Cirurgia: a última profissão romântica "em memória do meu Mestre Alves Pereira
com quem aprendi a cirurgia como coisa mental"
ARTIGO DE OPINIÃO
Cirurgia: a última profissão romântica"em memória do meu Mestre Alves
Pereira com quem aprendi a cirurgia como coisa mental"
Surgery: the last romantic profession "in memory of my Mestre Alves
Pereira with whom I learned surgery as a mental subject"
Pereira Alves
Centro Hospitalar de Lisboa Central
Correspondência
A cirurgia tem conhecido nos últimos anos grandes avanços abrindo
possibilidades que parecem sem limites, com solução para tudo e com reflexos na
prática e organização que a podem desvirtuar como atividade de arte, ciência e
humanismo.
Como profissão romântica no sentido de privilegiar sentimentos e emoções
mantendo a arte e o humanismo a par da razão científica. Razão e coração.
Romantismo e iluminismo em mistura. Mistura ingénua e utópica dirão alguns
(talvez com razão). É curioso pensar que o romantismo se desenvolveu na
Alemanha e o iluminismo em França.
Entre fatores que têm influenciado a prática cirúrgica, contam-se:
- A explosão de conhecimentos e explosão tecnológica,
- O acesso dos doentes a informação médica,
- Os custos elevados e crescentes.
Estes fatores levantam riscos (a evitar) e avisos (a fazer) para que a cirurgia
não venha a perder este caracter romântico de atividade exercida como a tal
mistura de emoção e razão.
É verdade (e deve compreender-se) que a explosão de conhecimentos e de
tecnologias tem levado a crescente especialização e subespecialização da
cirurgia. Não é mais possível abarcar todas as áreas e tecnologias. Não é mais
possível o "cirurgião excelente em todas as áreas".
Torna-se necessário, dedicação a áreas especificas que permitam estar
atualizado (atuar segundo o estado da arte) e possibilitar prática com a
"massa critica" suficiente para a excelência.
Esta especialização não deve no entanto, fragmentar o todo, que é o doente,
risco maior que é apontado pelos detratores desta evolução.
Para que tal não aconteça a especialização não deve ocorrer na "fase de
formação" com o risco do cirurgião não adquirir (enraizar) a noção do todo
orgânico do ser humano e se transformar num técnico, que trata órgãos e imagens
e não um cirurgião que cuida pessoas. Um cirurgião que se deixa fascinar pela
técnica e esquece o doente no seu todo psíquico e orgânico.
A especialização deve assim surgir e idealmente por decisão própria na fase
seguinte de "Cirurgia de execução".
Igualmente se deve evitar (não permitir) que a organização do trabalho médico
seja feita como "tarefa". O médico "tarefeiro" não permite
trabalho hospitalar de equipa multidisciplinar e de planos de formação de
qualidade.
Igualmente invalidante desta cirurgia como profissão romântica uma organização
da cirurgia encarada como actividade de negocio e de mercado. Até porque são os
próprios economistas que dizem ser a medicina um negocio tao imperfeito que
quase não é mercado. ,Eu diria não é mercado nem deve ser, embora deva ter
preocupações de boa gestão e regras de oferta e procura, e de necessidades de
saúde sempre numa perspetival de "lucro social". Se a medicina for
negocio então o medico é empurrado a ser negociante.
A evolução dos conhecimentos, a realização de ensaios clínicos multinacionais,
com grandes números e qualidade, e a possibilidade de análises estatísticas de
dados clínicos fez surgir o conceito de "medicina baseada na
evidência" como um novo paradigma da cirurgia científica, mais objetivável
e coletiva, e menos arte individual; e com possibilidade de análise de
resultados, de grandes séries, que permitam elaborar normas de orientação
clinica (NOC).
Mas será a medicina baseada na evidencia de facto um novo paradigma?
Afinal o médico desde sempre tomou decisões baseado em evidências, só que no
passado eram as "suas" evidências, resultantes da sua prática clinica
individual, era uma medicina de "olho clinico", consequente e
essencialmente "arte individual" e de difícil auditoria externa,
embora estivessem sempre presentes os resultados das decisões como indicador de
qualidade individual do cirurgião.
Hoje as evidências, são coletivas e não individuais e susceptiveis de análise
externa e de auditoria.
Quer isto dizer que desaparece a arte individual? De todo tal não acontece.
De facto as NOC, não são mais que normas de orientação.
Algumas, pela quantidade e qualidade das evidências, permitem recomendações
fortes (Grau I A) as quais o médico dificilmente poderá opor evidências
individuais (p.ex. a profilaxia antibiótica ou a prevenção do Tromboembolismo
venoso).
Outras situações clinicas, as normas deixam porta aberta a várias decisões.
É para mim uma surpresa que alguns se mostram surpreendidos, que perante uma
mesma doença possa haver propostas terapêuticas diferentes, ou seja uma segunda
opinião.
É bom ter presente, que mesmo a medicina baseada em evidências contínua a
basear-se em evidências com caracter não absoluto mas de incerteza. Consensuais
mas não infalíveis.
Há mesmo situações clinicas, para as quais, não há qualquer norma ou
recomendação, são verdadeiros "buracos negros" nos quais a decisão
continua a ser individual, baseada na interpretação dos dados e na experiencia
pessoal do cirurgião, dentro de uma conduta ética de analise de benefícios-
riscos e do principio de Hipócrates "primeiro não fazer mal".
As normas são importantes e necessárias mas não acabam com a arte individual da
sua aplicação, âe' o medico que as interpreta e com senso clinico as aplica a
um doente concreto.
Deve, no entanto, ficar claro que a liberdade de prescrição do médico, deve ser
uma liberdade com responsabilidade, e que o médico tem que compreender
(aceitar) que a sua atividade é susceptivel de ser analisada (auditoria) por
agentes externos, aquilo que em gestão se designa de
"accountability", ou seja responsabilidade pelas decisões uma visão
global de benefícios/riscos/custos.
O medico deverá compreender esta analise e não a interpretar como atentado a
sua "soberania" e liberdade. Só assim manterá essa mesma liberdade.
O acesso crescente dos doentes a informação via internet ou outros meios de
comunicação é outra realidade crescente .
Mais uma vez, o médico terá que aceitar e aprender a lidar com este fator,
desde logo não se sentindo subalternizado, (p. ex. dizendo ao doente afinal
quem é o medico, sou eu, ou você com o que leu ou lhe disseram) mas com.
segurança, explicar ao doente a razão da sua opinião e deixando-o à vontade
para decisões pessoais de aceitar ou querer ouvir segunda opinião. Tudo de
maneira correta, com empatia e tendo sempre presente que a doença torna a
pessoa vulnerável e por vezes revoltada.
Custos elevados e crescentes é outra realidade inquestionável.
Cada ano a saúde ira custar mais em resultado de novos medicamentos e
tecnologias, com um aspeto assinalado pelos economistas da saúde, de que em
regra, ao contrario do verificado noutros setores, a introdução de novas
tecnologias, trazendo vantagens e aumento de qualidade, não reduzem custos, não
tornam mais barato o fazer mas permitem fazer mais e melhor.
Aliás, este progresso médico, é um dos fatores explicativos do verificado
aumento de anos de vida e qualidade de vida ( nem sempre)
Estes custos terão que ser compreendidos (dado serem benéficos para todos) e
suportados pelo cidadão.
Pensamos no entanto, que este aumento de custos, deve ser pago, a montante
(quando o cidadão não está doente) permitindo que os cuidados sejam gratuitos
quando deles necessitar (quando estiver doente)
O SNS deve ser considerado como um seguro nacional de saúde, pago pelo cidadão
quando saudável, não é nem poderá ser gratuito.
O médico, por sua vez, deve ter em consideração de que ele é parte importante e
essencial destes custos. É com as suas decisões terapêuticasque se gera
despesa. Deve assim, ser sensível, e considerar a equação do beneficio/ custo
sem por em causa a boa pratica clinica, que é alias a melhor medida de economia
em saúde, mas aceitar que a mesma possa ser analisada, (a tal
"accountability").
Esta analise a que por formação clássica é avesso, não representando uma
intromissão abusiva de atores estranhos à medicina, é uma necessidade
resultante de a medicina ser hoje das atividades de maior significado
económico, e consequentemente o fator custos e as analises de fármaco economia
( com tudo que têm de relatividade) fazer hoje parte integrante da atividade
médica.
Não é mais possível afirmar como fez Bevan em 4948, como ministro da saúde,
aquando da Criação do Serviço Nacional de Saúde Inglês: "My job is to give
you all the facilities, ressources, apparatus and help I can, and then leave
you alone as professional men or women to use your skill and judgemen without
hindrance".
Deve ser nossa convicção que apesar desta evolução no sentido de medicina mais
cientifica, baseada em evidencias coletivas, apesar das normas clinicas, da
analise de indicadores, da analise de custos, a cirurgia deve continuar a ser
uma profissão humanista, de emoção e sentimentos, logo uma actividade
romântica,uma coisa mental.
Uma profissão que exige pensar antes, durante e depois de fazer o ato cirúrgico
mesmo sabendo que pensar incomoda e dá trabalho.
Uma profissão que tem a clinica como ponto de partida para exames
complementares e decisão final.
Uma profissão que continua baseada em incerteza e não é infalivel.
Uma profissão que envolve riscos (previstos e imprevistos) e susceptivel de
erros (como atividade humana).
Mas sobretudo uma profissão com esperança de cada vez melhores resultados (o
que alias se tem verificado).
Uma profissão que continuará romântica porque (citando Arthur Miller) "uma
profissão romântica só acaba quando as suas ilusões básicas se esgotam".
Voltaire escreveu "Candide" e o Optimismo e Saint - Exupéry o
"Petit Prince". Rercordando estes escritores devemos tentar fazer o
melhor que aprendemos, sabemos e sentimos, se nos deixarem, e citando João Cid
dos Santos, não esquecer que ⦠"sendo a ultima profissão romântica, a
Medicina será sempre de melhor qualidade, quando praticada por Homens de
Cultura".
Alguma duvida?
Correspondência:
PEREIRA ALVES
e-mail: carpereiraalves@gmail.com