Qualidade e Satisfação com a Prestação de Cuidados na Patologia Avançada em
Medicina Interna
O envelhecimento populacional multiplicou o número de doentes com patologias
crónicas avançadas, progressivas e debilitantes, cujo percurso se pauta por
contactos cada vez mais frequentes com instituições médicas, nomeadamente em
ambiente de internamento.
Em 2004, em Inglaterra e País de Gales, mais de 85% dos cerca de 30 mil óbitos
anuais de pessoas com idade superior aos 75 anos, ocorreu fora do domicílio.
Mais de metade destas mortes foram hospitalares. Projecções para 2030 prevêem
uma duplicação do número anual de óbitos, para esta faixa etária (1).
Para muitos doentes portadores de patologia crónica, a hospitalização equivale
a um momento de crise, consequente à alteração da condição global, muitas vezes
não totalmente reversível. Proporciona oportunidade para redefinição da
estratégia dos cuidados médicos prestados. A Medicina Interna, por definição uma
disciplina holística, é frequentemente responsável pelo acompanhamento no
internamento, dos doentes em fase terminal de vida, momento complexo e
desafiante.
O respeito pela vontade e preferências do doente terminal, na definição dos
objectivos terapêuticos, é princípio basilar na aferição da qualidade da
prestação de cuidados médicos. Em Portugal, e em especial na área da Medicina
Interna, não há informação disponível sobre a forma como a actuação da equipa
de saúde se intersecta com os objectivos pessoais dos doentes e famílias. Abrir
caminho na avaliação desta problemática, foi a principal motivação para a
realização deste documento.
MÉTODOS
Foi feito um estudo prospectivo descritivo e transversal, em ambiente de
internamento, numa unidade de Medicina Interna, com uma lotação de 46 camas e
integrada no Hospital Geral de Santo António, hospital universitário,
vocacionado para tratamento de doentes agudos e doentes crónicos
descompensados. À data do estudo ainda não haviam sido oficialmente
implementadas, a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados e não existia
na instituição nenhuma equipa especialmente vocacionada para a prática de
cuidados paliativos.
No período de tempo compreendido entre Março e Maio de 2007, dos 174 doentes
admitidos a internamento, 40 (22,9%) apresentaram critérios de inclusão no
estudo, ou seja, permaneciam internados há mais de 5 dias e tinham doença
crónica, entendida como avançada, conforme os critérios constantes na tabela 1.
Tabela 1 -
Critérios de Admissão (2).
Os dados demográficos relevantes e referentes à doença principal, são
apresentados na tabela 2. O grau de dependência inerente à patologia de base
foi avaliado pelo Índice de Karnofsky (5) e pelo Índice de Katz (6). O Índice
de Karnofsky é uma escala numérica contínua entre os valores 0 e 100, em que a
valores mais baixos correspondem maior grau de debilidade global do estado de
saúde. O Índice de Katz de Independência para Actividades Quotidianas, expresso
numa variável númerica ordinal, de zero a seis, pretende caracterizar o grau de
dependência de adultos idosos nos domínios da realização da higiene, cuidados
pessoais, transferências, alimentação e continência esfincteriana; valores mais
baixos nesta escala implicam menor grau de autonomia.
Tabela 2 - Características gerais.
Foi realizada uma entrevista directa a 33 doentes (82,5% da população elegível)
com capacidade anímica para responder a, pelo menos, três quartos do
questionário e sem déficits cognitivos (n=16), caso contrário, aos respectivos
cuidadores (n=17) (Figura 1). O questionário visava perceber a importância
relativa de vários domínios da prestação de cuidados médicos na definição da
qualidade assistencial, bem como o correspondente nível de satisfação. Uma
escala simplificada de Likert, com três níveis, foi usada para avaliar o grau de
importância ("nada importante"; "importante";
"muito importante") e de satisfação ("insatisfeito";
satisfeito"; "muito satisfeito").
Fig. 1 - Constituição da população amostral.
Foi ainda calculado o índice de oportunidade de melhoria da prestação de
cuidados, em condições idênticas a estudo anterior (7), considerando-se como
oportunidade sempre que um doente/prestador de cuidados considera estar menos
que "muito satisfeito", num item que considerou como "muito
importante". O número de oportunidades, em relação ao número total de
doentes, constitui o índice de oportunidade de melhoria da prestação de
cuidados.
Médicos assistentes, responsáveis pelo cuidado do doente nointernamento,
responderam a um questionário, inquirindo o clínico àcerca da importância que
presumia que o respectivo doente atribuía aos vários domínios do cuidar. A taxa
de resposta ao inquérito médico foi de 78,8% (n=26).
O inquérito foi conduzido por elementos externos à unidade e ao internamento,
previamente treinados para a recolha de dados, por forma a não influenciarem
respostas de doentes e familiares.
Foi construída uma base de dados no programa informático SPSS 12.0 (SPSS para
Windows, versão 12.0, SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos da América) e tratada
para estatística descritiva e inferencial. O grau de concordância entre médico
e doentes/cuidadores foi avaliado pelo coeficiente kappa, assumindo-se como
nível de significância, para os testes estatísticos efectuados, o valor de 0,05.
RESULTADOS
Importância e satisfação com o cuidados prestados
A tabela 3 mostra a distribuição dos graus de importância e de satisfação
atribuídos a cada elemento da prestação de cuidados. O índice de oportunidade
para melhoria da prestação de cuidados está igualmente listado e ilustrado
graficamente na figura 2.
Tabela 3 - Importância e Satisfação atribuída aos vários domínios do cuidar
(números absolutos).
Fig. 2 - Índice de Oportunidade para incremento da qualidade assistencial.
Os aspectos que mais contribuíram para a definição da qualidade da prestação de
cuidados dos doentes internados/cuidadores foram (1) a transmissão correcta de
informação quanto ao diagnóstico e prognóstico associado à doença, (2) a
promoção do alívio sintomático e (3) a acessibilidade a apoio ou aconselhamento
médico no domicílio. Estes aspectos apareceram referidos como "muito
importantes", positivamente destacados relativamente a outros aspectos
como a informação sobre o tratamento a efectuar, a participação de doente/
cuidadores na decisão da equipa e as questões relacionadas com a confiança na
equipa médica/enfermagem, por sua vez, mais valorizados que as questões
hoteleiras e ligadas a cuidados religiosos. Directivas de fim de vida,
nomeadamente relacionadas com a decisão de (não) reanimação, foram consideradas
como "nada importantes" por mais de metade dos doentes. O conforto
físico do internamento foi mais valorizado pelos cuidadores enquanto que os
doentes valorizaram mais "não se sentir fardo para familiares/
cuidadores".
Nenhum doente se mostrou completamente satisfeito com todos os domínios
explorados e 50% dos doentes e 30% dos cuidadores estavam muito satisfeitos na
apreciação global da qualidade assistencial. Doentes oncológicos mostraram
menor satisfação que doentes crónicos não oncológicos (X2:4,15;p=0,03). Os
doentes/cuidadores referiram estar "muito satisfeitos",
principalmente com a informação sobre a terapêutica recebida (36,4%) e com a
possibilidade de participar nas decisões da equipa (36,4%). Doentes expressaram
maior confiança que os seus cuidadores na relação de confiança com a equipa
saúde. Um terço dos doentes estava "muito satisfeito" com o alívio
sintomático conseguido em internamento, enquanto que 3% consideravam-se
insatisfeitos quanto a este aspecto. Nenhum doente se encontrava insatisfeito
quanto à atenção dispensada às questões religiosas.
Por outro lado, 6/15 doentes e 10/17 cuidadores encontravam-se insatisfeitos
com a acessibilidade a cuidados médicos, especialmente nos centrados no
domicílio; cerca de 6,3% da população em estudo estava muito satisfeita com
esta vertente dos cuidados médicos prestados.
A perspectiva de doentes/cuidadores e respectivos médicos assistentes
O alívio sintomático e o fácil acesso a cuidados médicos centrados na
comunidade/domicílio, foram percebidos pela equipa médica como os mais
importantes domínios do cuidar, sendo classificados como "muito
importante" por 88,5% e 34,6% dos médicos respondentes (Tabela 4). Cerca
de 30,8% dos médicos presumiam que os seus doentes/cuidadores valorizavam como
"muito importantes" aspectos da prestação de cuidados relativos à
informação relacionada com a terapêutica efectuada ou a efectuar e com a
possibilidade de participar nas decisões da equipa. Metade dos médicos
assistentes presumiam que os seus doentes não prestavam qualquer importância à
informação acerca do diagnóstico e prognóstico; menos de um quarto consideraram
que doentes valorizariam muito este aspecto (Tabela 4).
Tabela 4 - Importância que cada médico assistente presume para o respectivo
doente (números absolutos; poderão haver médicos que não responderam a alguns
dos itens).
Quando foi pedido aos médicos assistentes para seleccionar apenas os três
domínios mais importantes do cuidar para o doente/cuidador, o "alívio
sintomático"obteve 23/26 das respostas, seguido dos "condições
físicas do internamento" (13/26) e da "necessidade de não se sentir
uma sobrecarga para os cuidadores" (8/26).
DISCUSSÃO
Este estudo, embora de pequena dimensão, representa um primeiro esforço,
inédito entre nós, direccionado para o melhor entendimento dos factores que
mais directamente influenciam a qualidade assistencial de doentes com patologia
crónica avançada. Mesmo em hospitais gerais, tendencialmente vocacionados para
o tratamento da patologia aguda, é expressiva a percentagem de doentes
admitidos com agudizações de patologia crónica terminal. Este grupo de doentes
requer das instituições uma atenção particular ao conjunto das suas
necessidades especiais. A menor satisfação global sentida pela população
oncológica reforça a ideia que os cuidados de saúde devem ser individualizados,
centrados no doente. A clássica relação 25%/75% de peso relativo de doentes
oncológicos e não oncológicos, descrita na população geral de doentes crónicos
avançados, foi também encontrada no nosso estudo (8).
Apesar das opiniões dos cuidadores poderem não traduzir fielmente o ponto de
vista de doentes (caso tivessem capacidade cognitiva para se expressar) (9),
parece evidente que doentes e suas famílias esperam informação e acompanhamento
das respectivas instituições de saúde.
Médicos assistentes sobrevalorizaram a importância dada pelos doentes/
prestadores à discussão sobre a terapêutica, sendo claro que estes procuram
mais informação sobre diagnóstico e prognóstico e acompanhamento centrado nos
cuidados domiciliários.
Não deixa de ser um paradoxo o facto dos doentes desvalorizarem a importância
da discussão sobre decisões de fim de vida, tais como o suporte vital,
considerado item de menor importância, o que determinou um baixo índice de
oportunidade. Este comportamento espelha o contexto socio-cultural típico das
sociedades modernas, e em especial da realidade nacional, em que a morte é
ainda repudiada e os cuidados de saúde são vistos com um forte pendor curativo,
mesmo quando esta perspectiva deixou já de ser realista. Fried et al.
demonstrou que os doentes são capazes de realizar opções quanto ao planeamento
de directivas de fim de vida ou respeitantes a outras opções terapêuticas, se
conseguirem perceber os factores relacionados com agressividade das
intervenções (por exemplo, o consumo de tempo em internamento e a invasividade
dos procedimentos) e o resultado esperado, nomeadamente quanto à capacidade
funcional e cognitiva, resultante das opções adoptadas (10). Isto reforça a
necessidade da aquisição de capacidades técnicas e humanas por parte das
equipas de saúde, por forma a permitir a discussão sobre o impacto esperado da
doença e dos tratamentos nos vários aspectos bio-psico-sociais e espirituais de
doentes e cuidadores. No entanto, no nosso estudo, tal como no trabalho de
Heyland et al., parece ser mais importante que os doentes possam reconhecer
quem é a equipa responsável por eles, tê-la disponível e acreditar nas suas
capacidades e decisões, do que ser directamente responsável nas decisões (7).
Melhores acessos a cuidados (centrados na comunidade/domicílio), mais
informação diagnóstica e prognóstica, acesso a alívio sintomático e promoção de
confiança na equipa, surgem como prioridades estratégicas de melhoria da
qualidade assistencial. Tratar de doentes crónicos com patologia avançada impõe
o uso de novas abordagens, baseadas em práticas de excelência na capacidade
comunicacional, para além da aquisição de competências técnicas específicas
dirigidas ao controlo de sintomas.
CONCLUSÃO
Cuidar de doentes terminais implica construção de um plano que envolva
questionário dirigido directamente ao doente/cuidadores de modo a adequar
estratégias e aumentar a satisfação com os cuidados recebidos. Uma vez que os
médicos não têm a percepção exacta das preferências de doentes/cuidadores, a
inquirição sistemática relativamente aos múltiplos aspectos relacionados com o
cuidar permite orientar a atenção da equipa de saúde para os aspectos que vão
ao encontro das expectativas dos doentes.