Chaves para ouvir Schumann (paralipomena à Kreisleriana - I)
Para o Sergio, com amizade e admiração
Literatura e música. O ideal romântico da unidade da arte, que tão intensamente
atuou em Schumann, é o responsável pela ligação forte e produtiva de música e
literatura, em uma carreira que de certo modo almejou conjugar ambas em uma
única, múltipla e diferenciada atuação. Denominar Kreisleriana o ciclo de peças
é resultado daquela unidade uma unidade mediada, jamais transposição de uma
arte à outra, algo por princípio descabido para a alma romântica. Opera aí uma
espécie de dialética de generalidade e particularidade, na qual a generalidade
que abarca todas as artes se contrapõe à particularidade de cada uma delas. A
música não pode ser convertida ou reduzida à palavra, nem o texto à música. A
relação que entre elas se estabelece é aquela revelada nos Lieder aproximam-
se e afastam-se, vivem sendo uma só coisa e, ao mesmo tempo, distinguem-se.
Seria vão ler todas as peripécias do Kapellmeister Johannes Kreisler em busca
da chave que abre o segredo da Kreisleriana. Mas não é inútil respirar o ar que
os textos de Hoffmann exalam, porque, para além deles, e para além da
Kreisleriana, há algo como um ponto de fuga comum a unidade romântica das
artes.
Batismo. Ao que consta, Schumann denominou o ciclo apenas concluída a
composição. Sua compreensão da questão "música de programa", ademais, vai nessa
direção. A precedência do conteúdo musical é indiscutível; o título é um
acréscimo posterior, que ocasionalmente pode, como disse sua filha Eugenie,
"facilitar a compreensão". De todo modo, a tradição mostrou a periculosidade do
procedimento; muitas vezes se tentou, a partir do título, atribuir significado
à composição. Há uma passagem de Schumann bem significativa a respeito, que
revela também o senso empreendedor do compositor:
uma placa bem escolhida sempre dá realce a um hotel ou a uma loja e a
multidão pode também ser alimentada com palavras, e não somente com
pão. Títulos, portanto, são necessários para nossas obras... Eu
simplesmente escolho um título significativo, que tenha tanto
validade como significação para a história como um todo.1
Ora, era certo e seguro que a referência ao Kapellmeister Kreisler era um
atestado de pertença e de sintonia com um mundo: assim intitulando seu ciclo,
Schumann garantia uma via de acesso por parte do público potencial, ledor de
Hoffmann e conhecedor das peripécias do personagem. Isso aponta para os grupos
sociais de sustentação do compositor. Mas não significa negar uma afinidade
que, em Schumann, tornou-se força produtiva, a saber, literatura e música. Em
um artista que desde a infância oscilou entre as duas artes, não poderia ter
sido mais forte o impacto da leitura de Jean-Paul e de Ernst Theodor Amadeus
Hoffmann, para os quais a música tem papel decisivo.
Autonomia da arte. A Kreisleriana compartilha do ideal romântico de que a obra
de arte é um outro mundo, válido por si mesmo e independente do que lhe é
exterior. Isso foi formulado inicialmente por Wackenroder, em conjunto com
Tieck, e a seguir estes mais importantes para Schumann por Jean-Paul e
Hoffmann. É preciso compreender a gênese da autonomia romântica da arte para
poder ponderar seu justo peso histórico. A ênfase na autonomia contrapõe-se à
idéia tradicional desde o miscere utile dulce horaciano de que a obra de
arte deve estar a serviço da religião, da utilidade moral ou do entretenimento
cortês ou burguês. A religião da arte romântica foi uma emancipação da arte,
que deixou de servir a qualquer função que lhe fosse exterior, deixou de ser
música funcional. Isso se concretiza sobretudo na música instrumental, liberta
de vínculo com a língua; apenas ela constitui-se como música plena e pura. Os
românticos inverteram em grande medida os ideais musicais, sobrepondo a música
puramente instrumental à música vocal, como se vê com clareza nos textos de
Hoffmann. A música instrumental constrói seu mundo unicamente a partir de si
mesma, sem necessitar de um meio auxiliar como a palavra. A emancipação da
música instrumental (e não mais obra para estudo e aprendizagem, para missa ou
abertura de ópera) impôs uma nova hierarquia dos gêneros; não é acaso que, após
a brilhante obra pianística inicial, Schumann tenha ambicionado a sinfonia. Tal
emancipação retrocede, em suas origens, ao século XVII, mas ainda por volta da
metade do século XVIII não tinha se firmado. Mesmo ao final daquele século, não
está ainda claro se a música instrumental é tão perfeita como a música vocal,
tão capaz de expressão. De fato, até bem longe no século XIX permanece
enraizada a idéia de que música é sobretudo música vocal (o que se vê nas
Lições de estética, de Hegel). Entretanto, o "poético" que o idolatrado Jean-
Paul contrapunha ao "prosaico" para distinguir a música do mero artesanato ,
que define propriamente para Schumann a arte como arte, desde o início do
século XIX encontra cada vez mais expressão na música absoluta. Com Beethoven a
música instrumental consuma-se em definitivo, e é na famosíssima resenha de
Hoffmann da Quinta sinfonia que isso foi formulado de modo mais definido e
historicamente influente. O texto foi depois retomado por Hoffmann em um
escrito do Kapellmeister Johannes Kreisler na Kreisleriana:
Quando se fala da música como uma arte autônoma, não se deve ter
sempre em vista a música instrumental, que desdenhando qualquer
ajuda, qualquer ingerência de uma outra arte (da poesia) manifesta a
essência peculiar dessa arte e que é apenas nela reconhecível? Ela é
a mais romântica de todas as artes, quase se poderia dizer que é a
única verdadeiramente romântica, pois apenas o infindável é o seu
assunto a lira de Orfeu abre as portas do Orco. A música abre aos
homens as portas de um império desconhecido, um mundo que não tem
nada em comum com o mundo sensível exterior que o envolve, e no qual
todos os sentimentos determinados ficam para trás, a fim de se
entregarem a uma nostalgia inexprimível2.
Eis aqui a fórmula que enquadra a música de Schumann, e certamente sua
Kreisleriana. Evidentemente, essa música clássico-romântica, "autônoma", possui
uma função social; o princípio mesmo da autonomia pede inquirição sociológica.
Música absoluta. A música autônoma assumiu a forma de música absoluta: por ser
mais indetermindada e sem objeto, sugeriria o "absoluto", o momento metafísico,
à diferença da música vocal, mais determinada. No limite da estética romântica,
a música é uma "revelação" do absoluto. Foi Richard Wagner, o criador da
expressão, quem talvez melhor tenha definido o problema: a irredutibilidade da
música absoluta a qualquer outra forma de expressão, daí a sua
intraduzibilidade: "É preciso admitir que a essência da música instrumental
mais elevada consiste em exprimir em sons aquilo que não pode ser dito em
palavras [...]"3. Como se vê, uma atualização das afirmações de Hoffmann e seus
companheiros, todos eles revelando um apelo metafísico. Hoffmann, contudo,
entendia o "drama dos instrumentos" tendo em vista a sinfonia; o piano
romântico, como o de Schumann, desenvolveu por seu lado uma sonoridade, uma
técnica e um sentido musical que o elevavam à condição de orquestra o que
Liszt, inclusive, levou ao pé da letra, ao tentar fazer do piano pura e
simplesmente uma orquestra. Com efeito, a idéia de música absoluta reportou-se
à sinfonia, gênero direcionado para o concerto público, ao contrário do
quarteto, do trio, do duo e do solo, que mantinham o aspecto de execução
privada. A execução pública dos gêneros originalmente privados implica, como
diz Dahlhaus, uma "transformação do caráter social do gênero" 4, que precisa
ser indicada com precisão.
Formação do gosto. A estética romântica do gênio e da autonomia da obra
encontra contraface na sociologia da formação do gosto musical, que indaga
pelos grupos sociais de sustentação do compositor e do gosto
(Geschmackstrågertypen, para lembrar Schücking): um ideal estético é sustentado
por grupos determinados, que concorrem com outros por sua validade e justeza.
Formação do gosto depende de grupos sociais específicos, que atuam como
suportes do gosto, ou seja, como possibilidade de mudanças estilísticas.
Caso se pergunte pelas instituições que sustentam a música de Schumann, chega-
se imediatamente à família e ao cenáculo. Ambos os domínios não estavam livres
de tensão, de sorte que com relação a ambos a transformação de Schumann em
músico foi um processo conturbado, incerto e doloroso. Com a morte do pai,
esvaeceu a principal garantia de apoio decidido à carreira musical; o lento,
agônico e muito doloroso convencimento da mãe culminou numa decidida declaração
de independência. Não obstante, mãe, irmãos e cunhadas foram o grande apoio do
jovem pianista. O afastamento do círculo familiar, com a ida à universidade,
abriu espaço para a formação dos círculos de amizade, eminentemente masculina,
que darão lugar, logo mais, ao cenáculo dos Davidsbündler. Com isso, está
descrito o lastreamento social e anímico do jovem Schumann. A decisão de
tornar-se músico, após ouvir Paganini, e a seguir a impossibilidade da carreira
de virtuose, levaram-no a uma posição quase impossível: compositor
completamente desconhecido, sem meios de divulgação (quem conhecia suas obras?
quem poderia conhecê-las?), sem formação regular em composição e no trato com
músicos, sem editor. Apenas a situação de rentier, o grupo de apoio dos amigos
e, a seguir, o empreendimento da Neue Zeitschrift für Musik puderam garantir-
lhe a subsistência social e psíquica. A revista, reunindo um pequeno e
exclusivo grupo, pretendia ser o espaço e a plataforma de uma nova geração,
marcando claramente que os critérios de legitimidade artística se cindem na
diferença geracional. Davidsbund e Neue Zeitschrift für Musik são expressão da
luta entre os que acabam de chegar e os já estabelecidos. A imposição da
geração romântica é decerto uma imagem retrospectiva, que não dá conta seja da
fragmentação dessa "geração", seja de sua dispersão espacial, para não falar da
diversidade estilístico-musical.
A cultura burguesa da música de piano, portanto os círculos burgueses em
ascensão no período entre 1815 e 1848, remete aos potenciais suportes da música
de Schumann e para a criação de um gosto que a valorize. Mas mesmo aqui a
situação não é tão simples. Em primeiro lugar, a divisão entre espaço público e
privado, ou seja, sala de concerto e salão burguês. A sala de concerto é o
espaço para o virtuose do piano, que realiza o show independentemente da música
que executa basta que ela lhe possibilite mostrar brilho e bravura. Esse
espaço, em última instância, estava interdito a Schumann, por ser desconhecido
e por lhe faltar penetração junto aos virtuoses (nesse sentido, é interessante
a autocrítica retrospectiva de Liszt). O salão burguês, por seu lado, é tanto o
lugar do filisteu como requer peças de outra natureza que as escritas por
Schumann. Assim, também o salão burguês não oferecia espaço para seus talentos.
A Kreisleriana é um bom exemplo daqueles bens que não encontram consumidores
que deles gostem, um produto que precede a demanda, e não resta dúvida de que
seu "sucesso", diria mesmo sua existência, foi posterior à morte do produtor.
Grupos portadores de gosto que dêem sustentação para essa música, por volta de
1838, não há pense-se contrastivamente na figura de Chopin: há um espaço
social, no qual convivem aristocracia e burguesia e que ancora a obra. Essa é
uma das razões para o apelo, sempre enfático, de Schumann à tradição de Bach,
Mozart, Haydn e Beethoven como justificativas, que funcionavam como
sustentáculos materiais e ideais para seu compor. Também contam aqui o cenáculo
estes sim podiam ouvir e compreender sua música, que é executada na sala, mas
não no salão burguês e a revista espaço de combate do crítico que se
traveste também de compositor. E por essa razão é legítimo invocar elementos
das críticas de Schumann a obras de terceiros para explicar aspectos de suas
próprias obras e de sua atuação.
É significativo o fato de Schumann, vivendo em Leipzig, não conviver com uma
corte; ao contrário, a vida em uma cidade decididamente burguesa afastou-o de
qualquer possibilidade de estímulo, que dizer mecenato, então já bem erodido
como forma de sustentação. O burguês não dá sustentação a artistas, como fazia
o aristocrata nobre. O burguês cria associações culturais no caso de Leipzig,
a Gewandhaus , visando fomentar uma vida cultural anteriormente ligada apenas
às cortes. Mas sua dinâmica é totalmente diferente, não há um Kapellmeister ou
similar que também compõe. A isso se soma o fato de já existir então um
repertório atuante, diminuindo a necessidade, antes absolutamente imperiosa, de
obras sempre novas. E há mais compositores, há maior circulação de intérpretes,
há mais edições. E há o domínio absoluto da ópera. A concorrência se acirra, e
um futuro virtuose abortado só podia contar com as rendas da família e o
estímulo de amigos e isso já nos conduz ao cerne da relação com Clara Wieck,
uma parceria anímica, artística e financeira.
Se por um lado a estética romântica enfatiza e estimula a singularidade
penetrante e irredutível, assim como a autonomia da obra, por outro coloca em
risco os gêneros como formas social e historicamente configuradas de composição
e apreciação. A individualização extrema acaba por levar à dissolução dos
gêneros, pondo em questão e ocasionalmente em perigo os suportes sociais do
gosto, no exato momento em que o mecenato deixava de existir e o compositor
tornava-se empresário de si mesmo, alguém que precisava vender seu produto no
mercado dos bens musicais. Para uma platéia de concerto, uma peça que fale
segundo uma linguagem conhecida tem, naturalmente, muito maiores chances de
sucesso. O mecenato, de que Beethoven ainda lançou mão, já não garantia de modo
pleno a música da geração romântica, embora não deixasse de ser significativo.
Para um músico como Schumann, que viu sua carreira de virtuose malograr de
forma precoce, as tensões devem ter sido consideráveis.
Gêneros musicais. Em conjunto com o problema da autonomia da música e da música
absoluta, a questão dos gêneros musicais está na alma da música do classicismo/
romantismo; até mesmo o curso da carreira de Schumann evidencia o problema, com
seus inícios nas obras para piano e os grandes esforços rumo aos gêneros nobres
por excelência: a música sinfônica e a ópera.
A transição para a autonomia, a emancipação das finalidades impostas estava
ligada com uma inversão das relações hierárquicas entre gênero e obra
individual [...]. Na música mais antiga, funcional, a obra era em primeiro
lugar um exemplar do gênero [...]. Mas, desde o final do século XVIII, o gênero
perdeu rapidamente substancialidade. [...] O conceito de gênero não antecede
mais à obra singular, senão que se desvanece em um conceito genérico abstrato
[...].5
Esse um dos impedimentos para a compreensão da Kreisleriana: os ciclos para
piano do jovem Schumann subvertem por completo a questão dos gêneros musicais.
A emancipação da obra de arte musical, sua libertação da função e do gênero,
impossibilita a atribuição clara de gênero para um ciclo como a Kreisleriana.
Por outro lado, a própria carreira do compositor indica respeito pelos gêneros,
na busca das formas mais consagradas como a sinfonia, o concerto e a ópera e
nesse aspecto as obras do jovem compositor estão à frente das obras da
maturidade. Se na Sinfonia renana importa sobretudo tratar-se de uma sinfonia,
na Kreisleriana não se trata nem de sonata, nem de variação, mas de algo que,
fugindo aos gêneros, postula a hierarquia superior de uma forma particular e
única.
Unendliche Sehnsucht. A idéia da nostalgia infinita foi formulada por Hoffmann
na resenha da Quinta sinfonia, que posteriormente se tornou um dos escritos do
Kapellmeister Kreisler.
Assim, a música instrumental de Beethoven também nos abre o império
do desmedido e imenso. [...] A música de Beethoven põe em movimento o
temor, o horror, o abissal, a dor e desperta precisamente aquela
nostalgia infinita, que é a essência do romantismo. Por essa razão
ele é um compositor puramente romântico e não é por essa razão que,
nele, a música vocal (que não permite o caráter de uma ânsia
indeterminada, mas apenas expõe afetos determinados por palavras
[...]) não é tão bem sucedida?6
E, seguindo o comentário de Dahlhaus, a música romântica só se alça à condição
de música absoluta, liberta de fundamentar-se em texto, retratar um caráter,
cumprir função, contar história ou manifestar afetos, na exata medida em que
sua expressão do "infinito" ganha estatuto de legitimidade: a música não é mais
vazia e sem sentido se não cumprir uma função ou exprimir um afeto, mas
justamente o contrário: por dizer o indizível, exprimir o inexprimível, ela
ganha nova dignidade e novo estatuto. Isso significa uma nova definição daquilo
que é música, pois música torna-se música absoluta. Essa é a representação
operante em Schumann, que a tomou da teoria do poético de Jean-Paul e de
Wackenroder e Tieck:
Essas sinfonias podem representar um drama tão colorido, tão
variegado, tão intrincado, desenvolvido de modo tão belo, como o
poeta jamais poderia nos dar; pois elas revelam em uma linguagem
enigmática o mais enigmático, elas não dependem de lei alguma da
verossimilhança, elas não precisam se ligar à história nem possuir um
caráter, elas permanecem em seu mundo puramente poético.7
O "poético" manifesta-se portanto, do modo mais puro, na música instrumental.
Compreender a Kreisleriana como "poesia" e não "prosa" nos termos da
distinção de Jean-Paul, adotada por Schumann significa que não se pode querer
buscar na obra musical algo que não seja ela mesma: sem finalidade exterior
alguma a que se deva submeter, sem exprimir conteúdo extramusical algum (nem
mesmo a subjetividade do "eu lírico" do compositor ou do intérprete).
De todo modo, essa "música poética" de Schumann é uma música para iniciados,
pois é tanto de difícil execução como de difícil compreensão. Não há programa
oculto na Kreisleriana, que jamais é "tradução" de algum texto, idéia,
sentimento ou afeto, mas apenas é o que é, não sendo nada além disso e sendo
assim, torna-se música absoluta, isto é, para além do que simplesmente é:
poesia pura. A estética intrínseca à Kreisleriana é antes de tudo uma
metafísica da música absoluta e pura; uma estética do sentimento ou doutrina
dos afetos seria, aos olhos e ouvidos de Schumann, consumada cultura burguesa
do sentimento e, portanto, filisteísmo. Nesse sentido, tal música corresponde
menos, muito menos a um ambiente de sociabilidade impregnado por uma cultura do
sentimento do que a uma autonomia e elevação metafísica que almeja o sublime.
Transposta na linguagem da estética hegeliana, tal música absoluta, em virtude
do caráter abstrato do material musical, adequa-se precisamente à expressão "de
um interior totalmente desprovido de objeto", isto é, à "subjetividade
abstrata" como se vê, uma idéia bem próxima de Hanslick. Aliás, se a música,
como diria o vienense, é "idéia", a composição que almeja sua autonomia é
precisamente o desenvolvimento de um pensamento musical, com os seus próprios
meios. Não precisamos ir além do próprio Schumann para atestar essa estética:
"Cai certamente em erro quem crê que os compositores dedicam-se à pena e ao
papel com o intuito miserável de exprimir, retratar ou pintar isto ou aquilo"
8. De todo modo, a metafísica da música absoluta pede ser compreendida como uma
muito mediada contraface daquela miséria alemã que Marx e Engels dissecaram na
Ideologia alemã.
Ínfimos detalhes. O músico da geração romântica de Hoffmann, isto é, Robert
Schumann, tinha a percepção aguçada para o fato de que o detalhe técnico, na
condição de pormenor ínfimo, define o procedimento composicional e, nesse mesmo
passo, inscreve-se na dialética do material musical. Não há detalhe que não
obtenha seu sentido no todo, assim como o sentido do todo é que figura o
detalhe9. Isso conduz à relação de detalhe e desenvolvimento. Foi no comentário
à sinfonia de Berlioz que Schumann explicitou essa relação; o que foi indicado
em Berlioz, entretanto, vale tal e qual para a música de piano do jovem
Schumann, e sobretudo para a Kreisleriana. Trata-se de uma música que dá enorme
atenção ao detalhe como elemento artístico que condensa o momento e, nesse
sentido, o decurso musical mais amplo. Berlioz e Schumann, portanto, não
desenvolvem seus temas, não procuram esgotá-los e levá-los às conseqüências
últimas, tal como Beethoven. Não se dá peso ao trabalho e desenvolvimento
temático. A ênfase é deslocada para o ínfimo, para o instante, para o
transitório e efêmero. Neles, e somente neles, esses compositores saberão
encontrar o eterno.
Tradição. Ao ouvirmos o compositor falar de seus predecessores e acentuar-lhes
os traços mais significativos, ouvimos de fato, por um lado, uma demarcação de
tradição, e por outro uma demanda histórica que atinge o compositor
contemporâneo no confronto com a tradição que lhe precede e da qual ele se
nutre:
Se penso portanto no tipo mais elevado de música, tal como Bach e
Beethoven nos propiciaram em criações únicas, se falo de raros
estados de alma, que os artistas devem me revelar, então exijo que o
artista, com cada uma de suas obras, me conduza um passo adiante no
reino espiritual da arte, exijo, com uma palavra, profundidade
poética e novidade por toda a parte, tanto no particular como no todo
[...].10
Ao lado de uma formulação do "absoluto" na música, não emerge aqui a
autoconsciência e auto-exigência do próprio compositor?
Para Schumann, a exigência da música de seu tempo presente para não sucumbir
ao juste milieu é conseguir conjugar a profundidade de Bach com o sublime de
Beethoven. Digamos, seguindo Halm mas desviando de seus desenvolvimentos, uma
terceira cultura da música, que conjugasse as duas vertentes. Considerando
historicamente a Kreisleriana, pode-se indicar a relevância da "profundidade",
a importância da lição de seu antecedente em Leipzig basta lembrar o
conhecido fugato da sétima peça da Kreisleriana , assim como do processo
temático beethoveniano; uma vez reconhecida a impossibilidade de levá-lo
adiante, Schumann busca outra forma, o ciclo, que ocupe o seu lugar funcional.
Isso formula o nexo com a tradição, e sobretudo com Beethoven como antecedente
imediato, como aquele que levou a música ao ponto no qual os contemporâneos a
encontram. Destarte, o problema do progresso musical é incrustado no centro da
questão: após as realizações de Beethoven, vive-se um momento de
descontinuidade, no qual o desenvolvimento motívico-temático é abandonado, em
busca de outras modalidades de formação da forma. Beethoven conduziu o
desenvolvimento do material musical e do procedimento composicional a um
impasse, que obrigou a variadas soluções históricas por exemplo a solução
mais beethovenianamente ortodoxa do jovem Mendelssohn, especialmente na música
de câmara; ou a solução das peças para piano de Chopin e Schumann; ou a solução
orquestral de Berlioz. É de notar que cada uma dessas três soluções, de enormes
peso e conseqüência histórica, estão inextricavelmente ligadas à base
instrumental de que lançam mão: o quarteto, o piano, a orquestra (e talvez seja
possível acrescentar que nenhum dos compositores mencionados foi tão feliz em
seus outros desenvolvimentos composicionais para além dessas bases
instrumentais, nas quais encontraram suas respostas históricas mais
consistentes).
Beethovener. Schumann como um autêntico "beethoveniano" compreendia
Beethoven como um gênio, marcado pela originalidade. A fidelidade do compositor
romântico a Beethoven não é o epigonismo, mas fidelidade a seu espírito: a
exigência de ser original e de sua música, tocada pelo gênio, alcançar o
sublime.
Tradição, tal como Schumann a compreende, é uma tradução do passado
em sua própria língua: entretanto, uma tradução na qual permanece
reconhecível a estranheza do original. [...]
O modo como Schumann sente a tradição permanece antes em uma posição
intermediária, difícil e perigosa, entre a reflexão e a
imediaticidade, entre a consciência da distância histórica e o
sentimento de afinidade com os velhos tempos e suas obras', entre o
amor ao que está distante como algo inalcançável e o esforço em
trazer o passado para o presente.
11
Isso demarca, portanto, a ambigüidade da posição de Schumann, que se desdobra
nos domínios da forma musical, da posição social do compositor e dos grupos
sociais de sustentação dos novos padrões de gosto.
Fantasia. A peça de fantasia de Schumann a Kreisleriana recebeu o subtítulo
Phantasien contrapõe-se à forma sonata, que a precede historicamente, e nisso
se alinha com seus contemporâneos e suas variadas modalidades e gêneros: a
grand opéra de Halévy e Meyerbeer, o virtuosismo de Liszt e Paganini, a peça
lírica de Chopin. Nos termos de Dahlhaus:
Tanto o Lied alemão a partir de Schubert e a peça lírica para piano de Schumann
e Chopin, como a grande ópera de Meyerbeer e Halévy e a música virtuosística de
Paganini e de Liszt [...] nasceram ou adquiriram importância porque em certa
medida fenômenos parciais da tradição clássica foram levados ao extremo [...]
ou porque, mediante uma nobilitação, assegurou-se uma posição central a formas
periféricas, como o Lied ou a bagatela para piano. É como se ' em comparação
com o classicismo, cuja presença estética esmagadora determinava o
desenvolvimento da composição ' o centro do estoque de formas fosse pouco a
pouco esvaziado e a busca do novo tivesse se deslocado para os domínios
periféricos.12
Nesse contexto, é de lembrar aquelas sonatas de Beethoven que traziam como
subtítulo Quasi una fantasia, revelando que, no interior mesmo da forma sonata,
abria-se espaço para uma forma mais livre, que a seguir deixa de ser quasi para
ser simplesmente "fantasia"13. Schumann, naturalmente, alemaniza o termo
Phantasie e também o utiliza como verbo, pois fantasiar significa ao mesmo
tempo improvisar (ao piano) e imaginar com a (faculdade da) fantasia. Essa
dupla significação é em tudo característica do contexto romântico e do
procedimento schumanniano. Remete ao improviso, ao virtuosismo, ao piano, ao
ciclo como forma, à metafísica da música absoluta e, ainda, às formas de
sociabilidade subjacentes à música de Schumann.
Progresso. Os sociólogos aprenderam, com Max Weber, que progresso, em arte,
refere-se ao desenvolvimento dos meios técnicos. Mas não só. Weber parece, não
obstante a força produtiva de sua sociologia da arte, ter se esquecido de que
sobre a base material da música articula-se uma superestrutura cognitiva, que
atribui sentido à base material e nesse processo a constitui. No caso da
música, isso permitiu que sobre um material musical em princípio o mesmo, uma
diversidade de possibilidades de desenvolvimento se configurasse mediante o
procedimento composicional precisamente o que Theodor W. Adorno procurou
indicar, afirmando de modo enfático a historicidade do material musical e sua
dialética intrínseca com o procedimento composicional. É nesse âmbito de
gravitação que se pode tentar compreender o processo no qual se inscreve a
Kreisleriana.
O conceito moderno de forma, que se formou gradualmente, por volta de 1700, nas
árias de ópera e cantata, e sobretudo no concerto instrumental, baseia-se por
um lado no princípio da tonalidade harmônica, que como o universal musical
desenha um esboço, e por outro lado no princípio do tema, do qual parte como
o particular musical um desenvolvimento. A disposição tonal e o processo
temático são as partes constituintes de uma forma musical que, como um
transcurso diferenciado, amplamente tenso e, não obstante, articulado em si sem
lacunas, pretende existir esteticamente por si mesmo sem consideração a um
texto ou a uma função. O acabamento da forma é o correlato da autonomia da
obra.14
A autonomia da obra, por sua vez, que em Schumann torna-se música absoluta,
depende materialmente tanto do sistema tonal como da forma musical: a
Kreisleriana, entre seu primeiro e último compasso, assim como entre as teclas
negras e brancas do piano, configura-os em uma especificidade, que se
corresponde, justamente por meio do sistema tonal e da forma musical, com uma
generalidade, dada pela história do sistema e das formas. Isso a converte em
uma apresentação do jogo de particularidade e universalidade, facultando
desvelar a especificidade de seu momento histórico e das tensões composicionais
que se materializam na obra.
Davidsbund, Davidsbündler, Davidsbündlertånzen. As tensões que afligem o
compositor romântico levam-no a procurar apoio no cenáculo, grupo de seletos
unidos por um ideário comum, que oferece o sentimento de comunidade e
possibilita apoio anímico e social. Só assim é possível enfrentar o mundo
hostil: Marche des Davidsbündler contre les Philistines (Carnaval, última
peça). Revolta romântica do gênio contra a sociedade medíocre, mediana e
burguesa. Aristocracia do espírito, artista como profeta (Der Dichter spricht,
última peça de Kinderszenen). Arnold Hauser indicou o nascimento do filisteu,
ao qual se contrapõe o cenáculo, mas tendo em vista o caso francês:
O período pós-revolucionário foi uma época de desilusão geral.[...] Os
intelectuais isolaram-se cada vez mais do resto da sociedade e os elementos
intelectualmente fecundos viviam já uma vida própria. Surgiu o conceito de
filistino e de burguês, em contraste com o de cidadão, e chegou-se à situação
singular, quase sem precedentes, de os artistas e os escritores abominarem
exatamente a classe à qual deviam a sua existência material e intelectual, e só
terem desdém por ela. Porque, com efeito, o romantismo era essencialmente um
movimento de classe média[...]15.
Mas note-se que, na Alemanha, onde não ocorreu revolução, não havia
propriamente o cidadão, mas ainda o súdito. Justamente a época de Schumann,
durante as reformas do período de Metternich, lutou por constitucionalizar as
monarquias alemãs. E o súdito, antes de se opor ao burguês, era ele mesmo um
filisteu. Daí o isolamento social ainda mais gritante do artista alemão ou, nos
termos de Hans Mayer, a contradição ainda mais acentuada entre mundo interior e
mundo exterior. Se a Revolução, por mais traída que tenha sido, garantira a
existência do cidadão e, com isso, um lugar possível para o artista no mundo
exterior, na Alemanha isso permaneceu ainda mais dificultado, embora não
interdito. Acabou por assumir formas diversas, como a utopia do poeta como voz
da nação: ao mesmo tempo poeta em oposição à sociedade e utopia da sua
conciliação com a sociedade. Sem dúvida, uma relação ambivalente com a
sociedade, tensão entre o isolamento e a elite e a comunicação exterior (que no
caso de Schumann fez-se presente até mesmo no registro biográfico: seu mutismo
perturbador e sua necessidade de isolamento para criar). Com efeito, o
Davidsbund existiu sobretudo na fantasia de Schumann, mas foi uma construção
imaginária que lastreava uma atuação no mundo. Um dos escritos do Kapellmeister
Kreisler, "Idéias sobre o valor elevado da música", é um libelo contra o
filisteísmo musical. Essa mesma posição foi a do Schumann crítico musical. Os
contemporâneos de Schumann oscilavam em considerá-lo um crítico musical que
compunha ou um compositor que escrevia crítica, mas tendiam para a primeira
alternativa e sem dúvida alguma, durante sua vida Schumann foi muito mais
conhecido como crítico do que como compositor. Mas essa ambigüidade é
constitutiva de sua figura, já que a unidade das artes e já os primeiros
românticos haviam afirmado com a maior das ênfases que a crítica é a mais alta
das artes também significa, em Schumann, unidade de crítica e composição.
Crítica é arte e para julgar é preciso ser artista: esse é o programa que
Schumann desenvolveu na Neue Zeitschrift für Musik, que ele fundou e dirigiu
praticamente sozinho por dez longos anos, de 1834 a 1844. Tratava-se da
plataforma de uma nova geração, em contraposição à antiga, que se manifestava
na Allgemeine musikalische Zeitung. Não apenas um conflito de gerações, mas
também de modos de sociabilidade e experiência social, que se converte em
música. Nos escritos de Schumann, que enchem dois bons volumes, manifesta-se
sua dupla face profissional, sua cultura literária extraordinária, sua veia
humorística e polêmica, seu esforço em defesa de autores e obras, seu talento
extraordinário como escritor (que outro compositor pode escrever tão bem,
segundo os padrões que se impôs?). A revista Neue Zeitschrift für Musik foi a
criação de um círculo interno de amigos, uma sociabilidade intensa, discussão e
engajamento, abertura para a vida musical de seu tempo e esforço de divulgação
de idéias e espaço para o que havia de novo, assim como para a tradição. Os
Davidsbündler se intitulavam "Beethovener" e basta isso para mostrar o peso
dado ao nexo com a tradição como elemento de identidade e legitimidade
estéticas. Beneficiada pela "revolução da leitura", que caracterizou a primeira
metade do século XIX na Alemanha, a revista conseguiu sobreviver até os dias de
hoje; nos anos em que Schumann a carregou, ela foi tanto um peso que o impedia
de compor ele se lamentava incessantemente da sobrecarga de trabalho, que não
lhe deixava tempo para compor como uma esperança financeira, que pudesse
garantir-lhe a existência como artista e, logo mais, as possibilidades de uma
vida conjunta, como homem casado e pai de família.
Compositor burguês. Schumann é um compositor do mundo burguês, mas tal
afirmação é genérica demais para explicar, ou mesmo sugerir, traços fundantes
de sua música e da Kreisleriana em particular. Que as formas de vida e
existência de Schumann foram burguesas, não há dúvida; mas os conteúdos e o
teor burgueses de sua arte precisariam ser identificados com penetração. Em
primeiro lugar, sem dúvida, as condições de uma expressão artística, fundada na
individualidade, no individuum est ineffabile goethiano (e Simmel os aproximou
e afastou, com a perspicácia costumeira, na confluência da unendliche
Sehnsucht), naquilo que os sociólogos convencionavam chamar, no passado, de
individualismo qualitativo.
No caso, um individualismo burguês assentado na consciência da capacidade
singular de realização tanto dos estratos médios em processo de transformação
em classe, como dos indivíduos burgueses singulares. Daí a crença e confiança
constantes de Schumann, de que é capaz de produzir obras significativas
byronismo e titanismo.
A concepção schumanniana do músico como artista autônomo baseia-se na
representação literária do artista romântico, a que se contrapõe a música como
mercadoria, que é a música dos virtuoses, do juste milieu, do artesanato e do
pianista, mas jamais a do verdadeiro compositor. Mesmo que as chances de
incompreensão sejam esmagadoras, pois fazem parte, elas mesmas, da própria
representação e do cânone social do artista romântico: nem sempre a sociedade
reconhece o artista-indivíduo genial daí sua procura por grupos de
sustentação, cenáculos e símiles. Ao mesmo tempo, toda a metafísica da música
absoluta é dependente da existência emancipada do burguês.
Deutsche Zustånde. Formas de existência isto é, de vida e pensamento
burguesa impregnam a fundo a época de Schumann e modelam o processo alemão que
vai de 1815 a 1848.
Se observarmos como um todo o decênio a partir de 1815, o verdadeiro
fenômeno profundo é, em primeiro lugar, a ascensão da burguesia: o
desdobramento de uma cultura burguesa na ciência, na educação e no
domínio estético[...], formas e normas burguesas de vida na família,
no trabalho e na vida social, um padrão burguês de gestão no mundo
capitalista em emergência, a integração do velho e tradicionalista
mundo burguês/ citadino no novo mundo do "burguês"; a difusão desse
mundo às camadas não burguesas, a nobreza, os camponeses e partes
respeitáveis das camadas mais baixas. Nas eleições de 1848, a grande
maioria do povo confirmou essa burguesia. Não se tratava
dabourgeoisie
, do mundo da alta burguesia, mas da burguesia média, com a massa dos
autônomos vários, estratificada e conduzida segundo critérios de
cultura e posse e à margem a pequena camada da inteligência
crítica, política e socialmente importante, que começava então a pôr
em questão a burguesia. Os burgueses não dominam, mas determinam o
estilo e a direção, seus valores e normas realizam-se: autonomia e
individualidade, talento e formação, discussão e espaço público,
privacidade e liberdade, e sua nova forma de domínio e de alegria de
vida comum, a associação. A burguesia torna-se, apesar da
sobreposição feudal, apesar da massa das camadas inferiores, apesar
da massa do "campo", a força social condutora.
16
Nesse quadro, é central, para compreender e ouvir Schumann, destacar o elemento
de ambigüidade, que é tanto a ambigüidade de uma classe capitalista sem poder
ser de fato capitalista e, por outro lado, de uma camada social que não domina
mas impregna o que, evidentemente, redunda em consideráveis tensões.
Portanto, não somente uma época de transição, mas uma transição ambígua.
Virtuose, virtuosismo. O período que vai da Revolução de Junho à de 1848
testemunhou o apogeu dos virtuoses: Paganini, Thalberg, Kalkbrenner,
Dreyschock, Liszt, para nomear apenas os maiores. E também os abortados, como
Schumann. Embora tenha tido oportunidade de ouvir muitos deles, sobretudo um
teve importância decisiva sobre sua música. Em 1830, após ter ouvido Paganini,
Robert Schumann escreveu à mãe, confessando definitivamente sua necessidade de
abandonar os estudos jurídicos e tornar-se músico: "Não posso mais me habituar
à idéia de morrer como um filisteu e para mim é como se estivesse desde sempre
determinado para a música."17
O impacto de Paganini, contudo, não foi sentido apenas por Schumann. Converteu-
se em fenômeno cultural de ampla dimensão, que atingiu o material musical e o
procedimento composicional. Não há como não seguir a apresentação brilhante de
Dahlhaus: Entre 1830 e 1847,
O virtuosismo atingiu o seu ápice histórico [...] em uma situação
contraditória, do ponto de vista da técnica compositiva: uma época de
transição, na qual uma tradição anterior mas ainda não extinta, que
se orientava pela técnica de uma estrutura harmônica determinada,
estava sendo substituída por uma nova, na qual o conceito de tema
assumiu o centro do pensamento musical instrumental. A estrutura
harmônica determinada, a variação de um modelo de melodia ou de
baixo, ou de um esquema harmônico-métrico, representava [...] de
certo modo um desafio ao talento improvisatório, considerado como uma
das características mais marcantes do virtuosismo instrumental. Pois
um princípio formal cujo sentido radica na dialética de continuidade
e efeito momentâneo [...] favorece expressamente a técnica da
improvisação virtuosística, cuja categoria estética básica é a
surpresa que dura um instante. Não por acaso, portanto, a série de
variações constituiu a forma paradigmática de um virtuosismo que,
mesmo quando foi fixado como composição, não renegou sua proximidade
à improvisação. O virtuosismo, a improvisação, o princípio da
estrutura harmônica determinada e a concentração no instante estético
' que tem sua substância em si mesmo e não no nexo funcional da forma
musical ' fazem todos parte de um mesmo "tipo ideal". Em
contraposição a isso, um pensamento musical que gira em torno do
conceito de tema e de trabalho temático tendia a uma forma "lógica"
que, à diferença da técnica da estrutura harmônica determinada,
oferecia à improvisação possibilidades estéticas muito mais reduzidas
do que à composição. Apesar disso, a improvisação soube se apropriar,
ao menos em parte, do princípio do trabalho temático na forma da
fantasia livre, e na verdade em fragmentos, cujas cesuras foram
encobertas pela ênfase subjetiva da retórica expressiva. Mas isso não
altera em nada a divergência fundamental: no mesmo momento em que
alcançava seu ápice no plano da história da cultura, o virtuosismo
estava ameaçado desde dentro no plano da história da composição.
Assim que a idéia de processo temático ' em lugar da dialética de
continuidade pré-constituída e efeito momentâneo improvisado ou quase
' passou a ocupar, no desenvolvimento da música instrumental, o lugar
decisivo no que diz respeito à história da composição, o virtuosismo,
que se nutria esteticamente da herança da improvisação, esteve
substancialmente ameaçado, ainda que, como instituição, tenha
continuado a existir, aparentemente intato, por decênios.18
No que diz respeito à composição de Schumann, a transposição do virtuosismo
violinístico para o piano foi fundamental para desenvolver tanto um virtuosismo
pianístico próprio como uma concepção do que seja o piano e suas virtualidades.
O choque causado pelo virtuose do violino evidenciou que também o piano podia
ser levado ao extremo e isso tornou-se um caminho a ser explorado. É
precisamente nesse extremo que se cindiu uma concepção mais conservadora o
piano devia soar como se fosse outro instrumento, por exemplo, um violino e
uma mais avançada soar simplesmente como piano. Daí o temor de Schumann de
que o virtuosismo propiciasse uma recaída da música no "mecânico", no
"prosaico", pólo oposto do "poético", única legitimidade da verdadeira arte.
O impacto de Paganini, portanto, sedimentou-se na própria escrita para piano, e
os Studien nach Capricen von Paganini, de 1832 (op. 3), assim como os Paganini-
Etüden, de 1833 (op. 10), foram apenas um primeiro ajuste de contas com aquela
experiência, que não poderia deixar de ser objeto de reflexão do Schumann
crítico: o violino de Paganini como desafio e exigência para o piano. Assim,
como disse o compositor, a inspiração e o desafio provindos do violinista foram
destilados pela "idéia poética" e, nesse sentido, sobretudo lançando mão da
forma livre da "fantasia", foram amplamente explorados e funcionaram como
estímulo e meio para a experimentação e utilização de um material novo, de
novas possibilidades composicionais e do material: novas possibilidades
expressivas. Tudo isso é abordado na resenha de Schumann sobre os
Bravourstudien nach Paganinis Kapricen für das Pianoforte bearbeitet, de Liszt;
Schumann orienta-se sempre pela "idéia poética", e disso se conclui que o meio
técnico pode ser um suporte e estímulo ao desenvolvimento composicional. Mesmo
as reduções sinfônicas para piano, como a da sinfonia de Berlioz, forneceram
material para Schumann enfatizar a especificidade desse meio técnico singular,
o piano: suas possibilidades de variadas formas de ataque, o uso matizado do
pedal, o entrelaçamento das diferentes vozes, a unificação da massa sonora, "em
suma, o conhecimento dos meios e dos vários segredos que o piano ainda oculta"
19. Na música para piano do jovem Schumann, o virtuosismo, transfigurado,
tornou-se força produtiva.
Antecipação da experiência do choque como norma. A lei da música para piano do
jovem Schumann, que encontra seu máximo na Kreisleriana, foi sugerida por
Charles Rosen no "contraste de sonoridades". Entretanto, tal contraste é uma
das formas, e de fato a forma de superfície, de uma força ctônica, que pede
identificação e exame. Talvez isso pudesse ser indicado sob a rubrica, que
Adorno utilizou em outro contexto, da Triebleben der Klånge (vida pulsional das
sonoridades). Os contrastes são de natureza vária: nos tempos, nas
intensidades, nas sonoridades, nas harmonias, nas melodias. Mas um exame mais
detido leva-nos do contraste para a forma original e geradora, o choque. Com
efeito, é o choque que constitui a lei da Kreisleriana, e é por essa razão que
essa peça é mais significativa do que outras obras importantes do jovem
Schumann: pelo fato simples e complexo de que leva ao extremo o fenômeno,
transformando-o em sua lei da forma. Tal elemento está em poderosa
correspondência com a experiência social da época.
Os choques são figurados de modos variados, e isso contribui para seu caráter
caleidoscópico: sempre presentes, mas sempre diferentes. As defasagens rítmicas
e harmônicas, sejam conjuntas, sejam separadas; o evidente contraste dos
andamentos das diversas peças entre si, e depois no interior das peças; a
exploração dos limites da tessitura do instrumento, assim como o uso consciente
de possibilidades técnicas do piano; as contraposições de vozes; o tratamento
cuidadoso das mudanças de intensidade; o uso do pedal: eis alguns dos meios
utilizados para dar forma à experiência do choque. A reposição continuada dessa
experiência força considerar a contradição como um elemento constituinte da
obra 20, que resulta da dialética de subjetividade e convenção, que em Schumann
cede decididamente para o lado da subjetividade; de par com a perda do poder
vinculante da convenção estão os choques. As formas do classicismo, que em
Beethoven tinham figurado essa dialética, esvaem-se na geração do Vormårz;
disso deriva a dificuldade de uma síntese pós-Beethoven. E se, no último
Beethoven, o máximo de expressividade fora ao mesmo tempo a máxima
objetividade, esse equilíbrio peculiar e único se esvai na geração dos
"epígonos".21
Segundo a argumentação de Adorno, a segurança da forma é o meio através do
qual, na música de Schoenberg, os choques são absorvidos; na Kreisleriana
talvez se possa dizer que a insegurança da forma produz e reproduz o choque,
fazendo da falta, virtude. O choque é meio da forma e, em mesma medida,
registro protocolar da experiência.
A experiência do choque foi determinante para a fatura da Kreisleriana. Mas o
choque, em Schumann, ao contrário do Baudelaire estudado por Benjamin, não se
relaciona com o contato com as massas na cidade grande e moderna embora a
dialética da solidão seja operante e significativa em Schumann , mas é
totalmente dependente do recolhimento ao domínio da interioridade, em uma
diferenciação total e absoluta de eu e mundo (em plena sintonia com o modelo
romântico dos dois mundos). Faz parte da dialética aí implícita que, justamente
por ser essa diferenciação absoluta, tenha sido possível uma expressão acabada
do mundo.
Se a vivência do choque, no entender de Benjamin, caracteriza o homem em meio à
multidão e, assim o fazendo, corresponde à vivência do trabalhador com a
maquinaria, então se poderia supor que nos choques da Kreisleriana antecipam-
se, em imagem invertida, o processo capitalista da indústria alemã, então em
seus inícios. Com efeito, o fenômeno da música de Schumann sugere que a
correspondência apontada por Benjamin deita raízes em experiências sociais mais
profundas, que estão aquém do desenvolvimento econômico que ele tem em mente.
Muito antes dos trabalhadores, das máquinas e do poeta de que Benjamin fala, a
experiência do choque já estava sedimentada, na condição de forma musical, na
Kreisleriana, o que exige indagar se não se trata de uma experiência presente e
determinante da era burguesa tout court e portanto presente, de formas várias,
desde os primórdios dessa forma social.
Coube a Adorno retomar o problema formulado por Benjamin com vistas à poesia de
Baudelaire, mas ele o fez sobretudo na análise da obra de Schoenberg, onde
encontramos, por assim dizer, o momento terminal da experiência do choque. Não
por acaso, há na análise de Adorno referência a Berlioz, cuja conhecida
sinfonia é contemporânea em sentido enfático da Kreisleriana; tal referência
indica precisamente o momento inicial da concreção da experiência do choque na
forma musical. Por essa razão, é justo retomar alguns aspectos da análise do
compositor frankfurtiano, que com relação a Schoenberg afirmou: "O registro
sismográfico do choque traumático torna-se ao mesmo tempo a lei formal técnica
da música. Ela proíbe a continuidade e o desenvolvimento" 22. Na Kreisleriana,
o choque já é a lei da forma, mas ele não impede, como ocorrerá depois, a
continuidade, em uma música que abdicou do desenvolvimento em sentido
beethoveniano. A continuidade se torna contraste, e essa é uma das razões que
tornam o choque internamente constitutivo da música de Schumann. Assim, a
genealogia usualmente indicada, e não só por Adorno, para a compreensão da Neue
Musik precisa ser reavaliada, pois é em Schumann, e em especial na
Kreisleriana, que, na impossibilidade das respostas históricas ao problema da
continuidade e do desenvolvimento, marcadas pela solução beethoveniana,
encontramos os germens de uma por assim dizer não-continuidade, realizada sob a
lei formal dos choques. O resumo de Egon Wellesz, citado pelo mesmo Adorno, é
esclarecedor a esse respeito:
Na música instrumental do século XIX pode-se perceber por toda parte
a tendência a ampliar a forma musical por meio do trabalho sinfônico.
Beethoven foi o primeiro que soube construir, com o auxílio de
pequenos motivos, desenvolvimentos poderosos, que se erguem de modo
uno sobre um motivo-gérmen, o agente da idéia. Somente então, quando
o efeito da idéia do motivo-gérmen cessou, entra em vigor o princípio
da oposição, que domina toda arte. A época anterior a Beethoven ainda
não conheceu, na sinfonia, nenhuma construção de tal modo acabada. Os
temas de Mozart, por exemplo, trazem freqüentemente em si mesmos o
princípio da oposição; encontram-se antecedentes solidamente acabados
e conseqüentes desagregados. Esse princípio do efeito contrastante
imediato, do encadeamento dos opostos no decurso de um tema, é
empregado novamente por Schoenberg.
A ausência de trabalho motívico-temático, desenvolvimento estrutural e
estruturante, que caracteriza o impasse e mesmo o desespero de pertencer à
posteridade de Beethoven, leva a uma nova, e mais precária, lei formal, na qual
o ciclo cumpriria, sob a lei do fragmento, uma totalidade não apenas
fragmentada, mas também fraturada repondo novamente a experiência do choque.
Da passagem de Wellesz, Adorno tirou a seguinte consequência:
Esse procedimento de formação dos temas originou-se no caráter
protocolar da música. Os momentos do decurso musical são alinhados
uns aos outros, mas com independência, como os movimentos
psicológicos, inicialmente como choques e depois como figuras de
contraste. O continuum do tempo da vivência subjetiva não tem mais a
força de coordenar os eventos musicais e, enquanto sua unidade,
conferir-lhes sentido. Mas tal descontinuidade mata a dinâmica
musical, à qual deve sua existência.23
Permanece em aberto se tal consideração não faz sentido para uma obra como a
Kreisleriana; seria preciso compreender a forma do ciclo nesse enquadramento de
problemas.
Choque e experiência social. O choque e o contraste abrupto, lei formal da
Kreisleriana, são uma forma de reação social que possui correspondência com as
experiências que marcam o período histórico desde a Revolução Industrial e a
Revolução Francesa independentemente do fato de que, na Saxônia de Schumann,
não tenhamos nem uma, nem outra. Nesse sentido, o choque é uma objetivação
estética de um conteúdo social que se concretizaria em violência nos
tumultos, na mesma Saxônia de Schumann, de 1848. Os choques e contrastes são
uma aparência, mesmo que inconsciente, dos choques e contrastes do mundo
exterior.
Por meio dos choques o singular torna-se imediatamente consciente de
sua nulidade frente à máquina gigantesca do sistema como um todo.
Desde o século XIX eles deixaram seus rastros nas obras de arte;
musicalmente falando, Berlioz deve ter sido o primeiro para cuja obra
eles foram essenciais. Mas tudo depende do modo como a música lida
com as vivências dos choques.24
Desnecessário enfatizar essa unidade de Berlioz e Schumann, assim como o
tratamento diferenciado que, a cada vez, recebem as vivências dos choques
inclusive por conta de uma experiência social muito diferenciada entre a França
e a Alemanha. Mas o que importa é o modo como a Kreisleriana lida com os
choques, que são o seu fato social de raiz e sua lei formal estruturante.
Questões de forma. Em vez do desenvolvimento da forma sonata e dos motivos
beethovenianos, baseado na coerência e articulação lógica, a perda da convenção
vinculante leva Schumann a buscar segundo o argumento de Rosen "uma
complexidade gradual e dinâmica da experiência sucessiva de um tema pelo
ouvinte"25. Entretanto, como apontei por meio de Adorno, tal argumento
precisaria se haver com o fato de a experiência subjetiva falhar em sua
capacidade de oferecer sentido e unidade ao que aparece como descontínuo. O
ponto evidencia como a análise de Rosen carece de lastro sociológico, mas isso
não significa que a solução por ele apontada seja inverdadeira. Em primeiro
lugar, o argumento de Adorno estava modelado pela experiência da Neue Musik e
tinha em vista explicar sobretudo uma peça capital de Schoenberg, composta
setenta anos depois da Kreisleriana; não foram setenta anos quaisquer, mas sim
o período em que o capitalismo desenvolveu-se plenamente na Alemanha. No tempo
do jovem Schumann, a Alemanha nem sequer estava unificada e não havia mais do
que um pequeno e local capitalismo comercial, com baixa industrialização e de
baixa tecnologia; já na virada do século a Alemanha havia se tornado a economia
capitalista mais poderosa da Europa.
De todo modo, o esmorecimento da dialética de subjetividade e convenção após
Beethoven não significa que ela deixe de atuar, mas que carece de novos meios
de realização. Os novos meios, entretanto, não dispõem de universalidade
comparável aos anteriores, pois não se deixam fixar na fórmula. Uma questão
crucial é saber reconhecer em que medida essa dialética está viva e atuante na
Kreisleriana. Certamente vive e atua a dialética da grande e da pequena
estrutura: dito em termos genéricos, em um primeiro registro a grande é o
conjunto, a pequena é a peça; em um segundo, a grande é a peça e a pequena é a
passagem; em um terceiro, a grande é a passagem e a pequena é o detalhe.
No dizer de Rosen, "a grande forma deve se afigurar como se houvesse surgido
diretamente das formas menores, o que preserva a individualidade dessas
últimas"26. Ou melhor: a totalidade surge diretamente e de modo mediado das
formas menores, reiterando por um lado suas individualidades e, por outro,
abarcando-as em um nexo mais amplo, que lhes incute sentido e potencia a
expressão. Schumann possui o dom de "criar uma unidade a partir dos materiais
os mais diversos, de criar uma única obra a partir de miniaturas aparentemente
completas."27 Isso reforça a dinâmica intrínseca da obra musical, impregnando-
a de um movimento contínuo uma forma que diferencia Schumann de Beethoven, no
qual a dinâmica já está dada desde o início em sua plena força, apenas
desdobrando-se.
Com isso, articulam-se as diferentes grandezas da obra, do detalhe micrológico
ao conjunto; a articulação faz-se, contudo, sempre mediada; a mediação, por sua
vez, estabelece nexos que não são livres de ambigüidades, e a ambigüidade
torna-se uma força produtiva do nexo em todos os seus momentos.
Ciclo. Sem dúvida alguma, a idéia do ciclo, que Schumann foi aprimorando,
digamos, desde Papillons, desempenha papel central na Kreisleriana. Nesse
ciclo, Schumann utiliza as formas tradicionais do Lied (ABA) e do rondó
(ABACA), mas as modifica no sentido da forma mais livre da fantasia. A
singularidade da obra depende menos do desenvolvimento, em sentido
beethoveniano, isto é, do processo formal que se desenvolve do início ao fim da
composição, e mais dos temas e motivos, independentemente do procedimento de
desenvolvimento. Esquemática e simplificadamente: em Beethoven, temos mais
forma e menos tema; em Schumann, mais tema e menos forma. No lugar do
desenvolvimento, o contraste do que é diferente.
Isso leva à questão do fragmento, como singular articulado à totalidade e, ao
mesmo tempo, fechado em si mesmo, incompleto, infindo. A forma mais frouxa
encontra correspondencia na subjetividade que avanca e que se exprime no
transitório e fugaz. Com isso, em mesma medida o caráter sintético da forma
perde terreno, em favor do irreconciliado.28 O ciclo é, enquanto reunião de
fragmentos, uma solução para a contradição de acabamento e incompletude; ele
engloba e dá sentido. Roland Barthes percebeu bem o nexo que articula o
fragmento e o ciclo uma interdependência estruturante na qual um se apóia no
outro. O acabamento de cada peça-fragmento encontra sua contraface no
interstício: "chaque pièce se suffit, et cependant elle n'est jamais que
l'interstice de ses voisines" 29. Que solução para a articulação de todo e
partes! A justeza da percepção de Barthes encontra fundamento no uso, sempre
presente, do intermezzo por Schumann, mesmo quando não especificado o que,
naturalmente, Barthes também percebeu: "il a multiplié dans ses oeuvres les
intermezzi: tout ce qu'il produisait était finalement intercalé: mais entre
quoi et quoi?" 30. Na Kreisleriana, isso explica a mais longa das peças, que se
fragmenta e acaba por conter intermezzi explícitos. Por entre tantos
procedimentos, coerência e totalização são configuradas pelo ciclo: delineia um
espaço harmônico, assim como cada uma das peças possui seus próprios
encadeamentos e distensões harmônicas; há um tratamento rítmico que perpassa as
várias peças; uma sonoridade que se almeja; uma idéia que enlaça as diversas
peças.
Uma idéia? Um profundo senso da forma, que na Kreisleriana se conjuga à plena
originalidade arquitetônica. A forma interna do ciclo é mediada pela
organização de um centro de força harmônico, assim como pelo entrelaçamento
motívico. A isso se soma o tratamento dos contrastes como elemento de
articulação do sentido musical nesse aspecto, seguindo a lição do Jacques
Callot que inspirava Hoffmann, "composições criadas a partir dos elementos os
mais heterogêneos". Pois, ao justificar a forma das Phantasiestücke, Hoffmann
apoiou-se no gravurista:
Nenhum Mestre soube como Callot comprimir em um pequeno espaço uma
multiplicidade de objetos que, sem confundir o olhar, se sobressaem
uns ao lado dos outros, até mesmo uns nos outros, de tal modo que o
singular, como sigular que vale por si, se alinha ao todo. É possível
que críticos duros o acusem de ignorância nos verdadeiros
agrupamentos, assim como na distribuição da luz; entretanto, sua
arte, na verdade, ultrapassa as regras da pintura, ou melhor, seus
desenhos são apenas reflexos de todos aqueles fenômenos fantásticos e
maravilhosos, que o mágico convoca com sua fantasia desmedida.31
Eis portanto um nexo fundante, a partir do qual é possível se aproximar do
título do ciclo; ou melhor, não apenas do título, mas da própria lei formal, ao
problema, já assinalado, da continuidade sem desenvolvimento.
Big Bang (choque como norma). A estética e o procedimento do intemezzo/
interstício são lastreadas, na compreensão de Barthes, pelo choque, que ele
denomina coup. "Ce sont des coups": é isso a Kreisleriana. Nada a explica, nada
a estrutura, nada diz a não ser os golpes/ choques. Portanto, o golpe
interrompe, fragmenta, transforma tudo em intermezzo, em interstício, mas em
uma série de intermezzi e interstícios. Estes não se isolam totalmente, mas se
abrem para os outros, embora permaneçam fechados em si decerto uma das mais
simples entre as inúmeras contradições da obra de Schumann. Desnecessário
enfatizar o nexo com os contrastes de que falava Rosen, embora aqui estejamos
muito mais dentro do espírito que molda a obra de Schumann. A acumulaçõo dos
contrastes, choques e golpes levam Barthes a falar de um "Big Bang continu".
Assim, o que Adorno denominaria, segundo minha distorção, Triebleben der
Klånge, aproxima-se do que Barthes denominou corps pulsionnel, força motora do
nexo intermezzo-interstício. A forma por excelência do choque, porque mais
imediata, é o golpe rítmico, que Barthes entende ser desesperado. Contradição
apenas aparente, a do desespero, pois inserido em um nexo, a tonalidade-
totalidade, que o ordena, embora seja sua própria natureza que o impulsione
sempre para fora. Tudo isso configura uma das formas do excesso schumanniano.
Tal interpretação leva necessariamente à indagação acerca dos momentos de
distensão, de calma, apaziguamento, que serão, segundo Barthes, sempre um
alongamento (étirement), que também é levado ao registro do excesso: o
alongamento é extremo e é um extremo; o corps pulsionnel se estira, distende ao
máximo, e pode-se portanto dizer que o final da última peça é seu estiramento
final, rumo à decomposição, já em curso e em estado terminal.
Coups et corps. Barthes indicou o nexo entre ambos, uma verdadeira fusão, isto
é, síntese artística, obra de arte, e assinalou sua natureza:
le corps, si l'on peut dire, accumule sa dépense, la signifiance
prend l'emportement, mais aussi la souverainité d'une économie que va
se détruisant.32
Uma economia autodestrutiva faz lembrar as afirmações de Marx, à época de
Schumann, acerca da impetuosa acumulação capitalista e suas crises. Talvez aqui
Adorno e Barthes se unam, descobrindo um nexo social e histórico fundamental na
Kreisleriana. Para Barthes, a Kreisleriana é simultaneamente "fourmillement des
coups" e "corps en état de musique", de sorte que a música é apenas golpe,
assim como corpo, e corpo e golpe se fazem um em música. Exatamente o mesmo
processo de subjetivação que Adorno vislumbrava em alguns momentos da Neue
Musik, descortinando uma vez mais a posição histórica de Schumann.
Interpretação, execução, ritmo. Por detrás do convênio tonal, Barthes insiste
que a interpretação da Kreisleriana precisa expor "le réseau des accents", o
que acaba por levá-lo a afirmar a possibilidade da abolição da diferença entre
compositor, executor e ouvinte: basta apenas que, por entre essas figuras, os
acentos possam emergir. Tal interpretação possui duas faces. A primeira delas é
que não há intérprete possível para a Kreisleriana, em virtude da disjunção
radical de exigência técnica e inocência. A segunda diz respeito diretamente ao
ritmo, forma primeira da emersão dos golpes e choques. Antes mesmo dos
contrastes causados pelas intensidades, pelos movimentos ou por o que quer que
seja, estão os choques rítmicos. "Le rythme schumannien(écoutez bien les
basses)s'impose comme une texture de coups plus que de battements" 33. A noção
comum e estabelecida dos tempos e batidas é substituída pelos golpes; aquilo
que na música se limitava a um procedimento de ordenação do tempo, em casos
mais sofisticados de criação de uma temporalidade própria, é em Schumann também
algo extratemporal, que invade um domínio para além do tempo musical,
estruturante que é do discurso e transcurso musical. O golpe, que substitui a
batida do tempo, revela a experiência social da época; revela as intermitências
e tensões avassaladoras da interioridade, assim como a hostilidade agressiva do
mundo exterior.
Uma das formas mais atuantes dos golpes na Kreisleriana, a síncopa, foi
interpretada por Barthes: "de même il[Schumann]détruit la pulsion(jouons sur
les mots; disons aussi: la pulsation)de la douleur en la vivant sur un mode
pur, de même il exténue le rythme en généralisant la syncope"34. Mas, é preciso
acrescentar, a síncopa é apenas uma das formas de extensão e, no limite, por
distensão tamanha, de extinção do ritmo, como no caso terminal do final do
ciclo.
Como compreensão genérica, vale a formulação do próprio Schumann, quando
afirmava: "parece que a música tende novamente para seus primórdios, quando
ainda não estava pressionada pela lei de gravidade do compasso, e se eleva
autonomamente a um discurso livre, a uma pontuação poética mais elevada".35
Harmonia. Creio que se pode considerar a constelação tonal centrada em sol
menor como estruturante do ciclo. A tonalidade de sol menor aparece em seis das
oito peças; sua relativa maior, si bemol, aparece também em seis das oito. Como
Rosen enfatiza diversas vezes, a geração de Schumann considerava a relativa
menor ou maior como parte da tonalidade em ação; assim, sol menor/ si bemol
maior formam o núcleo do conjunto, compreendido como uma única coisa. A isso
acrescentam-se, então: ré menor (V), dó menor (IV). No entendimento de Rosen, o
que dá a unidade tonal é a quarta peça. O conjunto como um todo poderia ser
caracterizado como uma constelação ou "macrotonal architecture"36, como a
define Longyear , cujo centro está em sol menor/ si bemol maior, que opera na
direção da "mistura ou fusão das tonalidades"37. Uhde fala em "mudança de
tonalidade de uma maneira caleidoscópica"38. Rosen, sempre firmado em um
enfoque que se baseia na experiência da recepção como ponto de partida da
análise, defende que o procedimento de totalização da peça é a conjunção de
fragmentos naturalmente retomando a discussão acerca do fragmento pelos
românticos de Jena. Nesse sentido, ele entende que há em Schumann um
novo ponto de vista radical sobre a grande estrutura harmônica. As ambigüidades
rítmicas refletem uma mais profunda ambigüidade da estrutura. [...] A essência
da concepção de Schumann é a substituição da localização de um centro tonal
inicial por uma realização gradual: a definição de um centro de estabilidade
harmônica se torna parte de uma experiência progressiva da obra.39
Note-se que a estrutura profunda é entendida como relativa à harmonia, que em
alguma medida determina o aspecto rítmico, muito desenvolvido na Kreisleriana.
É paradoxal, entretanto, que as inovações e ousadias de Schumann não sejam
propriamente harmônicas, pois parece cabível dizer que os compositores
imediatamente anteriores e posteriores a Schumann foram mais ousados nos
desenvolvimentos harmônicos. De fato, o mesmo Rosen indicou uma direção de
desenvolvimento que seria levada adiante por todo o século, adentrando mesmo no
século XX, que a radicalizou, qual seja, uma interdependência muito forte entre
os diferentes parâmetros musicais.
Renunciar à força da oposição tonal pode ter eventualmente
enfraquecido a linguagem tonal, mas não enfraqueceu a música que, de
fato, adquiriu uma nova fonte de energia. [...]A hierarquia
estritamente definida das relações diatônicas foi negociada por uma
nova concepção de continuum cromático cujas harmonias, em uma
variedade estonteante, podiam fundir-se umas às outras em um
intercâmbio caleidoscópico de energia. Isso abriu as portas não
somente às novas possibilidades harmônicas, mas também a uma
concepção moderna e muito mais fluida de ritmo e tempo.40
À parte o elemento caleidoscópico 41, indica-se uma interdependência
estruturante entre ritmo, tempo e harmonia, na qual naturalmente está imbuída a
dimensão melódica e de timbre e que, como se viu, enfrenta e soluciona também o
problema da forma. Há, portanto, primórdio de uma organização mais integral, no
sentido de que essas diferentes dimensões desenvolvem-se em conjunto e de forma
interdependente. Destarte, o argumento (subsidiário, é verdade) de Adorno,
segundo o qual durante o período romântico a melodia tornou-se função da
harmonia, precisaria ganhar maior matiz. De modo bastante genérico, o
romantismo musical poderia ser caracterizado, a partir das indicações de
Adorno, como essa subordinação da melodia à harmonia. Isso porque o
desenvolvimento melódico devia obrigatoriamente limitar-se a um espectro sonoro
compatível com a harmonia que organizava aquela determinada passagem musical:
sons que aparecessem como "dissonantes" em um contexto específico estavam
interditos pelo contrato tonal. A melodia devia respeitar, e desse modo
reiterar, aquele número restrito de combinações sonoras dado pelo sistema
tonal. O que ocorreu, na interpretação de Adorno, no período do romantismo, foi
uma espécie de ajuste das duas dimensões entre si: a melodia ajustou-se a um
conjunto de sons que a harmonia oferecia, permitia e legitimava. A harmonia,
por seu lado, não permaneceu estática às necessidades do desenvolvimento
melódico, e diferenciou-se, isto é, assumiu diversidade e plasticidade maiores,
para que o desenvolvimento melódico pudesse ser enriquecido. No limite, a
melodia estava presa a um desenvolvimento melódico que pudesse ser harmonizado
sem criar dissonâncias problemáticas. Se é possível e adequado, contudo, falar
em um "intercâmbio caleidoscópico de energia" como resultado das operações
harmônicas (o que aponta para um certo uso da tonalidade), e se isso reverte em
outras dimensões musicais, ganha-se uma visada mais dinâmica da história da
música, e certamente situamos melhor uma obra como a Kreisleriana. Creio que
dissimulação, esvaecimento e indefinição harmônicos unívocos tratados acima
sob a rubrica da ambigüidade levam a uma espécie de Stillstand, de dialética
em estado de suspensão, "suspensão da lógica musical tradicional" 42.
Melodia e ritmo. O trato mais consciente dos diferentes parâmetros musicais
(altura, duração, intensidade, timbre) tem como resultado a percepção de
possíveis substituições e reforça o jogo de ambigüidades que caracteriza essa
música. A forma musical nasce precariamente dessas ambigüidades; precariamente
por conta da forma única, não mais um modelo que se deixa reutilizar. As formas
que tudo isso assume são variadas. Há uma enorme capacidade de mutação dos
motivos, que se deixam variar e impregnar dos mais variados caracteres; a
repetição, por vezes, toca a obsessão. "A concepção inovadora de Schumann
estava calcada em um senso mais amplo de ritmo, concebido como uma série de
ondas de energia [...]" 43. Isso realiza-se, na Kreisleriana, por meio dos
incessantes deslocamentos dos acentos, das síncopes, das antecipações, dos
atrasos, dos contratempos acentuados, tudo isso compreendido como elementos de
criação e movimentação de tensão. Os contrastes rápidos, inesperados,
surpreendentes, fortes, são uma marca inconfundível da peça; os deslocamentos
dos acentos mediante enfraquecimento dos tempos fortes e fortalecimento dos
tempos fracos resultam em um ritmo que é continuamente alterado e variado,
reforçado pelo uso do rubato. Também muito característico é o deslocamento do
baixo, lancinante na Kreisleriana, assim como o uso de hemiólias; especialistas
sempre falam das "characteristic metrical anomalies"44 nas peças de Schumann.
Harmonia e melodia encontram-se muitas vezes fora de fase, afetando a condução
das vozes e redundando em ambigüidades. Os adágios que concluem as peças 2, 4 e
6, assim como o coral da coda da sétima peça, são elementos de grande
destensionamento final, que paradoxalmente funcionam como elementos de tensão
no quadro do encadeamento das partes e na estrutura do todo.
Tonalidade, totalidade. O princípio da tonalidade, como é sabido, operou como
totalidade na música que vai de Bach a Schoenberg. No interior desses marcos
históricos, essa equação configurou-se, entretanto, de modos diferenciados.
Como isso se realiza na Kreisleriana? Na interpretação de Adorno, a categoria
de totalidade, que em Beethoven apontava para a configuração de uma sociedade
justa e remetia a um páthos de humanidade, em Brahms acabou por tornar-se mero
princípio de organização estético (ou seja, no arco histórico entre um e outro
ocorreu uma perda de conteúdo vinculante às formas musicais, que se
autonomizaram por completo e, nesse processo, perderam uma relação mais
imediata com as formas de existência social). Robert Schumann situa-se entre
ambos. Uma configuração, ou mesmo um aceno à sociedade justa já é algo, em sua
obra e seu tempo, desmentido pela realidade, pelo esgotamento dos impulsos mais
libertários e utópicos da Revolução Francesa, ainda tão vivos e atuantes em
Beethoven (por essa razão, a Marselhesa, em sua obra, é apenas eco). Contudo,
em Schumann a totalidade não se tornou um princípio de organização estético, e
nesse ponto suas faltas e dificuldades assinalam sua grandeza, e não o
contrário. A categoria de totalidade, em Schumann, não redundou na forma
rigorosa de Brahms este já impregnado e marcado pela resignação e pelas
impossibilidades posteriores a 1848 , senão que permaneceu tateante,
recalcitrante e ensombrecida. Jamais se configura com o ímpeto e entusiasmo que
encontrou na música de Beethoven, acenando para um público que pudesse realizar
as notas da Revolução. Retira-se para o domínio bem mais modesto, política e
socialmente, do interior e da província. No interior burguês, na sala de estar
com piano, e na cidade de província, sem corte mas também sem uma burguesia com
experiência cosmopolita e capital financeiro e que, portanto, não poderia
jamais ser capaz de compreender o teor da música de Schumann, que dizer
sustentá-la. Portanto, as dificuldades da forma em Schumann, sua renúncia ao
desenvolvimento dinâmico, são índices de sua verdade histórica e musical; a
forma do ciclo encontra aí ancoragem.
Nomenclatura. Novamente, foi Roland Barthes quem chamou a atenção para o fato
de que Schumann talvez tenha sido o primeiro compositor que, deixando de lado o
padrão da nomenclatura italiana para os movimentos, insistiu no uso do alemão.
Tal transformação quebrou a univocidade tradicional, pois suas nomenclaturas
referem-se tanto ao andamento o que, de resto, a utilização discriminada do
metrônomo já definiria , como ao estado de espírito. A interpretação
psicanalisante de Barthes vê aí uma irrupção da Muttersprache, compreendida
como "restitution déclarée du corps", ou seja, como uma das formas através das
quais aquele "corps pulsionnel" emerge na música e a configura.
Independentemente disso, há outras dimensões: o provincianismo, que insiste na
língua local o que evidencia como o provincianismo não é sempre e
necessariamente conservador, reacionário ou reativo, mas também pode ser, como
é o caso, progressivo ; a sinalização de que se trata, no final das contas, de
uma composição para muito poucos; a insatisfação com o padrão e a busca de uma
alternativa, sob o signo da expressividade. E, sobretudo, o amor à língua, a
inscrição de sua relação fundante com a língua na própria música. Uma forma
muito própria de apontar para aquela unidade da arte de que parti. Eis, em
grossas linhas, as tensões e interdependências que dão carne e osso à "trama
dos constrangimentos que viabilizaram e, num momento particular, estancaram a
atividade musical e a própria vida do compositor" 45.
(continua)
[1] Robert Schumann apud Thomas A. Brown, The Aesthetics of Robert
Schumann.Reprint,Westport:Greenwodd, 1975,p.162.
[2] Ernst Theodor Amadeus Hoffmann. Fantasiestücke in Callots Manier. Berlim:
Aufbau, 1994, p. 49; a versao original em E.T.A.Hoffmann. Schriften zur Musik -
Singspiele.Berlin: Aufbau,1988, p.23.
[3] Richard Wagner. Såmtliche Schriften und Dichtungen. 6a ed. Leipzig:
Breitkopf & Hårtel,s.d.[1930],vol.2, p. 56.
[4] Carl Dahlhaus. Die Idee der absoluten Musik. 3a. ed. Kassel: Bårenreiter,
1994,S.20.
[5] Carl Dahlhaus.Musikåsthetik.4a. ed.,Laaber:Laaber,1986, p.27.
[6] E.T.A. Hoffmann. Fantasiestücke in Callots Manier, pp.51-52; cf.E.T.A. Hoffmann.Schriften zur Musik - Singspiele. Berlin:
Aufbau,1988, p. 24,25.
[7] Wilhelm Wackenroder. Werke und Briefe.München: Hanser, 1984, p. 354.
[8] Robert Schumann. Schriften über Musik und Musiker.Stuttgart:Reclam,
1982,p.51.
[9] "Onde a música séria satisfaz seu próprio conceito,cada um dos detalhes
obtém seu sentido concreto da totalidade do decurso; a totalidade, por sua
vez,da relação viva das singularidades, que se contrapõem umas às outras, se
enlaçam, passam de uma à outra e retornam." Theodor W.Adorno.Einleitung in die
Musiksoziologie. Frankfurt/ M:Suhrkamp,1975,p.43. Vale indicar um exemplo,
entre muitos. Na última peça da Kreisleriana,na retomada da parte A, quando se
encerra o "Mit aller Kraft", o simples uso do pedal, sustentando o último
acorde, enquanto simultaneamente inicia-se o anacruse que compõe a melodia da
parte final, e ao mesmo tempo a sustentação do acorde por todo esse tempo na
linha inferior, sem falar na diferença das intensidades, essa permanência em
simultaneidade com o novo início, de sorte que tudo ainda soa, e ao mesmo tempo
inicia-se a retomada por detrás dos sons, e emerge logo a seguir: eis um
exemplo de procedimento composicional magistral, inclusive em sua simplicidade,
um ínfimo detalhe que articula a peça como um todo, impedindo uma fragmentação
que, não fosse ele, se imporia com força e, nessa altura do ciclo,certamente
teria como conseqüência um desequilíbrio da forma.
[10] Robert Schumann. Gesammelte Schriften über Musik und Musiker. Leipzig: G.
Wiegand, 1854, pp. 263- 264, reprint Wiesbaden: Breitkopf
& Hårtel,1985.
[11] Carl Dahlhaus. Klassische und Romantische Musikåsthetik,p.264.
[12] Carl Dahlhaus.Die Musik des 19. Jahrhunderts. Wiesbaden/Laaber: Athenaion/
Laber,1980,S.20.
[13] "Para o classicismo a fantasia tinha menor importância. As Fantasias para
piano em ré menor K.397 e em dó menor K.475 de Mozart são pequenos ciclos,
plenos de contrastes e compostos 'integralmente'. A liberdade formal da
fantasia é novamente perceptível na obra de Beethoven (op. 77 para piano,op.80
para piano,coro e orquestra); suas sonatas para piano op.27 nr.1 e 2 trazem o
subtítulo quasi una fantasia, pois seus movimentos contradizem os planos
construtivos usuais e os limites de seus movimentos começam a desaparecer. No
romantismo evidenciaram-se variados esforços na composição de fantasias: o
estabelecimento de relações temático-motívicas das partes singulares entre si,
em parte orientada por empréstimos simultâneos da forma da sonata (Wanderer-
FantasieD.760, de Schubert); o encadeamento de peças de fantasia singulares e
acabadas em um ciclo (Kreisleriana op. 16, de R. Schumann) e o rebaixamento da
fantasia em pot-pourri na música de salão." Brockhaus Riemann Musiklexikon. 2a.
ed., s.l.: Atlantis-Schott, 1998,vol.2, p.40. "Schumann deixou a palavra
fantasia aparecer de formas variadas até mesmo no título de suas primeiras
obras para piano. As Kreisleriana chamamse 'Phantasien für das Pianoforte'; o
op.12 são as 'Phantasiestücke',o Faschingsschwank são 'Phantasiebilder', mas
Schumann só escreveu uma '- Phantasie':seu opus 17." Karl H.Wörner. Robert
Schumann. München/- Zürich:Piper,1987,p.121.Além disso, pode-se acrescentar as
Drei Phanta-siestücke op. 111.
[14] Carl Dahlhaus.Die Idee der absoluten Musik,p. 109.
[15] Arnold Hauser.História social da literatura e da arte. 3a ed. São Paulo:
Mestre Jou,1982, vol.2.,p.830.
[16] Thomas Nipperdey. Deutsche Geschichte 1800-1866. Bürgerwelt und starker
Staat. 5a ed. rev. München: C. H.Beck,1991, pp.400-401.
[17] Carta de Schumann à mãe, de 15/12/1830.In:R.Schumann,Jugendbriefe. 2a. ed.
Leipzig: Breitkopf & Hårtel,1886, pp. 136-137.
[18] Carl Dahlhaus.Die Musik des 19. Jahrhunderts. Wiesbaden/Laaber: Athenaion/
Laber,1980,S. 113.
[19] Robert Schumann.Schriften über Musik und Musiker (Reclam), p.47.
[20] "As repetições, os ritmos defasados, o súbito aparecimento inexplicável
das vozes na estrutura polifônica essas características do estilo de Schumann
não somente operam em conjunto, mas também em contradição entre si." Charles
Rosen. A geração romântica. São Paulo: Edusp,2000,p. 914.
[21] O epigonismo é um problema da época,como se vê p.ex.no romance de Karl
Immermann, Os epígonos,[20] "As repetições, os ritmos defasados, o súbito
aparecimento inexplicável das vozes na estrutura polifônica essas
características do estilo de Schumann não somente operam em conjunto, mas
também em contradição entre si." Charles Rosen. A geração romântica. São Paulo:
Edusp,2000,p. 914.
[22] O epigonismo é um problema da época,como se vê p.ex.no romance de Karl
Immermann, Os epígonos, bem conhecido de Schumann.
[23] Theodor W. Adorno. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt/M: Suhrkamp,
1978, p.47.
[24] Idem,pp.61-62,onde também se encontra a citação de Egon Wellesz.
[25] Idem,pp.144-145.
[26] Charles Rosen. A geração romântica. São Paulo:Edusp,2000,p. 918.
[27] Idem,p.305.
[28] Idem,p.883.
[29] Cf.Thomas Nipperdey.Deutsche Geschichte 1800-1866. Bürgerwelt und starker
Staat, pp.548-9. [ 29] Roland Barthes.Oeuvres complètes.
Paris:Seuil,1995, vol. 3, p.167.
[30] Idem, ibidem; também pp. 295- 6 e 1.049, onde se lê: "c'est le règne de
l'intermezzo, notion assez vertigineuse lorsque'elle s'étend à toute la musique
et que le moule n'est vécu que comme une suite épuissante (même si gracieuse)
d'interstices."
[31] E. T. A. Hoffmann. Fantasiestücke in Callots Manier,p. 14.
[32] Roland Barthes.Oeuvres complètes, vol. 3, p.304, modulando Bataille.
[33] Idem,p. 1.050.
[34] Idem,p. 1.051.
[35] Robert Schumann.Schriften über Musik und Musiker.Stuttgart,Reclam, 1982,p.
39.
[36] Rey M.Longyear.Nineteenth-Century Romanticism in music. Englewood
Cliffs,NJ:Prentice Hall,1988,p.99.
[37] Charles Rosen. A geração romântica. São Paulo:Edusp,2000,p.920.
[38] Jürgen von Uhde. Beethovens Klaviermusik.Stuttgart:Reclam,1980, vol. 1, p.
357.
[39] Charles Rosen. A geração romântica, p. 326; cf. também p.
345: "com Chopin e Schumann,as articulações [harmônicas] se encontram
freqüentemente dissimuladas a ponto de desaparecerem. [...] o senso de oposição
tonal polarizada perdeu sua importância."
[40] Charles Rosen. A geração romântica, p.360.
[41] Também ele, ao que parece, de caráter epocal;cf.Charles Baudelaire.
Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1968, p. 552;Walter Benjamin. Gesammelte
Schriften. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1991, vol. I.2,p.630.
[42] Idem,p.859.
[43] Idem,p.168.
[44] Thomas A.Brown.The Aesthetics of Robert Schumann, pp. 127, 129.
[45] Sergio Miceli."Chave para ouvir Mozart", Folha de S.Paulo, Jornal de
Resenhas, 1 maio 1995.