Economia, democracia e justiça em Angola: o efêmero e o permanente
"E assim, não podendo fazer com que o justo',
fosse forte', transformou-se a força' em justiça'".
Blaise Pascal
Aluta de libertação angolana no século XX deve ser enfocada, com sua
especificidade própria, como intrinsecamente ligada à evolução das resistências
provocadas pela expansão do sistema capitalista mundial. Nesta perspectiva,
reduzir esta luta a uma dimensão puramente política significa limitá-la à
conquista da independência, às disputas pelo poder político e menosprezar seu
alcance. A luta de libertação nacional angolana tem, em sua base, um rico
conteúdo. Sua edificação é, antes e acima de tudo, uma questão de identidade
cultural, elemento essencial e permanente para a edificar suas instituições
próprias, fundamentado no reconhecimento das diferenças, e de elaborar um
projeto social, nacional e popular baseado no diferendo. Ela se desenvolve a
partir do reconhecimento dos interesses e das opiniões específicas do povo
angolano, e da necessidade de um debate com a participação de todos, excluindo-
se os que compactuam com interesses exteriores à nação, sobre as formas de
criação de riqueza (relações sociais e econômicas, forças produtivas) e sobre o
marco referencial desta organização (relações políticas e exercício do poder).
A democracia é, provavelmente, a forma de organização mais conveniente à
concretização da formação social angolana, mas não deve ser confundida com uma
ordem particular e "autônoma", o Estado. Ela é, principalmente, uma
forma e um princípio que organizam e articulam todos os elementos que compõem a
formação social angolana, de forma aberta e não secreta, permitindo a
participação de todos, totalmente imbuída da preocupação de partilha e de
solidariedade, de justiça social. Ela diz respeito a cada ordem e a todas as
ordens ao mesmo tempo.
Da Importância de Angola
O regime colonial português encarnou o encontro entre as diferentes formações
sociais africanas e o nascente capitalismo português e europeu. O final do
século XIX e o começo do XX marcam um período de articulação dessas formações
não-capitalistas com a dominação do capitalismo europeu. De forma artificial, e
segundo interesses regionais das burguesias portuguesa, alemã e britânica na
região, constitui-se então um espaço geográfico, político, econômico e social
denominado Angola. Mas, no período entre as duas grandes guerras e, sobretudo,
após 1945, vai surgir um novo parceiro, a burguesia americana, cuja presença em
Angola não cessará de crescer até 1975, e principalmente depois.
De fornecedora de escravos, Angola passa a produtora de matérias-primas
(diamantes, ferro, petróleo, manganês, urânio...), produtos agrícolas (açúcar,
algodão, café, sisal...) e provedora de força de trabalho barata. Para a
produção da burguesia portuguesa, Angola representava, seguramente, um mercado;
mas, para o capitalismo mundial, Angola era uma reserva de matérias-primas e de
força de trabalho. É somente a partir dos anos 1960-1970, com a maior abertura
aos investidores portugueses e estrangeiros e uma certa industrialização, que
Angola se torna um mercado interessante para a produção do capitalismo mundial.
Dessa forma, a dominação das indústrias de exportação acentuou a dependência da
colônia em relação ao capital mundial (Torres, 1983:1102, 1107) e a burguesia
portuguesa teve então de ceder maior espaço às burguesias americana e européia.
A industrialização e o desenvolvimento da empresa capitalista em Angola
estavam, dessa forma, ligados ao capital financeiro português e mundial. Frágil
em relação aos seus concorrentes, a burguesia metropolitana portuguesa se
agarrava às suas colônias: com raríssimas exceções, a subcontratação, a joint-
venture e a intermediação (ver nota 5) tornam-se as únicas formas nas quais a
burguesia colonial podia se refugiar. As colônias, e Angola em primeiro lugar,
permitiam-lhe realizar uma certa acumulação, ao mesmo tempo em que constituíam,
com a imigração para a Europa e para a América, um meio ideal para solucionar o
problema da mão-de-obra excedente. A recusa da ditadura portuguesa em conceder
a independência a Angola era, antes de tudo, ditada pela necessidade de
modernização do capitalismo português.
Mas a eclosão da revolta nacionalista e o engajamento dos movimentos de
libertação nacional em uma guerra aberta contra o capitalismo colonial tornam-
se um obstáculo àquela estratégia, pois representam uma tentativa de
reapropriação da história angolana. A vontade de implantar um regime
neocolonial revelou-se aparentemente um fracasso, não devido à industrialização
de Angola, mas basicamente pela própria descolonização (Ferreira, 1985:107).
Entre 1969-1970, a burguesia portuguesa procura, então, financiar a exploração
acelerada da colônia, aumentando ao máximo a valorização dos recursos
angolanos. As taxas de crescimento dos principais produtos minerais (diamante,
petróleo, ferro) e de certos produtos agrícolas (quarto produtor mundial de
café) alcançam cifras recordes. As indústrias de transformação e os serviços
também dão um salto significativo, bem como o setor financeiro, em que o
capital português se alia ao capital mundial, em particular ao americano e ao
britânico.
A industrialização de Angola durante aquele período não visava, pois, o
desenvolvimento autocentrado do capitalismo colonial, mas sobretudo as
exigências "internas e externas, políticas e econômicas, da sociedade
central metropolitana", como sublinha Torres (1983:1118). O custo da
guerra colonial, o "gosto" por um certo capitalismo de rendas e os
esforços financeiros exigidos para este desenvolvimento precipitado favoreceram
a implantação da burguesia mundial em Angola. A intervenção da África do Sul
permitiu à burguesia colonial integrar-se progressivamente no espaço
capitalista sul-africano e objetivar uma certa autonomia em relação à burguesia
portuguesa. Esta evolução dos acontecimentos e a política portuguesa de
povoamento branco constituíam um dos elementos que favoreceram a estratégia
sul-africana na região, ameaçando a construção da nação angolana.
O modelo de desenvolvimento de Angola fazendo parte da zona dominada pela
África do Sul, sempre na ordem do dia, estaria, assim, de acordo com a
estratégia total do apartheid após 1975, que se traduz pela dominação de uma
burguesia branca com base na criação de um mercado interno com exploração de
uma força de trabalho negra marginalizada. A integração deste espaço na região,
principalmente em termos de capital e de trabalho, era e permanece uma
necessidade do capitalismo sul-africano. Seu anticomunismo visceral não era
mais que um verniz ideológico, da mesma forma que o apartheid não se reduz a
uma questão de cor de pele. Essas políticas refletiam uma estratégia racional
do desenvolvimento do capitalismo sul-africano.
Mesmo que possa parecer paradoxal, a luta pela construção da nação angolana
recoloca o país no seu verdadeiro contexto, a África Austral. Não mais se trata
de escolher entre o colonialismo ou o neocolonialismo português e a libertação
nacional enquanto conquista política, mas sim entre uma integração mundial
maior ou uma integração regional. A integração mundial significa a
recolonização de Angola, seja através de mecanismos regionais sob controle sul-
africano, seja pelo controle direto dos centros do sistema mundial, Estados
Unidos da América à cabeça. Em uma perspectiva contrária, a integração regional
exigiria um compromisso segundo os interesses nacionais e sociais dos países da
África Austral, em um esforço de partilha e de comunhão de bens e de recursos.
Esse compromisso, condição de passagem da conquista do poder político à
libertação social e da possibilidade de fazer progredir a construção da nação
democrática, não diz respeito unicamente a Angola, mas a todas as nações da
região.
E da Independência de Angola
Às vésperas de 11 de novembro de 1975, Angola representava uma certa esperança
para o Continente, pois a luta por sua independência dava continuidade a uma
"tradição" iniciada outrora pela luta anticolonial e pela
constituição dos movimentos de libertação. Entretanto, o movimento nacionalista
angolano teve de fazer face à ditadura de Salazar, sustentada pelas grandes
"democracias" do centro, reunidas em torno da OTAN. Este apoio e este
alinhamento do mundo ocidental ' com algumas exceções ' mal disfarçam os
interesses de cada um desses Estados. Com suas terras férteis, suas matérias-
primas, seus recursos naturais, sua mão-de-obra barata e sua posição
estratégica em relação ao Continente ' o porto de Lobito e a ferrovia de
Benguela ' a Angola colonial se revela um botim capaz de suscitar a "mais
santa cobiça"!1
Depois de 1945, assistia-se ao despertar dos africanos, despertar que marcará a
origem de movimentos e instituições de caráter sociocultural e político que
apresentarão como resultante nos anos de 1950, em Angola, a criação de dois
movimentos de libertação. Um é dirigido pela pequena burguesia urbana que se
radicalizou e que transformou as reivindicações culturais, motor de uma idéia
nacional definida pelo espaço unificado pelo capitalismo colonial, em uma luta
armada com objetivos econômicos, políticos e sociais. Esta luta, fruto do
insucesso de uma tentativa de diálogo com o Estado português, apelava à
participação de todas as etnias que compõem o território colonial, mas
principalmente à participação do campesinato angolano e do embrião de
operariado das cidades. O outro é dirigido por uma fração
"aristocrática" do Norte, em parte exilada no Congo (Zaire) e
voltada, pelo menos em sua fase inicial, para um passado histórico do qual
retira sua legitimidade. Os camponeses do Norte e os emigrados do Zaire vão
constituir seus efetivos. Mesmo que este movimento tenha reivindicado
inicialmente a reconstituição do antigo reino do Congo, nos anos 60 ele vai se
apresentar como um movimento nacional, apesar de sua base social ter
permanecido imutável.
Durante a explosão da guerra colonial, na década de 1960, surgiu um terceiro
movimento político, reivindicando também para si a condição de nacional.
Entretanto, não se pode determinar uma base social precisa quanto à sua origem.
Este movimento surge, antes, da vontade de um dirigente dissidente de um outro
movimento. Depois de ter criado seu núcleo central de direção, recrutaria sua
base principalmente entre as etnias do Centro-Sul. Um quarto movimento político
vai se manifestar no enclave de Cabinda, mas sua natureza, sua forma e seu
conteúdo o "excluem" da nação angolana, que é por ele combatida.
O que há de comum entre estes movimentos é também o que os separa: todos são
dirigidos pelas diferentes frações das elites angolanas, sejam elas nacionais
ou locais, tendo, por conseguinte, diferentes projetos. Nas vésperas da
independência, algumas dessas elites recorreram com freqüência às clivagens
étnicas e raciais, na esperança de compartilhar o poder nacional em uma
eventual negociação com a potência colonial ou de fazer secessão e reconstituir
"seu território".
A formação social angolana é o resultado da ocupação portuguesa e da imposição
do capitalismo colonial como forma dominante de organização das relações
sociais de produção. Esta ocupação foi exercida em um espaço econômico, social,
político e cultural concreto. Marcado pela diversidade e pela diferença, este
espaço é definido geográfica e juridicamente pelo direito constitucional
português, pelos tratados celebrados com Portugal e pelo direito internacional.
No entanto, é recente essa formação social angolana. Heimer (1990) situa sua
constituição entre o fim do século XIX e o fim do primeiro quartel do século
XX. Trata-se de uma formação social inacabada, pois a sociedade colonial se
impôs às sociedades africanas de maneira muito lenta. Por um lado, a
consolidação da hegemonia política da sociedade colonial não se concretiza
senão no século XX graças ao desenvolvimento do Estado local, de seus aparelhos
e de suas funções. Por outro lado, a integração econômica das sociedades
africanas à lógica capitalista da sociedade colonial, com sua generalização da
propriedade privada e do mercado, a circulação da moeda e a
"proletarização do campesinato", não se acelera senão a partir do
final da década de 1950.2
A noção de formação social angolana expõe à luz vários elementos essenciais à
evolução da Angola independente, como o desenvolvimento da pequena burguesia
angolana, a construção da nação angolana e o povo. Esta pequena burguesia
deveria desempenhar o papel de correia de transmissão e de ligação entre a
sociedade colonial e as sociedades africanas. Entretanto, um tal papel,
conseqüência de uma política de assimilação e de uma política colonial que
impediu a formação de uma burguesia angolana, criou, desta forma, seu
contrário. Pelo seu conhecimento de uns (racionalidade e tecnologia
capitalistas) e de outros (cultura, aspirações e necessidades populares), a
pequena burguesia ocupa uma posição que lhe permite mediatizar um projeto
nacional. Ela é fundamental para a reprodução do sistema, ao mesmo tempo em que
se transforma em seu coveiro, uma vez que deveria assumir a organização da
nação.
A construção da nação angolana exige a unificação e a organização do espaço
herdado do capitalismo colonial e a integração das diferentes sociedades
africanas, tendo por base as suas diferenças. A nação é uma condição sine qua
non da definição de uma formação social angolana acabada. Ela compreende todo o
território de Angola no momento de sua independência (compreendendo Cabinda),
todas as etnias e todas as raças que compõem o povo angolano. A nação significa
que o povo angolano é chamado a participar plenamente na definição de seus
interesses, de suas necessidades e dos meios para obter suas satisfações e sua
defesa.3 Este projeto nacional deve ter como base aquilo que une o povo
angolano: sua história comum e suas características específicas, o pluralismo
cultural e lingüístico, a produção e distribuição da riqueza, a ajuda mútua e a
solidariedade. Dessa forma, os interesses nacionais não devem dividir ou
separar a comunidade nacional, nem criar desigualdades econômicas e sociais
inaceitáveis para nenhum componente da nação, seja ele qual for.
Sem o povo não existe nação, e ainda menos projeto nacional. Deve- se,
entretanto, distinguir o projeto de uma classe social angolana do projeto de
nação. Ambos podem se cruzar, dependendo do momento histórico, mas são, na
maioria das vezes, distintos, visto que o povo é o conjunto de cidadãos e não
um grupo determinado. Este conjunto corresponde a uma coletividade mais ou
menos estreitamente associada e considerada em referência ao território que
habita ou do qual é originária, ou seja, a nação angolana. Isso implica a posse
comum de um legado histórico e a vontade de viver juntos, de partilhar não
apenas a herança do passado e, por extensão, o colonialismo português mas
também o futuro. A nação na qual se insere o povo angolano deriva de uma
vontade comum de constituir uma sociedade política autônoma,4 posta a seu
serviço. O povo está acima do Estado, pois este não é mais que uma forma entre
outras de organizar-se a defesa dos direitos do povo contra o abuso dos
projetos individuais das classes sociais angolanas, aliadas a interesses
estrangeiros. A relação entre as sociedades civis e a sociedade política
representa, no entanto, o cerne da possibilidade de um projeto nacional e
popular, condição da construção de uma formação social angolana a ser
alcançada. A pequena burguesia, a maioria camponesa e os trabalhadores
angolanos formam o povo e o conjunto que deve definir os interesses nacionais.
As Dominantes Sociais da Democracia
Desde a independência, a questão do desenvolvimento econômico tem servido de
desculpa ideológica às elites dirigentes no centro do sistema mundial, para
restringir as legítimas aspirações do povo angolano por uma vida melhor. Por
outro lado, dois países, os Estados Unidos da América e a racista África do
Sul, que não reconheciam a independência de Angola, escolheram primeiramente o
caminho da agressão militar. Seu furor destrutivo os terá conduzido a uma
aliança com um movimento de libertação e a uma guerra extrema contra o regime
angolano, causando maior desgaste que a guerra colonial, tanto no nível da
perda de vidas humanas, quanto em nível de destruição das infra-estruturas
econômicas e sociais (ECA-UN,1989).
Da escravidão ao trabalho forçado, da ausência de liberdade e de direitos
políticos, sociais e econômicos aos massacres, a história colonial angolana
está marcada pelo selo da barbárie e dos abusos cometidos pelo Estado colonial,
pelos colonos e por forças políticas angolanas. Mbemba (1990) faz notar que na
África isto tem sido constantemente feito em nome da democracia e dos
imperativos econômicos. Os regimes políticos africanos constituem, de uma forma
geral, o prolongamento dos regimes coloniais, caracterizados por uma dominação
econômica estrangeira bastante acentuada.
Esta situação se encontra embutida em um longo processo que caracteriza a
formação e o desenvolvimento do sistema mundial, e daquilo que Serge Latouche
chama de "ocidentalização" do mundo:
Ao se fazer a história das batalhas, escreve Claude Maurel, o
colonialismo fracassou. Ele se contentou em fazer a história das
mentalidades para se aperceber que esta é a maior vitória de todos os
tempos. A mais bela vinheta do colonialismo é a farsa da
descolonização... Os Brancos estão por detrás das cortinas, mas
persistem como produtores do espetáculo (Latouche, 1989:8).
As elites dirigentes angolanas faliram em sua tarefa de construção da nação e
fizeram malograr um primeiro encontro importante com a História. Depreciaram as
energias, as aspirações e a solidariedade populares construídas pela conquista
da independência e para quem certamente o projeto era aquele de uma sociedade
mais justa e mais igualitária. Mas em vez da ruptura necessária, eles se
"intermediaram",5 preferindo garantir o essencial dos privilégios
neocoloniais das forças metropolitanas, em uma espécie de contínuo histórico.
Mas a história não é linear. Portanto, não é de excluir a existência em Angola,
durante os últimos vinte anos, por exemplo, de setores das elites dirigentes
"populares e nacionalistas" que tentaram realizar um determinado
nível de ruptura, ou que o povo angolano desistiu de suas reivindicações.
Nenhuma potência colonial e neocolonial preocupou-se com a sorte da democracia
na África, até os anos 80. Pelo contrário, elas se têm mostrado ansiosas por
preservar laços com os ditadores de qualquer índole, e quando uma das elites
intermediadoras não faz mais negócios, essas potências utilizam todos os meios
à sua disposição ' golpes de Estado, por exemplo ', para substituí-la por uma
outra mais conforme. Quando se sentem ameaçadas por reivindicações populares,
as elites dirigentes africanas apelam então àquelas potências que não
economizam meios repressivos, incluindo o desembarque de forças militares.
Constata-se, porém, que os povos que formam Angola, verdadeiros
"deserdados e condenados", não interessam nem a uns nem a outros.
Após uma guerra e uma onda de preocupação pelos "direitos do homem",
principalmente os políticos, eis que estes mesmos Estados do centro se
transformam nos arautos da democracia e decidem impô-la em Angola! Graças ao
desmoronamento do comunismo europeu, o Ocidente descobriu, maravilhado, que a
democracia, considerada como um valor seu, alcançou um status científico e
político na medida dos seus sonhos. A democracia é um "valor universal e
natural", o remédio certo contra o mal de que sofre o regime angolano.
Este mal é político. O nacionalismo, a libertação nacional e a justiça social
passam a ser encarados como obstáculos à realização da felicidade do povo
angolano, quando na verdade o destino do povo angolano foi sempre a preocupação
menor dos bush, dos clinton, dos major, dos mitterand ou dos chirac. A
hipocrisia não se detém aí...
Os missionários se prestam a fazer as lições e as moralidades democráticas,
acompanhados pelos especialistas em participação popular (as ONGs), pelos
especialistas em direito constitucional e "democrático", seguidos
pelos mestres da economia livre e dos senhores do mercado. Em um ponto todos
estão unânimes: o casamento entre o mercado, a propriedade privada, a livre
empresa e a democracia é o único remédio natural e possível para Angola. Como
na antiga época colonial, todos se lançam, mais uma vez imbuídos de seu eterno
espírito paternalista, ao assalto das regiões angolanas, selvagens e atrasadas,
onde seres ignorantes e primitivos os recebem como salvadores!6Durante uma
entrevista ao jornal francês Le Monde (14/12/90:4), o Cardeal Nascimento
afirmou que:
Os amigos de Angola amam as riquezas do país muito mais que seus
habitantes: se Angola tivesse menos ouro, menos petróleo, menos
algodão, menos diamantes ter-nos-iam deixado em paz [...]. O mais
importante é pôr um ponto final à guerra. Sem a guerra não mais
teríamos a necessidade de mendigar.
Todos se preparam para o grande dia. Financiarão as eleições e providenciarão
as urnas, controlarão os eleitores, verificarão os direitos dos cidadãos
angolanos à participação, aconselharão sobre o que deve ser a democracia ' tudo
financiado, já há muito tempo, por partidos políticos que escolheram. Após o
colonialismo, o povo angolano chegaria, então, a uma civilização pensada e
organizada para ele. Civilização que outros, em outras partes, já destinaram à
recolonização. (cf. Lique, 1991:13-15; Cattaghy (1991); Harbeson e Rothchild,
s/d: 39-68)
A Sombra da Economia sobre a "Democratização"
Esta mudança de atitude política das potências do centro, sobretudo dos EUA, em
relação a Angola, está ligada, em parte, à sua debilidade econômica. Da
articulação de uma ordem oficial a uma desordem "informal", hoje o
sistema mundial atravessa um período de desordem mal gerenciada e mal
controlada. O sistema mundial vem se modificando de um período para outro mas,
por razões estruturais (seu lugar no sistema) e políticas (a intermediação de
suas elites e a guerra de agressão conduzida pelos EUA e pela África do Sul),
Angola não se ajustou.7 Em nossos dias, a economia internacional caracteriza-se
por uma "intensificação das trocas comerciais" entre os países do
centro e uma "mundialização" e "interpenetração de
capitais" (Amin, 1991:8), pela prestação de serviços e pelas indústrias de
ponta que vêm massivamente se valendo do conhecimento. A RST (Revolução
Científica e Tecnológica) permitiu aos países centrais aumentarem
consideravelmente a parte de produção de bens sintéticos, mais flexíveis e mais
versáteis que os produtos tradicionais, setor em que os africanos periféricos
ainda podem esperar ocupar um lugar. Com baixos índices de produção e de
acumulação de capital e uma dívida substancial, aos quais vêm se incorporar os
efeitos perversos da guerra, Angola se afunda em uma extrema dependência do
mundo exterior, contado apenas com um único produto, o petróleo.
Visto sob este aspecto, Angola teria "perdido" sua importância. A
queda da URSS e dos países do Leste europeu faz diminuir seu valor geopolítico
e militar. Entretanto, ainda que mais vulnerável às pressões e dominações do
centro, Angola está, de uma forma ou de outra, inserida na economia mundial e
submetida à sua lógica. Os Estados do centro manifestam um certo interesse e
continuidade em preservar a reserva que Angola pode representar, em se tratando
de matérias-primas e de força de trabalho, ao preço da manutenção da
polarização do sistema e da miséria extrema dos camponeses e dos trabalhadores
angolanos.
A crise econômica se eterniza e abala, de igual forma, tanto um pólo quanto
outro. É uma crise do sistema mundial: "Trata-se de uma crise geral do
modelo de acumulação no sentido de que a maior parte das formações sociais do
Leste e do Sul são incapazes de assegurar uma reprodução ampliada e às vezes
também uma reprodução simples" (Amin, 1991:11).
Daí a necessidade de restruturar o conjunto do sistema, movimento que provoca a
desvantagem visível, a desordem que o caracteriza e a ineficácia de certos
mecanismos de regulação econômica (o mercado) e de regulação política (os
mecanismos de estruturação da hegemonia mundial). Ao mesmo tempo, os Estados
Unidos e a sua posição hegemônica, econômica e financeira (Cumings, 1991:205-6)
devem ter em conta a força de antigas potências, uma na Europa (Alemanha), a
outra na Ásia (Japão), com as quais deveria compor a direção da economia
mundial.8 A Guerra do Golfo ilustrou até que ponto a posição americana está
abalada. Cada vez mais seu papel se resume ao de gendarme do sistema mundial,
porque sua potência militar segue inconteste (Chomsky:1991), o que não
significa declínio do seu poder econômico e financeiro.
No outro pólo, a lógica de ajustamento estrutural se inscreve na procura de
soluções para a acumulação de capital e procede à imposição do mercado como
mecanismo de regulação e de unificação do sistema. Onde ainda possa existir
possibilidades de resistência, mesmo que ínfimas, a imposição da
"democratização" é um elemento da "geocultura", daqueles
"quadros de referência cultural no interior dos quais o sistema mundial
opera" (Wallerstein, 1991:11). Isto faz parte de um longo movimento
histórico que visa, a cada etapa, maior integração das periferias à lógica do
centro:
O Ocidente fez mais que modificar seus modos de produção, ele
destruiu o sentido de seu sistema social ao qual esses modos estavam
fortemente aderidos. Desde então, o econômico tornou-se um campo
autônomo da vida social e uma finalidade em si mesmo. As velhas
forças onde predominava o ser mais, foram substituídas pelo objetivo
ocidental do ter mais. (Latouche, 1989:27)
Para o Banco Mundial e para o Fundo Monetário Internacional a
"democracia" estaria melhor servida se Angola aplicasse seus
programas de ajustes, cujo objetivo principal é o de reforçar o mercado em
relação ao Estado. Segundo essas instituições, a privatização da propriedade
pública é, por excelência, a garantia do pluralismo, assim como um mercado mais
livre é a certeza da descentralização de decisões, da multiplicação de centros
de poder e, por conseguinte, do fortalecimento da "sociedade civil"
(nesse sentido, sociedade civil é sinônimo de sociedade "burguesa").
Entretanto, esses programas ampliam, na maioria das vezes, a inflação e o
desemprego, ao mesmo tempo em que controlam os salários, reduzem as fontes de
financiamento e cortam os subsídios. Como conseqüência, a maior parte dos
ganhos dos cidadãos angolanos diminuíram em termos reais: 40% deles vivem
abaixo do nível de pobreza absoluta, o que leva a um aumento do setor informal
e ao mercado paralelo (Morais, 1990). A esta queda real dos ganhos veio se
juntar o agravamento dos problemas sociais "crônicos" da economia, da
desnutrição, das mortes prematuras e do desespero. Para estes cidadãos
angolanos, o ajuste estrutural assemelha-se a um massacre, e não ao reforço da
sociedade civil. Rapidamente se dão conta de que mulheres e crianças são as
primeiras vítimas destes programas. O Unicef prega abertamente um "ajuste
estrutural com face mais humana" (Pearce, 1989). A necessidade de
"ajuste" da economia angolana certamente não está em pauta, dado o
êxodo massivo dos quadros portugueses quando da independência, os males
causados pela guerra e as políticas econômicas após 1975 (Martin e Johnson,
1989; Lubati, 1989; ECA-UN, 1989). Isto explica, em parte, a gestão deficiente
e desastrosa da produção e da distribuição nacionais. Os problemas se situam,
antes de tudo, no nível das soluções que o Banco Mundial e o FMI querem impor
(Africa South, 1990).
A especificidade angolana, relacionada ao clima de guerra e às despesas
militares daí decorrentes, são conseqüências de uma política cega por parte dos
Estados Unidos e da África do Sul, tanto quanto da cobiça das elites políticas
angolanas. A dispensa de 40 a 50% dos empregados públicos de Angola não pode
ignorar o fato de que, na maioria das vezes, o Estado é o único empregador
possível. Portanto, é fundamental ativar o sistema de produção, criar programas
de formação da força de trabalho e de proteção de seus direitos sociais, pois a
preservação de uma reserva de mão-de-obra não qualificada aumenta a miséria.
Por isso, a privatização das empresas públicas angolanas representa um embuste,
pois não reforça a propriedade, a produção e o consumo nacionais para o
desenvolvimento de um mercado autocentrado. Ela deve favorecer o investimento
produtivo, nacional e internacional, e a criação de mecanismos nacionais de
acumulação de capital, em lugar da compra e venda de serviços e de equipamentos
muitas vezes inúteis. Esta privatização não deve levar Angola a uma renovada
dependência econômica em relação aos centros. A nova ordenação do sistema
mundial constitui uma renovação dos Pactos Coloniais e introduz, por intermédio
da privatização, o domínio dos centros sobre as fontes de recursos naturais da
periferia, mesmo onde isso já não era mais uma realidade ou corria o risco de o
deixar de ser.
O "Estado" angolano caracteriza-se pelos poucos serviços que oferece
a seus cidadãos, tanto nas áreas social e econômica quanto na cultural, apesar
dos esforços realizados após 1975. Comparados ao regime colonial, estes
serviços estão realmente "democratizados", mas se os comparamos às
reais necessidades do povo angolano, damo-nos conta de que está longe de
alcançar seus objetivos. O ajuste estrutural não apenas evidencia este
resultado mínimo, como acentua o diferendo aumentando as desigualdades e a
injustiça dessa nova distribuição. Defrontamo-nos, assim, com uma contradição
paradoxal! Em uma situação de desenvolvimento débil das forças produtivas e de
pobreza, a distribuição da riqueza nacional é desigual, menos desigual, porém,
que quando o desenvolvimento conduz a uma nova riqueza. Isto põe em destaque a
importância dos mecanismos e das modalidades de distribuição da riqueza
nacional e das transferências desta mesma riqueza de Angola para os centros e a
urgente necessidade de as redefinir segundo os interesses nacionais.
Em tal conjuntura, a democracia é uma ilusão! Contam apenas a aparência e o
formalismo. O povo angolano torna-se um elemento passivo da vida social. A
qualidade é substituída pela quantidade, prelúdio do desenvolvimento e da
ampliação da reificação.9 E é isso que consolida, por um lado, a tendência à
uniformização de todos os aspectos da vida no interior do sistema mundial
(integração/racionalidade) e, por outro lado, a tendência à redução da
consciência das sociedades civis a um simples reflexo. Donde se estabelece a
lógica da reificação: ampliar as bases da acumulação privada do capital impondo
a "idolatria do dinheiro". Tudo é mercadoria, tudo está à venda. O
que leva simultaneamente ao aumento das possibilidades de realização de lucro e
das condições de edificação de um consenso ideológico em torno dos valores
econômicos, em particular da exploração da força de trabalho e do exercício da
governabilidade.
Mesmo que a universalização do modo de desenvolvimento, segundo o centro do
sistema mundial, seja claramente marcada por um determinismo econômico, a nação
angolana deve definir seus interesses e sua escolha nesse contexto. Após a
independência, os Estados centrais intervêm regularmente na vida econômica,
política e cultural de Angola para estabelecer e para preservar as condições de
reprodução do sistema. Mas esta intervenção não é exclusividade de Angola. Na
África, esses Estados têm enviado as forças militares locais para se livrar das
elites locais que se tornaram incômodas. Porém, mais sutil e freqüentemente, os
centros forjaram os mecanismos econômicos, financeiros e comerciais que ligam
inexoravelmente os países africanos às metrópoles, que corrompem o poder
político (Péan, 1988; Couvrat e Plesse, 1988) e provocam danos ecológicos
consideráveis (Bouguerra, 1985; Vidal, 1992). Os Estados do centro e suas
instituições introduziram um novo modo de intervenção na vida africana: "o
condicionamento político". Este permite peneirar a ajuda, outro mecanismo
financeiro que deu suas provas de utilidade e benefício em um mesmo sentido, ou
seja, o centro sempre leva vantagem em relação à periferia. Desde então os
centros utilizam este mecanismo como uma forma de acelerar os processos de
integração da África à acumulação mundial. A atual reforma política não
objetiva o desenvolvimento autônomo e autocentrado da formação social angolana,
mas a liberalização do mercado. Não é apenas isto que está em jogo em Angola,
mas constitui o objetivo principal.
Notemos, entretanto, que esta ajuda, que raramente alcança um nível
significativo, não respeita os compromissos assumidos internacionalmente, mesmo
em relação ao orçamento dos países "beneficiários". Ela é direcionada
de forma tênue às forças econômicas e populares. Ela não reforça os grupos
nacionais nem o mercado interno, elementos de uma autonomia tão necessária ao
desenvolvimento da periferia angolana. Esta ajuda não apóia o desenvolvimento e
a participação verdadeira das sociedades civis na democratização do país. Pelo
contrário, ela incrementa a corrupção do aparelho político e mascara as
relações sociais e econômicas concretas, insistindo no formalismo político que
é próprio da imagem do modelo democrático dominante dos Estados centrais:
Nós elogiamos os méritos do Estado de direito, da eleição e da
representação, e temos razão; mas esquecemos que milhares de nossos
contemporâneos vivem a maior parte de suas vidas em um mundo ' o
mundo da produção e da empresa ' onde o direito apenas se aplica
quando se faz respeitado pela força, e onde o poder é exercido
segundo os modelos que se situam em algum lugar entre o feudalismo e
o despotismo esclarecido, mas que não dizem certamente respeito à
democracia. (Latouche, 1989: 27)
O Jogo Democrático: Submissão e Resistência
Do ponto de vista etmológico, a democracia reúne dois ingredientes, o povo
(demos) e a potência (kratos), e faz referência a um sistema no qual a
soberania pertence ao conjunto de cidadãos e não apenas a um ou alguns dentre
eles. Ela é um valor e uma exigência moral, resultante da insatisfação com o
presente, da busca da restauração de uma situação de soberania e da demanda por
uma melhor ordem político-social. Como forma de organização da vida em
sociedade e como modo de regulação das relações sociais, a democracia deve
juntar as liberdades política, cívica e individual com a ordem econômica, a
igualdade social e os direitos coletivos. Tenta-se, muitas vezes, separar o
político do social e do econômico mas, na verdade, são inseparáveis porque
complementares. A totalidade democrática define-se pela articulação dessas
ordens como condição necessária à libertação dos indivíduos de todos os
condicionamentos que os oprimem, à sua participação plena no estabelecimento de
regras que têm que observar, e em todas as esferas da vida social.
A democratização da formação social angolana, segundo a versão dos Estados do
centro, reclama, de forma curiosa, o debate sobre o sufrágio universal no
século XIX, quando a burguesia européia não o aceitava por não ter a certeza de
que ganharia as eleições. De fato, as eleições tornaram-se um caminho de
legitimação da dominação desta classe e da emancipação do Estado/poder político
mais que uma ferramenta da libertação do cidadão/povo. Para que a democracia
seja efetiva e conduza à emancipação do cidadão angolano, com o aumento da sua
participação nas decisões e na criação de regras de conduta, ela deve tornar
seu o debate sobre a distribuição das riquezas nacional e mundial, com a
preocupação de justiça social e de eqüidade. Quando as elites periféricas, sob
a pressão de seus povos, demandam uma Nova Ordem Econômica Internacional, os
centros do sistema mundial fazem uma frente comum para bloquear toda
possibilidade significativa de mudança, pois hoje eles se unem para impor uma
Nova "Desordem" Mundial: "O desenvolvimento é a aspiração ao
modelo de consumo ocidental, à potência mágica dos brancos, ao status ligado a
esse modo de vida"(Latouche, 1989:27).
É sob esta perspectiva que se deve compreender porque o centro
"democrático" levou tanto tempo para se interessar pela
democratização da periferia. Mesmo atualmente, a dúvida persiste. Em 1992, os
Estados Unidos queriam, antes de tudo, fazer desaparecer o regime angolano para
instalar no poder uma outra facção, mesmo antidemocrática, que lhe fosse mais
favorável; como tal solução mostrou-se irrealizável, declararam-se, naquela
altura, dispostos a aceitar um regime dividido entre os dois. Não são, no
entanto, os centros mesmo que vêm reivindicando o "pluralismo", mas
sim a própria sociedade angolana. O centro se contenta com um formalismo
democrático, que garantirá sua supremacia e legitimará a submissão da periferia
angolana, capaz de conter as forças populares e nacionais. A era da paz e da
prosperidade, tão anunciada após a Guerra do Golfo e a assinatura dos acordos
de Bicesse, já não representam mais um paraíso ao alcance das mãos! Este fim de
século não inaugura um período de justiça e de fraternidade entre os dois pólos
do sistema mundial, mas uma confrontação possível e violenta (Rufin, 1991;
Dowden, 1992). O desaparecimento da URSS, a consolidação da Comunidade
Européia, o Tratado de Livre-Comércio das Américas e o declínio do Atlântico
comercial e militar indicam claramente que os centros empunham suas armas para
uma nova conquista colonial.
Na época da "globalização do capital", a democratização de Angola põe
em jogo a oposição entre os centros e a nação angolana, e, por outro lado,
entre as forças nacionais e populares e as forças intermediadoras. O movimento
de reificação do sistema se encaminha para uma nova etapa, na qual o centro
briga por uma maior uniformização do mundo, caracterizada pela cobiça ilimitada
do mercado livre e da propriedade privada. Isto implica uma nova legitimação da
intermediação das elites políticas e econômicas angolanas. Basta escutar as
exageradas declarações e profissões de fé de certos partidos políticos
angolanos, como se tivessem, de repente, descoberto um novo "deus". À
medida que cai o véu, os cidadãos que formam a nação angolana responderão a
este movimento conforme a história desses últimos séculos, com estratégias de
ruptura sincrônica, no início, e diacrônica, no prosseguimento. Tais
estratégias têm sua fonte nos mecanismos forjados pela libertação nacional que
eles estendem a um projeto nacional e popular, condição da construção de um
desenvolvimento autocentrado e de uma distribuição mais justa (Amin, 1990a e
1990b).
As elites angolanas perderam, em 1975, um momento crucial de reapropriação da
história nacional. Repetiram o erro em 1992, pois não entenderam a importância
desta dialética própria das sociedades civis, e do lugar que estas devem ocupar
na definição dos interesses nacionais. Os numerosos partidos
"emergentes" se autodenominam de "partidos cívicos" para se
diferenciarem dos três mais antigos. Entretanto, isto está relacionado a uma
grosseira manipulação política, já que as sociedades civis angolanas devem
permanecer autônomas10 e encontrar, por elas mesmas, a forma e o conteúdo de
sua expressão política. Elas não se confundem com o poder político ou com os
partidos e devem, pelo contrário, constituir-se como o verdadeiro local da
soberania nacional, de reivindicação e de resistência moral, econômica, social
e cultural. Daí a importância do código de coabitação nacional proposto por
Gentil Viana (entrevista ao Jornal de Angola, 22/12/1991:1 e 7; e "Sobre o
Código de Convivência Nacional", Jornal de Angola, 5/1/1992.). Este se
ocupa em estabelecer "um abrangente acordo de princípios organizados em
normas" que garantam a regulação das relações entre os cidadãos e os
partidos políticos, por um lado, e, por outro, entre esses últimos. Existe,
porém, um problema: a distinção feita entre paz militar e paz civil se presta à
confusão, uma vez que qualifica o conflito "angolano" como
"guerra civil". As sociedades civis angolanas sofreram uma guerra
entre, por um lado, duas formações políticas e, por outro, uma guerra de
agressão com invasão e conquista de forças militares estrangeiras. A paz civil
só pode ser regulada pelas próprias sociedades civis, o que remete às relações
entre as classes e os grupos sociais angolanos e sua vontade de edificar a
nação angolana, enquanto a paz militar depende dos partidos políticos
beligerantes e das forças estrangeiras envolvidas. A paz civil e a
reconciliação nacional podem e devem ser obtidas, não por um código definido
pelos partidos políticos, mas pela organização e fortalecimento das sociedades
civis, de modo a permitir a estas a imposição sobre os partidos políticos
angolanos e sobre as forças estrangeiras. Gentil Viana realizava uma corrida
contra o relógio, provocada pelo absurdo da manutenção, a qualquer preço, das
eleições em setembro de 1992, o que indica a sede de poder da sociedade
política angolana. O código de coabitação nacional deveria constituir um dos
meios que permitiriam às sociedades civis se impor e responsabilizar os
partidos políticos e o Estado.
Verdade que a democracia não elimina a relação dominantes/dominados, mas
reduzi-la a um caráter político exclusivo significa obrigá-la a permanecer
abstrata e a reproduzir as piores desigualdades que marcam tão especificamente
o sistema mundial: a arrogância e o egoísmo, de um lado, a miséria e a
humilhação, de outro. Essa situação é encontrada no interior de cada pólo do
sistema mundial (centros e periferias). Ao tornar-se concreta, a democracia
deve englobar todas as esferas da formação social angolana, a começar pela
economia. Ao se opor ao efêmero, que caracteriza as relações político-
econômicas, a democracia torna-se o espaço no qual se tecem as relações sociais
duráveis e próprias das sociedades civis. Somente uma democracia que responda a
tais exigências pode produzir os meios que a periferia angolana necessita para
restringir a reificação e a cega cobiça que marcam a globalização do capital, e
para expandir as possibilidades de construção da nação e de formação de um
Estado angolanos, condição para uma melhor redistribuição.
Os anos 90 apresentam, independente dos regimes políticos, certos indícios de
novas formas de resistência periférica à desordem reinante, fundamentalmente
diferentes das formas passadas. Elas acentuam a oposição centro-periferia,
enquanto os novos ideólogos afirmam não existir resistência ou oposição
importantes à "nova ordem" unipolar e "democrática",
dirigida pelos Estados Unidos (Carpenter, 1991:27). Estas resistências se
aglutinam em torno das formas e das expressões culturais, sem abandonar as
questões políticas, econômicas e sociais (Latouche, 1991). Elas trazem à luz a
existência e o direito de afirmar a diferença e o diferendo. Na diferença
ressalta-se aquilo que distingue e separa uns dos outros, a cultura em seu
sentido amplo. A diferença refere-se ao conjunto de caracteres que tornam a
distinção não apenas possível, como também clara. Sua definição plural
constitui, então, sua unidade. Discerne-se, no diferendo, o que pode ou deveria
uni-los e que impõe, desde o início, um debate "a propósito do justo e do
injusto".11 O diferendo é o domínio da possibilidade do desacordo e da
contestação. Ele é plural, pois baseia-se na diversidade de opiniões e na
oposição de interesses, ou seja, o reconhecimento da possibilidade de um
confronto e de um compromisso entre as partes.
Estas resistências são concernentes a valores fundamentais, ou seja, à
concepção de uma "visão de mundo" própria, à relação entre a vida e o
mundo que a cerca (cultura/natureza) e que guia a construção das
solidariedades, das alianças e das oposições. A geocultura do sistema mundial
caracteriza-se por sua pretensão universalista e pelos valores ideológicos que
a contradizem: o racismo e o sexismo (Wallerstein, 1991: 12, 158-83; 1983: 73-
93). A imposição da reificação e de tudo aquilo que ela comporta como valores
do centro do sistema revela um desprezo pelas pluralidade e identidade da
periferia. A ideologia etnocêntrica, fortemente carregada de racismo e de
sexismo, já não mais se camufla! Estes dois componentes da geocultura fizeram-
se tão importantes e visíveis que se tornaram, novamente, nos dias de hoje,
objeto da ciência e das lutas políticas entre os dois pólos do sistema e no
interior de cada um deles.12
Esta contradição no nível da geocultura produz efeitos perversos que apontam em
direção às oposições mais evidentes. Tomando como referência a experiência
angolana, ela se traduz pelas contradições que opõem a nação e os
intermediários. Mesmo entre aqueles que denunciam o racismo e o sexismo no
centro, muitos aceitam o universalismo do sistema mundial e agem em Angola com
a arrogância do dominante (classe política e dos negócios), na melhor das
hipóteses com um paternalismo de bom tom (igrejas, ONGs) ou com ignorância
"inocente" (a massa desinformada). Sentem-se, apesar de tudo, parte
integrante do centro. As possíveis resistências culturais da periferia angolana
têm assim o seu duplo, aqueles que aceitam a intermediação, na maioria das
vezes de forma consciente (as elites políticas e suas clientelas) e aqueles que
hoje não renegam a nova "solução milagrosa". Sedentos de poder,
confundem a democratização formal com a propriedade privada e o mercado livre.
O sistema mundial e seus centros investem consideravelmente na desinformação e
na difusão massiva de uma ideologia social-democrata, centrista, soft,
consensual e dogmática (cf. Huyghe e Barbés, 1987; Herman e Chomsky, 1988;
Chomsky, 1989; Terray, Moscovici, Doise et alii, 1990; Devouassoux e Labéviére,
1989; e, principalmente, Eudes, 1982),objetivando assegurar a coesão e a adesão
de todos os cidadãos à geocultura:
Este sistema de "comunicação" é o espelho de uma sociedade
da qual está ausente todo valor de compartilhar. O espelho não
reflete senão o horror. Ou a insignificância. Onde, na percepção do
sujeito, o mundo tornou-se em horror. Ou jogo. A conseqüência? Uma
poluição permanente da alma, o sentimento de impotência, a psicose da
solidão, a recusa do outro e da história. Um manto de sofrimento
jogado sobre as pessoas. (Ziegler, 1989:45)
Esta ideologia caracteriza-se pelo predomínio dos valores econômicos da
modernidade tal como concebida no Ocidente: o produtivismo, a rentabilidade, a
eficácia tecnológica e a manutenção exagerada da expansão de trocas desiguais,
tudo isso conjugado com a avidez de lucros imediatos. Face a uma ética falsa e
uma moral imoral, as resistências angolanas, em particular a luta por uma
democracia concreta e completa, dependem muito mais dos cidadãos e de suas
instituições que dos partidos políticos e do Estado. O cidadão angolano deve
distinguir esses dois níveis de ação para exercer plenamente seu direito a uma
livre escolha política e para exigir contas aos que lutam pela responsabilidade
e não pelo privilégio, de exercer o poder em seu nome.
Quando a Democracia é Também Justiça
Insistindo sobre o formalismo e a dimensão política da
"democratização", o sistema mundial finge ignorar as relações sociais
concretas e reduz a liberdade dos cidadãos angolanos à emancipação do
"pretenso Estado" e do mercado locais. Esta autonomia conquistada
emancipa-se em relação às sociedades civis, visto que ela é uma condição de
legitimação da intermediação e da dominação do mais forte. A democracia
angolana não será concreta a menos que venha a ser o mecanismo de libertação
das sociedades civis, do cidadão angolano coletivo e individual. O exagero
daqueles partidos políticos angolanos que celebraram a "vitória" do
formalismo democrático ilustra-se por uma vasta campanha de desinformação,
manejada pelos centros do sistema, para os quais o conceito de democracia está
impregnado de esperas desmedidas e portador de falsas esperanças. Estes mesmos
partidos fizeram crer que a realização da democracia formal resolverá os
problemas não apenas políticos, mas sobretudo sociais e econômicos da formação
social angolana, e que somente o capitalismo é compatível com a democracia.
Pretendem que as democracias formal e política coloquem todos os cidadãos em um
plano de igualdade, ou seja, que ela conduzirá a uma distribuição mais igual e
mais justa dos benefícios e dos recursos econômicos e sociais.
A democracia em Angola não aparecerá como uma forma de organização mais
ordenada, mais consensual e mais estável. Sua própria natureza indica que ela
constitui um compromisso que se constrói continuamente entre a desordem, o
desacordo e o movimento. Certamente ela conduzirá a uma administração política
mais aberta, mas isto não significa que a economia também o será.13 Certos
objetivos da organização da economia angolana, definidos pelo Banco Mundial e
pelo FMI ' ou seja, o direito de possuir a propriedade e reter os lucros, a
função de "depuração" do mercado, a liberdade de produzir sem
regulamentação estatal e até mesmo a privatização das empresas públicas ' podem
se tornar obstáculos à democratização de Angola. O "Estado"
democrático a ser construído em Angola terá a necessidade de deduzir taxas e
impostos e regulamentar os mais "gulosos" para evitar, o mais
possível, os monopólios, os cartéis e os oligopólios e para proteger os
direitos da coletividade da intromissão abusiva dos que possuem a propriedade.
Assim, a democracia se definirá pela pluralidade das formas de propriedade, sem
ceder à tentação de privilegiar uns em detrimento de outros. Isto significa
simplesmente que certas noções de liberdade econômica, em geral levadas adiante
pelos modelos neoliberais, não são sinônimo de liberdade política. Na maioria
das vezes, as primeiras impedem as segundas. Certos partidos políticos, por
exemplo, compram, literalmente, o voto do cidadão, outros se vendem aos países
estrangeiros para obter apoio financeiro e material.
Um futuro "Estado" democrático angolano deverá prestar contas às
sociedades civis. Daí a necessidade urgente de criar organismos possuidores de
direito de veto, totalmente independentes dos partidos políticos e do Estado e
capazes de controlar e verificar as ações destes. A meta dessas instituições
civis seria a de afirmar a soberania da nação, de vigiar a execução do mandato
confiado à sociedade política e de garantir um verdadeiro Estado de direito
democrático.
A independência ou a separação dos poderes não é um problema exclusivo da
sociedade angolana. Constantemente podemos encontrar o mesmo problema nas
"democracias" dos países do centro. Contrariamente ao que pensam os
partidos políticos, nada impede a criação de instituições que emanem das
sociedades civis e que assumam um papel de "guardião" constitucional.
O Estado e os partidos políticos não são responsáveis apenas diante do
Parlamento, mas também diante do povo. O Parlamento, peça-mestra da sociedade
política, é por excelência o lugar de legitimação do exercício do poder, ao
passo que a democracia exige que este lugar seja assumido pelas sociedades
civis.
A questão da distribuição econômica e social é essencial ao debate sobre a
democratização da formação social angolana e de suas relações com o centro do
sistema mundial. Da forma por ele considerada, esta democratização não traz
necessariamente em seu rastro o crescimento econômico, a paz social, a eficácia
administrativa, a sã, honesta e aberta governabilidade, a harmonia política, os
mercados "livres" e eqüitativos, o "fim das ideologias", e
menos ainda, o "fim da história"! Desde a colonização, os episódios
de resistência do povo angolano, ao contrário, têm sempre como pano de fundo o
desenvolvimento, em diferentes níveis, de ideologias nacionalistas e a
tentativa de retomada de sua história. Esta reestruturação se baseia na força
do movimento de reificação e insistência sobre o mercado, sobre a privatização
e sobre o formalismo eleitoral. Ela só se interessa pela criação, na periferia
angolana, das condições necessárias à reprodução do capital, pela reserva da
força de trabalho e das matérias-primas. Para que serve um crescimento
econômico, se os mecanismos e as regras de distribuição em Angola não favorecem
os produtores e os consumidores locais, mas principalmente as empresas
transnacionais, os Estados do centro, as pequenas e médias empresas
internacionais e as elites compradoras locais?
A democracia se resumiria, então, às formas de legitimação da reestruturação do
sistema mundial e do lugar que ele destina a Angola? Ela deve deixar de ser um
princípio de legitimação, que a reduz a formas de governabilidade baseadas na
autoridade do mais forte14 e reduz o espaço político angolano a uma
legitimidade reconhecida do exterior, para se transformar em um princípio de
justiça, no fio condutor da organização da nação angolana como uma totalidade.
Sua definição, enquanto legitimidade, repousa sobre a modernização liberal
ocidental que privilegia a liberdade individual, definida pelo direito como
forma de limitação do poder. É também nessa ideologia liberal que se encontra a
noção de liberdade inovadora do direito como fundamento do poder ilimitado da
vontade geral (soberania). E aí temos posições contraditórias: uma, afirmando a
precedência do direito sobre a legislação, limitando, assim, a força da
soberania; a outra estabelece que todo "contrato social" é possível a
qualquer momento. Para esta, deve se fazer tábua rasa e criar a ordenação
jurídica da sociedade de forma voluntarista. Aqui, o direito e a lei se
confundem e ambos pretendem ser a expressão da vontade geral. E é feita a
jogada, visto que esta vontade geral é identificada com a soberania do Estado e
não da nação. Aparentemente contraditórias, estas duas proposições formam uma
unidade que se tornou a coluna vertebral do Estado democrático liberal.15
Esta confusão entre legitimidade e legalidade provoca um debate muito
importante, o do Estado de direito. Ele encontra suas fontes na monarquia
absoluta francesa para a qual "a soberania é limitada pela lei divina,
natural e constitucional" e na crítica dos iluministas (Montesquieu em
particular), principalmente no "mito fundador" do formalismo
democrático que é a separação dos poderes (executivo, legislativo e
judiciário). Uma outra fonte, provavelmente mais importante, é a monarquia
constitucional inglesa. Ela pretende conceder a supremacia aos "direitos
individuais dos sujeitos" e o papel principal de controle constitucional
ao jurídico (Lauvaux, 1990:46-52). Nenhuma das partes conquistou um lugar
concreto nas sociedades civis. É ainda o liberalismo dominante do século XIX
que reduz o controle do exercício do poder político a um outro órgão do Estado.
Este deve se submeter ao direito que surgiu como por encanto,
"autônomo". O mais incrível é que o Estado de direito se parece
perigosamente com o direito do Estado, visto que o povo, ao delegar a sua
decisão, é afastado deste processo de limitação do poder. Na "democracia
representativa liberal", o Estado, sob pretexto de representar a maioria,
definiu os direitos, escolheu os indivíduos aos quais este deve ser aplicado,
indivíduos que constituem seu objeto concreto, e o quadro no qual isso deve ser
feito. A idéia de separação de poderes é reificada a tal ponto que
[...] na sua apreciação dos regimes africanos, eles (os juristas e os
professores de direito constitucional) sucumbem ao fascínio do
princípio da separação de poderes. É assim que, na quase totalidade,
os Estados africanos consagram ao menos uma linha de suas
constituições a este "princípio imortal" (de Gaudusson e
Conac, 1990:6).
O que está em pauta não é a necessidade de limitar o exercício do poder, mas o
fato de esvaziá-lo de seu sentido primeiro. Nunca será bastante repetir que, na
democracia, a soberania pertence ao povo e não ao Estado e aos partidos
políticos. Já não mais se pode confundir as reivindicações destes últimos.
Infelizmente, foi o que se passou no já célebre caso de Benguela, no qual um
partido político reivindicara, pela força, certas "propriedades",
sobrepondo-se ao respeito às regras de direito em vigor e ao próprio povo. A
atuação da justiça deve ser considerada além da prática dos tribunais e deve
incluir a distribuição das liberdades e das riquezas, dos benefícios e dos
encargos econômicos e sociais. Portanto, para garantir sua independência, a
justiça deve ser acessível a todos mas, sobretudo, ela deve ser responsável
perante o povo. Os juízes, assim como os deputados, devem ser eleitos,
existindo também a possibilidade da destituição de ambos. O Estado não deve, em
nenhum caso, ser juiz e partido. Sua posição seria, no melhor dos casos,
contraditória (instrumento e objeto), e no pior dos casos, a presa daqueles que
dominam a economia (instrumento). Estaria, assim, em uma condição de conflito
potencial (Fisk, 1989) permanente, entre a busca da justiça e a manutenção de
uma ordem social dominada por seu componente econômico: "[...] apesar dos
princípios proclamados, a justiça é, na realidade de suas relações com o poder
político, um serviço subordinado e estreitamente dependente" (de Gaudusson
e Conac, 1990:7).
O papel da justiça é de colocar os limites, mas os limites justos. Além do
aspecto formal da justiça como aparelho de Estado, a justiça justa é ainda o
refúgio das lutas para pôr um fim à dominação e à opressão (Lyra Filho, 1983:
92-127). Não pode, porém, ignorar os interesses e as reivindicações dos
dominados. Qualquer regime político não pode pretender uma justiça justa16 se
não leva em conta os modos de distribuição. À época da reestruturação do
sistema mundial, a justiça se situa nas relações que ela tece com outras
periferias e os centros do sistema, seja no interior ou mesmo no exterior da
sociedade angolana. As implicações destas relações podem ser consideráveis. A
política agrícola mundial, por exemplo, pode influenciar a determinação das
formas da propriedade fundiária em Angola, a forma de distribuição da riqueza
produzida localmente, as reivindicações e os protestos dos produtores angolanos
e a ação do aparelho jurídico do Estado.
Um Projeto Nacional e Popular?
O apoio e as alianças internacionais muito dizem sobre a natureza da partida
que se joga em Angola, durante a luta de libertação, depois da independência e
até nossos dias (Santos, 1983). Os processos de intermediação da sociedade
angolana começam bem antes de 1975. Mas a independência de Angola, apesar do
"cabo-de-guerra" entre os movimentos de libertação nacional e seus
aliados no nível do sistema mundial, foi um momento propício à
operacionalização de um projeto nacional e popular. Esta possibilidade não
podia ser admitida pelos países do centro, em particular pelos Estados Unidos
e, em nível regional, pela África do Sul. A defesa dos interesses
"nacionais" à época coloca como condição mínima uma nova partilha das
riquezas no nível da formação social angolana e no nível do sistema mundial.
Como condição máxima, esta possibilidade significaria o caminho da ruptura em
suas conseqüências últimas. É evidente que após 1975, dada a agressão militar
da qual foi vítima, Angola não possuía as condições, tanto no nível do
desenvolvimento de suas forças produtivas, quanto no que se refere às condições
políticas, para realizar tal escolha.
No que concerne à África do Sul, uma Angola independente e capaz de promover
tal projeto representaria uma ameaça política para os fundamentos do seu estado
racista. Atualmente, apesar dos acontecimentos, a ambição do capitalismo sul-
africano permanece intacta: dividir o continente africano em quatro grandes
regiões políticas e econômicas controladas por África do Sul, Egito, Nigéria e
Quênia, objetivando "garantir" um lugar para o Continente africano no
momento da reestruturação do sistema mundial em blocos comuns. O regime sul-
africano aspira o reconhecimento de sua força econômica e de sua liderança na
integração do Continente ao sistema mundial. É verdade que este é o sonho da
burguesia branca sul-africana, e que o regime do ANC tem um outro discurso.
Aparentemente, este reconhece, acima de tudo, a necessidade da formação de um
bloco econômico regional tendo como base a "redução" da dominação
sul-africana, no qual a base industrial serviria, em primeiro lugar, para
encorajar o crescimento das economias da região.
Entretanto, os problemas que a África do Sul pós-apartheid tem de enfrentar são
de tal ordem que este país será tentado a drenar certas riquezas da região para
suprir suas dificuldades. Neste caso, Angola deve se enfraquecer para se tornar
um fornecedor de petróleo e de mão-de-obra e um mercado para consumo dos
produtos sul-africanos. Os países do centro do sistema mundial não se ocupam da
possibilidade de um desenvolvimento capitalista forte em Angola, visto que a
África do Sul não necessita de concorrentes que a incomodem e que Angola deve
permanecer uma reserva essencial, principalmente de matérias-primas.
A democratização de Angola se apresenta como um fenômeno de "dupla
face". Na aparência, é uma imposição dos centros do sistema mundial, em
particular dos Estado Unidos, que buscam se apropriar para melhor controlar os
contornos e as formas e assegurar as prerrogativas de "ajuste
estrutural" em Angola. Não obstante, a periferia angolana deve adotar esta
democratização para redefinir suas estratégias nacionais e para reconstruir
novas formas de resistência popular. Angola jamais deixou de ser uma periferia
africana do sistema mundial. Sua especificidade não resulta do regime político
criado após a independência, mas de uma longa luta de libertação nacional.
Apesar de suas contradições, esta luta era portadora de uma esperança e de um
projeto nacional cuja condição mínima de triunfo repousava na concretização de
uma mobilização popular democrática para a construção da nação, nas
possibilidades de "ruptura" e na sua condição no interior do sistema
mundial.
A democracia é ao mesmo tempo um meio e um fim. Esta condição mínima repousa
sobre a existência de forças políticas locais organizadas em torno das
aspirações populares e capazes de estabelecer uma relação dinâmica com as
sociedades civis. Isto constituiria a base sobre a qual a sociedade angolana
poderia criar as condições de realização das legítimas aspirações de seu povo
que, assim, poderia criar uma produção local para satisfazer um consumo local,
ou seja, um mercado interno, autônomo e endógeno, e os mecanismos nacionais
(estatais, privados e coletivos) de distribuição para assegurar a justiça
social e econômica.
Este projeto nacional e popular, mesmo antes de qualquer aplicação concreta,
causou "arrepios" no centro do sistema mundial. A atitude deste foi
de encorajar uma saída cega, acompanhada de um furor destrutivo sem precedente
e de uma pilhagem ao estilo medieval dos colonos portugueses primeiro, da
burguesia racista sul-africana e dos intermediadores angolanos por último. A
história das relações entre Angola e os EUA está ainda para ser escrita, mas
parece sempre contrapor o interesse nacional de Angola e a exploração de seus
recursos naturais pelas transnacionais americanas à atitude arrogante e
imperial dos Estados Unidos. A potência americana, mais que qualquer outra
potência central, sempre teve um jogo duplo em um esforço de resguardar os
interesses de sua burguesia: apoio ao fascismo colonial português, ao fascismo
racista sul-africano e aos interesses do Zaire, ao mesmo tempo em que apoiou os
movimentos angolanos em cada época que representavam a maior das possibilidades
de intermediação (FNLA, UNITA e, finalmente, MPLA).
Assim, a guerra que explodiu após a independência não pode ser reduzida a uma
guerra civil. Ela contrapõe duas facções de elites políticas sem a participação
verdadeira das sociedades civis, que são as principais vítimas. É, por isso
mesmo, uma guerra de agressão: invasões de um exército estrangeiro,
financiamento, apoio logístico e material de dois Estados estrangeiros (África
do Sul e EUA). A fração dirigente, desta forma, recorreu às forças militares e
ao apoio de duas outras potências estrangeiras (Cuba e URSS). Para além dos
discursos e da propaganda das elites políticas angolanas e dos Estados do
centro, não se trata de uma guerra "étnica", "religiosa" ou
de "classes sociais". O conflito entre as duas facções das elites
deixa de ter importância, pois o que está em causa é a pretensão, por mínima
que seja, de construir um projeto nacional.
Esta guerra que quase aniquila Angola, por não conseguir eliminar a fração
dirigente, logrou dividir e tornar intermediária uma boa parte dela. Esta
situação representa um risco de suma gravidade para o projeto nacional. Apesar
da guerra, o destino do campesinato, todas as etnias confundidas, constitui um
exemplo de como as elites fracassaram em seu encontro com a história angolana.
Peça-chave na luta pela independência, o campesinato tem sido submetido e
maltratado por uns e por outros. Não obstante, existe um outro aspecto capital
para este projeto, portador de esperança. A um preço horrivelmente alto, a
fração dirigente tem sabido manter intacta a "unidade" do país e
preservar a integridade nacional, o que significa que ainda existe um cerne
nacionalista capaz de repensar a história do país. Faz-se, porém, urgente
pensar a nação e reagrupar todas as forças nacionais e populares, acima dos
partidos políticos.
A definição de um projeto nacional e popular "mínimo" deriva
diretamente da análise feita da experiência dos anos 1950-1975. A questão
crucial que os movimentos de libertação se deveriam colocar às vésperas de 1975
dizia respeito à capacidade de pensar a conquista do poder em termos dos
interesses da nação e não da ambição de suas elites dirigentes: como construir
um "Estado" que estivesse realmente a serviço da nação e do povo?
Esta questão permanece, ainda hoje, como central na "democratização"
angolana. Mas, na ausência de sociedades civis fortes e suficientemente
autônomas, capazes de vencer as alianças internas e de definir clara e
ativamente o interesse nacional, o "Estado" permanecerá debilitado
face à oposição externa (capital mundial) e interna (intermediários). Por isso
as eleições eram importantes, se bem que a pressa em realizá-las nessas
condições tenha transformado a futura "democracia" em uma noz vazia.
A democracia não se constrói em um dia, mas todos os dias. Ela deve abranger
todos os campos da sociedade angolana, na qual o ator principal é o povo e o
objetivo supremo a construção da nação, isto é, um espaço público (do povo).
Estes são permanentes. O demais é efêmero!
Notas
1. Apesar da guerra, que continuou após a independência, essas conquistas
permanecem praticamente intactas. Ver Hodges (1987) e Walker (1990).
2. À medida que o capitalismo colonial português se impunha às sociedades
africanas "angolanas", elas eram obrigadas a se submeter, não sem
resistências, e passar, sem "aviso prévio", para uma produção
essencialmente agrícola, orientada para o consumo externo (mercado mundial),
caracterizada principalmente pela produção de valores de troca (excedentes
contínuos e crescentes), em que a propriedade se lhes escapa.
3. Em uma entrevista ao jornal Sunday News (20-8-72), Agostinho Neto, médico,
poeta e presidente de um dos movimentos de libertação angolano, já afirmava que
lutar pela independência de Angola significa lutar pela construção de uma
Angola democrática, próspera e justa, da qual os cidadãos angolanos
participariam plenamente, onde poderiam expor suas opiniões, possuiriam as
riquezas do país, onde os trabalhadores receberiam um salário justo e onde a
justiça seria igual para todos (Bragança e Wallerstein, 1978, v. II: 170).
4. A autonomia da sociedade política se define em relação ao mundo exterior e
não em relação às sociedades civis angolanas. Quando nos referimos a elas,
estamos nos referindo ao povo, suas ações (práxis social) e suas instituições,
bem como às relações que se criam e se desenvolvem. Estas últimas não se
referem apenas às relações de classe. Por outro lado, não se trata aqui do
conceito de Estado-nação, identificado com o mundo ocidental, o qual
desembocou, na maior parte das vezes, na submissão da nação ao Estado e à
supremacia de uma classe social sobre o conjunto da sociedade civil.
5. "Definimos a compradorização como sendo este processo social estrutural
de articulação da economia subdesenvolvida à economia desenvolvida. Esta
palavra deriva do português "comprador", que significa
"intérprete" ou "intermediário". Os compradores são
indivíduos que atuam como agentes locais dos capitalistas estrangeiros"
(Hoogvelt, 1977:100). Optei pelos termos intermediário e intermediação Nota
do tradutor).
6. A título de exemplo, não é raro se prestar contas desta ideologia,
apresentada de forma tão sutil na imprensa ocidental. Nos últimos dez anos, a
imprensa portuguesa apresentou inúmeras reportagens sobre Angola, nas quais o
jornalista disfarça a nostalgia colonial e paternalista sobre o assunto (jamais
é ele mesmo quem fala, mas um velho negro angolano que tem "saudades"
do colono e dos bons velhos tempos) com imagens do passado.
7. Este ajuste não tem nada a ver com o ajustamento estrutural imposto pelas
Instituições Financeiras Internacionais (IFI), dominadas pelos Estados do
centro. Aqui, empregamos esta palavra para designar a elaboração e a definição
de uma posição e de uma política autônoma, nacional e africana.
8. A propósito das modificações estruturais do sistema mundial e sua
influência, devemos nos referir à excelente obra de Immanuel Wallerstein
(1991).
9. A reificação é apenas um conceito que nos permite caracterizar o estado de
transformação das relações humanas concretas (valor de uso) em relações
abstratas entre coisas inertes (valor de troca). Ela é a petrificação das
relações humanas, sua coisificação.
10. Isto significa que ela retém o poder de se organizar de maneira
independente, fora da esfera política.
11. No sentido empregado por Lyotard e Rogozinski (1985:27-34). Não se trata de
negar a importância da universalidade, mas, sobretudo, de recusar
particularidades que se impõem à periferia, como os universalismos disfarçados
pelos interesses específicos do centro.
12. O desenvolvimento das pesquisas e das lutas das mulheres tem ocasionado um
enorme salto qualitativo e quantitativo. O mesmo fenômeno pode ser constatado
em relação ao racismo. Como exemplo, citemos: Said (1978); Temu e Swai (1981);
Bernal (1987); Thiongo (1987); Amin (1988); Asante (1988); Moghadan (1989);
Gheverghese et alii (1990).
13. Ao mesmo tempo em que os centros exigem uma economia cada vez mais aberta
em Angola, eles próprios se fecham e multiplicam os controles de seus mercados
com uma preocupação excessiva de protecionismo, como demonstram as disputas do
GATT -OMC.
14. Isto leva alguns a brincar com fogo, a agir de maneira perigosa, escondendo
armas, criando um clima nocivo de instabilidade, de incerteza e de medo.
15. Ver os trabalhos simples e claros de Macpherson (1965, 1977).
16. Considera-se uma virtude social no sentido de que caracteriza relações
sociais no respeito dos direitos morais, da imparcialidade, da igualdade e do
mérito. Ela inclui, logo, a justiça social que se refere à estrutura e às
políticas de uma sociedade e à justiça econômica, que diz respeito à
distribuição dos benefícios e dos encargos econômicos.