar afirmações ou dar explicações
para quem quer seja. As evidências circunstanciam de tal modo a natureza humana
do indivíduo particular, que tanto podem ser causa da verdade, quanto induzir a
erro, sobretudo facilitar que em nós se instale a inquietação e o medo.
Ocorre que as evidências (quaisquer que sejam) nos levam sempre a formular
opiniões, e, por suposto, a crer nelas ou a desconfiar delas. São, com efeito,
tais evidências (em dependência de sua força ou potência impressiva) que dão ao
sujeito senciente tanto o critério de certeza (ou de verdade) quanto o de
falsidade. São, a bem da verdade, níveis ou instâncias de evidências que o
sujeito senciente toma como critério autenticador de suas opiniões ' isso, bem
entendido, antes do ajuizamento racional, próprio da instância da ciência: do
estudo (do logos verdadeiro9* a respeito) da natureza <da physiologías>, ao
qual, segundo Epicuro, cabe ajuizar a força "da causa principal" enquanto
evidência <tôn kyriôtátôn aitían>10; depois, na medida em que a razão (mais
precisamente aquela que busca dissipar a intranquilidade e o medo) põe o
conflito (o contencioso, a diakrísis), no momento em que ela pede por
certificação, então as opiniões só encontram duas possibilidades: ou serem
verdadeiras ou serem falsas.
O processo dessa certificação, Epicuro estipula-o nos seguintes termos: as
opiniões "verdadeiras são as confirmadas ou não contraditadas pelas evidências,
as falsas são as contraditadas ou não confirmadas pela evidência"11. Quer
dizer: se as evidências confirmam e não contradizem as opiniões, ocorre então
que as opiniões são verdadeiras, e, as evidências, critérios de verdade
(fundamentos <aitiai> da ciência); se elas, ao contrário, não testemunham (ouk
epimartyrêsis) em favor das opiniões, se, inclusive, fazem as vezes do anti-
testemunho (antimartyrêsis), então as opiniões são falsas, e, as evidências,
critérios (ou seja, testemunhos certificadores) da falsidade.
Epicuro quando disse que "as sensações são destituídas de razão <aísthêsis
álogós>"12, que elas não comportam um julgamento formulado por elas mesmas
(afinal, são pura receptividade), com isso retirou das evidências qualquer
suposição de que elas em si mesmas pudessem ser verdadeiras ou falsas. Em vista
disso, ele concluiu que a verdade e a falsidade não estão nas evidências, mas
nas opiniões. Por princípio, segundo ele, as evidências são sempre verdadeiras,
enquanto que as opiniões (no confronto das evidências) são ou falsas ou
verdadeiras. Na medida em que algum fenômeno se evidência (se mostra ou se
manifesta) para nós na natureza, é uma verdadeira manifestação, no entanto, não
é em si mesma nem benéfica nem maléfica (boa ou ruim); são as opiniões, que a
respeito delas formulamos, que podem ou não ser caracterizadas desse modo.
Daí porque o conhecimento certo, como posto acima ' conhecimento, segundo
Epicuro, que é promotor de uma natureza humana feliz (makaría phýsei) ' está na
investigação das causas predominantes (tôn kyriôtátôn aitían13) quer dos
fenômenos quer das evidências, quer ainda dos elementos perceptíveis. Prover
aquele conhecimento e investigar aquelas causas, eis a função (a ação ou érgon)
primordial da physiologías14. E mais (recomenda Epicuro15): relativo a tais
causas predominantes não devemos exagerar na pluralidade, tendo em mente que
não cabe, na ciência, o princípio de contradição, isto é, que algo seja ao
mesmo tempo assim e não-assim ou que a respeito desse algo, simultaneamente,
afirmemos ou neguemos propriedades contraditórias. Quer dizer: a pluralidade de
explicações é própria da física, porém, não lhe é próprio admitir mais de uma
causa para cada explicação, e, ademais, cada causa, tem que confirmar ou então
testemunhar em favor da explicação (em causa), a fim de que seja verdadeira.
Essa explicação plural junto ao cuidado de testificar mediante causas únicas é
própria da natureza humana; porque a explicação única, aquela que não pressupõe
o contencioso e a perturbação (a diákrisis hê tárachês), essa é própria de uma
natureza imortal e feliz (aphtártô kaì makaría phýsei), ou seja, de um Deus.
Por certo, o postulado da explicação única adotado por Epicuro não se restringe
às razões que supôs Bignone: a) que Epicuro se valeu do postulado como que de
uma necessidade estratégica no sentido de manter o discípulo dentro da
doutrina. Nas palavras de Bignone: Epicuro recorreu à explicação única "para
evitar que o discípulo fosse levado a dar crédito às explicações dos fenômenos
astronômicos e meteorológicos formuladas pelos adversários". Aqui é preciso
relevar que a questão fundamental do epicurismo não está em "dar crédito (ou
não) a explicações de adversários", e, sim, em "dar crédito a explicações que
merecem ou não crédito". Não importa se uma explicação é de um espicurista ou
de um não epicurista, o que importa é a validade ou veracidade (por suposto
metodológica) intrínseca à explicação. Daí por que o epicurismo é avalista de
uma canônica (de um certo padrão normativo, metodológico) e não de uma mera
ortodoxia que tivesse por finalidade isolar o epicurismo no confronto de outras
doutrinas (alheias ao epicurismo)... Quanto à segunda observação de Bignone,
ela também é problemática, sobretudo contraditória, na medida em que supõe o
postulado da explicação única como decorrente de uma carência técnica no
sentido de instrumentar Epicuro (em relação a fenômenos distantes) na busca de
uma causa única para fenômenos múltiplos: "não podendo submeter (isto é o que
diz Bignone) os fenômenos astronômicos e meteorológicos a uma observação tal
que pudesse individuar a causa, dado o distanciamento em relação a nós, era
perigoso aceitar, sobre eles (sobre tais fenômenos), uma explicação única"16.
Ora, o postulado gnosiológico de Epicuro é suficientemente claro: para
fenômenos múltiplos, causas múltiplas ' sendo que o contrário também deve ser
considerado, ou seja, para causas múltiplas, fenômenos múltiplos! A unificação
do múltiplo (pelo que observamos em Epicuro) é sempre contenciosa, temerária, e
pode não fazer justiça ao universo (ao um) da totalidade.
2. Dianoías, ennoíais e a krísis enquanto correlato de kritêrion
Ainda na Carta a Herótodo, Epicuro, por duas vezes, contrapõe o que denomina de
dianoías (a reflexão ou discernimento) ao que se refere como "outros
critérios"17. A dianoías devemos entendê-la como um pensamento em exercício,
enquanto tal um noûs (um pensamento) duplo; duplo, porque não é possível
refletir com apenas um pensamento (só e isolado), sem se contrapor a outros, a
um ou mais pensamentos. Do mesmo modo seria impossível discernir, exatamente
porque o discernimento requer a ambivalência, o conflito das opiniões; conflito
que, por sua vez, leva a uma resolução, decisão e escolha deliberada. Sem essa
condição, a da ambivalência ou do conflito, a reflexão não prospera e a
possibilidade do discernimento (do exercício do juízo) se torna inviável.
Pelo contraposto entre a dinanoías (o discernimento reflexivo) e os "outros
critérios", Epicuro deixa verbalmente explícito, primeiro, que o discernir é um
critério, e o primordial; segundo, que, além do discernimento (da dianoía),
existem outros critérios que nos são conaturais, e que nos condicionam. Pelo
fato de sermos racionais ' esta é a principal questão ' não deixamos nunca de
ser naturais, e, na medida em que o somos, temos em nós, ingênito, um modo
próprio de ser que nos dispõe (que nos condiciona), e, que, por suposto, cabe a
nós averiguar qual efetivamente é essa disposição.
Dessa tarefa, o primeiro pressuposto está na constatação de que, por natureza,
não nos é dada a ciência de nós mesmos, mas apenas a capacidade de provê-la;
além disso, não há qualquer regra ou lei inerente à nossa natureza que, no
decorrer do tempo, nos torna melhores, de modo que cabe a nós prover essa
melhoria ou qualificação. Uma coisa, todavia, é certa, não podemos nos auto-
conhecer (saber de nossas disposições ou modo natural de ser), e, tampouco, nos
qualificar em nossa natureza, desvinculando-nos de nossa própria natureza. Daí
o grande desafio humano: primeiro, saber quem somos, ou seja, conhecer a nós
mesmos ou a nossa própria natureza; segundo, ser melhores, isto é, qualificar a
nós mesmos sem desqualificar a nossa própria natureza: prover melhorias sem
humanamente nos desarranjar, elevar-nos (a partir de nossos limites) sem nos
subjugar à possibilidades que não são nossas, acrescentar sem excluir18.
Na mesma proporção em que Epicuro é o filósofo da sensibilidade, também o é do
discernimento. O discernimento, no contexto canônico-propedêutico de sua
doutrina, é tido como tão necessário quanto a moderação. A condição de
felicidade, por exemplo, de quem tem muito, bem mais do que precisa, é
contentar-se com o pouco de que carece. Mesmo aquele que é muito rico carece
apenas de um bom bife, não tem a necessidade acrescida de comer o boi inteiro!
Na medida em que não discernimos, que não usamos a nossa potência reflexiva
(uma atitude nada incomum entre os homens) ficamos restritos a critérios
naturais, sobretudo deixamos nos levar, por força do aprazível, pelos caminhos
do excesso. Se não ativamos em nós a capacidade de discernir (capacidade
concebida por Epicuro como um movimento <kínesis> que opera dentro de nós), nos
tornamos reféns do movimento natural (operante em nós) das impulsões ou das
afecções sensíveis. Epicuro descreve esse movimento assim: "se não há validação
(recepção) ou se há invalidação (rejeição) então nasce o falso; se há validação
(recepção) ou se há não-invalidação (não-rejeição), nasce a verdade"19. Um
logos falso, cabe lembrar, não é capaz de constituir ou compor uma
investigação; se o logos é falso não há, por suposto, evidência capaz de
confirmá-lo [afinal, não existem evidências, fenômenos ou elementos falsos
relativos às coisas]; não havendo, pois, uma evidência verdadeira que confirme
uma opinião falsa, resta então a impossibilidade de se encontrar uma evidência
ou fenômeno que confirme a falsidade de uma opinião. A falsidade aguarda apenas
por uma condição: ser invalidada. A validação é uma condição própria da
verdade.
Epicuro reconhece um intercâmbio entre a coisa e o sujeito que conhece, e, ao
mesmo tempo, indica um procedimento a adotar. Nesse intercâmbio, os órgãos
sensíveis exercem a função de testemunhas (martyría), e, enquanto testemunhas,
dizem ou depõem algo a favor ou contra, e isso independe de uma presença (de
uma disposição) racional atenciosa ou não. Há, inevitavelmente, um depoimento e
uma recepção, e, portanto, um aprendizado: um acolhimento em confiança, e que,
enquanto tal, exerce a função ou se impõe como critério (como um modelo ou
referencial a serviço da krísis ' do pôr algo em crise ou sob desconfiança). A
krísis indica (mais que uma indecisão) a necessidade de se tomar uma decisão,
postura que é decorrente de uma arbitragem (seja ela plenamente racional ou
não), e denota também uma escolha (não necessariamente deliberada). É, com
efeito, em dependência do nível de racionalidade (ou seja, da educação
racional) do sujeito senciente, que as evidências projetadas à mente tomam o
seu próprio destino: adquirem sentido mediante o universo das palavras ou do
discurso proferido (pelo sujeito), e da capacidade deliberativa ou de
ajuizamento que ele pode ter.
Quanto ao termo krísis, ele consta apenas uma vez nos fragmentos da doutrina de
Epicuro. Ele comparece justo nas Máximas principais20, e se apresenta como um
correlato de kritêrion. Ali, a krísis designa um julgamento, mas não uma
apreciação ou contencioso dirigido ao ato da receptividade sensível, e sim às
opiniões já formadas a partir de noções (ennoíais) derivadas do projetar-se à
mente de imagens (phantastikên epibolên) sorvidas no sensível. Uma sensação, no
dizer de Epicuro, sempre promove em nós certa opinião, que, por sua vez, carece
de discernimento, ou seja, saber o a partir do que (de que evidências,
fenômenos, perceptos, a partir dos quais) ela foi formada, qual a impulsão e a
imagem que a partir dela tomou conta da mente, enfim, quais as consequências
que ela em nós (humanos subjetivamente considerados) promove. Ora, negar ou
simplesmente rejeitar em nós uma sensação qualquer, corresponde a descartar
tudo isso; trata-se de uma atitude vã, que desestabiliza em nós a capacidade de
ter sensações e de ter opiniões (ou seja, de tomar decisões, visto que uma
opinião comporta orientação21). Cabe também destacar que uma nova opinião
sempre se ajusta à ordem (instalada na mente) das opiniões anteriores. Daí por
que velhas opiniões se antecipam (no sentido dos prólêpsis) a novas opiniões,
de tal modo que, por essa mescla, a mente se vê levada a reconstituir uma nova
ordem, e, sobre ela, assentar (como que numa continuidade) o sossego e a paz na
alma22.
São, com efeito, nas opiniões (sobrepostas como explicações das evidências)
que, segundo Epicuro, residem a falsidade e o erro23. São, todavia, nas
opiniões, e não nas evidências, que se originam as principais inquietudes da
alma humana24. Renunciar as evidências, e com elas o sensível, além de um ato
totalmente falho, corresponderia a recusar a nós mesmos, de modo particular as
circunstâncias naturais que nos levam (nos movem) a executar a nós próprios
como homens. O mesmo também se aplica às nossas impulsões naturais, dadas em
nós para serem regradas e não extirpadas. Com tal atitude pomos a perder todo o
vigor natural que nos estimula e ativa (na moral, para a virtude, na ciência,
para a busca do saber), a ponto de relegarmos ou extirpar (em nós) nossos
próprios critérios naturais. São, ademais, desses critérios que escoa a fonte
do exercício do juízo: a avaliação do que, para nós, é correto ou incorreto, a
ser acolhido ou a ser rejeitado. Deles também deriva a senda da verdade,
porquanto ela nasça dentro (sob a marca de nossa realidade) e não fora de nós
(sob a marca de verdades alheias ou que não são nossas, condizentes com nossos
limites e possibilidades). Nesse nível, o das evidências, o que naturalmente
não validamos, e que, portanto, rejeitamos, assim o fazemos, porque é falso (tò
pseudos), ou seja, porque é contrário à nossa natureza; já, o oposto, se
validamos ou espontaneamente acatamos, é porque é verdadeiro (tò alêthés), ou
seja, condiz com a nossa realidade humana natural de ser.
A função das evidências é apaziguar a alma, mas, para isso, se faz necessário,
investigá-las: executar sobre elas o discernimento. Elas são sempre
verdadeiras, mas não descartam a investigação. Afinal, carecemos de algum
discernimento a fim de nos apropriarmos de sua verdade25. Daí que investigar
significa acolher (de um modo racional) as evidências, exercitar sobre elas a
nossa capacidade humana de ver o verdadeiro; se não fosse assim, a verdade,
para nós, seria pura espontaneidade, e, portanto, ela nos seria dada por
natureza, sem requerer empenho. É por esse empenho que nos qualificamos como
humanos, e que, por suposto, edificamos a ciência. Nesse caso (e aqui está a
grande questão enfrentada por Epicuro), mais do que nas opiniões, é no modo
irracional como o indivíduo humano dispõe a si mesmo ou de si mesmo perante o
que é evidente que está a fonte das turbações que se instalam na alma26. Trata-
se, todavia, de conflitos sanáveis: basta dedicar-se ao estudo e à investigação
que eles se vão. Aliás, na atividade de estudo assim como na do fazer ciência,
o método é oposto ao do vício: o principal método contra o vício consiste em
evitar o começo; já o principal método em favor do estudo consiste em começar
(vencer a indolência, a preguiça, etc.)...
Sobre a relação entre saber e tranquilidade de alma, eis, nesse sentido, o que
escreveu Epicuro a Pítocles: "Se, com efeito, entramos em conflito com as
evidências <enargêmasin>, jamais poderemos alcançar uma genuína ataraxia"27.
Bem por isso que uma das condições para a ataraxia (termo que Lucrécio traduziu
por animi pax28) consiste exatamente em deter na memória uma contínua lembrança
(recordação) do que resulta para nós (em decorrência de nossas experiências
cotidianas) em um universal29 (tema da prólêpis, questão que carece de um
estudo à parte); porque essa recordação, em vista do restabelecimento mental de
uma nova ordem, facilita em nós uma mais serena abordagem relativa às atuais
experiências cotidianas e imediatas30.
As evidências sensíveis, com efeito, não mentem, apenas dão testemunho do que
podem e do que estão em (humanas) condições de testemunhar, cabendo a nós (em
dependência do nível de racionalidade de cada um) ajuizar. É, pois, neste
nível, no do exercício do juízo, que se encerra todo o problema da
criteriologia de Epicuro. Epicuro, porém, sendo ele um incorrigível realista no
que diz respeito à condição humana, põe ou nos fenômenos ou nas evidências, ou
seja, no que se apresenta frente ao nosso campo de observação e que nos atiça,
que se manifesta à nossa mente (de sujeitos racionais sencientes), e que, por
uma força persuasiva que lhe é própria, se reverte (na maioria) em fonte quer
de opiniões falsas quer (o mais raro) de opiniões verdadeiras. Bom exemplo para
entender essa força persuasiva poderíamos encontrar no lendário medo que os
gregos comuns depositaram no canto da pomba-rola; a questão está no seguinte: o
suposto mau agouro do canto da pomba-rola não está em seu canto, não nasce
nele, de modo que dele não advém para quem ouve nenhum mal. O mau agouro do
canto da pomba-rola só advém para quem põe nele o seu temor: temor que lhe
nasce na alma, e que (se não tomar uma atitude de discernimento), ali fica
encafuado, restando o indivíduo recluso em seus próprios medos.
A maior parte dos homens formula e cultiva mais opiniões falsas (a pseudodoxía)
que opiniões verdadeiras; entretanto (eis a questão), a grande dificuldade
está, não propriamente em adotar, mas sim em justificar (racionalmente
conceber) como verdadeiras opiniões que são falsas. Muitos gastam alguma
energia nessa direção; mas posto que a grande maioria pouco se empenha em
exercitar a razão (dentre outros motivos por medo do conflito que se instala na
mente, e que sempre é oneroso e incomodativo ' quebra ordens mentais
estabelecidas) prefere sempre resguardar as velhas opiniões e descartar as
novas que lhe surte à mente; ademais, a "instrução" racional de que a maioria
dispõe é derivada da recorrência aos mitos, universo dentro do qual os homens
cotidianos constroem um modo de ser e de portar-se consuetudinário, ou seja,
dele recolhem princípios (em geral derivados de suposições falsas <ýpolêpseis
pseudeîs> a respeito da natureza e dos deuses) com os quais se orientam e se
arreglam (e assim promovem para si próprios, para a mente, mais malefícios que
benefícios). Daí também, e em vista disso, que Epicuro, antes de se ocupar com
a formulação racional de critérios racionais regulativos da ação moral e do
fazer ciência, se ocupa, antes, com a fundamentação das evidências, porque,
segundo ele, são elas (mais precisamente as energeías, as forças nelas
inerentes) que estão na base tanto do crer, quanto do fazer ou agir humano.
Além disso, não tendo a doutrina de Epicuro como propósito fundar princípios ou
um conjunto de regras racionais, mas apenas explanar racionalmente a realidade
ou condição humana (seus limites e suas possibilidades), então aqui fica claro,
primeiro, porque a sua canônica não se confundia com uma lógica, ou, como
quiseram os latinos, com uma dialética; segundo, que filosofar, para o
epicurismo consiste, sim, em descobrir princípios seguros31, porém, é
necessário acrescentar que tais princípios não podem ser de tal modo rígidos e
permanentes a ponto de eliminar, num único princípio, a capacidade ou
disposição da mente humana de prover novos princípios. Princípios desse tipo
adoecem a alma, tanto quanto o excesso de dúvida! "Como em tempo de peste
(escreveu Diógenes de Enoanda), a maioria se torna em comum doente de falsas
opiniões sobre as coisas (...), e um pega a doença do outro feito as
ovelhas"32; a maioria (esta é a questão) adota tais opiniões como se elas
fossem absolutamente certas ou seguras! Daí porque a questão fundamental do
epicurismo não se restringe à dogmática do princípio seguro, mas, digamos, à
"dogmática" da disposição da inteligência em se auto-prover de princípios
edificantes ou máximas eficazes em vista do bem-estar e da paz duradoura da
mente humana. "Eu não estimulo ninguém (escreveu igualmente Diógenes de
Enoanda) a anuir rapidamente, e sem exame, perante os que dizem isto é
verdadeiro"33.
A verdade, com efeito, (a alêthés) para Epicuro é sinônimo de realidade: não é
propriamente o que se esconde (que se mostra para alguns e não para outros),
mas o que a todos de algum modo se mostra. Além disso, a verdade também não é
algo (um dizer) que se inventa a partir de modelos (em geral, restritos,
derivados das crenças, quer filosóficas quer religiosas) previamente
instituídos para um determinado fim. A verdade passa sempre pelo exercício
racional de quem a acolhe. O fato é que inventamos modelos como pontos de
referência34, e, por eles, constituímos verdades, sobre as quais apoiamos
juízos de realidade ou até um sistema de conceitos (princípios) com os quais
nos arreglamos e nos orientamos. De modo semelhante, dogmatizamos crenças, e,
em vista delas, deixamos, em um só tempo, de ser críticos e de ser lúcidos:
cultivamos, de podo passivo, a aphrosýne (a irracionalidade, ou, mais
exatamente, o não exercício do pensar). Com efeito, na tarefa de nos auto-
conhecer, de nos arreglar e de nos qualificar, o que mais importa (o
prioritário) não está em acolher (mesmo que criticamente) modelos ou crenças, e
sim, em averiguar em nós mesmos o que, por natureza, nos induz a agir deste ou
daquele modo, quer dizer: de como, por natureza, somos dotados de certos
"modelos". Não é fora, mas dentro de nós, que nos deparamos com o melhor dos
guias. No que concerne à nossa relação com o mundo (ou seja, com as evidências,
com os fenômenos, com os perceptos, enfim, com o outro frente a nós mesmos),
quer queira quer não somos afetados de diversas maneiras, e tudo o que nos
afeta se impõe sobre nós ( e dispõe sob certa maneira). Ao entrarmos em contato
com algo, necessariamente recebemos impressões dele e somos afetados por ele.
Só há, todavia, uma maneira de nos esgueirarmos das afetações: harmonizando-nos
(a partir de dentro de nós) com o objeto da afetação.
E aqui está a grande questão que se põe na relação entre impulsão (recepção
natural) e assentimento (espontâneo e/ou reflexivo). O primeiro passo, por
certo, consiste em nos reconhecer (égnômen) em nossa própria realidade
afetativa, visto que em nós as impressões sensitivas se impõem
involuntariamente (sem condições de eliminá-las), e, facilmente nos induz a
formar opinião à qual (como que natural e precipitadamente) damos assentimento.
Tal é a condição pela qual viemos a nos capacitar na lida conosco mesmo,
sobretudo saber com o que em nós (e de nós) podemos contar. Trata-se, com
efeito, de uma tarefa, que, necessariamente, deve excluir o litígio com a nossa
própria verdade ou realidade humana. O fato é que somente através da
certificação de nossa natureza, a partir do saber quem somos, que estamos em
condições de nos inteirar da justa medida de nós mesmos ' condição sine qua non
da qualificação e do apaziguamento do humano em seu próprio território. Ocorre
que é o conhecimento de nossa natureza, e não de algo externo a ela, que põe à
mostra nossas forças em suas dimensões apropriadas. É também esse mesmo
conhecimento que nos permite avaliar (valorar em dependência do vigor humano
que nos é próprio) a nossa real capacitação quanto a um eficiente exercício do
juízo: aquele que de fato nos põe na trilha de nossa verdade humana, e que,
enfim, viabiliza em nós uma vivência tranquila.
3. Kanôn, hêdonê, phrónêsis e agathós
No que diz respeito ao termo kanôn, ele comparece apenas uma vez nos escritos
remanescentes de Epicuro, na Carta a Meneceu. Epicuro faz uso dele vinculando-
o às impulsões em vista do prazer; eis a referência: "nós dizemos que o prazer
é o princípio e o fim da vida feliz. É ele que antes de tudo aprendemos a
reconhecer como um bem primeiro e congenital; depois, é por causa e em vista
dele que orientamos as nossas escolhas e as nossas recusas, a ponto de fazermos
das sensações de prazer cânones para o ajuizamento de tudo o que é bom"35.
Várias coisas Epicuro pôs em destaque nesse seu dizer: a) que o prazer é o
princípio e o fim (archê kaì télos) da vida feliz ' o que, aliás, não poderia
mesmo ser diferente, uma vez que a vida feliz vem sempre associada à satisfação
e ao prazer. [O prazer é princípio porque a felicidade só se põe quando se dá o
prazer; e é o fim, porque assim que termina o prazer acaba a felicidade ' sem
que se possa inferir que da cessação do prazer segue-se a infelicidade36*]; b)
que o prazer é o primeiro dos bens, que, por natureza, aprendemos por
experiência a reconhecer, não, todavia, de modo imaginativo ou mediante
raciocínio, mas de modo real (mediante experiência); c) que nós logo o
reconhecemos porque se trata de um bem nascido conosco, conatural, gerado em
nós por natureza, e que em nós (em nossa primeira experiência prazerosa) se
manifesta espontaneamente; d) que, por natureza (quer dizer, antes de qualquer
instrução) não nos é dado um bem racionalmente concebido37, prova disso é que
na infância não estamos em condições de concluir pela idéia de bem ou então de
derivá-lo por puro raciocínio; e) que é o prazer (mais precisamente as
impulsões em vista do prazer) que ativa em nós a busca pelo que, natural e
espontaneamente, supomos como sendo bom; f) enfim, que as impulsões de prazer
nos acompanha sempre (a par delas o seu oposto, o desprazer), e que são elas
que despertam em nós o exercício do juízo: o movimento do acolher e do
rejeitar.
A partir do que disse Epicuro, poderíamos formular nestes termos a questão:
assim que (na infância) experimentamos o prazer, esse experimentar como que
dispara em nós um móvel, feito uma força <energeía> natural, que nos ativa a
buscá-lo sempre ou novamente. Por esse buscar, somos levados ou ao descontrole
(a sempre procurá-lo mais e mais) ou à moderação (a nos conter). É a
continência ou o desejo por moderação (dado em nós em decorrência de razões
naturais, por exemplo, evitar a dor, o desconforto, o mal-estar), que nos
estimula a fazer uso do discernimento, da faculdade mediante a qual nos
tornamos aptos a prover em nós a medida justa. [Cabe destacar que a nossa
natureza, segundo Epicuro, não nos pede por moderação em vista de algum
soberano divino que nos recompense, mas apenas em vista de nós mesmos...].
A experiência do prazer desperta em nós umas quantas coisas: a) a experiência
de si; b) a disposição da escolha, a perseguir o que dá prazer e a rejeitar o
seu oposto, com o que em nós se dá tanto a necessidade de discernir quanto a de
exercitar o juízo; c) o reconhecimento de um princípio de bondade, suposto
nestes termos: a experiência do prazer desperta em nós uma energeía, um vigor,
que, naturalmente, nos move (nos "tende a"). Trata-se, com efeito, de um
movimento interno, de uma disposição concebida por Epicuro sob dois termos:
conatural <syngenikón> e inata <sýmphyton> (plantada em nós por natureza), e,
como tal, um bem, agathón. Não, todavia, um bem imaginário ou ideativo, mas,
real, empiricamente dado, experienciado; enquanto tal, fonte de aprendizado
(nos termos de uma katarchómetha), ou seja, no sentido de que o indivíduo, na
medida em que experimenta e sente prazer, experimenta e sente a si mesmo e a
possibilidade de se renovar. Daí que o prazer, enquanto bem primeiro (agathòn
prôton), assim o é por uma única razão: porque é o primeiro dos bens que somos
capazes de concreta e naturalmente experimentar, e de reconhecê-lo como um bem.
O acolher (decorrente da experiência de prazer) e o rejeitar (da experiência de
dor) se dão em nós, segundo Epicuro, como uma disposição natural que desvela em
nós critérios também naturais. Os juízos de verdadeiro e de falso (de certo e
de errado) não derivam, e tampouco afetam os nossos sentidos ou sentimentos
naturais, mas os de prazer (de gosto) e os de dor (de desgosto), sim. Tais
juízos naturais não têm valor moral ou de ciência (é, por exemplo, o julgamento
de prazeroso <gostoso> que define a forma de preparar certos alimentos, e não o
de saudável, que requer um saber apropriado). Nossos sentidos são incapazes de
tecer juízos morais, mas disso não se segue que sejamos incapazes de juízos de
sensação (por exemplo, de gosto e de desgosto). É, pois, em dependência de tais
juízos que fundamos um aprendizado natural relativo ao exercício de juízos
racionais.
Epicuro em nenhum momento nega que a razão humana (a phrónêsis38*) seja
critério da edificação do humano. Se negasse não diria, por exemplo, que a vida
feliz requer "raciocínios (logismós) prudentes, que se busque cuidadosamente as
causas de todas escolhas e das recusas, que, enfim, se remova as opiniões que
perturbam a alma"39. O conceito de bem que ele atribuiu ao prazer (à hêdonê) e
à phrónêsis têm conotações distintas. Sobre o prazer, eis o que ele escreveu a
Meneceu: "O prazer é o que nós reconhecemos como bem primeiro (agathòn prôton)
e conatural"40; ainda mais adiante: "a natureza de todo prazer detém um bem
<que nós é> familiar (oikeían agathòn)"41; sobre a phrónêsis disse, entretanto,
que ela "é o maior de todos os bens (tò mégiston agathòn)"42. Quer dizer: o
prazer é o bem que, por primeiro, reconhecemos (égnômen); a phrónêsis é, em si
mesma, o maior dos bens, que, por natureza, detemos e que carecemos de alguma
maneira colocá-la em marcha. Espontaneamente, a phrónêsis (a ação do pensar) se
põe na medida em que, por natureza, somos levados a escolher o que dá prazer e
a rejeitar o seu oposto. A empiria é a fonte inequívoca da promoção espontânea
em nós desse movimento.
• • •
Só é possível a ciência, segundo Epicuro, mediante certificação na empiria. No
dizer de Kant, Epicuro tomou por cânon da ciência a seguinte regra: "rejeitar
como vazia racionalização tudo o que não deixa certificar sua realidade
objetiva através de exemplos evidentes apresentáveis na experiência"43. E,
efetivamente, foi assim que ele em tudo procedeu, inclusive no que concerne à
idéia do bem. Há, a esse respeito, velada em Epicuro, uma pergunta que é
fundamental: o que, por natureza, estamos em condições de reconhecer como um
bem? E uma resposta no mesmo tom: assim que pela primeira vez experimentamos
algo prazeroso (aprazível) nele imediatamente reconhecemos e o tomamos como um
bem (um bem "experienciável"). Aliás, por esse mesmo experimentar (na medida em
que reconhecemos o prazer) somos também imediatamente levados a identificar o
desprazer (o sofrimento ou dor), e, portanto, a reconhecer o mal.
Dá-se que "todo prazer é um bem (ensina Epicuro), mas nem todo prazer deve ser
escolhido; do mesmo modo, todo sofrimento (algêdôn) é um mal, mas nem todo mal
deve ser evitado. Inclusive, é certamente preciso medir o proveito e o dano
proporcional de um ou de outro, a fim de instruir todo julgamento (kríneiv
kathêkei)44. Ocorre que, em certas circunstâncias, nos valemos de um bem como
se fosse um mal, e, inversamente, de um mal como se fosse um bem"45.
Entretanto: "Ninguém, vendo o mal, escolhe-o por ele mesmo, a não ser que tende
a ele como se fosse um bem..."46.
É pelo contraposto entre prazer e dor (sofrimento ou desgosto) que as
determinações de nossa natureza se encarregam de nos propor, a par do exercício
do juízo (no sentido da krísis), o exercício do pensar (da phrónêsis) e a
disposição a ser justo (no sentido da dikaíôs = da busca pelo equilíbrio
equitativo, nesse caso, não tanto relativo ao sujeito apetente, mas em relação
aos outros). É pela experiência do prazer (do que Epicuro chama de hêdonê) que
reconhecemos o agathós, o bem. Daí a questão: ao experimentar o prazer, por
natureza nos damos conta de um modo valioso de ser, qual seja, experimentamos o
bem-estar (aqui, claro, sem uma estrita conotação do que é moralmente bom, mas
apenas bom), reconhecido mediante um estado de satisfação física dada em nós
como um bem, e uma vez reconhecido tal estado como bom, tendemos (por
determinações inerentes à nossa natureza) a buscá-lo, a reproduzi-lo novamente.
Não há nesse tender nenhum mal; é a nossa natureza que nos impulsiona, e, por
esse impulsionar, nos leva a eleger o prazer como critério, a dar-lhe (ou
melhor, reconhecer) uma função: como guia regulativo de nossas escolhas, das
que convém acolher e das que é forçoso rejeitar. Saber o que é o prazer todos
nós sabemos mais ou menos o que é; agora, dar-lhe, ou, sobretudo, reconhecer a
sua real função natural ' eis a grande questão.
Aqui, primeiro, é preciso observar que o tender ao prazer só vem a ser um mal
na medida em que, antes de um prazer, produza (sob vários aspectos relativos ao
bem-estar humano) desgosto ou dor. A idéia do prazer em Epicuro é sempre
edificante, de modo que não comporta qualquer sentido destrutivo (se o prazer
vem a ser destrutivo deixa de ser prazer e também de cumprir as suas funções
naturais); segundo, e mais uma vez aqui se põe o confronto entre hêdonê (a
idéia e a busca pelo prazer) e a phrónêsis (a ação do pensar). A questão é a
seguinte: se é pela hêdonê (pelo prazer) que a natureza nos leva a reconhecer o
bem, é então pela phrónêsis (pela ação do pensar) que a natureza nos leva a
preservar em nós o maior dos bens. A phrónêsis, pois, é esse bem, e nós mais e
mais o alcançamos (detemos) na medida em que o exercitamos; a phrónêsis, aliás,
é um bem tão grandioso e extraordinário, que Epicuro viu nele (e não na hêdonê)
"o ponto de partida mais precioso" da Filosofia47.
A phrónêsis (a ação do pensar) é ponto de partida da Filosofia porque ela detém
(como sua característica fundamental) exatamente a busca por moderação. A
phrónêsis (o exercício do pensar) desperta em nós o seguinte movimento: o
pensar busca por equilíbrio (por moderação), a moderação por justiça, a justiça
por sabedoria, e a sabedoria pelo aghathós, ou seja, pelo bem, ou, mais
precisamente, por uma situação ou estado de bem-estar, sob os seus mais
diversos aspectos: físico (corporal), anímico (espiritual), ético
(comportamental) e político (comunitário). Daí que o termo kanôn em Epicuro não
vem referido prioritariamente ao pensar, e sim, ao ser, sob todos aqueles
aspectos e dimensões (que obviamente não se restringe a ser racional). Por
kanôn, além disso, Epicuro não indica a rigor um critério (universal)
filosófico de juízo, mas, antes, tanto um modo natural (universal) de ser ' nos
termos de uma qualidade prevalente, manifesta como uma força ou vigor próprio
do feitio humano, quanto de portar-se humanamente ' "sem violentar a
natureza"48.
Kanôn, pois, atende bem mais à forma (relativa ao ser e ao fazer humanos) que
ao conteúdo: a) por um lado, é expressão não propriamente de um conjunto de
regras a ser seguido ou praticado, mas sim de uma regra segundo a qual é a
natureza (e aqui se leva em conta a investigação de suas possibilidade e de
seus limites) que deve inspirar os modos de ser e de viver humanos ' uma tarefa
coletiva, não meramente subjetiva, ou seja, apenas de um indivíduo, grupo ou
vertente doutrinária. [Sob esse aspecto, aqui sobressaem duas coisas: uma, a
possibilidade de se poder defender Epicuro contra Cícero, ou melhor, contra os
estóicos e os dialéticos, que criticavam a doutrina dos epicureus por falta de
determinação teórica, ou seja, por carecer de explicitação da essência, do que
é (do quid sit) das coisas49; outra, mais uma vez se põe evidente o caráter
propedêutico da doutrina de Epicuro: ela é propedêutica porque diz respeito a
uma tarefa coletiva e não estritamente particular]; b) por outro, kanôn, na
medida em que atende mais à forma que ao conteúdo, indica também a necessidade
de um critério (igualmente natural) que nos fornece a justa medida quer dos
limites e as possibilidades da fruição de prazer, quer de nós mesmos (da
autárkeia) e de nossa capacidade de construir uma relação efetivamente humana
com o que podemos ser, fazer, e com tudo o que nos cerca.
• • •
A título de conclusão: kanôn, em Epicuro, não comporta o habitual sentido
(filosófico) de conjunto de normas racionalmente instituído pelo pensar lógico,
a não ser o de norma geral de que é passível inferir regras particulares. Sob
esse aspecto, kanôn não diz respeito a um catálogo, mas a um modelo ou padrão,
enquanto norma, que serve de orientação do agir e de base para o pensar. Trata-
se, com efeito, de um modelo endereçado ao epicurista, mas aplicável a todos os
homens, aos quais é igualmente requerida a tarefa de se auto-conhecer, e de,
por esse conhecer, se auto-determinar. Epicuro a bem da verdade se refere a um
reconhecimento do indivíduo enquanto natureza, da qual cabe retirar os
"ditames" do devido e do não-devido, de tal modo que a natureza vem a ser o
kanôn (a norma ou modelo). Ela é o kanôn por algumas razões: a) porque ela é o
objeto tanto do exercício do pensar quanto da instrução da ação (noutros
termos: é a fonte das qualidades ou valores existenciais quer da edificação do
ser quer dos modos humanos de portar-se); b) porque ela é o de ondea comunidade
humana em geral e o filósofo (epicurista) em particular editam o seu êthos,
quer relativo aos requisitos do ser, quer do pensar, quer do agir (em outras
palavras: ela é a norma, nos termos de uma lei fundamental, orientadora da
feitura das demais regras particulares quer atinentes à função humana de ser
quer ao ofício filosófico de pensar).
A criteriologia de Epicuro, portanto, contém um cânon primordial: o voltar-se
humano sobre si mesmo em busca de sua própria natureza (de sua identidade)
humana. Somam-se a esse cânon a hêdonê (o prazer) e a phrónêsis (o pensar) em
razão da função específica que exercem: o da descoberta de si. A hêdonê (o
prazer) é o contraposto da dor, porque a dor cinde e o prazer harmoniza, a dor
é retrativa, o prazer expansivo, etc.. A retração da dor põe o indivíduo
(encaverna-o) para dentro de si; a expansão do prazer põe o indivíduo em
contato com o mundo, e, por esse contato, leva-o a debater-se com o conflito,
de tal modo (por esse expandir-se) que nele se ativa a phrónêsis: o exercício
do pensar, que implica no do juízo. Sem o apresentar-se da phrónêsis, que
requer uma ordem (o pensamento pensa mediante conflito, mas a partir ou em
busca de uma ordem), requer também cautela e moderação (as impulsões são
dispositivos naturais que nos impõem no conflito)... Eis mais uma vez a
dialética que pôs em marcha e sustentou a filosofia do epicurismo: o prazer
ativa o conflito, o conflito a escolha, a escolha o discernimento, o
discernimento a moderação, e a moderação nos leva ao agathós: à descoberta de
um bem valioso50*, útil (em sentido altruísta, ou seja, que preserva o
interesse em benefício de si mesmo). O agathós é a expressão maior da
autárkeia, ou seja, do cuidado de si, em benefício de si e da comunidade em que
o indivíduo está inserido. O agathós concebido por Epicuro também veio a ser
uma resposta à principal questão com a qual a ética grega se ocupava: qual o
maior bem relativo ao aqui e agora da vida humana e qual o melhor meio de
acessá-lo?
1 Respectivamente: 38, 51, 52 e 82; 116; XXIV; 129 ' Fontes: EPICURE. Lettres
et Maximes. Texte établie par Marcel CONCHE. Paris: PUF, 1987; La lettre
d'Épicure[à Hérodote]. Introduction, texte et commentaire avec glossaire, index
grammatical et index des mots grecs par Jean BOLLACK, Mayotte BOLLACK, &
Heinz WISMANN. Paris: Éditions de Minuit, 1971.
2 Carta a Pítocles, 116
3 "tà kritêria... tà katà tàs energeías' os critérios alçados (a essa
condição) pelas forças" (Carta a Heródoto, 52); "tôn kritêríôn enargeía ' a
evidência relativa a cada critério" (Carta a Heródoto, 82).
4 "... quod nihil esset clarius enargeia, ut Graeci: percipuitatem aut
evidentiam nos..." (CÍCERO. Acadêmica, II, 17 - Academica. The text revised and
explained by J. S. Reid. Hildesheim: Olms, 1984). STRIKER,
G.. "Kritêrion tês alêtheias". Nachriten der Akademie der Wissenschaften in
Göttingen, Phil-hist.Klasse, 1974, pp.51-110; LONG, Anthony
Arthur. Hellenistic philosophy:Stoics, Epicureans, Sceptics. 2ª ed.. Berkeley
and Los Angeles: University of California Press, 1986; LÉVY,
Carlos & PERNOT, Laurent (Éds.). Dire l'evidence. Philosophie et rhétorique
antiques. Textes réunis. Paris: L'Harmattan, 1997, p.10ss;
nesse mesmo volume de Lévy-Pernot há um capítulo "Les évidences dans la
philosophie hellénistique", de W. GÖLLER , que trata da mesma questão, p.131ss.
5 "... enargeia, quae a Cicerone illustratio et evidentia nominatur..."
(QUINTILIANO. Regulamentação Oratória, VI, 2, 32 ' Institutio Oratoria.
Translated by H.E. Butler. Cambridge, MA: Harvard University Press, Loeb
classical library, 1996).
6 phantastikên epibolên tês dianoías(Máximas principais, 147, XXIX).
7 de tà kritêria anaírêtai tà katà tàs energeías por tà kritêria anaírêtai tà
katà tàs enargeías (Carta a Heródoto, 52). Na tradução de Mário Kury comparece
evidência... DIÓGENES LAÉRTIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad.
de Mário da Gama Kury, Basília: UnB, 1988.
8 Encontramos em Adriana Zangara algumas observações que concordam com o esse
ponto de vista: "Em Epicuro, o uso predominante da noção (Zangara se refere à
energeía) repousa principalmente sobre uma analogia entre kritêrion e kanôn.
Feito um kanôn, uma regra que é paradigmaticamente reta, o kritêrion fornece
verdades imediatas que têm uma função paradigmática ' Chez Épicure, l'usage
prédominant de la notion repose pincipalement sur une analogie entre kritêrion
et kanôn. À l'instar d'un kanôn, une règle qui est paradigmatiquement droite,
le kritêrion fournit des vérités immediates qui ont une fonction
paradigmatique" (ZANGARA, A.. Voir l'histoire. Théories anciennes du récit
historique. Paris: Vrin, 2007, p.237). Ela dedicou toda a
quarta parte sobre o estudo da enargeía: "Quatrième Partie: L'Enargeia e la
Force", p.229ss.
9 * logos verdadeiro, porque um logos falso não constitui uma investigação
10 Carta a Heródoto, 78. Na mesma Carta a Heródoto, 35 os kyriôtata alude a um
domínio enquanto fundamentos referentes à investigação sobre a natureza (perì
phýseôs theorías).
11 SEXTO EMPÍRICO. Contra os matemáticos, VII, 211
12 DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, X, 32. Cf.
também SEXTO EMPÍRICO. Contra os matemáticos, VII, 211 - Adversus Mathematicos.
vols. 2-4. Edited by R.G. Bury. Cambridge: MA/ London: Harvard University
Press/ W.Heinemann Ltd. (The Loeb Classical Library), 1971.
13 Festugière traduziu tôn kyriôtátôn aitían por "a causa das realidades
essenciais ' la cause des réalités essentielles" (FESTUGIÈRE, A.-J.. Epicure e
ses dieux, p.110); Bollack por "regras capitais ' dès règles capitales"
(BOLLACK, Jean, et alii. La lettre d'Epicure, p.115); Marcel Conche por "a
causa dos fenômenos dominantes ' la cause des phénomènes dominantes" (CONCHE,
M.. Lettres et Maximes, p.123); Gama Kury, por "causa dos elementos
principais"... Oras, as traduções de Festugière e de Bollack são improváveis;
as de Conche e de Kury, plausíveis, sendo que ainda acrescentríamos (no rol das
kyriôtata) as evidências, traduzindo tôn kyriôtátôn aitían por "a causa das
evidências principais" ' evidências que confirmam e que não contradizem a
verdade, ou vive-versa, evidências que invalidam as ponições, e, se invalidam,
é porque as opiniões são falsas.
14 Carta a Heródoto, 78; sobre a questão da explicação única veja também Carta
a Pítocles, 97.
15 Tradução livre do da frase "éti te ou tò pleonachôs... hê tárachon mêthén"
(Carta a Heródoto, 78).
16 Foram estas, efetivamente, as palavras de Bignone (supracitadas com alguma
liberdade): "... per evitare che egli potesse credere alle spiegazioni dei
fenomeni astronomici e meteorologici date dagli avversarii, raccoglieva tutte
quelle che erano possibili, in conformità con la propria dottrina, dichiarando
che, non potendosi sottoporre i fenomeni astronomici e meteorologici ad
un'osservazione tale che potesse individuarne le cause, per la lontananza
rispetto a noi, era pericoloso accettare di essi una spiegazione sola" (BIGNONE
E.. L'Aristotele perduto e la formazione filosofica di Epicuro. Firenze: La
Nuova Italia, 1973, p.307).
17 epibolàs eíte dianoías... ton kritêríôn(Carta a Heródoto, 38); epibolàs tês
dianoías hê tôn loipôn kritêríôn (Carta a Heródoto, 51).
18 "Não convém jamais humilhar e rebaixar a nossa natureza, como se ela nada
detivesse de forte, de permanente, de superior à fortuna <tên týchên>..."
(PLUTARCO. Sobre a tranquilidade da alma (Perì euthymías), 17, 475 D ' Fonte:
PLUTARQUE. Oeuvres Morales. Tome VII². Traités 27-36. Texte établi et traduit
par Jean Dumontier, avec la collaboration de Jean Defradas. Paris: Les Belles
Lettres, 1975).
19 Carta a Heródoto, 51. Os termos entre parênteses estão aí para efeito de um
melhor entendimento; na dúvida, entre qual alternativa de tradução, optamos por
deixar os dois. As fórmulas gregas são, respectivamente: mê epimartyrêthê hê
antimartyrethê, tò pseudos guínetai ' eàn dè epimartyrêthê hê mê
antimartyrethê, tò alêthés. Epicuro acentua um intercâmbio entre a coisa e o
sujeito que conhece, e, ao mesmo tempo, indica um procedimento a adotar. Nesse
intercâmbio, os órgãos sensíveis exercem a função de testemunha (marturía).
Enquanto testemunhas os sentidos dizem ou depõem algo, mas requer daquele que
ouve uma presença atenciosa, uma disposição, porque, diante do depoimento da
testemunha, é necessário um posicionamento. Sem ele (sem exercício da
inteligência ou do juízo), o depoimento diz o que bem quer: há inevitavelmente
uma recepção, um aprendizado, e o humano colhe em confiança (DUMONT, J.-P..
"Confirmation et disconfirmation". In: BARNES, J., BRUNSCHWIG, J. et alii
(Eds.). Science and Speculation in Hellenistic Philosophy and Practice.
Cambridge: University Press, 1982, pp.273-303).
20 147, XXIV.
21 Pensamos aqui no conceito epicureo de kenêrn dóxan em geral traduzido por
opinião vazia, mas que também pode significar apenas carente de opinião.
22 A mente humana carece necessariamente de ordem. Talvez seja por isso que a
razão humana é, por sua natureza, ordenadora. O confuso não combina com a razão
humana, antes, pede por ordem, sobre a qual assentamos a serenidade e a paz.
Independentemente de sua verdade ou de sua falsidade, o ordenamento da mente é
condição sine qua non de paz duradoura. Na medida, porém, em que o reconhecemos
como falso, a mente acorre em arranjá-lo... A mente humana, consciente de si,
não combina nem com a desordem e nem com a falsidade. Toda a dificuldade,
entretanto, está na educação da razão; mas educar não significa apenas dar um
modelo em referência ao qual a razão estabelece o que é falso e o que é
verdadeiro. A razão que apenas acolhe modelos fica carente de exercício; a não
se que se exercita a partir dos modelos, o que, por princípio, significa
colocá-los em crise. Trata-se, com efeito, de um movimento necessário: aquele
sem o qual a razão não toma consciência de si.
23 Carta a Heródoto, 50
24 hóti tárachos ho kyriôtatos taîs anthrôpínais psychais gínetai (Carta a
Heródoto, 81).
25 O conceito baconiano de "interpretação da Natureza", em vista do que
concebeu o que denominou de nova indução, se deu na história da filosofia como
uma intensificação da perspectiva epicurista. A prática do que ele denominou de
"boa e legítima indução" requeria "exame e prova (examinatio et probatio), a
fim de efetivamente verificar se o axioma constituído está adequado e dentro
dos limites dos fatos particulares dos quais foi extraído". É dessa exigência
que Bacon, ao modo de um epicurista, deriva a tarefa do inquiridor de "analisar
a experiência", de operar com fatos e não com abstrações, de lidar com
realidades concretas (in materia), e não com formas puras abstratas,
destituídas de percepção ou de realidade. Ao inquiridor cabe induzir o que é
(mesmo à revelia de seus preconceitos), e não o que supõe ou gostaria que
fosse. Por isso, em última instância, cabe a quem investiga jamais se abstrair
da experiência (das evidências), porque ela é o lugar e fonte da indução, e,
sobretudo, porque sem ela o intelecto resta "incompetente e inábil para oficiar
axiomas". Sem ela, os axiomas da ciência nascem sem compromisso com a
demonstração e a verificação, e ficam à mercê do acaso e da sorte (tanquam casu
quodam aut per occasionem), e resultam infrutíferos: não promovem (segundo ele
e ao modo como supôs Epicuro) a obra útil da ciência, aquela que atende ao bem
estar e ao conforto da vida humana e que ativa a esperança num futuro melhor
(BACON, Francis. Novum organum, I, CVI e CVIII; II, X ' Fonte: Nuovo Organo '
Novum organum. Texto latino a fronte. A cura di Michele Marchetto. Roma:
Bompiani, 2002).
26 mê dóxais taûta páschein all' alógô gé tivi parastásei... (Carta a Heródoto,
81)
27 Carta a Pítocles, 96
28 De rerum natura, III, v. 24 ' De rerum natura. De la naturaleza.
Introducción, traducciós y Notas de Eduard Valentí Fiol. Barcelona: Bosch,
1985.
29 A questão aqui, que caberia ser tratada sob o conceito epicurista da
prólêpsis, remonta a Aristóteles, em particular à indução que supôs no livro I
da Metafísica. Lá ele diz que os homens, além da memória, dispõem "de arte e de
raciocínio (téchnêikaìlogismoîs)", e que são capazes de compartilhar da empiria
(empeirías dè metéchei*)". "Neles, a empiria nasce da capacidade de recordar, e
das recordações repetidas da mesma coisa surtem o efeito de uma única empiria,
e a empiria se parece com a ciência e com a arte (epistêmê kaì téchnê)". Se
parece, porque a empiria, rigorosamente, não se confunde nem com arte e nem com
ciência; ela é restrita a um saber faze. Porém, "se parece" com a ciência e a
arte na medida em que resulta numa experiência única, universal (Metafísica, I,
1, 980b 25-29; 981a 3). * Metéchô designa uma compartilha e diz respeito a uma
certa habilidade ou destreza da qual (mesmo sendo particular) não só um
indivíduo mas toda uma comunidade de indivíduos toma parte ou tira proveito.
30 Carta a Heródoto, 82
31 Pensamos, aqui, no que diz Jean-François Duvernoy, segundo o qual filosofar
"consiste em descobrir princípios seguros. (...). Espantos e arrepios são, para
o epicurismo, o campo das almas sem princípios seguros" (DUVERNOY, J.-F.. O
Epicurismo e a sua tradição antiga. Trad. de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro:
Zahar, 1993, p. 90).
32 Diógenes de Enoanda, frag. 3 - La philosophie épicurienne sur pierre. Les
fragments de Diogène d'Oenoanda. Introduction, traduction et notes par
Alexandre Etienne et Dominic O'Meara. Fribourg-Paris: Ed. Universitaires
Fribourg/Ed. du Cerf, 1996.
33 Diógenes de Enoanda, frag. 30
34 A título de ilustração: a rigor, os moradores de Santa Maria não conhecem o
todo de Santa Maria, e, sim, uma certa Santa Maria, ou seja, a Santa Maria
relativa ao seu ponto de referência: a partir do lugar de onde mora. Daí que,
por parte do morador ou transeunte, o conhecer Santa Maria é, por princípio,
subjetivo, mas com pontos referenciais objetivos, ou seja, de domínio comum,
universal, que caracterizam (em termos de conhecimento objetivo) uma comunidade
de intelecção relativa à Santa Maria. É a partir da existência dessa comunidade
que se torna possível (entre os moradores, ou entre os transeuntes, ou entre os
que dizem conhecer Santa Maria) falar de Santa Maria.
35 Carta a Meneceu, 129 ' nos valemos também da Carta sobre a Felicidade, A
Meneceu. Texto bilíngüe. Tradução de Álvaro Lorencini e Enzo del Carratore. São
Paulo: Unesp, 1997.
36 *Alguém poderia perguntar: mas não dá para ser feliz na desgraça? Depende o
que se entende por desgraça. Se por desgraça entendemos o externo que nos
rodeia ou aflige, então, sim, podemos ser felizes, por exemplo, vivendo em
extrema pobreza, em ambiente inóspito, etc; se por desgraça entendemos uma
aflixão interna, então, não, porque se trata de sentimentos contraditórios.
37 Spinoza dirá algo semelhante: "Ninguém, por natureza, sabe que deve
obediência a Deus, e também não podemos concluir por um qualquer raciocínio..."
(SPINOZA, Baruch. Tratado teológico-político. Trad. de Diogo Aurélio: Lisboa:
Imprensa Nacional, 1988, p.318).
38 * Demos aqui à phrónêsis o significado de razão em vista da raiz que a
sustenta, phrên, dentre outras coisas concebida sobretudo como inteligência,
pensamento, vontade, mais precisamente como uma disposição interna em vista do
melhor; disposição que implica um ajuizamento, no sentido de dar e de adotar um
parecer, em conformidade a uma direção. Daí o sentido de vontade; porém,
decorrente de uma deliberação. Não se trata, pois, de uma vontade solta
(plenamente livre), anterior a uma decisão, ou seja, phrónesis não expressa a
falculdade da vontade, mas a vontade determinada em vista de um fim. No caso
específico de Epicuro, estamos certos de que phrónêsis não convém (como
habitualmente se faz) ser prontamente traduzida por prudência ou moderação, e
sim, como expressão de um juízo sábio: aquele que comporta racionalidade e
utilidade (no sentido de eficiência) condizente ao que se espera de um juízo
desse tipo. Preferimos, em geral, traduzir phrónêsis por exercício do
pensamento ou por a ação do pensar.
39 Carta a Meneceu, 132
40 Carta a Meneceu, 129
41 Carta a Meneceu, 129
42 Carta a Meneceu, 132
43 KANT, I.. Crítica da Razão Prática, 217 ' tradução de Valério Rohden. São
Paulo: Martins fontes, 2002, p.195.
44 "Mesmo sustentando que todo prazer é um bem e toda dor um mal, <os
epicureus> não dizem que sempre é necessário escolher o prazer e fugir do mal,
mas que devemos medir a partir da quantidade e não da qualidade" (ARÍSTOCLES.
citado por EUSÉBIO, Preparação evangélica, XIV, 21, 3; USENER, 442 ' a partir
de BAILEY, Cyril. The Extant Remains. With short apparatus, translation and
notesby C. Bailey. Hildesheim/Zürich/New York: Gerg Olms Verlag, 1989).
45 Carta a Meneceu, 129-130
46 Sentenças vaticanas, 16
47 Carta a Meneceu, 132. Ler isso em Epicuro e depois aplicar-lhe o refrão de
"sensista-sensualista" é evidente que não faz sentido, soa engraçado!
48 Sentenças vaticanas, 21
49 De finibus, I, 3; II, 4ss. ' De termes extrêmes des biens et des maux. 2
vols., Texte établi et traduit par Jules Martha. Cinquième tirage revu, corrigé
et augmenté par Carlos Lévy. Paris: Les Belles Lettres, 1990.
50 * Em Epicuro o conceito de bem não tem um sentido religioso. Ele é distinto,
por exemplo, do conceito bíblico de bem intimamente associado à bondade de
Deus. Dado que o Deus bíblico é um Deus pessoal, o conceito de bem também
resulta em um bem pessoal. Nesse ponto (na idéia de um bem pessoal, não
impessoal), epicurismo e cristianismo coincidem, porém, sob concepções
distintas... No que concerne a Epicuro, o conceito de bem, não sendo impessoal,
não é derivado de um empenho lógico-racional no sentido de decifrá-lo, ou seja,
de dizer o que é. Todavia, disso não se segue, que, para Epicuro, a idéia do
bem não tenha valor universal. Ela tem, visto que também o conceito de natureza
tem um sentido universal, mas inerente à subjetividade do sujeito natural
senciente, que percebe a si mesmo de uma maneira estritamente pessoal. Essa
dificuldade de Epicuro em admitir uma irrestrita universalidade ao conceito de
bem deriva de Sócrates, para o qual a idéia do bem resultou, em última
instância, indecifrável. Cf. Os Caminhos de Epicuro. São Paulo: Loyola, 2009.