Enfarte da gordura epipericárdica - A propósito de um caso clínico
Introdução
Jackson et aldescreveram pela primeira vez, em 1957, uma entidade conhecida
como enfarte da gordura pericárdica
1
. É uma condição benigna rara, de causa desconhecida, com 22 casos descritos na
literatura
2
,
3
,
4
,5,
6
,7,
8
,
9
,
10
. Em todos eles a sintomatologia é comum, caracterizada por uma dor pleurítica
aguda associada a densidades paracardíacas bem definidas na radiografia do
tórax semelhante a uma massa justacardíaca. Noutros exames imagiológicos, como
a TC torácica, que permite a caracterização da lesão e a sua localização
precisa, é evidenciado o seu conteúdo adiposo de baixa densidade e o
envolvimento do pericárdio1,4,5.
Os autores apresentam um caso desta entidade rara e, a propósito, fazem uma
revisão do tema.
Descrição do caso clínico
Doente de 48 anos, enfermeira, fumadora até há cerca de seis meses, internada a
20/07/08 no Serviço de Pneumologia por queixas de cansaço e de toracalgia, que
agravava com a inspiração profunda, a nível do hemitórax esquerdo. Trata-se de
uma doente com antecedentes conhecidos de patologia gastroesofágica com hérnia
trans-iatal, gastrite crónica atrófica, bulbite erosiva e hipomotilidade
gástrica, de atopia com rinite alérgica aos ácaros e gramíneas e com o
diagnóstico de síndrome de fadiga crónica. Encontrava-se medicada com
ciclobenzaprina e trimetazidina.
Meses antes do internamento refere agravamento das queixas de cansaço habitual,
que não valorizou, e, cerca de uma semana antes, inicia quadro de dor a nível
do ombro esquerdo e de toracalgia no terço inferior do hemitórax esquerdo, de
características pleuríticas e que melhoravam com o recurso a anti-
inflamatórios. Refere ainda aparecimento de tosse seca e de sudorese. Para
investigação do quadro realiza, em ambulatório, radiografia do tórax (Fig. 1),
que revelou presença de um derrame pleural, localizado à esquerda, confirmado
por TC de tórax e que mostrou moderado derrame pleural esquerdo, com componente
atelectásico passivo e presença de condensação parenquimatosa com broncograma
aéreo, patente a nível lobar inferior esquerdo, presença de vidro despolido
adjacente, espessamento focal pericárdico e densificação da gordura epicárdica
adjacente. Na avaliação analítica salientava-se uma proteína C reactiva (PCR)
elevada de 4,2 mg/dL, pelo que lhe foi iniciado antibiótico (amoxicilina/ /
ácido clavulânico). A doente foi internada no nosso serviço um dia depois, por
estas queixas, para investigação.
Fig. 1 – Telerradiografia do tórax postero anterior (A) e perfi l (B), que
revelou derrame pleural, visível a nível do ângulo costo frénico esquerdo
No internamento não se salientaram alterações ao exame objectivo e o derrame
pleural foi considerado pequeno, sem indicação para toracentese. Dos exames
complementares realizados, o electrocardiograma foi normal, com ritmo sinusal e
analiticamente salientava-se elevação dos d-dímeros (1,34 mg/dL), resolução dos
parâmetros inflamatórios alterados nos primeiros exames realizados (PCR) e
marcadores das conectivites negativos; a gasometria arterial não apresentavam
alterações. Face à história clínica e à elevação dos d-dímeros foi considerada
a hipótese de um tromboembolismo pulmonar, realizando uma nova TC tórax com
contraste endovenoso (Fig. 2). Este exame excluiu essa hipótese e revelou
presença de derrame pleural à esquerda e de espessamento do pericárdio e
densificação da gordura epipericárdica, compatível com o diagnóstico de enfarte
da gordura cardiofrénica epipericárdica. Efectuou ecocardiograma transtorácico
com estudo doppler, onde foi evidenciada uma pequena e fina lâmina de derrame
pericárdico circunferencial, sem repercussão hemodinâmica.
Fig. 2 – Corte de TC de tórax em janela do parênquima pulmonar (A) e em janela
mediastínica (B), que revelou espessamento do pericárdio e densificação da
gordura epipericárdica (seta)
Durante o internamento a doente teve uma evolução favorável e rápida. Manteve-
se hemodinamicamente estável, apirética, sem aparecimento de novas queixas e
com resolução do quadro de tosse e de toracalgia com o uso de analgésicos. Teve
alta medicada apenas com tratamento sintomático, para alívio da sintomatologia
álgica
Discussão
O espaço cardiofrénico é ocupado por gordura, mas pode ser sede de lesões de
outra natureza. A TC é o exame de excelência para caracterização destas massas,
contudo a ressonância magnética (RM) do tórax também pode ser útil
11
. A gordura epipericárdica acumula-se em redor, mas mais na porção anterior do
coração, e aumenta com a idade. Tem maior volume em mulheres, doentes idosos,
obesos, diabéticos e naqueles que fazem corticoterapia
12
,
13
,14. Estudos recentes sugerem que possivelmente o aumento da gordura
epipericárdica aumenta o risco cardiovascular15.
O diagnóstico diferencial de uma massa do espaço cardiofrénico inclui neoplasia
pericárdica primária ou secundária, neoplasia do pulmão, gordura
epipericárdica, hérnia de Morgagni, lipoma, lesão granulomatosa, quisto
pericárdico e quisto broncogénico7,
16
. A presença de uma massa com conteúdo líquido sugere quisto e gordura com
densidades lineares (representando os vasos do omentum) favorecem o diagnóstico
de hérnia de Morgagni16.
O enfarte da gordura pode ocorrer em diversas localizações no corpo humano. Já
foi descrita na mama, gordura peripancreática, na apendagite epiplóica, na
gordura subcutânea e na gordura epipericárdica3.
A etiologia da necrose da gordura epipericárdica e do espaço cardiofrénico é
desconhecida, sendo sugeridos o trauma, a isquemia e a obesidade como factores
predisponentes, mas casos mais recentes têm descrito situações semelhantes em
doentes magros7,10,17. Uma torção aguda de um pedículo vascular da gordura
epipericárdica com isquemia e necrose foi descrita em dois casos5,
18
. Uma hipótese colocada recentemente é a de aumento da pressão intratorácica
por uma manobra de Valsalva com elevação da pressão capilar e venosa, que
poderá levar à necrose hemorrágica4. Uma terceira hipótese é a de alterações
estruturais preexistentes do tecido adiposo de suporte, como lipoma, lipomatose
ou hamartoma, que poderia ser vulnerável aos batimentos cardíacos e ao
movimento do diafragma4.
Em todos os casos descritos os doentes eram adultos, com idades compreendidas
entre os 23 e os 67 anos1-19. A apresentação clínica é a de uma dor aguda
pleurítica grave, que pode mimetizar a dor de enfarte do miocárdio ou do
enfarte pulmonar decorrente de tromboembolismo pulmonar. Em geral é
autolimitada, durando dias a semanas, mas pode recorrer ou pode até durar
vários meses1,5. A maioria dos doentes nos casos descritos era moderadamente
obesa. O ECG era normal, com excepção de três doentes, um que mostrava
pericardite em resolução, outro com bloqueio completo de ramo direito5 e outro
com taquicardia auricular paroxística2. Radiologicamente existe evidência de
uma opacificação justacardíaca na radiografia do tórax posteroanterior,
predominantemente do lado esquerdo. Pode ocorrer derrame pleural associado. A
TC do tórax permite a localização precisa, assim como a caracterização destas
lesões. As principais características na TC são a de uma lesão adiposa de baixa
densidade, encapsulada e localizada anteriormente ao pericárdio. Estas lesões
possuem alterações inflamatórias que se apresentam como linhas densas,
espessamento do pericárdio adjacente, que indicam que a necrose ocorre no
epipericárdio, a nível da gordura mediastínica adjacente ao folheto parietal do
pericárdio. Foi também descrito um caso de uma lesão com calcificações à
periferia da lesão2, à semelhança de outros, onde está descrita necrose crónica
calcificada dos apêndices epiplóicos
19
,
20
. A RM também pode mostrar a massa com sinal de gordura, como apontado nalguns
relatos1,4,5. Apesar da clínica e dos exames imagiológicos fazerem suspeitar de
uma lesão desta natureza, muitos casos necessitam de cirurgia para o
diagnóstico definitivo1,5,7,10,17,18. As alterações morfológicas e patológicas
são dependentes do tempo da lesão e do estádio da inflamação. A toracotomia
mostra uma massa amarela fixa ao pericárdio rodeada por inflamação.
Histologicamente e nas fases iniciais, as células adipócitas necróticas são
rodeadas por infiltração de macrófagos lipídicos e neutrófilos; após dias, é
observada uma proliferação de fibroblastos, com aumento da vascularização e
infiltração por linfócitos e histiócitos na parede necrosada; com o tempo, as
células adiposas necrosadas são substituídas por macrófagos espumosos e são
encontradas células gigantes de corpos estranhos, sais de cálcio e pigmentos do
sangue; por fim, a lesão resolve com tecido de cicatrização5.
No caso que apresentamos, a doente era adulta, sem factores de risco
conhecidos, não era obesa e não apresentava trauma recente. A sintomatologia
clínica e radiológica foi típica, sendo o diagnóstico presuntivo estabelecido
pela TC de tórax. Não havia evidência de alterações estruturais na gordura
epipericárdica ou pedículo vascular descrito. Apesar de não haver diagnóstico
histológico confirmado, acreditamos que a evolução clínica e os achados
radiológicos permitem estabelecer o diagnóstico com elevado grau de segurança.
O follow-upradiológico mostra, geralmente, uma resolução espontânea destas
alterações11. Devido à sua evolução benigna e autolimitada, o tratamento
aconselhado é sintomático e conservativo3,11, como nas situações de apendagite
epiplóica abdominal3. É importante ter em mente este diagnóstico diferencial
raro de uma dor pleurítica e que se apresenta como uma massa pulmonar
paracardíaca com derrame pleural, pois as suas características radiológicas e
clínicas sugerem um diagnóstico presuntivo, podendo evitar-se técnicas
diagnósticas mais agressivas.